Falsa carência e cabimento dos embargos infringentes
Preferindo prestigiar o velho instituto de origem lusitana — e sem qualquer justificativa plausível —, foi o recurso de embargos infringentes acolhido na atual legislação processual civil em vigor.
Assim, fiel à tradição, os embargos infringentes continuaram a ser admitidos como o recurso interponível perante o mesmo tribunal de que emanado provimento judicial não unânime, proferido em apelação ou em ação rescisória.
Até o advento da reforma processual instituída pela Lei 10.352/2001, tal meio de impugnação, a teor do artigo 530 do Código de Processo Civil, tinha cabimento, em princípio, contra acórdão, não unânime, de qualquer natureza (terminativo ou definitivo), proferido em apelação ou em ação rescisória.
Cumpre observar que, na prática, a desmedida procrastinação do procedimento recursal decorrente da interposição dos embargos infringentes abonava a tese em prol de sua extinção, sendo certo que, nesse particular, o valor da celeridade deveria se sobrepor ao anseio de justiça da decisão.
Não obstante, infenso às críticas, o reformador acolheu integralmente a ponderada sugestão de Barbosa Moreira, que, de lege ferenda, propusera restringir o cabimento do recurso, “excluindo-o em alguns casos, como o da divergência só no julgamento de preliminar, ou em apelação interposta contra sentença meramente terminativa, e também o de haver o tribunal confirmado (embora por maioria de votos) a sentença apelada...” (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 5, 15ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2009, pág. 524).
A leitura da primeira parte do renovado artigo 530 revela que efetivamente a interposição dos embargos infringentes ficou reduzida a duas únicas hipóteses, quais sejam, quando o acórdão não unânime, que tiver julgado o mérito da causa: a) houver reformado, em grau de apelação, a sentença; e b) houver julgado procedente o pedido deduzido em ação rescisória.
Verifica-se que, na atualidade, não mais se admite o referido recurso contra julgamento de apelação em que a divergência ocorra sobre o objeto formal do processo (pressupostos processuais e condições da ação), ou, ainda, quando o acórdão confirmar, por maioria, a sentença de procedência ou de improcedência.
Doravante, pois, a adequação dos embargos infringentes contra acórdão proferido em apelação exige dois pressupostos, a saber: i) que tenha sido provido o recurso por maioria de votos para reformar a sentença; e ii) que a divergência diga respeito ao meritum causae, ou seja, ao objeto material do processo (cf., a propósito, Recurso Especial n. 645.437-PR, 1ª Turma do STJ, rel. Min. Teori Albino Zavascki).
De um lado, confere-se aí maior prestígio às sentenças de 1° Grau, e, de outro, evita-se discussão, muitas vezes de cunho meramente acadêmico, sobre tese de natureza processual.
Considerando a redação do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, vem atribuída ao Superior Tribunal de Justiça a prerrogativa de julgar em recurso especial “as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios”.
Desse modo, conclui-se que apenas os pronunciamentos emitidos por órgãos colegiados de 2° Grau são passíveis de impugnação por meio do recurso especial. A supra citada regra constitucional impõe, portanto, como pressuposto genérico de admissibilidade do recurso especial, que não sejam cabíveis embargos infringentes contra o acórdão, alvo da impugnação.
É exatamente este o teor do enunciando da Súmula 207 do STJ: “É inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o acórdão proferido no tribunal de origem”.
Delineia-se, assim, imprescindível o esgotamento das “vias recursais ordinárias” para que tenha cabimento o recurso especial.
Saliente-se, por outro lado, que a imprecisão da redação do artigo 530 do CPC tem gerado notória polêmica na doutrina e na jurisprudência.
Todavia, a análise do posicionamento mais recente de nossas cortes acerca dessa questão demonstra que a melhor orientação é a que realmente inadmite a oposição de embargos infringentes quando o acórdão, por maioria de votos, extinguir o processo sem julgamento de mérito.
Precedente da 2ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial 953.894-PR, teve oportunidade de assentar que: “A Lei 10.352/01, ao alterar a redação do artigo 530 do CPC, restringiu o cabimento dos embargos infringentes às hipóteses em que houver reforma da sentença de mérito por acórdão não unânime em apelação ou julgamento de procedência de pedido formulado em ação rescisória por acórdão não unânime”.
