Crítica à decisão não deve ser recebida como ataque ao juiz
A experiência revela que todos aqueles que de alguma forma estão comprometidos com a ciência jurídica — desde os juristas até os operadores do direito — são provavelmente os profissionais mais expostos à constante tensão dialética. O dia a dia destes é, em regra, marcado pela argumentação na defesa de um determinado ponto de vista, seja no âmbito científico, seja no da praxe forense.
É evidente que, em tais contextos, não raro, emergem do debate muitas teses e antíteses acerca de divergentes aspectos legais, baseados em diferentes exegeses e percepções.
A construção de boa doutrina pressupõe o exame analítico de teorias que, a seu turno, foram sendo sedimentadas ao longo do tempo, mas que, pela inexorável evolução do conhecimento, tendem a dar lugar a novos paradigmas. No ambiente acadêmico, diante das múltiplas opções hermenêuticas, é muito comum a existência de crítica construtiva, em prol do contínuo aperfeiçoamento da dogmática. Aduza-se que a dialética científica, ínsita à própria noção de universidade, é pautada pela mais absoluta liberdade de expressão, apenas encontrando limite no respeito mútuo que sempre se recomenda prevalecer, em prol do convívio harmônico dos atores da vida universitária.
A propósito, bem destacou Miguel Reale Júnior: “Só ao revelarmos respeito ao diálogo e à tolerância podemos reclamá-los do nosso interlocutor. E assim, iremos recolher o reconhecimento da comunidade científica, por mostrar que a coragem reside muitas vezes na prudência para abrir caminhos e não na temeridade de obstruí-los”!
Este mesmo fenômeno se passa na órbita da prática jurídica.
Além da argumentação colidente dos litigantes em todas as fases do processo, a sentença, a exemplo da lei e da doutrina, também pode ser alvo de crítica — às vezes veemente — nas razões de apelação. Ao prover o recurso, o tribunal, de forma explícita ou implícita, censura igualmente o ato decisório monocrático.
Situação análoga ocorre em relação aos tribunais, pelas cortes superiores. Até mesmo a decisão de presidente de tribunal, por exemplo, pode muito bem ser cassada pelo Superior Tribunal de Justiça. Como restou assentado em acórdão da 2ª Turma, no julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 1.264.053, proveniente do TJ-SP: “1. A matéria agitada no recurso especial, cuja caminhada foi obstada, merece ser reapreciada no âmbito desta Corte de Justiça. Diante disso, necessário se faz determinar a subida do recurso especial, sem prejuízo do juízo de admissibilidade definitivo que será oportunamente realizado neste tribunal. 2. Ademais, o despacho de admissibilidade negativo, exercido pelo tribunal de origem, é extremamente genérico. Este fato, por si só, prejudica o exercício do direito de defesa da parte, que fica impossibilitada de compreender quais os pontos específicos que obstaram a subida do apelo...”. De aduzir-se que, no corpo desse importantíssimo aresto, de relatoria do ministro Humberto Martins, lê-se que: “... Por fim, não custa lembrar que quando o tribunal de origem afirma que os fundamentos do recurso especial não são suficientes para infirmar as conclusões do acórdão, ele acaba por adentrar na questão de fundo e a exercer juízo de valor que compete a esta corte superior...”.
Ora, toda esta circunstância é perfeitamente compreensível em razão da estrutura hierárquica da organização judiciária desenhada em nossa Constituição Federal.
Esta é a regra do jogo! Qualquer que seja o fundamento da reforma do pronunciamento judicial, os magistrados inferiores convivem diuturnamente com o sistema, sem levar (ou não devendo levar) para o lado pessoal...
Ademais, a produção decisória dos tribunais — jurisprudência —, como importante fonte do direito, não está infensa à crítica social. Já tive oportunidade de escrever, em antigo ensaio, que o exame realizado difusamente pela sociedade sobre a fundamentação dos atos decisórios constitui a mais preciosa forma de controle externo do Poder Judiciário.
Invoco, a respeito, a grandiosa obra de Theotonio Negrão, verdadeira bússola dos operadores do direito, na qual mantido fecundo diálogo crítico com os precedentes judiciais, sem diminuir, sob a perspectiva subjetiva, qualquer tese pretoriana minoritária.
Ocorre que, mais recentemente, como tenho observado, a crítica científica formulada aos atos decisórios, monocráticos ou colegiados, tem ferido a suscetibilidade de alguns magistrados, tendendo a confirmar o dito popular de que: “assim como Deus, o juiz nunca falha”!
É interessante notar que, a despeito da elegância, da objetividade e do espírito construtivo do argumento antagônico à posição sustentada na decisão judicial, a retaliação do subscritor desta, em algumas ocasiões, é patente e até exagerada, visto que passa a considerar o autor da crítica como seu potencial inimigo!
Fruto de insegurança, sem dúvida, a resistência à crítica séria se traduz em ausência de humildade, a demonstrar falta de tirocínio, uma vez que, pelos motivos acima expostos, a atuação do juiz sempre se encontra exposta a adversidades inerentes ao crivo dos demais protagonistas do processo e, em geral, da sociedade.
Relembro, para finalizar, a arguta observação de Calamandrei, no artigo intitulado “O sono do juiz como motivo de nulidade do julgamento”. Enquanto na Alemanha, a questão teve de ser levada à Suprema Corte; na Itália, o senso prático acaba prevalecendo, de modo que o advogado, em sua sustentação oral, simplesmente aumenta o tom da voz: “o juiz logo se recompõe e saem do tribunal amigos como sempre”.
Não custa enfatizar: apesar da possível crítica à orientação adotada num julgado, em qualquer hipótese, a admiração e o respeito ao magistrado continuam intangíveis!
José Rogério Cruz e Tucci é advogado. Ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo. Diretor e Professor Titular da Faculdade de Direito da USP.
Revista Consultor Jurídico, 15 de abril de 2014
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