A função das cortes supremas e o Novo CPC
A Corte Suprema destinada à correção das decisões dos tribunais é fruto da ideia primitiva de que a interpretação tem como resultado a declaração da norma contida na lei. Calamandrei, ao escrever sobre a Corte de Cassação nas primeiras décadas do século passado, anunciou que a Corte deveria buscar o exato sentido da lei, que seria encontrado quando, diante da reiteração de julgados, houvesse “jurisprudência uniforme”. Mediante a jurisprudência uniforme a Corte poderia revelar a norma contida no texto legal, que, então, constituiria o critério para a correção das decisões dos tribunais inferiores. Ou seja, a função de correção é vinculada à possibilidade de declaração do exato sentido da lei por meio da jurisprudência. Como a Corte tinha a função de, mediante a correção, garantir a uniformidade da aplicação da lei, pretendia-se tutelar a unidade do direito objetivo, mito atrás do qual se esconderam instâncias autoritárias dos mais variados tipos.
Porém, a ideia de que o juiz pode declarar a norma contida na lei transformou-se em caricatura. A fórmula geral das decisões interpretativas justificadas depende de valoração. Diante da evolução da teoria do direito e do impacto do constitucionalismo, admite-se que o Judiciário tem a função de colaborar com o Legislativo para a frutificação do direito. O Judiciário não só tem a tarefa de concretizar as cláusulas gerais e de controlar a legitimidade da lei perante a Constituição, mas a de atribuir sentido ao direito e desenvolvê-lo de acordo com as necessidades emergentes da evolução da sociedade.
A função da Corte Suprema, portanto, é a de definir o sentido do direito. Quer isso dizer que as Cortes de civil law não devem continuar a ser vistas como Cortes de correção. Ao decidir, o STJ agrega conteúdo à ordem jurídica vinculante, que deixa, assim, de constituir sinônimo de ordem legislada. Por consequência, a “decisão” da Corte passa a orientar a vida em sociedade e a regular os casos futuros. Se a Corte reconstrói o produto do legislativo para atribuir sentido ao direito, a igualdade, a liberdade e a segurança jurídica apenas não serão violadas se o precedente instituído for respeitado pelos juízes e tribunais inferiores. De modo que a obrigação de respeito é tão somente consequência da função contemporânea da Corte[1].
Mas não há como pensar em decisão com eficácia obrigatória sem ter claro que a jurisprudência uniforme, assim como as “máximas” da Corte de Cassação italiana e as súmulas do direito brasileiro, não estão preocupadas com as razões que determinam o resultado da interpretação. O sentido do direito está nas razões que determinam o resultado, ou seja, na ratio decidendi. Só as razões que a Corte utiliza para justificar a solução da questão de direito numa específica moldura fática dão ao juiz do novo caso condições de saber se o entendimento da Corte Suprema deve regulá-lo. Porém, ratio decidendi só existe em precedentes. Esse o simples motivo para se ter que falar em precedentes obrigatórios e abandonar as ideias de súmula e jurisprudência uniforme, comprometidas com uma perspectiva teórica completamente superada.
Na verdade, toda essa confusão pode ser eliminada mediante a distinção entre precedente e decisão do recurso. Note-se, em primeiro lugar, que as decisões das Cortes de correção simplesmente não se importam com os fundamentos, mas apenas com a conclusão do julgamento. Numa Corte de correção pouco importa se um recurso é provido a partir de fundamentos não compartilhados pela maioria do colegiado. Sucede que, quando nenhum dos fundamentos é sustentado pela maioria do colegiado, simplesmente não há ratio decidendi ou precedente. Há, nesse caso, decisão plural, ou seja, decisão majoritária embasada em fundamentos minoritários. Ora, se o direito está no fundamento e esse é compartilhado pela minoria do colegiado, o fundamento não pode orientar os casos futuros e, portanto, não há precedente.
Quer isso dizer que, numa Corte Suprema, os fundamentos objeto da discussão devem ser delimitados no início do julgamento não só para que todos os juízes efetivamente dialoguem, mas também para que discussões impertinentes, ditas obiter dicta, não ocorram. Se o desempenho da função da Corte depende da proclamação do fundamento, é preciso que todos os membros do colegiado discutam os fundamentos e que seja proclamado não apenas o resultado do julgamento, mas também a ratio decidendi e os eventuais fundamentos concorrente e dissidente.
No direito brasileiro certamente não é preciso pensar, como chega a se cogitar no direito estadunidense, em decidir os fundamentos em separado. Só há razão para decidir os fundamentos em separado quando não se admite à Corte exercer a função mais modesta de resolver o recurso sem elaborar o precedente. Contudo, as Cortes Supremas, no direito brasileiro, embora tenham a função de desenvolver o direito mediante a instituição derationes decidendi e, assim, de precedentes, podem resolver o recurso sem elaborar precedente. Portanto, obviamente não há problema em que o recurso seja provido embora nenhum dos fundamentos seja amparado pela maioria, mas há que se ter bem claro que, nesses casos, não há precedente[2].
