segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A especificidade da atividade como critério de representação pelo sindicato






O legislador brasileiro elegeu como critério primeiro para o reconhecimento da representação sindical entre nós a identidade de profissão ou atividade e, excepcionalmente, o exercício de profissões ou atividades similares ou conexas, como decorre do texto do artigo 511 da CLT.

Paralelamente a essa exigência de representação, a CLT fixa a base territorial do sindicato como sendo o município, critério que foi mantido pelo artigo 8º, II, da Constituição Federal.

Eis os dois parâmetros a observar na constituição válida de sindicato: especificidade da atividade exercida pelos integrantes e base territorial de atuação da entidade sindical.

Ademais, o artigo 517 da CLT, reafirmando ser a base territorial ideal do sindicato o município, autoriza o ministro do Trabalho a reconhecer sindicatos nacionais.

Quanto à base territorial, prevalece a representação do sindicato de base municipal em detrimento de outro sindicato de base intermunicipal, distrital, estadual ou nacional, quando se cogitar de representações idênticas.

Isso quer dizer que se tivermos um sindicato nacional representativo de determinada categoria (profissional ou patronal), poderá ser criado outro sindicato para a mesma categoria, mas de base territorial municipal, por exemplo, caso em que esta nova entidade passará a representar os trabalhadores ou empresas daquela categoria no município abrangido pelo novo sindicato.

Nesse exemplo, passa o novo sindicato a preencher os dois requisitos referidos: especificidade da representação e base territorial municipal. Eis porque, nesse caso, o desmembramento deverá ser acolhido, diminuindo, assim, o número do representados pelo sindicato primitivo.

Ocorre que em certos casos temos um sindicato municipal ou estadual que representa várias categorias, não idênticas, mas apenas similares ou conexas, surgindo em certo momento a criação de um sindicato nacional, por exemplo, que passe a congregar somente uma categoria específica.

Haverá certamente litígio entre as duas entidades, pelo efeito nocivo ao sindicato anterior, com a diminuição do número de representados, decorrente do surgimento da nova entidade.

Nesse caso, sendo o novo sindicato de base nacional, mas representando uma atividade idêntica, deverá prevalecer sua representação, em detrimento do anterior, que embora municipal ou estadual, representa várias categorias.

A propósito, veja-se o trecho específico desse tema, de recente acórdão da 7ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, cujo relator foi o ministro Claudio Mascarenhas Brandão (PROCESSO TST-AIRR-808-13.2011.5.03.0001) e que concluiu exatamente neste sentido:

“REPRESENTATIVIDADE SINDICAL. SINCOOMED E OCEMG. PRINCÍPIO DA ESPECIFICIDADE. ARTIGO 571 DA CLT. ABRANGÊNCIA. No presente caso, a delimitação fática que se extrai do acórdão recorrido é a de que o autor (Sindicato Nacional das Cooperativas de Serviços Médicos – SINCOOMED) representa a categoria econômica das cooperativas de serviços médicos, com base em todo o território nacional, conforme previsto em seus Estatutos, contando com regular registro junto ao MTE e atuação desde 13/04/1990 a demonstrar identidade de interesse econômico entre as cooperativas a serem por ele representadas, na forma do artigo 511 da CLT. De outro lado, o réu (Sindicato e Organização das Cooperativas do Estado de Minas Gerais – OCEMG), em âmbito estadual, representa as Cooperativas Mineiras, suas Centrais e Federações dos seguintes segmentos: Agropecuário, Consumo, Crédito, Educacional, Especial, Habitacional, Mineral, Produção, Saúde, Serviço, Trabalho e Outras, conforme Cadastro CNES, concedido em 04/01/2005 e Estatuto Social, fundando-se no critério das categorias similares ou conexas. A par dos dispositivos legais que disciplinam a representatividade dos entes sindicais no território nacional, em especial os artigos 570 e 571 da CLT, há de se concluir pela possibilidade de dissociação de um ente sindical geral, fundado em critério de similitude e conexão, em prol de um mais específico, a fim de se privilegiar a concretude dos interesses da categoria, ainda que a entidade sindical a ser consagrada seja de âmbito nacional, e, portanto, territorialmente mais ampla. Afinal, ao contrário do que alega o recorrente, a circunstância de possuir abrangência menor, restrita ao Estado de Minas Gerais, não é garantia de representatividade mais eficiente, tampouco há de se apontar dificuldade de acesso pelo SINCOOMED, de âmbito nacional, haja vista as facilidades de comunicações do mundo moderno. Assim, há de prevalecer o critério da especificidade em detrimento ao da territorialidade. Tal entendimento em nada afronta os dispositivos legais e constitucionais invocados. Inespecíficos os arestos colacionados para exame, os quais não guardam identidade com os elementos fáticos constantes no caso destes autos. Incidência da Súmula nº 296 do TST. Agravo de instrumento a que se nega provimento”.

Trata-se, pois, como acima referido, da circunstância do legislador pátrio privilegiar como critério para reconhecer como legítima a representação, a especificidade da atividade desenvolvida pelos associados, em detrimento da base territorial de atuação da entidade sindical.


Pedro Paulo Teixeira Manus é ministro aposentado do Tribunal Superior do Trabalho, professor e diretor da Faculdade de Direito da PUC-SP.

Diatribes ao Código de Processo Civil de 2015 (primeira parte)





Uma séria preocupação leva-me a apresentar aos obstinados estudiosos do Direito, de modo sucinto, algumas questões pontuais que me sobressaltam em matéria de conflitos societários, suficientes, ao que imagino, para recomendar a revisão de várias disposições do Código de Processo Civil de 2015, atualmente em período de vacatio legis.

Antes de tudo, porém, devo dizer que as observações a seguir são evidenciadas pela militância na advocacia, que revela um Código com normas inadequadas para a atualidade, alheias à prática do dia a dia, sem a qual não há como abreviar a prestação jurisdicional. Exemplo disso está na clamorosa ausência de normas para disciplinar adequadamente o processo eletrônico, quando se sabe que, nos dias atuais, urge normatizá-lo com prioridade absoluta para evitar os desencontros que tanto têm prejudicado os jurisdicionados.

Sem me aventurar em outras questões que já vêm sendo levantadas pela crítica de muitos especialistas, quero me ater aqui à matéria processual destinada à solução de algumas questões societárias. 

1. Como sabido, o Código Civil, alterando o regime anterior, não considera mais, como causas de dissolução das sociedades em geral, a morte, a retirada e a exclusão de sócios. Trata-as, acertadamente, como causas de rompimento (resolução[1]), puro e simples, do vínculo da sociedade em relação ao sócio. No entanto, o CPC/2015 passa olimpicamente por essa correção legislativa e ressuscita a dissolução (parcial) para as referidas situações, regulando-as nos artigos 599 e seguintes, sob a rubrica de Ação de Dissolução Parcial de Sociedade.

Não estou a afirmar, evidentemente, que a ação de dissolução parcial foi extirpada de nosso ordenamento. Ela continuará existindo sempre que, prevista uma causa de dissolução (total), puder ser dissolvida parcialmente a sociedade; não tem mais lugar, porém, nos casos de rompimento do vínculo societário em relação a sócio (desligamento), que ocorrem em razão de seu falecimento, retirada ou exclusão.[2][2]

Nesse capítulo do CPC/2015 alinham-se sucessivas inconsistências, tanto na impropriamente denominada dissolução parcial (destinada a solucionar as consequências do rompimento do vínculo societário em relação ao sócio falecido, retirante ou excluído), como na dissolução propriamente dita, que será objeto de análise no próximo item.

2. O artigo 600 desse Código prestes a viger prevê a possibilidade de ser pleiteada a dissolução parcial da sociedade por quem dela não participa (incisos I, II, IV e VI) e legitima a própria sociedade para o pleito dissolutório de si mesma (incisos III e V), conquanto daí não resulte dissolução alguma. Em verdade, trata-se, consoante a lei material, de caso de liquidação da quota (isto é, liquidação da participação) do sócio morto, excluído ou que se retira da sociedade, visto que a ação não visa à realização do ativo e ao pagamento do passivo sociais; destina-se, exclusivamente, a apurar e a efetuar o pagamento dos haveres de quem dela se desliga. Não se está aqui diante de uma simples questão de linguagem, mas de adequação das disposições processuais às regras contidas no Código Civil (artigo 1.031).

