Mostrando postagens com marcador PROCESSO CIVIL. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador PROCESSO CIVIL. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Declaratórios devem ser acolhidos em caso de erro sobre fato






A elevação do volume da demanda jurisdicional e da correspondente resposta apresentada pelo Poder Judiciário é fato notório, além de formalmente identificado pelo relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça.

Tal acréscimo da produtividade dos já sobrecarregados magistrados brasileiros — os quais, a propósito, situam-se entre os mais produtivos do mundo —, traz consigo a elevação do risco de prolação, em um ou outro caso dentre os numerosos feitos mensalmente sentenciados, de provimento excepcionalmente prolatado com base em fato essencial equivocadamente considerado pelo julgador.

Identificando o erro sobre fato, o parágrafo 1º do artigo 485 Código de Processo Civil delimita que há “há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido”, conclusão adotada a partir de “atos ou de documentos da causa” (inciso IX do mesmo artigo).

Em princípio, a oposição de embargos de declaração em casos que tais não estaria permitida pela redação restritiva dos incisos I e II do artigo 535 do Código de Processo Civil. Tal oposição estaria franqueada apenas aos casos de omissão jurisdicional na análise de pedido expresso da parte ou às hipóteses de obscuridade ou de contradição observadas internamente ao ato jurisdicional embargado.

Qual expediente processual deve o procurador, então, adotar ao observar que a sentença restou prolatada com base em pressuposto de fato equivocado? Deve opor os aparentemente descabidos embargos de declaração? Ou deve desde logo interpor o recurso de apelação, partindo da premissa de que o magistrado sentenciante não poderá retificar a sentença, pois ela não conta precisamente com os vícios da omissão, contradição ou obscuridade em sua conceituação precisa?

Ao deslinde da questão, é relevante ter em mente a premissa de que o processo é instrumento eminentemente público, por meio do qual se dá a exteriorização e a eficácia de uma das três funções do poder do Estado: a função ou o poder jurisdicional. Pela atuação dessa importante função de poder implementa-se um particular e grave serviço público: a prestação jurisdicional. É por esse serviço que o Estado age para analisar e afirmar a existência de direitos e para garantir os parâmetros de seu exercício, pacificando conflitos de interesses.

Princípios constitucionais como o da efetividade da jurisdição e da tutela jurisdicional, da eficiência, da razoável duração dos processos e da justiça, interpretados em conjunto com princípios processuais como da instrumentalidade, impõem uma proveitosa mudança de paradigmas interpretativos sobre os limites da atuação do julgador no momento posterior à prolação de sentença. Há que se repesarem os valores que informam a existência tanto do processo em si considerado quanto do modelo processual adotado, redefinindo-se a técnica processual para que as justas expectativas que se depositam sobre a existência e finalidade do processo sejam adequadamente atendidas.

Sobre o tema, vale a lição de Michele Taruffo: “Um modelo processual — e isso vale para todos os modelos de processo — nasce assim da combinação de escolhas ideológicas e de instrumentações técnicas. Combinações variáveis sobretudo em função da variedade das escolhas ideológicas, dado que a técnica, em si considerada, é neutra e vazia. Isso implica que a análise de um modelo processual deve ter em consideração primeiramente a sua dimensão ideológica, sendo a dimensão técnica importante, mas não decisiva. (Cultura e processo. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 63, n. 1, p. 63-92, Mar. 2009, tradução nossa, p. 71-72).

O processo civil, pois, deve ser instrumento justo e ético de obter a tutela jurisdicional. O respeito à justiça e à ética impõe aos atores do processo e, portanto, a esse próprio instrumento, a irrestrita observância dos princípios constitucionais que lhe são afetos e o respeito aos parâmetros processuais predeterminados.

Assim, princípios como o do devido processo legal, do prévio contraditório, da ampla defesa, da razoável duração do processo e da eficiência, da razoabilidade e proporcionalidade e da efetividade da prestação jurisdicional devem ser constantemente curados pelo juiz e pelas partes na busca do processo ético e justo.

Portanto, o que se espera do processo, sob o aspecto ontológico, verdadeiramente, é o resultado prático, substancial, material que ele serve a viabilizar. Assim não fosse, o processo assumiria papel principal, em vez de seu papel assessório e instrumental. Mais que o exclusivo direito de acesso ao Poder Judiciário ou que o direito de ver judicialmente apreciada certa pretensão, o processo deve servir eficazmente à efetiva tutela jurisdicional de direitos. A existência de direitos e seu livre exercício devem ser prestigiados pelo processo, que utilmente serve senão que para lhes garantir o reconhecimento e para permitir sua fruição.

