quinta-feira, 17 de março de 2016

CPC: conclamamos a que olhemos o novo com os olhos do novo!





Por Lenio Luiz Streck e Dierle Nunes


E o novo Código de Processo Civil chegou! Nesta sexta-feira (18/3) ele estará em vigor! E todos nós ficamos esperançosos que ele possa ao menos implementar uma aproximação verdadeira dos ditames de nossa Constituição com o contexto de aplicação cotidiano do direito.

Mas o grande desafio é o de se promover a institucionalização das garantias constitucionais que o Código busca procedimentalizar especialmente quando promove a nova regência dogmática de algumas decisões que obterão o status de precedentes normativos no quadro legislativo nele dimensionado.

Perceba-se que o CPC não atribui o nome de “precedentes” a alguns pronunciamentos judiciais por simples escolha normativa, mas pelo fato de que no novo sistema dogmático haverá procedimentos específicos, altamente dialógicos (por exemplo artigos 10 e 1.038) e com rigoroso respeito à fundamentação (artigo 489) para que tais decisões sejam assim encaradas e aplicadas em casos futuros (artigo 985, II), o que para tanto deverá exigir o cumprimento de uma série de pressupostos.

De como decisões do passado, sem o crivo do novo CPC, não vinculam o futuro
Tal advertência se faz necessária neste momento para que se evite que a partir do 18 de março de 2016, decisões formadas no passado, sem o cumprimento dos pressupostos normativos de formação que o CPC-2015 impõe, adquiram — automaticamente — a força de precedentes hábeis à aplicação imediata e sirvam como fundamento de julgamento (artigo 489, §1º, V e VI) em: a) julgamentos liminares de improcedência (artigo 332); b) tutelas antecipadas da evidência (artigo 311, II); c) decisões monocráticas (artigo 932, IV e V); d) resolução de conflitos de competência (artigo 955, parágrafo único, I e II); e) obtenção de executividade imediata de sentenças (artigo 1.012, V); f) impedimento de reexame necessário (artigo 496, §4º, II), não se olvidando de potenciais funções rescindentes (artigos 525, §15 e 535, §§5º e 8º).

Seria como se quando do advento e regulamentação das súmulas vinculantes em nosso país o Supremo Tribunal Federal houvesse aplicado às súmulas persuasivas (argumentativas), produzidas desde 1963, o status de enunciados com força vinculante, gerando uma força retrospectiva a pronunciamentos do tribunal anteriores ao advento da norma do artigo 927, CPC-2015. Ora, assim como uma súmula só é vinculante se passar pelo crivo da CF e da respectiva lei, assim também provimentos vinculantes do novo CPC só vinculam se obedecidos rigorosamente os pressupostos a partir do dia 18.

E não se trata só de um problema de direito intertemporal (artigos 14 e 1.046) mas de uma questão normativa de racionalidade e da busca contra-fática de institucionalização de um novo modo de se promover os julgamentos pelos tribunais a partir do advento da nova lei.

Muito cuidado, portanto. Quando a lei chama uma decisão de precedente (no artigo 927) está exigindo que para sua formação se respeite uma efetiva preparação dos debates (artigos 982, I e 1.037, I), o contraditório dinâmico (artigos 10, 933, 983, caput, §1º e 1.038, I e II) — de modo a se reduzir os problemas da sub-representação do uso da técnica de causa piloto —, e uma fundamentação estruturada (artigos 489, 984, §2º e 1.038, §3º).

Isto significa dizer que o disposto no artigo 927 não pode ser analisado de modo isolado, mas em efetiva correlação com o procedimento formativo já aludido e o respeito ao disposto no artigo 926, ao se respeitar a coerência, integridade e estabilidade. Se o artigo 926 diz que a jurisprudência deve ser estável, integra e coerente, é porque a formação de qualquer precedente não pode representar um ponto fora da curva. O artigo 926 servirá, entre outras coisas, para balizar e denunciar eventuais provimentos com caráter vinculante que surpreendam as partes ou que se mostrem como desvios hermenêuticos em relação à cadeia discursiva.

Atenção: não estamos defendendo o abandono da história institucional dos tribunais, como se as novas decisões (precedentes nos moldes do artigo 927), pudessem romper com os entendimentos ocasionalmente consolidados, pois é obvio que a integridade e a coerência devem ser respeitadas. Não existe grau zero de sentido.

Mas não é possível que julgados proferidos habitualmente hoje sejam considerados precedentes no sentido técnico trazido pela nova lei, especialmente quando se percebe que tais pronunciamentos são costumeiramente “decisões plurais (plurality decision)” [1] , nas quais cada juiz oferta sua própria opinião (decisão em separado), em vez de um único juiz escrever a opinião em nome de toda a corte, forjando uma decisão majoritária na conclusão (parte dispositiva) sem que nenhum fundamento, que lhe oferte sustentáculo, alcance a maioria. Não podemos olhar o novo com os olhos do velho.