3. O mesmo artigo 600, em seu parágrafo único, confere legitimidade ao “cônjuge ou companheiro de sócio cujo casamento, união estável ou convivência terminou” para “requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio.” Essa disposição, por ser de direito material, jamais deveria figurar eu um código de processo. Aliás, os problemas pessoais que um sócio possa ter com seu consorte não se devem refletir no seio da sociedade de que participa, dado o risco de desestabilizar a vida social, a do antigo parceiro e a de seus demais sócios.[3]

Exatamente por isso, o Código Civil, tendo presentes situações desse jaez, estabeleceu regra diametralmente oposta e, evidentemente, muito mais adequada, por estar afinada com o princípio da preservação da empresa: sem contemplar companheiro ou convivente, prevê, em seu artigo 1.027, que “os herdeiros do cônjuge do sócio, ou o cônjuge que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade”. Ou seja, o cônjuge que se separa do sócio, mesmo recebendo em partilha parte da quota social que este possui na sociedade, não tem direito de se tornar sócio, nem de exercer os direitos que a lei confere ao sócio. Recebe, exclusivamente, os direitos patrimoniais contidos na parte que lhe couber em tal quota. Tal norma veio sanar o problema antes referido, de modo que o fato de ocorrer a separação judicial não afeta a posição do sócio na sociedade: o direito que seu cônjuge tiver em relação à sua quota de participação na sociedade (dela usufruindo sem ser sócio), fica mantido após a separação, nada mais nem menos. Essa previsão fica revogada por disposição que deveria, simplesmente, regular o seu exercício.

4. O artigo 601 do CPC/2015 e seu parágrafo são duas pérolas: pelo fato de ter ocorrido o rompimento do vínculo societário em relação a um sócio, a sociedade e todos os demais sócios devem figurar na relação processual; dispensa-se, porém, a citação da sociedade, se todos os sócios o forem, mas, apesar de ela não ter sido chamada para o processo, sujeita-se a seus efeitos.

Essas disposições, afastados seus defeitos técnicos, talvez pudessem ser aproveitadas numa sociedade de dois sócios, visto que a lide é composta pela pretensão de um em relação ao outro, que a ela resiste, sem que a sociedade possa ter interesse diverso. Basta aparecer um terceiro sócio que as coisas mudam. Considere-se, então, uma sociedade limitada ou anônima fechada (também sujeita a essas regras cf. artigo 599, parágrafo 2º) com inúmeros sócios – e a experiência mostra que não são poucas –, uns já mortos (cujos herdeiros não se interessaram em inventariar as quotas ou ações), outros em lugares distantes da sede social ou residindo no exterior. Atribuir aos herdeiros do sócio falecido, ao sócio excluído ou ao que se retira da sociedade o ônus de citar todos é inviabilizar o exercício do seu direito de receber seus haveres – ou, mais precisamente, seu direito de ação.

Não se argumente que, nesses casos, deveria haver a citação por edital (!), como se fosse possível citar por edital pessoas que se encontram em lugar conhecido e certo ou que já não se encontram neste mundo – isso com frontal descumprimento da regra da citação editalícia, contida nos artigos 256, parágrafo 1º, e 257 do CPC/2015. A solução, evidentemente, estaria em citar a sociedade e lhe atribuir o ônus de dar conhecimento da existência da ação aos demais sócios. É, aliás, essa a regra que foi adotada para o caso de penhora de quota social que, uma vez concretizada, determina a intimação da sociedade, esta “ficando responsável por informar aos sócios a ocorrência da penhora” (CPC/2015, artigo 876, parágrafo 7º).

Penhor seguro de que tal seria a melhor solução está em que ela se afina, perfeitamente, com a função que o instituto da sociedade visa a preencher no ordenamento jurídico, qual seja a de se interpor entre o conjunto de sócios perante cada qual deles ou em relação àqueles que com quem ela, por todos eles, mantiver relações jurídicas. Ou seja, a sociedade é a totalidade de sócios agindo em bloco e, portanto, cabe-lhe apresentar-se como se fosse eles nos atos que por eles pratica ou se vincula. Se o assunto é grave, cabe à lei, nessa coerência lógica, (i) deixar que a sociedade proceda da maneira que for conveniente para seus sócios, quando houver ato que possa afetar a vida social, ou (ii) determinar que ela os informe a respeito, pelo modo legal (em reunião ou assembleia).

A citação dos sócios em uma limitada ou anônima, por outro lado, pode induzir um juiz, não afeito ao conhecimento de matéria societária, a entender que eles, por figurarem na relação processual, respondem em execução pelo pagamento dos haveres do sócio que se desligou da sociedade, em total desrespeito à própria razão de ser desses tipos societários – que restringem a responsabilidade de seus sócios, respectivamente, ao valor de suas quotas (CC, artigo 1.052) ou ao preço de emissão de suas ações (Lei das S.A., artigo 1º). No tocante à sociedade anônima, avulta o fato de que seus acionistas são aqueles que figuram no livro de registro de suas ações, que fica de posse da própria sociedade, e no qual não se contêm a qualificação dos acionistas nem seus respectivos endereços, cabendo ao autor da ação proceder a uma investigação para descobrir se ainda vivem e para levantar os demais dados de que necessita para colocá-los no processo.

De resto, a dispensa de citação da sociedade pelo fato de terem sido citados todos os sócios desconsidera sua personalidade jurídica, principalmente quando seu administrador é estranho ao quadro social; além do mais, submete a sociedade à execução da sentença, sem que tenha integrado a relação processual – tudo a desaguar num calamitoso paradoxo: os sócios que, em regra (nas companhias e nas sociedades limitadas), não respondem pelas obrigações sociais, devem todos nela estar presentes, ao passo que a sociedade, que sempre irá suportar os efeitos da coisa julgada, fica disso dispensada. Os bons processualistas, quando se aperceberem dessas incongruências, certamente ficarão atônitos com o desrespeito a comezinhos princípios da doutrina que professam.

5. O CPC/2015 mistura o processo de conhecimento (destinado a verificar se, porque e quando ocorreu o fato do qual resultou o desligamento do sócio), com o que é destinado ao seu cumprimento.

Realmente, os artigos 600 a 603 visam à obtenção de sentença declaratória ou, se for o caso, constitutiva do rompimento do vínculo societário em relação ao sócio.

Já o artigo 604 trata da liquidação (apuração dos haveres do sócio afastado) e determina que nela seja fixada a data da resolução “da sociedade”, que se defina o critério de apuração dos haveres e que se nomeie o perito. Ora, os dois primeiros temas deveriam pertencer ao processo de conhecimento, porque é nele que o magistrado colhe elementos para tais definições; só a nomeação de perito compatibiliza-se com a liquidação, que, aliás, é tratada como fase, e não como processo.[4]

O artigo 605 cuida de temas que, com a devida vênia, devem-se inserir no conteúdo da sentença dita dissolutória (datas da resolução do vínculo societário nas diversas alternativas) – o que também se dá com o artigo 606, que versa sobre matéria própria do processo de conhecimento (critério de apuração dos haveres), embora seu parágrafo único cuide da nomeação de perito, inerente à liquidação da sentença. 

6. Na sequência, vem o artigo 607 para permitir que o juiz, a qualquer tempo, mas antes do início da perícia, reveja, a pedido da parte, a data da resolução e o critério de apuração de haveres. Ou seja, não há preclusão de despacho já proferido na abertura da liquidação (artigo 604), ou – o que é pior – respeito à coisa julgada, quando tais questões forem dirimidas na sentença que finaliza o processo de conhecimento.

7. Estatui o artigo 604, parágrafo 1º, do CPC/2015, que, se houver parte incontroversa no curso da apuração dos haveres, “o juiz determinará à sociedade ou aos sócios que nela permanecerem que depositem em juízo a parte incontroversa dos haveres devidos”.