Nesse contexto, “o processo justo está diretamente relacionado com a justiça do seu resultado”, conforme leciona Sergio Chiarloni (Giusto processo, garanzie processuali, giustizia della decisione. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 62, n. 1, p. 129-152, Mar. 2008., p. 146, tradução nossa).

A retratação sentencial proposta permite que o provimento judicial seja prontamente ajustado e mesmo integralmente substituído, em caso de o próprio magistrado sentenciante apurar a procedência dos esclarecimentos fáticos contidos na peça de embargos de declaração. Acelera-se, assim, a efetiva e justa prestação jurisdicional, ensejando ainda, eventualmente, o adiantamento do encerramento do feito. Mais que isso, a retratação permitirá entregar ao verdadeiro sucumbente os ônus do decurso do tempo de tramitação processual, desestimulando comportamentos meramente protelatórios.

Não se pretende com o processo apenas encenar um pseudo-resultado, assim entendido o resultado técnico dissociado da justa solvência de uma crise de interesses. Para que o resultado eficaz seja alcançado, o juiz deve analisar a crise que lhe é apresentada tomando em conta de consideração todas as circunstâncias fáticas relevantes ao encontro da solução legítima e justa.

O exercício do juízo de retratação sentencial é, nesse contexto, justamente a oportunidade ensejada ao magistrado para que substitua um seu anterior entendimento formalmente expressado, por outro pronunciamento ajustado aos exatos fatos relevantes do processo.

Alguns dispositivos contidos no Código de Processo Civil preveem a possibilidade do exercício do juízo de retratação da sentença. Dentre eles, destaca-se o artigo 463 e seus incisos I e II. Esse dispositivo consagra a ideia de que o Juízo de primeiro grau encerra a sua jurisdição no caso concreto com a prolação da sentença, não podendo mais revê-la senão apenas para lhe corrigir meras inexatidões ou, por meio de embargos de declaração, para integrá-la, suprimindo omissão, contradição ou obscuridade dela constante. Neste último caso, somente reflexamente à correção da mácula objeto da oposição declaratória poderá atribuir efeitos infringentes e eventualmente modificar substancialmente o teor da sentença embargada.

O cabimento da retratação de sentença por decorrência do julgamento dos embargos de declaração, pois, não enseja dúvida. Para que isso ocorra, contudo, o ato deve estar formalmente maculado pelo vício da omissão, da contradição ou da obscuridade. Se um desses vícios houver, caberá ao julgador revisar sua sentença para torná-la formal e materialmente justa. Note-se, todavia, que tal expediente processual tem como objetivo estrito a declaração do verdadeiro sentido, ou a integração, de uma decisão portadora de omissão, de obscuridade ou de contradição em seus próprios termos. Os embargos de declaração, portanto, permitem que o juiz revisite apenas internamente sua sentença, cotejando a mútua adequação de seus próprios termos, em princípio sem nova apreciação dos fatos que lhe deram ensejo.

Todavia, a justa prestação jurisdicional não pode ser negada pelo exclusivo argumento da impossibilidade de superação, no caso concreto, do disposto no artigo 463 do Código de Processo Civil ou da máxima de que “o juiz esgota sua jurisdição com a prolação de sentença”.

O dever de observância irrestrita e incondicionada dos termos materiais desse dispositivo legal (artigo 463, CPC) não pode suplantar o dever do magistrado com a entrega da justa tutela jurisdicional, com a instrumentalidade material do processo e com o valor da justiça.

A ampliação, no caso concreto, das hipóteses de cabimento do juízo de retratação de sentença é medida necessária ao real cumprimento de postulados constitucionais, sobretudo ao da efetividade da prestação jurisdicional e ao da justiça das decisões emanadas do Poder Judiciário.

A finalidade da presente proposição de afastamento da limitação legal em questão é ensejar que o magistrado sentenciante reveja, com vista nos reais fundamentos de existência do processo e nos princípios constitucionais e direitos fundamentais, seu inicial entendimento veiculado pela sentença que, equivocadamente, restou fundada sobre erro de fato.

Evidentemente que a presente hipótese não visa a estimular a oposição dos embargos de declaração em toda e qualquer hipótese de mera insatisfação da parte com o resultado do julgamento ou em relação a erro sobre fato que não seja relevante ao deslinde do feito. O presente artigo visa, antes e exclusivamente, a destacar meio processual de correção imediata, em caso de erro sobre fato essencial, de ato sentencial cuja reforma pelo órgão revisor mostra-se de pronto identificada pelo próprio magistrado sentenciante.