Esse mesmo posicionamento prevaleceu em julgado da 4ª Turma do STJ, já agora no Recurso Especial 1.223.610-RS, relatado pela ministra Maria Isabel Gallotti, textual: “Não são cabíveis embargos infringentes contra acórdão que, por maioria, reforma sentença de mérito, reconhecendo a existência de coisa julgada, o que ensejou a extinção do processo sem exame do mérito”.
Em suma: à luz da legislação processual em vigor, os embargos infringentes são cabíveis apenas contra acórdão não unânime, proferido em apelação, que enfrenta o mérito da controvérsia!
Todavia, em algumas circunstâncias excepcionais, a despeito de o processo ser aparentemente extinto, em grau de apelação, sem julgamento do mérito, na verdade e por paradoxal que possa parecer, o tribunal enfrenta matéria de fundo.
Com efeito, a 3ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial 932.119-SC, de relatoria do ministro Paulo Sanseverino, foi instada a interpretar situação na qual o tribunal de origem, por maioria de votos, reformou a sentença de 1° Grau, acolhendo os embargos à execução e extinguindo a execução por força de carência da ação.
Nesse caso, o STJ destacou o cabimento dos embargos infringentes exatamente porque, “ao analisar a nulidade do título em razão do desvio de finalidade, o acórdão embargado realizou verdadeiro juízo de mérito...”.
Aduza-se que, a respeito dessa temática, em particular sobre as condições da ação, noticia Machado Guimarães que o próprio Liebman chegou a admitir, em conferência proferida no ano de 1949, que: “todo problema, quer de interesse processual, quer de legitimação ad causam, deve ser proposto e resolvido admitindo-se, provisoriamente e em via hipotética, que as afirmações do autor sejam verdadeiras; só nesta base é que se pode discutir e resolver a questão pura da legitimação ou do interesse. Quer isto dizer que, se da contestação do réu surge a dúvida sobre a veracidade das afirmações feitas pelo autor e é necessário fazer-se uma instrução, já não há mais um problema de legitimação ou de interesse, já é um problema de mérito” (Carência de ação, Estudos de direito processual civil, Rio de Janeiro, Ed. Jur. e Univ., 1969, pág. 102).
Enfatiza, a propósito, José Roberto dos Santos Bedaque que, considerada a dogmática processual, o único modo de traçar a distinção da categoria das condições da ação do mérito da demanda é pela profundidade da cognição. Se, por exemplo, o juiz, após exame profundo do fato constitutivo afirmado na inicial, conclui pela ilegitimidade passiva do réu, na verdade, ele está julgando improcedente o pedido. “Essa visão do fenômeno ‘condições da ação’ amplia a possibilidade de o processo cognitivo terminar com sentença de mérito, afastando o grande número de falsas extinções por carência, que tantos problemas têm causado ao sistema” (Efetividade do processo e técnica processual, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 2010, pág. 258).