Essa regra cria para os sócios uma responsabilidade antes não prevista, desestruturando totalmente a tipicidade societária no âmbito do direito material. É que os haveres de sócio consistem na parcela do patrimônio social,[5] que cabe àquele que da sociedade se desliga. Os patrimônios pessoais dos sócios não estão incluídos no patrimônio da sociedade, nem se misturam com ele. 

Não se pode pensar na aplicação dessa regra em nenhum dos tipos societários: nas sociedades anônimas e limitadas, os sócios não respondem minimamente por dívida alguma contraída pela sociedade (Lei 6.404/1976, artigo 1º; CC, artigos 1.052 e 1.055, parágrafo 1º); e nas sociedades de responsabilidade ilimitada, os sócios respondem, em caráter subsidiário (CC, artigos 1.023 e 1.024), pelas obrigações assumidas pela sociedade – não, porém, pela parcela do patrimônio que ela deva restituir a um sócio. Como se vê, a norma processual revela total descompasso com as de direito material, definidoras da responsabilidade dos sócios, visto que, além de lhes atribuir uma responsabilidade que em sede societária não possuem, ignora completamente, se tal responsabilidade tivessem, a regra da subsidiariedade. Como esperar segurança jurídica num emaranhado confuso como esse?

8. A legislar, ainda, sobre tema de direito material, o artigo 605 do CPC/2015 faz uma distinção entre retirada e recesso, que não encontra correspondência na legislação que visa a aplicar. Para o novel codificador, pelo que se nota, o termo “retirada” deve ser reservado para a saída desmotivada do sócio, ao passo que o recesso estaria vinculado à ocorrência de uma causa legal específica.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).



[1] O termo “resolução”, utilizado pelo Código Civil, não é adequado para abranger o desligamento de sócio por morte ou em razão do exercício do direito de retirada, uma vez que supõe inadimplemento. Por isso, é preferível falar em “rompimento” dos vínculos societários em relação ao sócio.


[2] Sobre esse assunto, ver, do autor, Direito de Empresa – Comentários aos arts. 966 a 1.195 do Código Civil. 5ª. ed. São Paulo: 2013, n. 235, p. 297: O Código Civil de 2002, “embora não mais admitindo a dissolução pelo simples querer, por falecimento, incapacidade ou falência de sócio (como o permitiam os arts. 335 e 336 do CCom), não rechaça a possibilidade de dissolução parcial nas causas de dissolução que elencou. Inspirado no Código Civil italiano, o nosso muda o regime: sem contemplar a dissolução parcial que a doutrina e a jurisprudência nacionais haviam consagrado, trata algumas de suas antigas causas como de resolução (ruptura) do ajuste societário relativamente a um sócio (arts. 1.028 e ss. e 1.085). Não elimina, entretanto, a possibilidade de ocorrência de dissolução parcial nas demais hipóteses que regula como de dissolução, seja de pleno direito, seja contenciosa. Tem-se, portanto, que todas as causas de dissolução total, que não envolvam normas de ordem pública, propiciam a aplicação da teoria da dissolução parcial para assegurar o exercício, pelos sócios remanescentes, do seu indeclinável direito de manter os vínculos que entre si ajustaram (dos quais não participa, nem participava, o sócio em relação ao qual a sociedade deve ser dissolvida), para assegurar a permanência da pessoa jurídica e a continuidade da empresa.”


[3] A apuração de haveres conduz, quase sempre (a não ser que os respectivos valores sejam exíguos ou negativos), à necessidade de a sociedade desfazer-se de parte de seus recursos disponíveis para o giro dos negócios ou de parte de seus bens, daí resultando inexoravelmente sua descapitalização, com perda da competitividade no mercado a ensejar, em casos mais graves, sua ruína financeira. Além disso, o pagamento dos haveres irá provocar a redução da quota de participação do sócio (CPC 2015, art. 600, parágrafo único, última parte), cuja manutenção pode ser indispensável para preservar seus direitos políticos na sociedade. Efetivamente, reduzido o percentual de participação do sócio controlador em razão do pagamento dos haveres do seu ex-cônjuge, ex-companheiro ou ex-convivente, é provável que ele perca seu poder de controle; também os sócios minoritários podem sofrer a perda de direitos que dependem de percentual mínimo para ser exercidos, como o de impedir uma alteração do contrato social, o de permanecer no bloco de controle, o de designar administrador por ato separado, o de eleger representante no conselho fiscal etc. Uma tal redução pode, inclusive, comprometer, quando houver, um acordo de sócios ou de acionistas. 


[4] Mesmo que se entenda que a liquidação é uma fase - posição da qual discordo -, não pode ser considerada como fase do processo de conhecimento, pois ela supõe uma sentença a ser liquidada (CCPC/1973, art. 475, letras A-H; CPC/2015, arts. 509-512).


[5] A parcela do patrimônio social que toca aos sócios é extraída do patrimônio líquido da sociedade, isto é, do que resultar do valor do conjunto dos elementos do ativo social depurado de todas as obrigações quem componentes do passivo.


Alfredo de Assis Gonçalves Neto é advogado e professor titular aposentado de Direito Comercial da Universidade Federal do Paraná.



Revista Consultor Jurídico, 18 de janeiro de 2016, 8h00

O mundo do Direito tem seus Aldrovandos Cantagalos de Monteiro Lobato



EMBARGOS CULTURAIS



Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy


Aldrovando Cantagalo é curioso exemplo da galeria de personagens de Monteiro Lobato. De um modo muito singular, Aldrovando é o mote literário com o qual o escritor paulista também criticou o formalismo e a mediocridade dourada daqueles que pouco ligam para o conteúdo e para as ideias, mas que insistem, com volúpia, na pureza das formas. São os amantes da crase certa, do hífen bem colocado, das mesóclises e das outras óclises. Aldrovando Cantagalo é o caricato gramático putativo do conto “O Colocador de Pronomes”.

Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, São Paulo, em 18 de abril de 1882. Por imposição do avô, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1900. O desinteresse de Monteiro Lobato pelo curso de Direito era total. Parece que Lobato admirou apenas um professor, Pedro Lessa, que lecionava Filosofia do Direito.

Literato até a medula, Lobato bacharelou-se pelas Arcadas, foi promotor, atuou como advogado. Em inúmeras passagens a desilusão de Monteiro Lobato para com o Direito, a Justiça, a profissão do homem de leis, é de todo evidente. Monteiro Lobato também simboliza o livro, foi dos maiores defensores do mercado editorial brasileiro. Escreveu, editou, traduziu. Sempre com um livro debaixo do braço, continuamente lendo, e escrevendo, Lobato nos conta que lia maquinalmente, delirantemente.

A rebeldia e o ceticismo marcaram firmemente suas oposições. Lobato tinha mesmo de ser contra o jurídico e contra todo o tipo de formalidades, afinal ele era mesmo um oposicionista de tudo que tem gosto oficial. Inclusive a ortodoxia dos gramáticos de muitas regras e poucas ideias não fora por ele poupada. É do que trato neste pequeno excerto.

No conto “O colocador de pronomes” essa posição é bem definida. É a estória de Aldrovando Cantagalo. Os pais de Aldrovando, inventou Lobato, se casaram por causa de um problema com o pronome “lhe”. Isto é, quando o pai de Aldrovando pediu ao avô do personagem uma das filhas em casamento, um uso equivocado do pronome fez com que o pai de Aldrovando se visse constrangido a se casar com a irmã que não queria. O problema estava na beleza, era uma questão de atração estética, ainda que sem a percepção moral e histórica de Jacó, entre Lia e Raquel, por quem por sete anos trabalhou para Labão, como se lê na passagem veterotestamentária.

