Doutrina se concentra em luta de interpretações e argumentos
O direito é o único campo do conhecimento em que o autor não é chamado de autor, mas de doutrinador. Mas por quê? O que está por trás desta diferença de nomenclaturas? Em que medida isso impacta na forma como o direito é concebido pelos diversos profissionais?
Não quero fazer uma digressão histórica sobre quando começou o uso do termo ou sobre as raízes jurídicas remotas dele. A análise histórica me ajudaria a entender a origem, mas não o motivo pelo qual ainda se reproduz a ideia de “doutrinador”. A minha análise se aproxima mais da sociologia do que da história, ao menos da história (mal) contada pelos juristas (que se aventuram em relatar fatos históricos a partir de outros juristas, e assim por diante).
O fato é que a palavra “doutrinador” traduz uma forte autoridade pelo que se escreve. Quem é doutrinador carrega uma doutrina, um dogma, isto é, um ponto de partida inquestionável. Sob a aura de um pretenso saber técnico que lhe permite afirmar o que pretende, o doutrinador é visto como uma pessoa quase sobrenatural. Pelo fato de escrever um livro ou publicar um artigo, é adjetivado como “ilustre”, “festejado”, “renomado”, etc.
Não é por acaso que a doutrina deve ser tradicionalmente exposta num esquema pré-existente, que reforça a validade do doutrinador em relação ao que ele escreve. Por exemplo, não é incomum encontrar um livro de direito que obedece à seguinte sequência: i) introdução; ii) evolução histórica; iii) conceitos; iv) fontes do direito; v) princípios; vi) conteúdo efetivo; vii) considerações finais. Trata-se de um paradigma que não ajuda muito a entender o direito atual!
Além do esquema quase sempre obedecer a esta sequência lógica, as teorias e a transformação social são frequentemente apresentadas nos textos a partir de uma dialética simplista tendente à consensualidade. Por exemplo, no direito penal existe a teoria objetiva do crime (teoria A) e, no lado diametralmente oposto, existe a teoria subjetiva do crime (teoria B). Além disso, após a formulação das teorias A e B, uma pessoa iluminada criou a teoria objetiva-subjetiva (teoria C ou teoria mista). E assim, de evolução em evolução, o mundo é apresentado como um caminho rumo ao consenso da teoria mista. Sem falar nos doutrinadores que chegaram atrasados, mas querem “doutrinar”, e escrevem a teoria D, que basicamente nega a existência de crimes nas sociedades contemporâneas.
Outra característica da doutrina jurídica é justamente o fato dela se concentrar num mero conflito de interpretações e argumentos. Toda interpretação e argumento têm interesses por trás, e todo interesse tem valores que lhes dá sustentação. Essa é a regra básica da negociação, por exemplo. Porém, ao se concentrar apenas na discussão superficial da ponta do iceberg (interpretações e argumentos), a doutrina jurídica não revela os verdadeiros interesses e valores que orientam a defesa de um lado ou de outro. Afinal, eu posso defender as pesquisas com células-tronco porque eu acredito que isso trará melhorias aos seres humanos, mas o meu interesse também pode ser porque a minha esposa tem um laboratório que lucraria muito com isso. Ao focar somente no lícito, ilícito, constitucional, inconstitucional, certo, errado, perde-se a grande chance de se pensar os problemas jurídicos de maneira mais aprofundada do que o mero conflito de opiniões. Interpretações e argumentos são importantes, mas não bastam. Precisamos saber os interesses por trás das posições.
Obviamente, este vício encontra ampla aderência no campo do direito. Ao se fundarem neste caráter sacro dos doutrinadores – assim como fazem com a famosa “intenção do legislador” -, os profissionais do direito tendem a reproduzir uma visão caricatural dos problemas jurídicos numa (falsa) confiança de que o doutrinador, em razão de sua suposta autoridade, pode ser a chave para a compreensão do mundo.
É inegável que há doutrinadores que buscam ir além disso e produzem um conhecimento realmente aprofundado, empírico e denso. Há outros que até se recusam a serem chamados assim e defendem que o conhecimento do direito deve superar a discussão sobre o “dever ser”. Assim, este artigo não tem qualquer pretensão de generalização e seria leviano de minha parte fazê-lo. Porém, torna-se especialmente relevante uma ruptura de paradigma no direito, em que o doutrinador seja visto e concebido como um humano-autor e que haja um maior senso de autonomia e coragem por parte dos profissionais do direito na produção do conhecimento.
Felipe Asensi é advogado e professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio).
Revista Consultor Jurídico, 15 de abril de 2014
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