Ao fim e ao cabo, com a extensão jurisprudencial das hipóteses de cabimento dos embargos de declaração, que podem ser opostos também em face de sentença prolatada a partir de erro sobre fato relevante, pretende-se atribuir máxima eficácia aos princípios da efetividade da jurisdição e do devido processo legal material, ou substantive due process of law.

Se a necessidade de reforma da sentença originária, porque prolatada com erro sobre fato, é admitida pelo próprio juízo sentenciante, por qual razão remeter tal declaração ao Órgão recursal? Por que esperar que órgão jurisdicional superior reveja uma determinada sentença fundada em erro sobre fato essencial, se o próprio órgão que a prolatou admite a necessidade dessa pronta retificação? Não parece haver mesmo sentido em submeter a parte prejudicada a esse desnecessário lapso temporal.

A vinculação do magistrado é certamente com o cumprimento da lei, mas também e sobretudo com o respeito e com a eficácia dos princípios constitucionais, dos direitos fundamentais e, de resto, com a realização da Justiça no caso concreto. Nesse contexto, em sendo o caso de aferição de erro sobre fato essencial, deverá o magistrado sentenciante desde logo prestigiar a via da retratação de sentença, dando acolhimento aos embargos de declaração.

O exercício da judicatura indica que hipóteses que tais — de erro judicial sobre fato relevante — são casos ínfimos em relação ao elevado número de sentenças proferidas mensalmente por cada magistrado brasileiro. Justamente por serem excepcionais, essas hipóteses merecem da jurisdição tratamento também excepcional, mediante a admissão e acolhimento dos embargos de declaração opostos ao fim de prontamente corrigi-los.

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça chancelam o entendimento aqui esposado. Essas cortes sufragam, com efeito, o cabimento dos embargos de declaração também em face de provimento jurisdicional que, a despeito de não contar com contradição, obscuridade ou omissão no conceito técnico estrito, foi prolatado com base em pressuposto de fato equivocadamente considerado pelo julgador. Nesse sentido da serventia dos embargos de declaração para corrigir também esse quarto possível vício da sentença, veja-se: STF: STA 446 MC-AgR-ED/CE; SS 4119 AgR-ED/PI; AI 492629 AgR-ED-ED/RS; RE 203981 ED/PE; RE 193775 ED/SP; RE 203054 ED/RS; RE 191203 AgR-ED/SP; STJ: EDAGRESP 412393; EADRES 720186; ADRESP 1242507; RESP 1065913.

Nesse último julgado, aponta de forma precisa o relator, ministro Luiz Fux, então no STJ: “(...) 2. Assim, há erro de fato quando o juiz, desconhecendo a novação acostado aos autos, condena o réu no quantum originário. "O erro de fato supõe fato suscitado e não resolvido", porque o fato "não alegado" fica superado pela eficácia preclusiva do julgado - tantum iudicatum quantum disputatum debeat (artigo 474, do CPC). (...). 3. A interpretação autêntica inserta nos §§ 1º e 2º dissipa qualquer dúvida, ao preceituar que há erro quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido, sendo indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato.” (STJ; REsp 1.065.913; 1.ª Turma; DJE 10/09/2009).

Ao magistrado, portanto, cabe cuidar da efetividade de sua atividade decisória, cotejando os resultados dela decorrentes com os objetivos da própria existência do valioso serviço jurisdicional que está a prestar. Cabe-lhe, no desencargo dessa função de poder, sindicar a justiça de sua sentença, em verdadeiro exercício de saneamento material da justa tutela jurisdicional.

Isso porque a tutela jurisdicional não existe senão para ser justa.


Guilherme Lucci é juiz federal em Campinas(SP), especialista em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura e mestrando em Efetividade da Jurisdição pela PUC-SP.



Revista Consultor Jurídico, 16 de outubro de 2014, 6h32

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Pensou-se no STF e no STJ, mas faltou ouvir o povo sobre o novo CPC





[Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo de 17/12]

Melhorar a legislação do País é sempre providência salutar e bem­vinda, pois a todos interessa a existência de leis constitucionais e adequadas à realidade brasileira e, no caso específico do processo civil, que atendam às garantias constitucionais da celeridade processual e da razoável duração do processo.

Equívoco muito comum entre nós é pretender modificar a legislação como se, num passe de mágica, essa mudança fosse capaz de alterar a natureza e a realidade das coisas. Não é com mudança de legislação, apenas, que serão melhoradas as condições da Justiça brasileira e o tempo de duração dos processos, bem como a qualidade da prestação jurisdicional pelos juízes e tribunais do País.