Um problema estético e platônico que se resolveu negativamente nos planos da gramática, dos pronomes, retos, oblíquos (combinados ou não), reflexivos, de preposições justapostas, que não alcançam problemas de sintaxe e de estilo, e muito menos da órbita dos negócios práticos ou dos estímulos do amor. A mãe de Aldrovando caiu nos braços do pai, por um esbalho pronominal: o “lhe” no pedido de casamento teve como resultado a irmã mais próxima, em detrimento da irmã verdadeiramente desejada. Assim, pelo menos, foi o que decidiu o pai das moças. Nesse caso, não valeu a parêmia “Caesar non super grammaticos”, vale dizer, não se respeitou a suprema lei que nos dá conta de que mais vale a gramática do que a autoridade do chefe. O chefe aqui colocou os pronomes onde bem entendia. Acrescentou-se mais uma norma à regra fundamental das línguas, que é a lei do menor esforço.

Aldrovando viveu marcado com o problema do pronome, até porque um pronome mal colocado selou um casamento, e talvez por esse fato é que freudianamente passou a vida corrigindo erros de gramática, todas as horas, em todos os lugares, em relação a todas as placas e sinais de rua e de lojas, e quanto a tudo e a todos que ouvia. Antes de morrer pretendia deixar uma gramática definitiva, explicando todos os problemas da língua, com o que todos as questões sérias do idioma (e da vida) estariam enfrentadas e resolvidas. Aldrovando salvaria o mundo das impropriedades da língua escrita e falada. Cumpria uma missão. Dedicou sua vida à boa colocação dos pronomes e crases e acentos e desinências.

Já idoso, Aldrovando recebeu do editor os originais desse livro maravilhoso (e necessário) para corrigir; para seu desespero, verificou que todos os acentos estavam trocados, os pronomes equivocados e toda a ortografia não passava de um interminável engano, por descuido do corretor. O esforço todo resultara em nada. O susto e a desilusão apressaram seu fim.

A ironia de Lobato pode ser apreendida com a nota que ele acrescentou ao conto, na primeira edição. Apresentou o espólio do falecido Aldrovando, no qual havia numerosos originais, obras inéditas, de importância superlativa. Havia um estudo sobre o acento circunflexo, em três volumes. Aldrovando deixou um importantíssimo estudo sobre a vírgula no hebraico, que chegava a cinco volumes. Deixou também um valioso texto sobre a psicologia do til, em apenas dez volumes. Lobato registrou igualmente que Aldrovando deixou um estudo valioso sobre a crase, vazado em dez volumes. Muita cultura, muita erudição. Segundo Monteiro Lobato essa obra toda, importantíssima, pesava, “ por junto, 4 arrobas, que renderam, vendidos a 3 tostões o quilo, 18 mil réis. ”

Lobato recriminava o excesso de forma e o niilismo do conteúdo. Ao leitor, informou que não sabia do que Aldrovando morreu, e também não importava ao caso. Para Lobato, o que importava era proclamar aos “quatro ventos que com Aldrovando pereceu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes”, encomendando “paz à sua alma”.

O Aldrovando Cantagalo do Direito seria talvez o perseguidor de prescrições, o obcecado com decadências, o colecionador de naturezas jurídicas (inclusive o tópico problema da natureza jurídica do cadáver), o classificador incansável dos tipos de Constituições e de bens fungíveis e infungíveis que há, o farejador das dissemelhanças entre decisões constitutivas e declaratórias, entre normas de forma e de fundo, entre efeitos ex-tunc e ex-nunc, entre condições resolutivas, potestativas e suspensivas, erros substanciais, reais e obstativos, nulidades e anulabilidades, a par do relevantíssimo problema das exceções, especialmente de pré-executividade em matéria fiscal, no sentido de que seriam enfrentadas por recursos de apelação ou por agravos.

O Aldrovando Cantagalo do Direito viveria no nosso conturbado “imaginário dos juristas”, cujo cotidiano que vivemos é marcado por um paradoxo, substancialmente contraditório, no qual uma ideologia conservadora reafirmaria a harmonia no mundo, num contexto de contradições que seriam absolutamente periféricas, como alertado por Roberto de Aguiar, no mais lúcido texto de crítica de ideologia jurídica até hoje escrito[1].

O Aldrovando Cantagalo do Direito seria talvez o organizador de algumas questões de concurso, que ele mesmo corrigiria, cujos recursos julgaria e sobre cujas vidas decidiria, ou seria quem sabe algum causídico embalado no rubi, sempre contribuindo para a produção de tantos e quantos e muitos outros Aldrovandos Cantagalos que há, e que perambulam pelos fóruns, repartições e cátedras da vida, escolhendo quem vai para a cadeia, dando a cada um o que é seu, redigindo manifestos e pareceres e petições, ensinando os poucos autores estrangeiros que leu (e menos ainda os que compreendeu), dizendo que faculdades são boas ou não, e fazendo justiça, ainda que caia o mundo.



[1] Conferir, Roberto A. R. de Aguiar, O Imaginário dos Juristas, in Amilton B. de Carvalho (org.), Revista de Direito Alternativo, São Paulo: Acadêmica, 1993, pp. 18-27.


Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).



Revista Consultor Jurídico, 17 de janeiro de 2016, 8h00

"Supremo é muito sensível a argumentos que apontam risco para governabilidade"






O que é óbvio não é necessariamente dito. Para quem pensa no Direito, é cristalino que a condição humana dos advogados, promotores e juízes faz com que não seja uma ciência exata. O Supremo Tribunal Federal, com sua competência constitucional, é influenciado por, por exemplo, por questões políticas, econômicas e até pelo restante do Judiciário.

Pois foi para mostrar como esses fatores externos moldam as decisões do Supremo que a professoraPatrícia Perrone Campos Mello, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), desenvolveu sua tese, agora publicada sob a forma do livro Nos Bastidores do STF. “Isso é muito óbvio, mas não é dito. E aí se constrói no imaginário popular uma percepção equivocada do que é o processo de decisão do Supremo”, comenta.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Patrícia explica que há três formas com que os ministros do STF se comportam. O “comportamento legalista” é quando o ministro se pauta apenas pelo que dizem a Constituição Federal e os precedentes dos tribunais. O “comportamento ideológico” é quando ele se deixa levar por suas convicções políticas e suas concepções de mundo.

É na terceira forma de comportamento que a professora encontra os resultados mais interessantes. Ela classifica como “comportamento estratégico” quando o ministro tem uma convicção política definida, mas percebe, pelo comportamento do colegiado, que, se defender determinada tese, vai ficar vencido. Portanto, ajusta o voto para uma posição entre o que ele acredita e o que ele calcula que será bem aceito pelos colegas, de maneira a levar o tribunal em determinada direção.

Foi algo parecido com o que o ministro Luís Roberto Barroso fez durante o julgamento da constitucionalidade de se considerar crime a posse de drogas para consumo próprio. Apesar de o pedido falar de drogas, genericamente, o voto do ministro foi para que o Supremo legalizasse apenas a posse de maconha.

“Não sei bem qual é a posição do tribunal. Temos um estilo de deliberação em que as pessoas não conversam internamente. Achei que uma posição um pouco menos avançada teria mais chance de conquistar a maioria”, disseBarroso, à época.

O episódio não está no livro de Patrícia — até porque ela não comentou casos recentes. Mas ela é assessora do ministro Barroso, que foi o orientador tanto do mestrado quanto do doutorado da agora doutora pela Uerj.

E foi o próprio ministro quem a encorajou a levar tal pesquisa adiante. Quando começou a desenvolver a tese, Patrícia ainda não trabalhava no gabinete do ministro, mas já tinha nele sua referência acadêmica. Foi consultá-lo e disse: “Vou escrever para dizer o óbvio...” Ao que ele respondeu: “Pois é, mas é um óbvio que ninguém diz e que precisa ser dito”.

Leia a entrevista:

ConJur — Não é um tanto óbvia a conclusão de que outros fatores além do jurídico influenciam nas decisões do Supremo?
Patrícia Perrone Campos Mello — É muito óbvio! Mas isso não é dito, e aí se constrói no imaginário popular uma percepção equivocada do que é o processo de decisão do Supremo Tribunal Federal. Primeiro de tudo: não está tudo escrito. As soluções não estão todas previstas e outros elementos interferem. É muito importante que o leigo compreenda isso. Segundo: a opinião pública é capaz de interferir. Mobilize-se! E não estou nem dizendo que isso é positivo sempre, porque pode não ser. Os julgamentos precisam ser imparciais. Se todos os ministros se sentem extremamente constrangidos por uma opinião pública que quer ver sangue, isso não é bom. Mas se não tem como um julgamento não ser político, a opinião pública e os outros poderes também podem exercer constrangimento sobre o Supremo Tribunal Federal. Isso é tão óbvio para o jornalismo, mas na academia não se enfrenta a questão.

