juiz do RN e o tamanho da petição - o Nobel é nosso!
![Caricatura Lenio Streck [Spacca]](http://s.conjur.com.br/img/b/caricatura-lenio-streck1.png)
Talvez por isso as autoridades em terrae brasilis tomem posse dos cargos. Sim. Posse. E propriedade. E, fundamentalmente, domínio. Aquilo é seu. E sem accountabillity. A burocracia, que foi um dos pilares da modernidade, virou fumaça. A relação cidadão-autoridade deveria ser ex parte princípio. Só que é ex parte príncipe.
O problema nem é o fato. É o simbólico que ele representa. E ainda mais grave é o silêncio eloqüente da comunidade jurídica acerca do fato.
Uma metáfora que se encaixa no "case"Metáforas nos ajudam a entender o mundo. Li na internet e penso que encaixa como uma luva. Não há autoria certa (há vários — um deles chama Jorge Yamashita). Já a contei aqui, há algum tempo. A estória é a seguinte:
O chefe do departamento de reengenharia ganhou um convite do presidente da empresa para assistir a uma apresentação da "Sinfonia Inacabada" de Franz Schubert, no Teatro Municipal. Como estava impossibilitado de comparecer, passou o convite para o seu gerente de organização, sistemas, métodos e (neo)gestão e pediu que, depois, ele enviasse sua opinião sobre o concerto, porque ele iria almoçar com o presidente, no dia seguinte, e queria saber como havia sido apresentação.
Na manhã seguinte, quase na hora do almoço, o chefe do departamento recebeu, do seu gerente, o seguinte relatório:
1- Por um período considerável de tempo, os músicos com oboé não tinham o que fazer. Sua quantidade deveria ser reduzida e seu trabalho redistribuído pela orquestra, evitando esses picos de inatividade.
2- Todos os doze violinos da primeira seção tocavam notas idênticas. Isso parece ser uma duplicidade desnecessária de esforços e o contingente nessa seção deveria ser drasticamente cortado. Se um alto volume de som fosse requerido, isso poderia ser obtido através de uso de amplificador.
3 - Muito esforço foi desenvolvido em tocar semitons. Isso parece ser um preciosismo desnecessário e seria recomendável que as notas fossem executas no tom mais próximo. Se isso fosse feito, poder-se-ia utilizar estagiários em vez de profissionais.
4 - Não havia utilidade prática em repetir com os metais a mesma passagem já tocada pelas cordas. Se toda essa redundância fosse eliminada, o concerto poderia ser reduzido de duas horas para apenas 20 minutos.
5 - Enfim, sumarizando as observações anteriores, podemos concluir que: se o senhor Schubert tivesse dado um pouco de atenção aos pontos aqui levantados, talvez tivesse tido tempo de acabar a sua sinfonia
6. Resumindo: esse “tal” de Senhor Schubert — do qual, aliás, nunca ouvi falar — esperdiçava tempo e materiais. E era retrógrado. Um dinossauro.
Assinado: Gerente de organização, sistemas, método e (neo)gestão (obs: a assinatura era eletrônica).
Eis a metáfora dos novos tempos. A estorinha é autoexplicativa. Nem precisaria ter escrito a coluna.
O juiz do RN e a decisão mandando "encurtar" a sinfonia (isto é, a petição)Eis um retrato da pós-modernidade. Tudo pode ser twittado. Shakespeare não deveria ter escrito coisas longas e complexas. Tolstoi, nem falar. Era um chato. Bom é fazer tudo resumido. Como diz o nosso juiz do Rio Grande do Norte, “dada a quantidade de trabalho do Judiciário, os juízes não podem se dar ao luxo de ler livros inteiros no expediente”. Assim mandou — e juiz manda, pois não — que a parte agisse, “reduzindo-a a uma versão objetiva com a extensão estritamente necessária”, sob pena de ser indeferida.
Qual é o sentido de “estritamente necessário”? Teria alguém um aparelho chamado “estritômetro”? Fabricam isso por aí? No despacho, o juiz diz que a prolixidade da inicial desrespeita os princípios da celeridade e da lealdade (sic), por prejudicar a produtividade do Judiciário e encurtar o prazo para a defesa. “O tempo que o juiz gasta lendo páginas inúteis é roubado à tramitação de outro processo”, afirmou nosso juiz do RN.
Mais: Ele considerou que houve abuso do direito de petição (sic), que deve ser inibido pela Justiça. Claro: a justiça é ele! Evidente! Por isso, ele diz: “Forçar o adversário a ler dezenas, quiçá centenas, de páginas supérfluas é uma estratégia desleal para encurtar o prazo de defesa”. Como ele sabe que é supérfluo, se não leu? Hein?
