quinta-feira, 14 de maio de 2015

Razão cínica: o livre convencimento que afaga é o mesmo que apedreja!




Duas cenas de uma peça
A dona de uma bodega (bolicho) se felicita pela prosperidade de seu negócio no meio da guerra. Ela também ganha dinheiro nessa guerra injusta e criminosa transportando bombas de uma base militar à outra. O nome dela é Mãe Coragem. Ela contempla a miséria em que a guerra transforma a tudo e a todos. Perdem-se os filhos nessa guerra. Perde-se tudo. Porém ela repete: a guerra não é todo um mal e, ademais, é meu meio de vida.

Outra cena: no começo da oitava parte de Madre Coraje, um jovem camponês chega a um acampamento de guerra com sua mãe para vender cobertores. É o décimo quarto ano da guerra. Vender cobertores já é algo habitual. É o seu único meio de sobrevivência. A mãe olha para o saco de cobertores. Seu filho baixa do ombro o saco. Que fará e o que dirá seu filho quando souber que foi firmado um tratado de paz e agora não mais venderá cobertores? Como vão sobreviver?

Eis duas passagens da peça de Brecht, Mutter Courage und ihre Kinder (Mãe Coragem e seus filhos). Das duas podemos retirar lições e fazer leituras de nossa situação. Eis a guerra “do insaciável apetite por cargos”, tão bem descrita por Valdo Cruz na Folha de S.Paulo (ler aqui). Para aprovar o ajuste fiscal, vale tudo (no direito, já fizeram um ajuste epistêmico de há muito! — basta ver o livros que estão sendo usados nas faculdades e o nível das publicações). Vender e comprar cobertores. E levar bombas de uma base à outra. “Cerca de 200 cargos — 50 federais e 150 estaduais — estarão sendo distribuídos nos próximos dias, num ritmo nunca visto na história do governo Dilma. Entre eles, de 15 a 20 de diretorias de agências reguladoras”. Bingo! 

Eis também a guerra do e no direito e da dogmática jurídica que o instrumentaliza. Contemplamos a miséria que é a aplicação do direito na cotidianidade. Brecht usava as peças para mostrar a alienação. Para ele, os personagens não sabiam que não sabiam. Pois olhando para as nossas práticas cotidianas, tenho dúvida de que não sabemos que não sabemos. Há um caminho do meio. Um misto entre alienação e razão cínica. O problema é que não sabemos quem é quem nessa “guerra”.

Em um determinado nível, parece haver uma razão cínica. Peter Sloderdijk, no livro Crítica da Razão Cínica, pega a frase de Marx, pelo qual esse dizia Sie wissen das nicht, aber sie tun es (eles não sabem o que fazem, mas fazem mesmo assim), numa crítica ao pensamento da burguesia de então. Sloterdijk inverte a frase para tratar de sua crítica da razão cínica, para dizer: eles sabem o que fazem e continuam a fazer do mesmo modo. Ele trata o cinismo em duas partes. Primeiro o kynismos, que era visto como uma crítica e depois mudou de sentido, ou seja, de uma força crítica passa, aos poucos, a assumir a "lógica dos senhores", a lógica da dominação e da justificação dessa dominação. Como bem diz Rodrigo Petrônio, a dinâmica ambivalente entre kynismos-cinismo apaga as fronteiras entre liberdade e domesticação. E essa última palavra parece ser fulcral para analisarmos o estado da arte do direito de terrae brasilis. A partir do que diz Sloterdijk, cabe a pergunta: até que ponto estamos a tratar de um senso comum multiplicador de um dado imaginário ou estamos diante de uma certa razão cínica (zynischen Vernunft) que tomou conta do ensino jurídico, da doutrina e da aplicação stricto sensu do direito?