ConJur — Isso não é dito por um defeito da academia?
Patrícia Perrone Mello — Ninguém diz que “o juiz decidiu assim porque o momento político era ruim”. Existe uma figura que se chama Juiz Hércules, definida pelo Robert Alexy, um pensador genial. Seria o juiz que analisaria sempre todas as questões e todos os conflitos e seria capaz de lutar contra tudo e contra todos para fazer uma decisão absolutamente neutra. A academia trabalha com essas categorias como se o juiz fosse um ser abstrato que está fora da confusão e vai decidir sempre de maneira neutra. Quer dizer, determinadas decisões não poderiam ser tomadas sem antes se fazer um diagnóstico completo. Então, a gente está discutindo como as decisões deveriam ser tomadas sem discutir como elas são tomadas, entende? O Supremo é livre para contrariar o Congresso? Até a página cinco. Contraria e depois não consegue o reajuste dos servidores. Essa é a lógica da separação dos poderes.

ConJur — Como surgiu o livro?
Patrícia Perrone Mello — Muito por conta da minha experiência de procuradora do estado do Rio de Janeiro. Litigando pelo estado, eu fui percebendo que nem sempre aqueles argumentos jurídicos que a gente considerava irretorquíveis eram acolhidos em juízo. Às vezes o texto da lei era muito claro, e mesmo assim o entendimento que saía vencedor não era a interpretação mais óbvia do texto. Portanto, claramente existiam outros elementos que influenciavam a decisão dos juízes, sobretudo no caso de alteração de jurisprudência, ou de jurisprudência vacilante. O desafio da minha tese de doutorado era responder a esta pergunta: quais são os elementos que efetivamente influenciam as decisões judiciais?

ConJur — Foi possível mapeá-los?
Patrícia Perrone Mello — Fiz uma pesquisa e descobri que tinha muita coisa na literatura norte-americana e alguma na europeia sobre esse assunto, e que de um modo geral se falava em três grandes modelos de comportamento judicial: o comportamento legalista, o ideológico e o estratégico. O que eles chamam legalista, que nem é um termo muito bom para comportamento judicial em matéria constitucional, porque Constituição não é lei, é para tentar antecipar como uma corte vai decidir um caso com base nos precedentes, no texto da norma ou com base na interpretação. Eu já antecipava que esse seria o modelo predominante na minoria dos casos, mas para a minha surpresa não foi assim.

ConJur — E tem alguma explicação?
Patrícia Perrone Mello — Quando o Supremo Tribunal Federal implementou a repercussão geral e a súmula vinculante, teve uma redução no volume de recursos que ele recebe na ordem de 63%. Fez-se uma conta que o Supremo tinha um número de repercussões gerais e essas repercussões versavam sobre tantas matérias. Portanto, a cada decisão, o Supremo decidia 210 casos, na verdade. Ou seja, mesmo que um precedente sobre um tema fosse decidido com base em qualquer outro critério que não o jurídico, mesmo que fosse decidido politicamente, a reiteração nos outros 209 casos era uma decisão com base no critério legalista, de reiteração de jurisprudência. Mas quando o Direito não é plenamente determinado, quando é possível usar argumentos constitucionais para se justificar decisões tanto num sentido quanto no outro, claramente você não vai conseguir antecipar uma decisão com base no comportamento legalista, porque ele não existe. 

ConJur — E aí entram os outros modelos de comportamento judicial?
Patrícia Perrone Mello — Entram outros dois modelos de comportamento judicial que são estudados pela literatura: o ideológico e o estratégico. O modelo ideológico é quando os juízes decidem com base nas suas convicções políticas. Os casos que são relativamente indeterminados são julgados pelos juízes com base nas convicções políticas deles. O estudo sobre esse modelo deu muito certo nos Estados Unidos, um ambiente ideológico muito bem definido que se divide entre os democratas, que são os progressistas, e os republicanos, que são os conservadores. Aqui no Brasil é impossível fazer isso, porque a gente é ideologicamente muito mal definido. Nossos partidos são pouco definidos, nosso ambiente político é pouco definido. E mesmo nos pontos em que o ambiente é definido, são pontos que não têm projeção em matéria constitucional. 

ConJur — Mas o livro fala desse comportamento ideológico no Brasil?
Patrícia Perrone Mello — De alguma maneira, a visão de mundo dos ministros interfere no julgamento desses casos sensíveis em que o direito é muito pouco pré-determinado, e eles mesmos reconhecem isso abertamente. Eu fiz, então, um estudo do que eu chamei de background dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Não fiz para todos, fiz para três que para mim eram bem claros: o ministro Ayres Britto, o ministro Joaquim Barbosa e o ministro Gilmar Mendes. Aí fiz um estudo das entrevistas deles, dos principais casos paradigmáticos de que eles participaram e da vida pregressa, como passagem pelo Ministério Público e pela Advocacia-Geral da União, o que isso poderia interferir na visão de mundo desse ministro etc. Nas entrevistas do ministro Joaquim Barbosa quando ele veio para o Supremo, ele declarava que queria levar ao tribunal a visão de mundo dele, de uma pessoa que vinha de uma classe social mais baixa e que enfrentou preconceito para chegar onde tinha chegado, falava também de simplificar a linguagem para tornar o tribunal mais acessível.

ConJur — Qual a conclusão sobre os ministros Britto e Gilmar?
Patrícia Perrone Mello — O ministro Ayres Britto era claramente progressista. Foi relator de células-tronco embrionárias, das uniões homoafetivas, da ADPF sobre a Lei de Imprensa. Já o ministro Gilmar Mendes escreveu muito sobre o controle da constitucionalidade, tem toda aquela vivência da Alemanha, da Corte Constitucional da Alemanha, que é muito presente nas decisões dele. E ele é responsável por algumas decisões defendendo a utilização de instrumentos em matéria de controle de constitucionalidade que foram importantes para organizar essa matéria no STF, como a súmula vinculante.

ConJur — E o modelo estratégico?
Patrícia Perrone Mello — Esse é o mais interessante. É o seguinte: realmente o juiz decide com base em critérios ideológicos e políticos, só que nem sempre ele produz a decisão que considera ideal, que gostaria de dar se fosse uma decisão monocrática. Como ministro, para ele decidir e fazer o Direito andar em uma determinada direção, ele depende dos colegas de corte. Ele pode chegar à conclusão de que se votar puramente de acordo com as convicções dele, ficará vencido, e aí não contribui para o Direito avançar. Então ele vai procurar aquela decisão mais próxima das convicções dele, mas que em alguma medida tenha chances de ser aprovada pela maioria. Ou seja, ele vai votar moderadamente de maneira ideológica para não ficar vencido e para fazer com que o Direito caminhe na direção que ele considera a melhor.

ConJur — Isso explica muito do funcionamento de um colegiado.
Patrícia Perrone Mello — Isso pode acontecer tanto internamente no Supremo (onde o ministro depende do voto dos outros ministros para criar uma maioria em um determinado sentido) quanto pode acontecer com o Supremo como instituição na relação com os outros poderes, com a opinião pública e com a imprensa.

ConJur — Como é essa influência dos outros poderes?
Patrícia Perrone Mello — O Executivo detém o monopólio da força, então, ou o Executivo adere a uma decisão do Supremo, estando convencido pelos argumentos de que aquilo não é um impedimento meramente autoritário, ou ele resiste ao cumprimento. O Supremo precisa do Executivo para fazer valer uma decisão dele, seja em face do próprio Executivo seja em face de outros poderes. O Legislativo, em alguma medida, pode interferir no Supremo. O Senado aprova as indicações de ministros, aprova o orçamento do Judiciário, aprova um aumento de remuneração, o Congresso Nacional aprova a criação de novos cargos, por exemplo. O Legislativo é capaz de medidas de represália, e no limite pode descumprir as decisões ou simplesmente superá-las através de emenda constitucional. Então, o Supremo, ao interagir com cada um dos poderes, precisa antecipar se aquela decisão vai ser cumprida ou não, e se vale a pena o ônus.