Leis nós temos muitas. E boas. O CPC vigente, de 1973, é uma lei excelente. O novo, que foi aprovado pelo Senado, não foi feito porque a lei anterior era ruim, mas para tentar equacionar o problema do estoque dos processos nos escaninhos dos órgãos do Poder Judiciário, principalmente nos tribunais superiores.

A aplicação dessas leis e/ou sua efetividade é que sofrem das mazelas culturais, econômicas e sociais próprias de País em desenvolvimento e que está caminhando a passos lentos para a estabilização das instituições democráticas.

O Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública são dois exemplos excepcionais, que têm prestado relevantes serviços à cidadania brasileira, mas que, por outro lado, não têm sido tão efetivos em virtude da utilização inadequada por todos aqueles que devem se servir dessas leis. Falamos de advogados, membros do Ministério Público, Magistrados em geral, órgãos da Administração Pública e Procuradores Públicos. Essa é a razão pela qual se pretende a reforma do CDC e da LACP. O problema não é de deficiência da lei, mas sim sua aplicação e efetividade. Em suma, o problema é cultural.

No caso do CPC, o cenário é um pouco diferente, mas a gênese é semelhante. Há um problema grave de acúmulo de processos no Poder Judiciário, o que vale dizer que há demora excessiva na solução dos casos submetidos ao exame dos juízes e tribunais.

Apesar da versão aprovada pelo Senado Federal ser muito melhor do que a de 2010, originariamente aprovada pelo mesmo Senado e que era extremamente ruim, pensou­se num novo CPC que privilegiasse a questão do estoque de processos e a hierarquia dos tribunais superiores sobre os tribunais regionais federais e estaduais e, destes, sobre os juízos singulares.

Essa visão, em meu modo de ver é, em princípio, distorcida, porque ataca o efeito mas não a causa. Há um número excessivo de processos, então tomam­se medidas para solucionar a questão. O problema é de outra ordem, nomeadamente, de natureza cultural. O exemplo vem de cima, pois o primeiro a descumprir a Constituição e as leis é o Poder Público. Ele não cumpre as leis e, com esse mau exemplo, os particulares também não cumprem, gerando a judicialização dos problemas originados por esse descumprimento. Se o Poder Público cumprisse a Constituição e as leis, tomando a iniciativa de decidir com responsabilidade questões cristalinas sobre as quais não há dúvida, a diminuição de demandas seria sensível e ocorreria automaticamente.

O projeto aprovado pelo Senado obedece a pauta dos tribunais superiores. Vale dizer, foi elaborado para desafogar os escaninhos principalmente do STF e do STJ, sem que se tivesse privilegiado o jurisdicionado, o povo, destinatário final da prestação jurisdicional.

Não se perguntou à população se ela quer a extinção de recursos ou a dificuldade em admitir­se recurso para qualquer tribunal. Ou seja, se deseja que seu direito constitucional de ação seja impedido por decisão liminar que julga improcedente sua pretensão, e colocando um ponto final na discussão se essa contraria súmula de tribunal!

Em meu entender, a população deveria ter sido consultada, de nada valendo a afirmação de que o projeto foi aprovado na "Casa do Povo", que é a Câmara dos Deputados. Estou falando de democracia verdadeira e não de democracia formal. Não se faz um Código de Processo Civil para atender interesses apenas de tribunais.

A questão da hierarquia é ainda mais aguda. Quer­se instituir o autoritarismo do processo com o denominado "direito jurisprudencial", termo que coloco entre aspas porque entendo ser pejorativo, já que não pode existir num País que adota como fundamento o estado constitucional, jurisprudência vinculante, seja de que tribunal partir essa determinação. O CPC de 1973, aprovado durante o regime da ditadura militar era e é ideologicamente democrático; o novo CPC, com a instituição de obediência hierárquica dos juízos aos tribunais, com a instituição de súmula vinculante, súmula impeditiva de recurso e outros expedientes assemelhados, será um código ideologicamente autoritário. Mais uma vez estaremos diante de um "estado democrático de direito" virtual, de uma democracia com punhos de renda.

No mais, naquilo que o projeto traz de melhoria dos institutos processuais, só pode receber elogios, pois, repito, ninguém pode colocar­se contra a melhoria da legislação. Mas isso é varejo. No atacado, o Código será autoritário, instalará a ditadura dos tribunais e descumprirá o já tão menosprezado direito de ação, garantia constitucional que deverá ser tratada como cláusula de algodão, porque de pétrea parece que não terá mais nenhum vestígio.

Boa sorte ao jurisdicionado brasileiro. É o quer posso humildemente desejar.