Nessa interpretação das coisas, penso que estamos mergulhados mesmo em uma razão cínica, pela qual sabemos de tudo o que acontece, sabemos que está errado e fazemos assim mesmo. Sabemos que há um deficit de democracia quando deixamos um poder discricionário ou um poder “produto de livre convencimento” para o judiciário (em Pindorama isso acaba sendo a mesma coisa). Há até quem, na doutrina jurídica, cinicamente diz que a “simples” retirada da expressão “livre convencimento” em nada alterará o “livre convencimento”. Isso: continuemos a vender cobertores aos combatentes. E transportando bombas de um campo a outro. Afinal, todos vivemos disso, certo?

O episódio de São Paulo relatado na coluna Diário de Classe de sábado (ler aqui) marcou profundamente. Ele é o simbólico de um imaginário prevalente em uma república decadente. E de uma classe — a dos advogados —abandonada a sua própria sorte, fazendo o papel de mero coadjuvante no espetáculo em que se transformou a justiça. Sabemos que isso se repete cotidianamente. Sabemos que as alegações finais não s(er)ão lidas. E sabemos que, mesmo a juíza e o Tribunal de SP fazendo tudo o que (não) fez— ainda assim aparecerão milhares de torcedores para dizer que “isso é assim mesmo” (e que, afinal, ela tem livre convencimento...!). Guerra é guerra, diria o torturado(r). Sabemos que o direito é refém de um imaginário solipsista (Selbstsüchtiger, i.é, viciado em si mesmo), em que cada um pensa e diz o que quer e a decisão acaba sendo o resultado de uma loteria. Mas, dizemos, intimamente: “— isso tudo não é todo mal; e, ademais, é o nosso meio de vida...”. Como a dona da bodega. Eis a fórmula que justifica a razão cínica.

Do mesmo modo: o que faremos quando soubermos que foi “firmado um tratado de paz”? O que faremos quando não mais poderemos vender cobertores nessa guerra? Um dia a guerra terá fim. A raposa vai ao moinho e perde o focinho, diz a fábula. Mas vamos empurrando com a barriga a crise do direito (do mesmo modo como o governo empurra com a barriga a crise econômica e social).

Puxadinhos e gambiarras: eis os elementos “hermenêuticos” para a “superação” das crises que nos assolam. Um dos sintomas disso é a PEC da Bengala. Uma grande atrapalhada jurídica. Misturaram alhos e bugalhos. Luis Alberto dos Santos desnuda a PEC (leia aqui). A gambiarra colocada de forma antirregimental que trata das “condições do artigo 52” é digna de uma comédia do Monty Python (algo como A Vida de Brian). Quer dizer que se faz uma emenda para estender a permanência dos ministros do STF e congêneres e, ao mesmo tempo, coloca-se uma cláusula de “reconfirmação”? Como assim? Por que ninguém no mundo pensou em algo tão genial? Isso é tão inconstitucional que o porteiro do Supremo Tribunal despacha a liminar para não incomodar o ministro.

Vender cobertores na guerra é modo de sobrevivência. Por isso é que, nesta pós-modernidade midiática em que não há mais fatos e, sim, somente interpretações, ninguém se surpreende — mais do que no período entre 24 e 48 horas — com uma sucessão de acontecimentos. E tudo fica escondido atrás da próxima notícia. É como na ConJur. Saiu da capa e, puff, sumiu. Já não se fala do assunto. As redes sociais são assim. Testem o seu feicibuk. A foto de hoje é o esquecimento de amanhã. Já notaram como uma notícia rarissimamente volta a ter destaque? É a pós-modernidade. Lê-se apenas o que vem daqui para a frente. Bom, diriam, isso não é todo mal. Afinal, todos temos de vender cobertores.