ConJur — No caso do Executivo, é sempre o argumento do erário, não é?
Patrícia Perrone Mello — O Supremo é de fato muito sensível aos argumentos de perigo para a governabilidade e de perigo econômico. Esses argumentos freiam o Supremo, efetivamente. Primeiro por cautela, porque realmente tem alguns juízos de prognose e consequências que talvez os representantes eleitos estejam mais aparelhados para fazer. Segundo porque, se no fim do dia a decisão conduzir o país à bancarrota, talvez ela vá ser descumprida e não tenha valido a pena o desgaste.

ConJur — E com o Legislativo?
Patrícia Perrone Mello — Não é a mesma relação. Havia uma percepção do Supremo até bem pouco tempo, de que o Legislativo tinha se omitido na regulamentação de alguns direitos previstos na Constituição, e de que o Congresso é relutante em corrigir algumas falhas do processo eleitoral que resultaram em disfunções. E aí o Supremo talvez se permita avançar mais, por entender que o Legislativo não está disposto a fazer determinadas mudanças, e assume os riscos de ter as suas decisões descumpridas — e tem várias descumpridas. Por exemplo, a decisão em que o o STF reconheceu a inconstitucionalidade da criação de municípios foi superada por emenda constitucional. A que tentou limitar o número de vereadores por município também foi superada por emenda constitucional. Diversas questões tributárias foram superadas por emenda constitucional.

ConJur — Como funciona o Supremo com a opinião pública?
Patrícia Perrone Mello — A opinião pública preocupa muito o Supremo Tribunal Federal, e é um elemento fortemente impactante. Os ministros são selecionados por um processo que também é político. São pessoas de notório saber, mas selecionadas pela presidente e aprovadas pelo Senado. São pessoas que circulam bem nessa fronteira, e por isso são sensíveis a questões políticas. Depois, os ministros estão sujeitos às mesmas influências que a população em geral. Eles têm uma preocupação com a legitimidade e com a credibilidade do Supremo, e tem matérias que são muito delicadas, como quando se discute a impunidade. A imprensa deve ter percebido isso no julgamento do mensalão, por exemplo.

ConJur — A imprensa, então, deve ser o fator que mais influencia.
Patrícia Perrone Mello — A imprensa é o principal intermediário entre os ministros e todos os grupos caros a eles. Tem ministros mais sensíveis ao que pensa a academia, outros ao que pensa a opinião pública como um todo, como o ministro Joaquim Barbosa. Mas entre todos esses grupos e os ministros tem a imprensa no meio. A fotografia que existe dos ministros não é o que eles são realmente, é o que é relatado pela imprensa. Por isso ela é um grupo muito sensível e estratégico para os ministros. Ela constrói a percepção que todos esses grupos vão ter sobre a atuação dos ministros. Portanto, a atuação dos deles, mesmo quando é política, é limitada não apenas pelo texto escrito, mas pela capacidade de interação dos demais poderes com o Supremo e pela reação que se espera vir da opinião pública. Isso é interessante porque a gente conclui que nos casos mais divididos as decisões são políticas, e não puramente jurídicas, mas também porque a gente vê que não há tanta liberdade assim.

ConJur — Como assim?
Patrícia Perrone Mello — Os ministros são limitados, sim, pela reação que eles acreditam que virá da opinião pública e pela reação que eles acreditam que virá da imprensa. Eles têm uma preocupação com as consequências das decisões deles sobre o cenário econômico, sobre a governabilidade, e isso entra em questão quando eles produzem uma decisão. Eles não estão em um mundo ideal, em que são simplesmente livres para decidir só porque é uma questão de princípios constitucionais, que são cláusulas abertas, e que não tem um comando prévio expresso sobre o que soluciona aquele conflito de interesse.

ConJur — É sempre um jogo de equilíbrio.
Patrícia Perrone Mello — Basta lembrar, por exemplo, quando se discutiu a competência do Conselho Nacional de Justiça para processar disciplinarmente os magistrados, se seria concorrente ou subsidiária. Havia, aparentemente, uma tendência pela competência subsidiária, foi até deferida uma liminar. E a opinião pública estava em cima, a Ordem dos Advogados do Brasil organizou manifestação defendendo a competência concorrente, na qual estava presente a Associação Brasileira de Imprensa, e não por acidente voltou-se atrás na liminar e ela não foi referendada pelo Plenário. Era a presidência do ministro Cezar Peluso e ele até falou desse caso como tendo havido uma interferência da opinião pública sobre o julgamento, o que ele considerou condenável.

ConJur — Do ponto de vista da segurança jurídica, isso não é ruim? Se há o precedente, o que deveria prevalecer não é a jurisprudência em vez de a opinião pública ou a ideologia de cada um?
Patrícia Perrone Mello — Vamos falar, então, do novo Código de Processo Civil. Foi feita uma opção radical em favor dos precedentes vinculantes em casos repetitivos. Se você vai ter precedentes vinculantes, não pode mudar de opinião o tempo inteiro, senão é o caos instaurado. É pior do que não ter precedente vinculante, porque uma hora vincula para um lado, outra hora para o outro. E quando muda de entendimento, como é que faz? Por isso é muito importante para o Supremo como instituição, para a credibilidade do Judiciário, para funcionar o novo Código do Processo Civil, para a sociedade e para todo mundo que se ache um meio termo. Um caminho que costure a inevitabilidade de o momento e de a visão de mundo influenciarem os julgamentos com o respeito aos precedentes. Essa é a reflexão pela qual o Supremo vai precisar passar, porque tem um grande desafio pela frente, que é aprender a reverenciar os seus próprios precedentes.

ConJur — Isso é interessante não só do ponto de vista acadêmico. Para o advogado é também importante saber o que chama atenção ou não dos ministros, não é?
Patrícia Perrone Mello — No meu trabalho não faço juízo de valor. O meu objetivo não é dizer se é bom ou ruim julgar dessa ou daquela forma. O meu objetivo é fazer um diagnóstico do que interfere. Eu como advogada tenho que saber o que influencia um juiz, para saber por onde argumento. Se eu entrar no Judiciário partindo do pressuposto de que é só o Direito, eu não vou chamar atenção para os aspectos econômicos, por exemplo, que são fundamentais para as consequências daquela decisão. Por isso tenho que entrar na Justiça sabendo quais são os fatores que interferem. Eu, parte que preciso litigar, também preciso saber quais são os riscos que tenho ao entrar com uma ação judicial.

ConJur — A pesquisa chegou a captar o que interfere mais ou menos entre os ministros? Por exemplo, se o fator econômico interfere mais, ou se são questões sociais.
Patrícia Perrone Mello — Isso é individual, mas existem momentos políticos mais delicados para a politica ou para a economia. Por exemplo, quando o país passou pelo Plano Collor. Claramente aquelas medidas que bloqueavam os recursos das pessoas violavam o direito de propriedade. Mas o Supremo não deferiu a liminar para a afastar as medidas do plano econômico e depois o Pleno manteve a decisão. Ali tinham várias particularidades: era o primeiro presidente eleito pelo voto popular depois de anos de ditadura, o país passava por um momento de caos econômico e havia uma grande apreensão de qual seria a consequência de, naquele momento, interferir no jogo político. E o tribunal não interferiu. Do ponto de vista estritamente jurídico, havia todos os elementos para uma interferência, mas a corte exerceu a autocontenção.