Na sequência, alude: “Quem tem pressa não tem tempo de escrever dezenas de laudas numa petição, cujo objeto poderia ser reduzido a pelo menos 20% do total escrito.” Pronto. Igualzinho ao neogestor que viu a Sinfonia Inacabada de Schubert. Igualzinho.
Vamos falar um pouco de direito, Excelência? Vamos? O que é um princípio? Qualquer livro (com menos de 49 páginas que Sua Excelência considerou demasia) diz que princípios são normas. E isso é assim porque o direito é um sistema de regras e princípios. Então princípios são deontológicos. Mas qual é a sanção para o seu incumprimento? A vontade do juiz? Quer dizer que fazer uma petição com mais páginas que Sua Excelência consegue deglutir tem o condão de violar dois princípios jurídico-constitucionais?
Estamos passando todos os limites. Já não há fundamentos. É a pós-modernidade (ou sua vulgata) que assombra nossas vidas. Não há verdades. Tudo pode ser relativizado. O homem (ou o juiz) é a medida de todas as coisas. Só que essa frase é de Protágoras, o primeiro sofista da cepa. E isso parece que está superado. Ou não?
O que impressiona no caso não é o “entendimento” do juiz no sentido de que estaria sendo violado um princípio (ou dois). O que impressiona é a sua coragem. Como se diz aqui no outro Rio Grande (o do Sul), “que peito tem esse juiz, não”? O Brasil está virando um estado de natureza interpretativo. É a guerra de todos contra todos. Cada um decide como quer. Cada um diz o que quer. Diz-se qualquer coisa sobre qualquer coisa. Um dia a conta vem. Aliás, a conta está a caminho. E a cavalo. As ruas estão mostrando o estado de natureza. Não se obedece mais as leis. Aliás, o que é a lei? A lei é o que juiz diz que é. Não é isso que se "ensina" nas faculdades por aí?
Quando tem gente que diz que “Gadamer inventou o método concretizador” e que Kelsen é um exegeta, por que um juiz não pode indeferir uma sinfonia (quer dizer, uma petição) alegando um conteúdo que não leu? Fossemos médicos, ainda não teríamos inventado a penicilina.
Refaço a pergunta: a justiça tem jeito? Cartas para a coluna.
Numa palavra final.Não é implicância minha. Mas o cotidiano das práticas jurídicas “não se ajuda muito”. Assim como o cotidiano dos cursinhos e das faculdades. A vingar a tese do juiz do RN, cada juiz de terrae brasilis poderá estabelecer o número de folhas de cada petição inicial ou de cada contestação ou de cada apelação, etc. Como o personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, cada um dá as palavras (da lei) o sentido que quer. O único problema é que, nesse contexto, muitas das decisões, por exemplo, do ministro Celso de Mello serão nulas, porque demasiado extensas... (sob a ótica do juiz do RN, certo?). E quantas outras decisões do STF e de outros tribunais... Aliás, quantas páginas possui o caso Battisti? Vão invocar a lesão ao meio ambiente? Derrubaram muitas árvores para fabricar o papel usado? Também nesse diapasão os votos dos ministros do STF terão quer limitados em termos de minutos na TV Justiça. E, se a moda pegar mesmo, os livros terão que se adaptar aos tempos de twitter. PS: o que sobra nisso tudo é que os únicos que tem que se moldar às exigências (i)legais do Judiciário...são os advogados. Bingo.
Mas o que mais me intriga é a invocação de princípios por parte do juiz exatamente para a prática de uma ilegalidade. Esse é o paradoxo. Invocar a igualdade para solapar exatamente a igualdade. Sim, porque o que o juiz fez foi aplicar a lei segundo a sua régua. A própria regra (dele). E isso é praticar a mais “perfeita” desigualdade. Isso para dizer o mínimo.
Como se lê em Grande Sertão, Veredas — sim, esse livro de Guimarães Rosa, que tem mais de 49 páginas e que é aquele autor que, certa vez, Pedro Bial equiparou ao programa Big Brother ou vice-versa (e por isso vou estocar comida e construir um bunker):
“a água só é limpa nas cabeceiras… O mal ou o bem estão em quem faz. Não é no efeito que dão.
O senhor ouvindo, me entende”!.
Paro por aqui, para não ter minha coluna indeferida por violação do princípio da economia de caracteres.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 17 de abril de 2014
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