Assim, as coisas somem e raramente retornam. Logo, mas logo mesmo, esqueceremos que o Procurador-Geral da República propôs projeto para relativizar a proibição de prova ilícita; que os juízes federais Moro e Bochenek escreveram um artigo no maior jornal do país dizendo que o problema do combate a impunidade é o processo penal, propondo relativizar o direito recursal; que a doutrina pindoramense aceitou passivamente a LINDB — uma lei com nome de chocolate, que apenas demonstra o fracasso da teoria do direito de um país de terceiro mundo (na verdade, já ninguém fala disso); que a doutrina e a juris(sem)prudência sepultaram a clareza do artigo 212 do CPP que estabelecia o acusatório no sistema processual penal (e que eu fui chamado de positivista porque queria apenas que se cumprisse “a letra clara da lei”); que o Tribunal de Justiça do Maranhão concedeu metade da herança a concubina adulterina com base no “princípio da afetividade” (ou algo dessa espécie pan-principiologista); que uma juíza da Bahia, em processo eleitoral, cassou um prefeito dizendo: não há provas mas eu testemunhei os fatos (com base em artigo da Lei Eleitoral que autoriza julgar por “presunções” — uma jabuticaba típica terceiro-mundista); já ninguém mais fala que na operação "lava jato", um dos réus, diretor de empresa, é defendido por Defensor Publico; em Minas Gerais, em um júri, o promotor pediu a absolvição e o assistente da acusação pediu a condenação; que inventaram os principíos (sic) da coloquialidade e da simplicidade (e mais 65 “princípios” desse jaez); que nos 27 tribunais dos estados da federação existem órgãos fracionários que utilizam a inversão do ônus da prova para condenar autores de furto, estelionato e trafico de drogas; que o Ministério Público em segundo grau não se importa se, no primeiro grau, seu colega ditou as alegações finais e o juiz já veio com a sentença pronta sem ler as respectivas peças (e o Tribunal de Justiça fez o mesmo);que pouco se cita fontes ou originalidade de ideias em Pindorama: só quem cita fonte mesmo é água mineral.[1] Onde estão essas notícias? Um bug tecnológico as comeu!

Numa palavra final: a terceirização da ciência e o “pacote de ajuste epistêmico”.
Não é preciso coadunar com as distorções da pós-modernidade. Não por mera escolha (ironia), mas porque não se pode dar o luxo de. Seria um suicídio jurídico-epistêmico. Nesse sentido, o direito aparentemente abdicou da tradição em prol de uma espécie de “carpe diem” de significações, deste modo, a própria construção do saber, que constitui historicamente o sujeito, resta ameaçada diante da plurivocidade de sentidos. 

Parece que perdemos o senso que o Direito em terra brasilis deveria serre(s)publicano. Isto é, ao invés de uma amontoado de decisões particularistas, deveria espelhar nossa comu(m)nidade jurídica e social. Alguns não despertam para realidades como esta, pois vivem alienados na/pela dogmática, outros sabem, mas fingem que não sabem, por que de alguma forma isto lhe é oportuno. Outros, como eu — ou seja, estas preocupações são compartilhadas com muitas pessoas! — ao saber que sabem, preferem assumir uma postura crítica. Ou seja, ainda que outrora vendêssemos cobertores, com o fim da guerra esta prática tornou-se sem sentido, e aí reconfiguramos nosso itinerário. Ou, mesmo que desde antes já não vendêssemos cobertores para guerra, não seria agora que acobertaríamos a crise do Direito, talvez por que de vez em quando é necessário passar um pouco frio para passar saber que existe vida lá fora.

Afinal, a discricionariedade que afaga é a mesma que apedreja. O direito não é espelho da natureza, muito menos um devaneio-onírico-idealista. Muito embora a “verdade” contida nos resumos de Direito “prêt-à-porter” nos dizer o contrário. Mas por hoje é só. Quem não conseguiu chegar até o final da leitura é porque já deve estar por aí vendendo cobertores.



[1] Por favor, não vamos (re)discutir os itens exemplificativos; sobre eles já escrevi. Apenas fiz um elenco rápido “de memória”. Para demonstrar a nossa inserção nessa guerra de venda de cobertores.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.



Revista Consultor Jurídico, 14 de maio de 2015, 8h00

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