ConJur — Pode falar de mais alguns exemplos descritos no livro?
Patrícia Perrone Mello — Teve alguns casos em que a economia influenciou, como o Plano Collor, ou a privatização da Vale do Rio Doce. Nada mais polêmico e o Supremo não interferiu. Crédito presumido de IPI, em que o Supremo tinha um entendimento fixado por nove a dois, e depois virou para um entendimento antagônico. Essa virada veio logo depois de algumas publicações da imprensa. Lembro bem de um artigo contundente da Miriam Leitão dizendo “será que o Supremo ainda não entendeu que o país vai quebrar?”, alguma coisa assim. Teve também o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, previsto na Constituição, mas nunca regulamentado. Quando o STF disse que ia regulamentar, o Congresso aprovou uma lei. Na Lei de Imprensa e em todos esses casos de liberdade de expressão, a opinião pública tem um poder de fogo enorme, e a corte é bastante defensora da liberdade de expressão por conta a liberdade de imprensa.


Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.



Revista Consultor Jurídico, 17 de janeiro de 2016, 6h21

Turma declara de ofício prescrição de ação proposta mais de 2 anos após a extinção do contrato de trabalho


Se o trabalhador ajuizar reclamação trabalhista depois do prazo previsto em lei, o magistrado poderá declarar a prescrição da ação, mesmo sem manifestação da parte contrária? Essa questão foi discutida em um processo analisado pela 9ª Turma do TRT mineiro. Na avaliação do relator do processo, desembargador Ricardo Antônio Mohallem, a resposta é positiva, pois, conforme frisou em seu voto, é dever do magistrado declarar a prescrição da ação ajuizada após o prazo máximo de dois anos depois da extinção do contrato de trabalho, ainda que a parte contrária não tenha formulado expressamente esse pedido.

No caso, o contrato de trabalho do reclamante foi extinto em 06/04/2012, considerando-se a projeção do aviso prévio de 51 dias, conforme comunicação de dispensa e termo de rescisão do contrato de trabalho (TRCT). O desembargador verificou que a ação ajuizada pelo reclamante foi distribuída em 05/06/2014, ou seja, dois anos e dois meses após o encerramento do contrato de trabalho. Em outras palavras, o reclamante perdeu o prazo para reivindicar na JT os créditos trabalhistas que entende lhe serem devidos.

Conforme destacou o desembargador, nos termos dos artigos 7º, XXIX, da CF/88 e 11, I, da CLT, o prazo prescricional é de 5 anos durante a vigência do contrato de trabalho e de 2 anos a contar da cessação do contrato, podendo ser postulados os últimos 5 anos a contar da propositura da ação, o que deve se dar dentro do prazo de 2 anos após a rescisão contratual. O relator observou que a juíza sentenciante havia pronunciado a prescrição das pretensões anteriores a 05/06/2009, tendo julgado parcialmente procedentes os pedidos iniciais para condenar a reclamada a pagar ao reclamante diferenças salariais com reflexos, uma hora extra diária (intervalo intrajornada) e feriados trabalhados em dobro. Entretanto, salientou o desembargador que a sentença não declarou a prescrição total, questão que sequer foi mencionada no recurso da empresa. Assim, diante dessa omissão, ele entendeu que cabe declarar a prescrição de ofício (independentemente de provocação pela parte contrária).

"A lei processual conferiu natureza pública à prescrição, tal como ocorre, por exemplo, com a decadência, as condições da ação e os pressupostos processuais, cabendo ao magistrado aferir a fluência do prazo prescricional e declará-la de ofício, em qualquer momento ou grau de jurisdição", finalizou o desembargador ao declarar de ofício a prescrição total da ação, extinguindo-a com julgamento da questão central e absolvendo a reclamada da condenação que lhe foi imposta. Nesse contexto, o julgador entendeu que ficou prejudicada a análise dos recursos das partes.

Por maioria de votos, a Turma julgadora acompanhou esse posicionamento.( 0000919-44.2014.5.03.0016 RO )
Fonte: TRT3

Cirurgião plástico deve garantir êxito do procedimento estético



O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendimento de que a relação entre o profissional médico e seus clientes gera um contrato de “obrigação de resultado”. Conforme decisões do tribunal, o cirurgião plástico, ao oferecer seus serviços, compromete-se a alcançar o resultado estético pretendido. Caso ocorram falhas nos procedimentos ou os resultados não sejam obtidos, o cliente pode acionar a Justiça para reparar eventuais danos morais e materiais.


“De acordo com vasta jurisprudência, a cirurgia plástica estética é obrigação de resultado, uma vez que o objetivo do paciente é justamente melhorar sua aparência, comprometendo-se o cirurgião a proporcionar-lhe o resultado pretendido”, decidiu o tribunal ao analisar o AREsp 328110. 


“O que importa considerar é que o profissional na área de cirurgia plástica, nos dias atuais, promete um determinado resultado (aliás, essa é a sua atividade-fim), prevendo, inclusive, com detalhes, esse novo resultado estético procurado. Alguns se utilizam mesmo de programas de computador que projetam a simulação da nova imagem (nariz, boca, olhos, seios, nádegas etc.), através de montagem, escolhida na tela do computador ou na impressora, para que o cliente decida. Estabelece-se, sem dúvida, entre médico e paciente relação contratual de resultado que deve ser honrada”, define a doutrina. 


O Brasil apresenta, ao lado dos EUA, o maior número de procedimentos desse tipo: a cada ano são realizadas no país mais de um milhão de procedimentos estéticos, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). Entre as mais comuns estão a cirurgia para remoção de gordura localizada (lipoaspiração), o implante de silicone para aumento dos seios (mamoplastia) e a cirurgia para levantar o nariz (rinoplastia).


As decisões da corte sobre esse assunto estão disponibilizadas pela Pesquisa Pronta, na página eletrônica do STJ, sob o tema Responsabilidade Civil do profissional por erro médico. A ferramenta oferece consultas prontamente disponíveis a temas jurídicos relevantes, bem como a acórdãos de julgamento de casos notórios.


Inversão do ônus da prova


A jurisprudência do STJ mantém entendimento de que nas obrigações de resultado, como nos casos de cirurgia plástica de embelezamento, cabe ao profissional demonstrar que eventuais insucessos ou efeitos danosos (tanto na parte estética como em relação a implicações para a saúde) relacionados à cirurgia decorreram de fatores alheios a sua atuação. Essa comprovação é feita por meio de laudos técnicos e perícia.


No julgamento do REsp 985888, o tribunal decidiu que “em procedimento cirúrgico para fins estéticos, conquanto a obrigação seja de resultado, não se vislumbra responsabilidade objetiva pelo insucesso da cirurgia, mas mera presunção de culpa médica, o que importa a inversão do ônus da prova, cabendo ao profissional elidi-la (eliminá-la) de modo a exonerar-se da responsabilidade contratual pelos danos causados ao paciente, em razão do ato cirúrgico”.


“Não se priva, assim, o médico da possibilidade de demonstrar, pelos meios de prova admissíveis, que o evento danoso tenha decorrido, por exemplo, de motivo de força maior, caso fortuito ou mesmo de culpa exclusiva da vítima (paciente)”, decidiu o tribunal no REsp 236708.


Casos


Um cirurgião plástico do interior de São Paulo foi condenado ao pagamento de nova cirurgia, além de indenizar em 100 salários mínimos uma cliente que se submeteu a procedimento estético para redução de mamas. O Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu na atuação do médico “a lesão de caráter estético no resultado da intervenção nas mamas da paciente, pelas cicatrizes deixadas, além da irregularidade no tamanho e no contorno. Doutro turno, não ter alcançado a aspiração estética trouxe à autora sofrimento que é intuitivo, não precisa ser comprovado”. Ao analisar o recurso (REsp 985888), o tribunal manteve a condenação do médico. “Não houve advertência à paciente quanto aos riscos da cirurgia, e o profissional também não provou a ocorrência de caso fortuito”.


Em outra decisão (REsp 1442438), ministros do STJ negaram pedido de indenização de uma moradora de Santa Catarina, submetida a cirurgia para implante de silicone. Ela manifestou frustração com o procedimento e apontou o surgimento de cicatrizes. O STJ decidiu que a atuação do médico não foi causadora de lesões. “A despeito do reconhecimento de que a cirurgia plástica caracteriza-se como obrigação de resultado, observa-se que, no caso, foi afastado o alegado dano. As instâncias ordinárias, mediante análise de prova pericial, consideraram que o resultado foi alcançado e que eventual descontentamento do resultado idealizado decorreu de complicações inerentes à própria condição pessoal da paciente, tais como condições da pele e do tecido mamário”.


