terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

DECISÃO JUDICIAL COMO CAUSA DE PROLIFERAÇÃO DE RECURSOS

descaso judicial como causa de proliferação dos recursos
 
Há, com certeza, um equivocado consenso entre os leigos de que a interposição de recurso constitui estratégia que conspira contra a duração razoável do processo. Realmente, dúvida não há de que um processo longo transforma-se, em última análise, em um cômodo instrumento de ameaça e pressão, uma arma formidável nas mãos dos mais privilegiados em detrimento do direito dos litigantes desafortunados! Todavia, sob a ótica da técnica processual, é evidente que a interposição do recurso previsto na lei não tem o condão, por si só, de tisnar a efetividade do processo. Se, por uma vertente, o advogado, que aspirou ser essencial à administração da justiça, ao lado do juiz, é destinatário do dever de zelar pela celeridade processual, é certo que, por outra, tem ele inarredável compromisso profissional com o seu cliente, nos quadrantes da garantia constitucional da ampla defesa.
A esse respeito, duas observações se impõem: a) havendo uma centelha de chance, na aferição objetiva e prudente feita pelo advogado, o recurso deve ser interposto; e b) a conduta abusiva, com deliberada intenção de retardar a marcha do processo, a par de ser coibida pelo Código de Ética e de trazer notório desprestígio à atuação pessoal do advogado, deve ser reprimida pelo órgão jurisdicional.
Ressalte-se, ademais, que, antes de ser o recurso a causa que propicia a lentidão, na verdade, são as “etapas mortas” — entre outras, o tempo de espera do julgamento do recurso — que determinam a intempestividade da prestação jurisdicional. Partindo-se de dados empíricos, resulta inequívoca a existência de um flagrante descompasso entre a legislação codificada e a realidade do serviço judiciário. Não é concebível — apenas para dar dois exemplos corriqueiros — que, em pleno século XXI, o tribunal ad quem, após quase dois ou três anos de angustiante expectativa dos interessados, não conheça de um recurso de apelação, porque a competência é da outra seção; ou, ainda, depois de todo esse tempo, dê provimento ao recurso para anular a sentença, pela preterição de um litisconsorte necessário. Mas não é só.
A qualidade das decisões tem deixado muito a desejar. À míngua de dados estatísticos, a experiência tem demonstrado que há uma significativa margem de recursos providos: Agravos, Apelações e Recursos Especial e Extraordinário. Nesse particular, conta muito a falta de humildade do juiz, que, na maioria das vezes, mesmo diante de um notório equívoco, deixa de reconsiderar a decisão errada, determinando a interposição de Agravo ou — o que é pior — de Apelação. Em outras oportunidades, o desprezo, pelo magistrado, à letra do texto legal ou aos precedentes consolidados, também culmina com um recurso, que, provido, acarreta o inconveniente de retornar tudo à estaca zero.
Apenas para dar um singelíssimo exemplo, dentre tantos outros análogos, causa enorme perplexidade o número de recursos providos na sessão de julgamento de 12 de dezembro de 2013 da prestigiosa 36ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo: a Apelação n. 0000166-89.2010.8.26.0581 foi provida pelos experientes e conceituados desembargadores Jayme Queiroz Lopes, relator, Pedro Baccarat e Arantes Theodoro, com fundamento na falta de atenção a regra expressa do CPC, uma vez que, segundo constou do voto condutor, “a inércia do autor autoriza a extinção do processo com base no inc. III do art. 267, que trata do abandono da causa por mais de 30 dias. E, nesta hipótese, exige-se, além da intimação dos patronos, também a intimação pessoal da parte para suprir a falta em 48 horas, em observância ao disposto no parágrafo 1º do art. 267, o que aqui não ocorreu, razão pela qual fica reformada a sentença, devendo o feito ter regular prosseguimento...”.
Este imperdoável descuido por magistrado de primeiro grau deu ensejo ao provimento, pela mesma turma julgadora, de mais dois recursos por idêntico fundamento. Ainda a guisa de exemplo, na mesma sessão de julgamento, a referida 36ª Câmara de Direito Privado proveu também mais três Agravos de Instrumento, de relatoria do ilustre desembargador Jayme Queiroz Lopes, com fundamento em error in procedendo: AI 2009587-61.2013.8.26.0000 (Apelação julgada deserta, quando o tema da gratuidade poderia ser novamente invocado), AI 2031780-70.2013.8.26.0000 (equivocado indeferimento de inclusão no polo passivo de sucessor inter vivos) e AI 2034017-77.2013.8.26.0000 (não aplicação de multa, em flagrante ofensa ao art. 461 do CPC).
Aduza-se, outrossim, que, no primeiro semestre de 2011, o CNJ, com o intuito de otimizar a gestão e o planejamento da administração da Justiça, publicou um importante diagnóstico dos 100 maiores protagonistas nos tribunais brasileiros. Colhe-se desse valioso documento que o INSS é o maior demandante, fazendo-se presente em 22,3% das ações do rol daqueles litigantes. Seguem-no a Caixa Econômica Federal (8,5%) e a Fazenda Nacional (7,4%). Verifica-se que 95% do total de demandas dessa listagem provêm do setor público, entidades financeiras e prestadoras de serviço de telefonia. Como acima observado, em muitas situações, a interposição de recursos manejados por estes mesmos litigantes aos tribunais superiores constitui um comportamento malicioso — verdadeira chicana —, para extrair da inexorável demora da prestação jurisdicional todas as vantagens e benefícios daquela decorrentes.
São potencialmente estas causas e não propriamente os recursos que retardam a tramitação do processo!
É necessário, portanto, coibir o abuso processual e jamais preconizar, de forma arbitrária, a mutilação do sistema recursal visando a tornar a justiça mais rápida!
 
José Rogério Cruz e Tucci é advogado, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo e professor titular da Faculdade de Direito da USP
Revista Consultor Jurídico, 21 de janeiro de 2014

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