Nelson Nery Jr. é parecerista, professor titular das Faculdades de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC­-SP) e da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (Unesp) e sócio do Nery Advogados



Revista Consultor Jurídico, 20 de dezembro de 2014, 13h16

O novo CPC e o processo judicial eletrônico

O novo CPC e o processo judicial eletrônico




O novo Código de Processo Civil pouco se ateve a tramitação processual por meio eletrônico, mesmo apesar dos sete anos de existência da Lei que instituiu o processo judicial informatizado.

A Lei 11.419/2006 se traduz em texto reduzido de 22 artigos, que delegou aos órgãos do Poder Judiciário sua regulamentação, no âmbito de suas respectivas competências.

Desde março de 2007 o exercício da advocacia em meio eletrônico se condiciona ao conhecimento da regulamentação concretizada por cada um dos 27 Tribunais de Justiça, pelos cinco Tribunais Regionais Federais, pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Superior Tribunal de Justiça, além da Justiça Trabalhista, absolutamente díspares.

Invariavelmente a regulamentação protagonizada pelos Tribunais adentra a seara alheia, instituindo regras e exigências inexistentes no ecossistema do Direito Processual, fato que vem causando grave insegurança jurídica.

O novo CPC não trouxe a tão desejada unificação das regras e procedimentos da tramitação judicial por meio eletrônico. Perdeu-se rara oportunidade de exterminar essas dezenas de ilhas isoladas de normas internas.

Caberá ao Conselho Nacional de Justiça a competência de regulamentar supletiva aos tribunais quanto a prática e a comunicação oficial de atos processuais por meio eletrônico, cabendo velar pela compatibilidade dos sistemas, disciplinar a incorporação progressiva de novos avanços tecnológicos e editando, para esse fim, os atos que forem necessários, respeitadas as normas fundamentais do novo CPC.

Muito ainda será comentado e analisado. Viver para ver os resultados!

Selecionamos os artigos do novo CPC que fazem referência direta ao meio eletrônico. Clique aqui para ler. 


Ana Amelia Menna Barreto é advogada do Barros Ribeiro Advogados Associados e diretora de inclusão digital da OAB-RJ.



Revista Consultor Jurídico, 22 de dezembro de 2014, 9h53

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Proposta para o Novo CPC: Juiz pode fazer penhora online se houver fundamento






Se é verdade que a primeira versão do CPC, aprovada pelo Senado em 2009, institucionalizava um poder judicial quase sem limites para a decretação da penhora on line, e se é verdade também que a Câmara dos Deputados, após longos debates, resolveu restringir enormemente tais poderes, condicionando-os à existência de “decisão de tribunal”, o que resta agora aos senadores que se reúnem em sessão plenária na terça-feira (16/12) é encontrar uma solução de equilíbrio que favoreça e torne razoável o trânsito processual.

Para esse fim, lembramos que existe uma solução intermediária no substitutivo apresentado à Câmara pelo Deputado Miro Teixeira, de nossa lavra, e que pode constituir uma saída para o dilema da penhora on line sem ferir a norma regimental que impede a construção de novos textos, além dos aprovados em cada uma das casas legislativas.

A proposta de solução é a seguinte: a supressão dos §§ 9º e 10º do art. 870 que vieram da Câmara e que sujeitam a penhora on line à “decisão de tribunal” – supressão objeto de emenda recente de alguns senadores para fortalecer o juiz de primeiro grau em favor dos credores –, mas com o acréscimo ao caput do mesmo art. 870 da exigência de fundamentação cautelar (o condicionamento à ocorrência de “perigo na demora da prestação jurisdicional”) e de expressa justificação das “razões de seu convencimento de modo claro e preciso”, por parte do juiz ao decidir, tudo para assegurar o direito de não agressão liminar ao patrimônio dos devedores sem um motivo sério.

Observe-se que o acréscimo de fundamento cautelar ao caput do art. 870 nada mais significa do que a explicitação da razão da necessidade do bloqueio liminar e da justificativa da própria cláusula “sem dar ciência prévia do ato ao executado” que consta do texto. Em outras palavras, a exigência de periculum in mora apenas explica o cabimento do bloqueio on line que o texto original do Senado, de 2009, não fazia, mas também atende à preocupação da Câmara de não permitir bloqueios levianos.

O acréscimo proposto é o meio-termo entre o fortalecimento excessivo do poder do juiz (do Senado, de 2009) e o enfraquecimento excessivo do poder do juiz (da Câmara, de 2013). Trata-se do ponto de equilíbrio entre a vontade das duas casas legiferantes e a mera explicitação do que o Senado, em 2009, podia e devia ter dito, mas não disse. Afinal de contas, o bloqueio on line serve para situações perigosas e para executados perigosos (os que estão fugindo, escondendo bens, esvaziando contas) e não para quaisquer executados.

