Seriam as palavras flatus vocis?
Nestes tempos em que se diz qualquer coisa sobre os textos legais e constitucionais, faço uma reflexão sobre “o que é isto — o texto jurídico”. Por exemplo: Se está escrito que, para que ocorra a condução coercitiva, é necessário o pressuposto da prévia intimação e da negativa de atendê-la, pode o intérprete ignorar isso? Voltamos ao nominalismo, em que só há(via) coisas particulares e as palavras são (eram?) flatus vocis?
Afinal, mormente nestes tempos de distopia epistêmica, qual a importância do texto para a interpretação jurídica? Mais do que isso: num contexto em que a totalidade de nosso acesso ao mundo se dá na e pela linguagem, qual a importância do texto para o trabalho jurídico? As respostas para estas perguntas pressupõem uma abordagem hermenêutica. Isto porque, para além do duvidoso veredicto veiculado pela desgastada crítica desferida contra interpretações que se prendem à “literalidade” do texto (no sentido de que o texto de uma norma jurídica seria apenas um ponto de partida para o processo interpretativo que deveria, necessariamente, ser completado pelo intérprete), é preciso ter em mente que o trabalho interpretativo do jurista, de um ponto de vista hermenêutico, é um trabalho de mediação de sentidos que tem a ver, basicamente, com uma explicação ou tradução de “testemunhos do passado” — carregados por textos — para um horizonte do respectivo presente.
Explicando melhor: No caso da interpretação jurídica, temos que esse processo de mediação reveste-se, ainda, da peculiaridade de se manifestar na solução de um caso concreto, que, por sua vez, também tem seus conteúdos veiculados por textos, que carregam uma dimensão do passado e que precisam ser interpretados, etc. A atividade de mediação levada a cabo pelo intérprete do direito não está apenas associada à aproximação entre a generalidade da lei e a especificidade concreta do caso; ela implica, também, mediação temporal do evento passado carregado pelo texto da lei ou do caso em face da atualidade da interpretação que se está a realizar.
Daí que, sem o texto, não há sequer como se falar em interpretação: ele representa uma espécie de pressuposto hermenêutico para o desenvolvimento de toda e qualquer atividade interpretativa. Da relação entre texto da norma e âmbito da norma (Fr. Müller), descreve-se um movimento circular que vai da concretude do caso para a dimensão mais abstrata do programa da norma (Gadamer), devolvendo sentido normativo para o âmbito da norma.
Para a Crítica Hermenêutica do Direito, sustentada na fenomenologia hermenêutica, não existe norma sem texto.[1] O que equivale a dizer: não é possível, hermeneuticamente, admitir que a interpretação desconsidere o texto. Até porque, se ela, a interpretação, desconsiderar o texto, estará mediando o quê? Qual sentido? De algum modo, há um texto legal e/ou constitucional. Não há grau zero de sentido. Gadamer dizia que o texto é como a palavra do rei: sempre vem primeiro.
O texto, nessa medida, não é apenas um conjunto de palavras que possuem o sentido sintático-semântico guardados em um grande dicionário. Vale dizer, a mediação hermenêutica entre o texto e a atualidade do sentido não é uma atividade de disputa ou discordância acerca de termos equívocos que podem denotar diversos sentidos quando empregados em uma situação concreta. A atividade mediadora, aqui, tem um espectro muito mais amplo e está associada à tradição, à historicidade do texto e às controvérsias interpretativas precisam ser encaminhadas, não a partir de uma simples terapia conceitual (que poderia restringir a complexidade semântica de significados), mas, sim, por meio de um enfrentamento do sentido que compartilhamos enquanto comunidade política.[2]
Em suma, fora do texto — entendido conforme o exposto linhas acima — não há como se falar em interpretação jurídica. Se o texto é importante, isso implica, ainda, que a sua interpretação — ou a atualização de seu sentido — não pode ser aquela mais conveniente ao desejo do intérprete. Deve haver um sentido melhor — ou mais adequado — que possa ser atribuído ao texto é que possa ser compartilhado por uma comunidade de sentido.
Estou dizendo tudo isso para que possamos refletir — uma vez mais — sobre questões triviais que perpassam o cotidiano dos juristas e que se manifestam em expressões do tipo “nada mais foi feito além de se cumprir a lei”, ou ainda, “todos os atos praticamos neste processo estão amparados pela lei”. Ora, ambas as frases apontam para o resultado de um processo interpretativo que pressupõe uma mediação de sentido absolutamente complexa e que tem, como ponto de partida, textos. Daí que é importante perguntar: essas interpretações oferecem um sentido adequado para o(s) texto(s) interpretado(s)?
Gadamer dizia: “quem quiser interpretar um texto deve primeiro deixar o que o texto lhe diga algo”. Pois parece que nossos juristas têm resistindo à voz dos textos. Eles chamam e os juristas atendem apenas quando interessa. Por isso, temos um encontro de águas bem peculiar: tudo vira política e ideologia. Quando convém, os tribunais (e os juízes) apegam-se à letra da lei; no dia seguinte, também porque convém, fazem ouvidos moucos, canibalizando o próprio material que compõe o direito.