Do mesmo modo, não é admissível a mantença do uso de modelos decisórios com completa abstração do caso, promovendo uma aplicação mecânica de padrões decisórios mediante simples aproximação temática seja pela vedação expressa do artigo 489, §1º, III, seja pela assunção da nova racionalidade do uso do direito jurisprudencial aqui comentada. Não é mais aceitável — se é que algum dia foi, desde a atual Constituição — que casos sejam julgados como temas, ou que se pretenda que a ratio decidendi de um precedente tenha algum sentido desprendendo-a do caso que lhe deu origem.

Como já dito, nesta sexta entra em vigor o novo CPC (Lei 13.105/2015) e todos aqueles comprometidos com uma concepção democrática esperam que este, dentro dos limites do que uma legislação possa realizar, promova a correção de uma série de comportamentos e atividades. Este é o Código da previsibilidade. Trata-se de construir condições para assegurar ao cidadão um tratamento equânime. Não mais julgamentos lotéricos. O novo CPC traz instrumentos para impedir “jogos de azar” no novo sistema. E assim deve ser lido.

Conclamamos a comunidade jurídica a um esforço conjunto para bem compreendermos esse recém nascido. Não o descartemos sem o conhecer e compreender. E não nos comportemos como aquela tribo do filme Os Deus Devem Estar Loucos. É assim:

Um piloto de um pequeno avião, sobrevoando uma aldeia de uma tribo “não civilizada”, descarta uma garrafa vazia de Coca-Cola. Os nativos olham para esse objeto estranho e não sabem o que fazer com ele. O primeiro problema é que há somente um objeto. E a tribo era enorme. Segundo problema: do que se trata? Afinal, não havia um a priori compartilhado acerca do sentido de “garrafa”. Eis a palavra: estranhamento. Alguns usam a garrafa para ralar tubérculos, outros assopram e pensam que é um instrumento musical e outro dá o sentido de arma, porque o objeto estranho é atirado e fere um terceiro na cabeça.

Depois dessas tentativas, os nativos decidem se livrar desse objeto-estranho-não linguisticizado, portanto, não compreendido. E elegem um deles — Zi — para levar o objeto e atirá-lo para fora do mundo, porque, para eles, o mundo tinha limites, era quadrado, e o tal objeto deveria ser descartado para o abismo do nada. E lá se foi o nativo, correndo para o fim do mundo. Que nunca chegou. Ele vê camadas de nuvens que cobrem/obnubilam a visão do horizonte. E lá atira o objeto-não-nominado. Que desaparece em uma espécie de “real-impossível-de-dizer”.

Que o CPC que nasce amanhã não seja um objeto estranho e não necessitemos chamar o Zi. Boas interpretações para todos!

Post scriptum: Há pessoas que se acham acima da lei!
Como todos sabem, o novo CPC adota normativamente em seu artigo 10 um modelo democrático do princípio do contraditório ao proibir decisões de surpresa e garantir sua aplicação como garantia de influência. E não nos espantou que em conclave trabalhista[2] se tenha decidido por não aplicá-lo[3]. Sim, juízes, agentes políticos do Estado, “decidiram” por não aplicar uma lei federal.

Parece que eles, como adeptos do modelo de Zi, escolhem seletivamente quais dispositivos aplicam ou não. Afinal, em Pindorama há muitas pessoas que se acham acima da lei e do devido processo constitucional!

Oremos para que o grupo de Zi seja pequeno....


1 THEODORO Jr., Humberto, NUNES, Dierle, BAHIA, Alexandre, PEDRON, Flávio. Novo CPC- Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2016.


2 http://forumtrabalhista.com.br


3 Enunciado 17) NCPC, ART. 10. ART. 769 DA CLT. PROIBIÇÃO DE FUNDAMENTO “SURPRESA”, EM DECISÃO SEM PRÉVIO CONTRADITÓRIO. INAPLICABILIDADE NO PROCESSO DO TRABALHO. PREVALÊNCIA DA SIMPLICIDADE, CELERIDADE E INFORMALISMO. Não se aplica ao processo do trabalho o art. 10 do NCPC, que veda motivação diversa da utilizada pelas partes, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. Prevalência dos princípios da simplicidade, da celeridade, da informalidade e do jus postulandi, norteadores do processo do trabalho. Resultado: aprovado unanimidade.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

Revista Consultor Jurídico, 17 de março de 2016, 8h00

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...