Além disto, a solução por nós cogitada também acaba justificando a emenda que propõe a supressão da cláusula final do parágrafo único do art. 298 do texto da Câmara que regula a tutela de urgência (“vedados o bloqueio e penhora de dinheiro, de aplicação financeira e outros ativos”), porque se o juiz pode liminarmente bloquear on line em sede executiva, é natural que ele possa bloquear on line em sede de tutela cautelar, sob a forma de arresto, como previsto pelo art. 301, §3º, do projeto aprovado pela Câmara dos Deputados em 2013.


Antônio Cláudio da Costa Machado é advogado e professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP, professor de pós-graduação da Faculdade de Direito de Osasco, coordenador de Direito Processual Civil da Escola Paulista de Direito, mestre e doutor em Direito pela USP.



Revista Consultor Jurídico, 15 de dezembro de 2014, 12h02

terça-feira, 26 de agosto de 2014

NOVO CPC NÃO DEVE ADOTAR CONCEITO SOBRE CONDIÇÕES PARA A AÇÃO


Novo CPC não deve adotar conceito sobre condições para a ação




Com a proximidade da aprovação do projeto do novo Código de Processo Civil no Congresso Nacional, passaremos a veicular, nesta coluna, predominantemente textos relacionados à nova lei que se avizinha.

Teremos por foco pontos que consideramos chavedo novo Código (que chamaremos, por comodidade, de NCPC), aspectos que repercutam, de modo mais rente, na vida daqueles que atuam no dia a dia do foro. Procuraremos, também, responder às questões que nos forem enviadas — para saber como enviar suas dúvidas, cliqueaqui. Esperamos, com isso, que os textos por nós publicados nesta coluna continuem a ser úteis a advogados, defensores públicos, juízes, promotores de Justiça, professores, estudantes, enfim, a todos que se interessam por esse tema.

Daremos início a esta série comentando algo sobre aquilo que se convencionou chamar de condições da ação. Valemo-nos da fórmula por comodidade, pois assim o assunto é conhecido entre nós, tendo esse termo, inclusive, sido expressamente referido, no CPC de 1973 (artigo 267, inciso VI).

O NCPC não utiliza tal expressão — há ótimo quadro comparativo, elaborado pelo Serviço de Redação da Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal, disponível para download aqui. No artigo 495, inciso VI, do projeto (na versão Câmara dos Deputados; artigo 472, inciso VI, na versão do Senado) há apenas menção à hipótese em que o juiz se manifesta sobre a ausência de legitimidade ou interesse processual — sobre a possibilidade jurídica, confira o que se diz infra.

Essa opção do projeto, tomada, desde o início, pela comissão que elaborou o anteprojeto do novo CPC, nos parece a mais acertada. A lei, em princípio, não deve adotar um determinado conceito ou concepção doutrinária. O projeto, em outros casos, opta por “definir” institutos jurídico-processuais, aparentemente seguindo determinada concepção doutrinária, algo que não nos parece correto. Restará à doutrina e à jurisprudência definir se, à luz do NCPC, fará, ainda, sentido falar em “condições da ação”, ou se legitimidade e interesse processual seriam matérias que poderiam se inserir entre os pressupostos processuais ou no mérito.

A possibilidade jurídica não é mencionada pelo NCPC. Os casos em que, à luz do CPC de 1973, considera-se a demanda juridicamente impossível, devem se ajustar, à luz do NCPC, à improcedência do pedido ou, eventualmente, à falta de interesse processual — a respeito, confira texto que escrevemos há bom tempo, mas que ainda mostra-se atual, intitulado “Possibilidade jurídica do pedido e mérito”, publicado em 1999 na Revista de Processo, v. 93.

Embora sem adotar um nome para tais figuras (como “condições da ação”), ou inseri-las em determinada categoria processual, parece certo que o NCPC deu a elas tratamento singular. Diz o texto do projeto, como antes se observou, que, no caso, se está diante de hipótese em que o juiz não se pronuncia sobre o mérito. Tal decisão faria coisa julgada? Costuma-se dizer, tradicionalmente, que não. O artigo 268 do CPC de 1973, a propósito, dá a entender que, caso o processo seja extinto sem resolução do mérito por falta de uma das condições da ação, a mesma ação poderia ser reproposta (e extinta pelo mesmo motivo) indefinidamente. Essa não parece ser uma solução adequada — confira a respeito o que escrevemos no texto antes referido, e ampla doutrina ali citada.