Por um motivo lógico, mais cedo ou mais tarde a metodologia de deliberação e a fundamentação das decisões das Cortes Supremas terá que passar a obedecer a um outro padrão. Se os fundamentos devem ser efetivamente discutidos, sendo prova disso a possibilidade de intervenção de amici curiae, não há racionalidade em trazer votos escritos à sessão de julgamento. O relator deve propor um projeto de julgamento e convidar à discussão e não proferir uma decisão prematuramente justificada, que só pode convidar à adesão. Na verdade, não há qualquer racionalidade em decidir antes de deliberar nem, muito menos, em justificar por escrito antes de decidir. É muito importante perceber a distinção entre decisão colegiada e ajuntamento de decisões individuais dos membros do colegiado. A decisão colegiada depende de efetiva deliberação e é construída mediante a participação de todos os membros do colegiado, ao lado dos advogados e dosamici curiae. Quer dizer que a fundamentação escrita, ou melhor, a justificativa, só tem sentido depois de proclamado o resultado. Não há mais razão para justificar entendimentos pessoais. A justificativa deve ser dos fundamentos, ou seja, da ratio decidendi e dos eventuais fundamentos concorrente e dissidente. Nesses casos, há que se nomear redatores das justificativas de cada um dos fundamentos.
Isso nos leva ao problema do excesso do CPC na regulação do modo de ser das Cortes Supremas. É absolutamente lamentável retirar dos tribunais ordinários e atribuir às Cortes Supremas a análise da admissibilidade de todo e qualquer recurso especial e recurso extraordinário (art. 1.030, parágrafo único), esquecendo-se que essa sobrecarga de trabalho é incompatível com a função dessas Cortes. Curiosamente, o novo CPC chega a definir quando o STF deve reconhecer repercussão geral (art. 1.035). Ora, a legislação processual deve passar longe do significado de repercussão geral, uma vez que cabe apenas e unicamente ao STF dizer quando ela está presente, nos termos da norma constitucional respectiva.
O CPC também afirma (art. 927), sem qualquer constrangimento, as espécies de “pronunciamentos” que devem ser observados pelos juízes e tribunais, misturando decisão, coisa julgada e precedente. Ora, não cabe à lei dizer quais são as decisões das Cortes Supremas que têm eficácia obrigatória. Note-se que a lei não só não precisa dizer, como não pode ter a pretensão de delimitá-las. As Cortes Supremas definem o sentido da lei federal e da Constituição, agregando sentido à ordem jurídica, e apenas por isso os seus precedentes devem ser obrigatoriamente respeitados pelos juízes e tribunais. Toca às raias do absurdo elencar entre os pronunciamentos com força obrigatória as decisões proferidas em recursos repetitivos, esquecendo-se das demais decisões, inclusive das tomadas em repercussão geral no STF. Isso apenas teria lógica se a função das Cortes Supremas estivesse limitada a otimizar o trabalho do Poder Judiciário. Ora, a função das Cortes Supremas, mais do que evitar decisões diferentes para casos que se repetem em massa, dirige-se a casos que abrem oportunidade para a orientação da sociedade mediante a instituição de precedentes.
No STJ é inevitável uma modalidade de “repercussão geral”. A menos que se deseje impedir a Corte de exercer o seu papel de Corte Suprema, ou seja, de Corte que medita e delibera adequadamente sobre casos importantes para definir o sentido do direito e desenvolvê-lo de acordo com as necessidades sociais. Há que se decidir, de uma vez por todas, se é preciso oferecer mais um recurso para todos ou se é melhor ter uma Corte com condições de colaborar para o desenvolvimento do direito. Hoje, a resistência a algo similar à repercussão geral no STJ só pode ser resultado de ignorância ou de interesses egoísticos de setores que desejam manipular as decisões dos juízes e tribunais ordinários à custa da indeterminação do direito numa Corte que, por não poder se comportar como Suprema, vê-se obrigada a atuar como um grande tribunal de apelação[3].
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).
[1] Luiz Guilherme Marinoni, O STJ enquanto Corte de Precedentes, 2a. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2014.
[2] Em livro que deverá ser publicado nos próximos dias pela Ed. Revista dos Tribunais, abordei a distinção entre ratio decidendi e decisão plural e as consequências dela decorrentes: Luiz Guilherme Marinoni, O Julgamento nas Cortes Supremas – Precedente e Decisão do Recurso Diante do Novo CPC, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015.
[3] Luiz Guilherme Marinoni, A Ética dos Precedentes, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2014.
Luiz Guilherme Marinoni é professor titular da Faculdade de Direito da UFPR e advogado em Curitiba e em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 25 de maio de 2015, 8h00
Nenhum comentário:
Postar um comentário