OrientaçãoO cliente deve ser informado previamente pelo profissional de todos os possíveis riscos do procedimento, alertam os órgãos de defesa do consumidor. A SBCP recomenda aos interessados nesse tipo de procedimento que fiquem atentos à escolha do profissional e ao local onde se realizará a cirurgia. A entidade orienta a buscar informações sobre a devida habilitação do profissional e também se certificar das condições do estabelecimento, conferindo a existência de licença e alvará de funcionamento.




Fonte: STJ

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Defensor público pode ser proibido de sustentar alguma tese?






Imagine que você, na condição de defensor público, se depare com um assistido acusado de praticar o crime de lesão corporal contra um homossexual, dizendo que somente agrediu a vítima porque ela passou por ele com “trajes inadequados” e insinuou um flerte, razão pela qual teria agido em defesa da própria honra. Se o exemplo lhe parece um pouco distante, imagine uma situação frequente na Defensoria Pública: o assistido, pronunciado e submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri por ter matado a sua mulher, alega que praticou o crime para defender a própria honra, pois teria encontrado a vítima lhe traindo com um vizinho.

O defensor público, diante desses casos hipotéticos apresentados, poderia sustentar em favor do assistido a tese da legítima defesa da honra? Se a resposta for positiva, questiona-se: ao proceder dessa forma, não estará o defensor público assumindo a esquizofrênica[1] postura de promover os direitos humanos sustentando teses que reproduzem e aprofundam violações a direitos humanos? Se a resposta àquela pergunta for negativa, questiona-se: é possível estabelecer um “controle ético ou ideológico do argumento”? Sendo mais claro: o defensor público pode ser proibido de sustentar alguma tese? Vejamos.

Antes de prosseguir, tenhamos em conta que o assunto não é apenas polêmico na prática, mas também complicado no plano teórico, envolvendo, inclusive, um confronto entre objetivos da Defensoria Pública: de um lado, a primazia da dignidade da pessoa humana e a prevalência e efetividade dos direitos humanos (artigo 3º-A, I e III[2]), que certamente exigem da Defensoria uma atuação comprometida com os direitos humanos; e de outro, a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (artigo 3º-A, IV), que reclamam uma atuação comprometida com os interesses do assistido. O mesmo confronto se verifica entre funções institucionais da Defensoria, havendo, de um lado, a função de promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico (artigo 4º, III) e, de outro, a função de promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados (artigo 4º, X).

Não simpatizo com a ideia de censurar ou de proibir que o defensor público sustente determinada tese em favor de seu assistido. A liberdade de argumento é indissociável de uma defesa criminal efetiva. Assim, qualquer espécie de controle ético ou ideológico sobre a atuação do defensor público deve ficar no plano da recomendação, e não no da proibição, e isso porque, embora existam algumas teses que reproduzam concepções contrárias aos direitos humanos, a possibilidade de limitar o discurso defensivo — em questões de gênero, por exemplo — pode encontrar terreno fértil no Brasil e ser ampliada para outros temas menos sensíveis, numa tentativa de convergir a defesa criminal com valores comunitários morais ou éticos.

Se o controle ético ou ideológico da defesa criminal não pode impedir a sustentação de determinado argumento, tal conclusão não veicula, porém, uma obrigação de o defensor público necessariamente encampar a fala do acusado, já que nem sempre haverá uma vinculação entre as defesas técnica e pessoal no processo penal, sendo o defensor e o acusado, conforme adverte Claus Roxin, reciprocamente autônomos[3]. Por isso, deparando-se o defensor público com o requerimento de algum assistido para que sustente determinada tese contrária aos direitos humanos (a legítima defesa da honra em casos de feminicídio, por exemplo), entendo que o defensor poderá se valer de sua prerrogativa de deixar de patrocinar a ação (no que se insere também a defesa) por considerá-la manifestamente incabível ou inconveniente aos interesses da parte (artigos 44, XII, 89, XII, e 128, XII, da LC 80/94).

A Constituição Federal incumbiu à Defensoria Pública a promoção dos direitos humanos (artigo 134, caput), de modo que é possível extrair dessa função, segundo a lição de Renata Tavares da Costa, “uma obrigação positiva, ou seja, de assegurar o efetivo acesso de gozo de tais direitos, bem como uma posição negativa, qual seja, de abster-se de determinadas atitudes que aprofundem a violação destes direitos”[4]. Pode ser que, em algumas ocasiões, a efetividade da defesa criminal esteja condicionada justamente a um discurso contemporâneo e inteligente que conduza, por exemplo, um caso de violência de gênero a partir da diminuição da culpabilidade do acusado diante de sua formação moral num ambiente discriminatório, e não a partir de uma sugestionada culpa da vítima[5].

A Defensoria é responsável pela construção de sua história e, mais do que isso, pela consolidação de sua identidade. Pode ser apenas (mais) uma instituição no cenário jurídico do país, e assim contribuir para a manutenção do status quo, mas pode, também, representar o novo, abrir o armário das ideias eticamente comprometidas com os direitos humanos e colocar na gaveta tudo aquilo que produziu e que ainda produz discriminação, dor e sofrimento.



[1] A expressão é de Renata Tavares da Costa: “Isso, em hipótese alguma, pode significar uma limitação de atuação no campo da defesa, que deve ser amplo, mas efetivamente no reconhecimento de que esta defesa deve ser ética e feita dentro dos parâmetros institucionais previstos na Constituição. Ou seja, o defensor não pode ter a esquizofrênica posição de promover os direitos humanos e, ao mesmo tempo, sustentar teses que sustentem tais violações de direitos” (Os direitos humanos como limite ético na defesa dos acusados de feminicídio no Tribunal do Júri. In: XII Congresso Nacional de Defensores Públicos. Livro de teses e práticas exitosas. Curitiba, 2015, p. 207).
[2] Esse e os demais dispositivos citados no parágrafo são da LC 80/94.
[3] ROXIN, Claus. Pasado, presente y futuro del Derecho Procesal Penal. Sante Fé: Rubinzal-Culzoni, 2007, p. 58. No mesmo sentido, afirma Fernandes que “(...) o defensor é independente não só do tribunal e do Ministério Público, mas também do seu próprio cliente” (FERNANDES, Fernando. O Processo Penal como Instrumento de Política Criminal. Coimbra: Almedina, 2001, p. 368).
[4] Os direitos humanos como limite ético na defesa dos acusados de feminicídio no Tribunal do Júri. In: XII Congresso Nacional de Defensores Públicos. Livro de teses e práticas exitosas. Curitiba, 2015, p. 207.
[5] Mais uma vez cito o instigante trabalho de Renata Tavares da Costa, apresentado com muito entusiasmo no XII Congresso Nacional de Defensores Públicos, em que ela desenvolve a tese do homem como “vítima cultural”: “E aqui reside o grande argumento para os Defensores que no júri estão para a defesa daqueles que perpetraram a violência extrema contra a mulher: se essa violência é resultado de séculos de discriminação, é justo ou proporcional imputá-la somente ao sujeito que está sentado no banco dos réus? (...) Neste sentido é que o argumento da legítima defesa da honra nos casos do feminicídio no Tribunal de Júri deve ser substituído pelo argumento da cultura de discriminação produzida numa série de omissões estatais que fazem o agressor uma espécie de vítima cultural” (Os direitos humanos como limite ético na defesa dos acusados de feminicídio no Tribunal do Júri. In: XII Congresso Nacional de Defensores Públicos. Livro de teses e práticas exitosas. Curitiba, 2015, p. 207).


Caio Paiva é defensor público federal, especialista em ciências criminais, professor e coordenador do Curso CEI. É autor do livro “Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro” e coautor de “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos”.
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Revista Consultor Jurídico, 5 de janeiro de 2016, 8h05

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...