O NCPC dá tratamento diverso ao tema, ao dizer que, em caso de extinção do processo por falta de legitimidade e interesse processual, “a propositura da nova ação depende da correção do vício” (artigo 496, parágrafo 1º, versão Câmara dos Deputados; artigo 473, parágrafo 1º, versão Senado). A confirmar essa ordem de ideias, o projeto admite o ajuizamento de ação rescisória contra “decisão transitada em julgado que, embora não seja de mérito, não permita a repropositura da demanda ou impeça o reexame do mérito” (artigo 978, parágrafo 2º, versão Câmara; sem correspondente, na versão do Senado).

Há, aí, algo similar àquilo que se convencionou chamar de efeito negativo da coisa julgada — em estudo dedicado à possibilidade jurídica, antes referido, sustentamos que se deve admitir que há, no caso, coisa julgada.

O tema a que nos referimos no presente texto é, evidentemente, muito complexo, a merecer exame mais demorado e aprofundado. Nós mesmos pretendemos fazer isso em outros estudos. Embora saibamos que muitos não cultivam esse modo de pensar, parece-nos possível tratar de temas complexos sem complicá-los ainda mais. Especialmente nessa “fase” de transição entre o CPC de 1973 e o NCPC, devemos tentar ser precisos, mas com leveza, com a máxima simplicidade possível, embora sem cair em simplismos.

Esse é o nosso propósito. Que os textos já publicados e os que seguirão nesta coluna o alcancem, é o que mais desejamos. 


José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.



Revista Consultor Jurídico, 25 de agosto de 2014, 10:57

terça-feira, 19 de agosto de 2014

STF precisa desestimular recursos, apontam especialistas em evento em SP


STF precisa desestimular recursos, apontam especialistas em evento em SP




É preciso criar mecanismos que desestimulem as pessoas a recorrer ao Supremo Tribunal Federal. Dessa forma, a Corte poderá se concentrar apenas em questões materialmente importantes para a sociedade. A ideia foi abordada durante o evento “Desafios Supremos”: diálogo entre o STF e a Suprema Corte Americano, que ocorreu nesta segunda-feira (18/8).

O secretário-geral da Suprema Corte dos EUA Scott Harris contou que apesar do grande número de litígios no país, há apenas 8 mil recursos à Suprema Corte por ano e apenas 1% desse total são admitidos. A corte sequer é vista como uma terceira instância recursal. Isso porque, ao longo de mais de um século, criou maneiras de desestimular os recursos.

O efeito é cultural: pouca gente recorre à Suprema Corte porque sabe que dificilmente o caso será admitido. Hoje, 80% de sua demanda é relativa a conflitos entre tribunais federais. Os 20% restantes são para decidir questões consideradas materialmente relevantes.

Ele conta que os casos que chegam à Suprema Corte americana passam por uma seleção feita pelos assessores dos ministros. Cada ministro conta com quatro assessores que têm a função de receber os casos e fazer um memorando recomendando ou não que o caso seja apreciado, com base na questão constitucional de cada ação. Os sucintos documentos são enviados aos ministros semanalmente e os juízes debatem se devem aceitar ou não.

Para o juiz federal americano Peter Messite, a revisão discricionária é algo que deveria ser implantada com mais força no Brasil. Ele explica que para chegar na Suprema Corte americana, as causas devem ter importância geral. Ou seja, os ministros são chamados para resolver conflitos que envolvem matérias de importância nacional, como o casamento homossexual e o aborto.

Efeitos colaterais
Ainda que tenha criado filtros processuais mais severos, o Supremo ainda é sobrecarregado com casos como roubo de galinhas e furto de chinelos. De acordo com Max Fontes, presidente da Harvard Law School Association of Brazil, o instituto da Repercussão Geral gerou uma série de teses que não foram julgadas e estão sobrestando milhares de processos nos tribunais inferiores. “O caminho encurtou, mas ficou muito mais demorado do ponto de vista processual”, afirma.

Fontes conta que medidas legislativas já foram tomadas, tanto de ordem legal quanto constitucional. Mas é insuficiente. Segundo ele, o mais importante é fazer uma reforma procedimental e analisar quais são os procedimentos que o STF precisa adotar para que possa julgar com rapidez essas inúmeras teses que aguardam julgamento. “O maior desafio do Supremo hoje não é jurisdicional e, sim, administrativo”, diz.