Os exemplos são incontáveis. Tanto de um lado (texto vale tudo, inclusive com justificativas como “in claris cessat...”) como de outro (texto nada vale ou é “apenas a ponta do iceberg", em que, é claro, a parte submersa do iceberg é repleta de “valores” do intérprete). Por vezes, dá-se cinco pais a uma criança; noutros, concede-se a metade da herança para a amante; usucapião em terras públicas, por que não?; onde está escrito presunção da inocência, leia-se “não-presunção”. A lei? Ora, a lei. A lei é o que eu digo que é... Por vezes, a lei diz “muito pouco” e se faz um ativismo escancarado; noutras, em atitude self restrainting, deixa-se que a lei diga mais do que a Constituição. A questão é saber: por que o cidadão deve ficar à mercê da subjetividade de juízes e membros do Ministério Público?
Textos, palavras e coisas
Portanto, repito a pergunta: “o que é isto — o texto jurídico”? Vivemos tempos em que, em vez de fazermos palavras com coisas, estamos fazendo “coisas com palavras”. Tempos de autoritarismo, em que o personagem solipsista Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, nos assombra com seu fantasma, cujo mote era: dou às palavras o sentido que quero. Por aqui, no Pindorama law-sistem, nem isso fazemos. Aqui, nem precisamos das palavras. Elas já não valem.
Como dizia o poeta português Eugênio de Castro: Que fizeste das palavras? Que conta darás? Desde a aurora da civilização nos angustiamos com a relação “palavras e coisas”. Avançamos, pelo menos no campo da filosofia: chegamos à conclusão de que nem as coisas assujeitam as pessoas e nem as pessoas assujeitam as coisas. Traduzindo em quadrinhos: nem a lei diz tudo e nem a lei diz nada. Digo isso há mais de 25 anos. Hoje, perigosamente, estamos canibalizando o nosso próprio material de trabalho. Estamos devorando o nosso ferramental. Comportamo-nos como a ascídia, que é um animal marinho que devora o próprio cérebro após fixar residência num local que lhe pareça "tranquilo e favorável". Esse local tranquilo é o senso comum teórico. Há, pois, uma nova categoria no mundo: o juris-ascidium. O suprassumo do canibal. Eis o busílis: retrocedemos à condição de “canibalismo epistêmico”.
Repetindo-me, por causa de minha LEER: palavra é pá-que-lavra. Em grego, quem dava nome às coisas era o nomoteta. Nomos é lei. Dador de nomes. Em alemão, quem dá a lei é o legislador, não por nada chamado deGesetzgeber (dador de leis=legislador). E Gesetz é “assentado”. Pois se assentamos, civilizada e intersubjetivamente, que uma palavra significa x, não pode vir qualquer um e dizer, só porque quer, que o significado é y. Por isso, onde está escrito prévia intimação, devemos ler...prévia intimação.
A lei, a Constituição e a Sereníssima República
Busco na literatura um modo de tentar metaforizar esse “estado de natureza interpretativo” que tomou conta do Direito. Para isso, convoco o nosso Flaubert, Machado de Assis, com seu conto A Sereníssima República, na qual o Cônego Vargas relata sua descoberta: “aranhas falantes, que se organizaram politicamente”. Para quem não leu Machado, conto em quadrinhos: O Cônego lhes ofereceu um sistema eleitoral a partir de sorteio, onde eram colocadas bolas com os nomes dos candidatos em sacos. Chamou o “país das aranhas” de Sereníssima República. Claro que as aranhas arrumaram modos de driblar as próprias regras do sistema. As aranhas eram versadas no law-system pindoramense.
Com efeito, o inusitado ocorreu quando da eleição de um cargo importante para o qual concorreram dois candidatos: “Nebraska contra Caneca”. Em face de problemas anteriores — grafia errada de nomes de candidatos nas bolas — a lei estabeleceu que uma comissão de cinco assistentes poderia jurar ser o nome inscrito o próprio nome do candidato. Feito o sorteio, saiu a bola com o nome de Nebraska. Ocorre que faltava ao nome a última letra. As cinco testemunhas juraram que o nome vencedor era mesmo de Nebraska. Mas Caneca, o derrotado, impugnou o resultado. Contratou um grande filólogo, que apresentou a sua tese:
“— em primeiro lugar, não é fortuita a ausência da letra “a” do nome Nebraska. Não havia carência de espaço. Logo, a falta foi intencional. E qual a intenção? A de chamar a atenção para a letra “k”, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, na mente, “k” e “ca” é a mesma coisa. Logo, quem lê o final lerá “ca”; imediatamente, volta-se ao início do nome, que é “ne”. Tem-se, assim, “cané”. Resta a sílaba do meio “bras”, cuja redução a esta outra sílaba “ca”, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso. É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas... Vocês não entenderão. E, ai está a prova: a primeira afirmação mais as silabas “ca” e as duas “Cane”, dá o nome Caneca.”
Eis o vencedor: Caneca! Bingo! Nebraska virou Caneca. Estava na cara, pois não? E tudo feito de acordo com a lei.
O que mais posso dizer? Apenas que está na hora de pararmos com esse canibalismo. E paremos de transformar Nebraska em Caneca. Se não for por nada, que deixemos de ser canibais... pelo menos para preservar a espécie. Salvemos o que resta: a Constituição. Fora dela, é o caos. E no caos, não há direito.
[1] Desenvolvo isso amiúde, com diálogos com as teses de Fr. Müller, em Hermenêutica Jurídica e(m) crise, 11ª. Ed. (Ed. Livraria do Advogado).
[2] Sobre o que é um texto, sugiro a leitura de Ernildo Stein, no seuAproximações Sobre Hermenêutica, 2ª. Ed. Edipucrs, em especial pp.111 e segs; também o excelente Diferença e Metafísica, Edipucrs, passim.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 10 de março de 2016, 8h00
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