Cumpre registrar que tal doutrina foi expressamente prestigiada em recente acórdão cujo voto condutor é da lavra da ministra Nancy Andrighi, proferido pela 3ª Turma do STJ no julgamento do Recurso Especial 1.157.383-RS. Admitindo o cabimento dos embargos infringentes, restou então decidido que, in verbis: “A atual redação da norma, conferida pela Lei 10.352/01, passou a fazer referência expressa à reforma de ‘sentença de mérito’, de sorte que, uma análise isolada e apriorística do dispositivo legal, indica a intenção — ao menos aparente — do legislador, de excluir do rol de acórdãos suscetíveis de embargos infringentes aqueles em que sejam proferidas decisões terminativas. Argumentar-se-ia, nesse sentido, que, a teor do que estabelece o artigo 268 do CPC, o trânsito em julgado de uma decisão terminativa não impede a parte de retornar a juízo com igual pretensão, instaurando um novo processo, motivo pelo qual não haveria nenhuma violação do direito de acesso à justiça, tampouco negativa de prestação jurisdicional. Há de se ter em mente, no entanto, que em se tratando de condições da ação, não obstante a matéria seja formalmente considerada processual, ela na prática pode envolver a análise do próprio mérito da controvérsia. Diante disso, assume relevo a teoria da asserção, que ganha expressão na doutrina, secundada por juristas como Ada Pellegrini Grinover e Kasuo Watanabe. Para os adeptos dessa teoria, como é o caso também de José Roberto dos Santos Bedaque, na análise das condições da ação ‘se o juiz realizar cognição profunda sobre as alegações contidas na petição, após esgotados os meios probatórios, terá, na verdade, proferido juízo sobre o mérito da questão’ (Direito e Processo, São Paulo:RT, 1995, p. 78). Em outras palavras, sempre que a relação existente entre as condições da ação e o direito material for estreita ao ponto da verificação da presença daquelas exigir a análise desta, haverá exame de mérito. Ainda que tacitamente, a teoria assertiva encontra respaldo em julgados desta Corte, nos quais entendeu-se que a decisão acerca das condições da ação implicou numa sentença de mérito. Confira-se, nesse sentido, os seguintes precedentes: REsp 1.680/GO, 4ª Turma, Rel. p/ acórdão Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 13.02.1990; REsp 2.185/GO, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de 14.05.1990; REsp 86.441/ES, 1ª Turma, Rel. Min. José de Jesus Filho, DJ de 07.04.1997; REsp 103.584/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 13.08.2001. Assim, em respeito ao devido processo legal, o artigo 530 deve ser interpretado harmoniosa e sistematicamente com o restante do CPC, admitindo-se embargos infringentes contra decisão que, a despeito de ser formalmente processual, implicar análise de mérito. Essa exegese se faz necessária inclusive para fazer valer a vontade do próprio legislador que, na justificativa do projeto da Lei 10.352/01, afirmou somente ser conveniente manter os embargos infringentes quando ‘a divergência tenha surgido em matéria de mérito, não simplesmente em tema processual’. No que tange especificamente à legitimidade ad causam, sua verificação invariavelmente exige a análise da lide em concreto, havendo enorme dificuldade prática em separar tal questão do mérito da causa. Ainda que se admita o exame da legitimidade in statu assertiones, muitas vezes é no curso do processo que se chega à efetiva decisão sobre tal condição da ação, importando, dessa feita, na análise da relação jurídica de direito material. Na espécie não foi diferente. Verifica-se que o juiz de 1º Grau de jurisdição somente se pronunciou acerca da legitimidade passiva por ocasião da prolação da sentença, depois de toda a prova ter sido carreada aos autos. Também o TJ-RS, ao reformar por maioria a sentença, concluindo pela extinção do processo em relação ao banco com fulcro no artigo 267, VI, do CPC, foi obrigado a se imiscuir no próprio mérito da ação, notadamente a efetiva participação da instituição financeira no resultado danoso. Note-se, por oportuno, que a natureza da decisão, se processual ou de mérito é definida por seu conteúdo e não pela mera qualificação ou nomen juris atribuído ao julgado, seja na fundamentação ou na parte dispositiva....
Aduza-se que a Constituição Federal assegura expressamente a todos os sujeitos de direito a garantia de acesso a justiça (artigo 5º, XXXV e LIV) e da ampla defesa, com todos os meios e recursos em lei admitidos (artigo 5º, LV).
Desse modo, verifica-se que, para esgotar a via recursal ordinária, diante da situação acima descrita, considerando a técnica processual (artigo 530 CPC) e o enunciado da Súmula 207 do STJ, a parte interessada deverá opor o recurso de embargos infringentes.
Acrescente-se por fim que, assegurado o recurso na legislação processual, desde que preenchidos os requisitos legais, o litigante tem o direito subjetivo ao julgamento daquele. Caso contrário, vale dizer, recusado pelo Poder Judiciário o exame e o respectivo julgamento da impugnação, adequadamente manejada, haverá injustificada ofensa às garantias de acesso à justiça e, em especial, da ampla defesa!
José Rogério Cruz e Tucci é advogado. Ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo. Diretor e Professor Titular da Faculdade de Direito da USP.
Revista Consultor Jurídico, 22 de abril de 2014
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