Para Oscar Vilhena, diretor da FGV Direito SP, o desafio no Brasil envolve engenharia institucional e de cultura legal. Segundo ele, as questões estão relacionadas às diferenças entre as constituições americana e brasileira: a americana é singela em relação aos temas em que ela cobre e tem apenas sete artigos originais; já a brasileira é “ambiciosa” e tem 240 artigos originais. “As constituições maiores complicam a vida de todos.”

Ainda de acordo com Vilhena, as competências do Supremo padecem de um "defeito de fabricação", com uma quantidade de atribuições que extrapolam o que uma corte constitucional precisa ter. "Nossa Corte é de apelação, é constitucional e é tribunal especial de crimes políticos e de outros atos cometidos. Há uma conjugação em uma instância, do que outros países são distribuídos”, afirma.

A crítica do diretor é que as propostas de mudança estão mais preocupadas em ampliar o calibre da entrada. Isso, consequentemente, aumenta a demanda. “O STF precisa deixar de ser uma terceira instância onde as pessoas utilizam simplesmente com o objetivo de adiar o fim do processo”, diz. Nessa hipótese, o trabalho seria limitado em duas instâncias e o Supremo, eventualmente, resolveria problemas maiores.

Livia Scocuglia é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 18 de agosto de 2014, 19:04h

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Conspiração contra a racionalidade do processo: o abominável formalismo


Conspiração contra a racionalidade do processo: o abominável formalismo




Não é de hoje que os advogados, militantes no dia a dia do foro, têm criticado os estratagemas pretorianos, criados com a exclusiva finalidade de diminuir o número de recursos e que recebem, em seu conjunto, a infeliz denominação de “jurisprudência defensiva”.

Dentre tais obstáculos, que primam pela notória ilegalidade, insere-se aquele que concerne aos requisitos de admissibilidade do agravo de instrumento, em especial, à obrigatoriedade de exibição da certidão de intimação do ato decisório agravado. Constitui ela, a teor do artigo 525, I, do CPC, peça obrigatória para a formação do respectivo instrumento.

Observo que, sob a égide do processo físico, os tribunais, de um modo geral, sedimentaram a orientação no sentido de que, ausente tal comprovação, ainda que se pudesse aferir a tempestividade por meio de inferência lógica (por exemplo: decisão datada do dia 12/8 e agravo interposto em 20/8), o recurso deixava de ser conhecido diante da falta de peça obrigatória.

Mesmo que veementemente criticado, tal posicionamento é que predominava e ponto final!

Lembro, no entanto, que no Superior Tribunal de Justiça alguns julgados esparsos procuravam quebrar esta perversa interpretação, entendendo que deveria prevalecer o princípio da instrumentalidade das formas. Nesse sentido, invoco o importante acórdão da lavra do ministro Teori Zavascki, proferido no Recurso Especial 548.101-CE, de 2006, que deixou assentado: “O traslado da certidão de intimação da decisão agravada é necessário para a verificação da tempestividade do agravo de instrumento com base no art. 525 do CPC. Porém, na sua falta, havendo outra maneira hábil à verificação dessa tempestividade, deve ser levado em conta o princípio da instrumentalidade processual, que viabiliza a validade dos atos processuais, mesmo quando realizados de modo diverso, quando alcançado o objetivo almejado”.

Àquela época, esta tese, contudo, era secundada pela minoria. 

Com o advento de novos horizontes, traçados pelo processo eletrônico, no âmbito do qual, para a interposição do agravo de instrumento, torna-se tarefa fácil providenciar o “traslado” da integralidade das peças no ato de interposição do recurso, não há mais espaço para exagerado formalismo.

Na hipótese em que, a despeito de ainda não ter sido publicada a intimação da decisão impugnada, a parte desejar interpor agravo de instrumento, com a presunção de autenticidade que emana dos atos processuais certificados nos arquivos do processo eletrônico, não haverá qualquer dúvida quanto à conferência da tempestividade do recurso, desde que as peças dos “autos”, ao se formar o instrumento, estejam reproduzidas na sequencia numérica exata.

Com esta nova realidade, mais recentemente, o STJ tem procurado superar aquela odiosa orientação, em prol da realização do direito material, que é o fim último da jurisdição.

Em maio de 2014, a 2ª Seção do STJ, no julgamento unânime do Recurso Especial 1.409.357-SC, em sede de recurso repetitivo, de relatoria do ministro Sidnei Beneti, colocou fim a esta tormentosa questão, “exatamente para que o julgamento consolide regência da matéria no tocante a numerosos processos individuais, em que idêntica matéria está submetida ao Poder Judiciário”.

De modo determinado e preciso, extrai-se desse acórdão significativo trecho, digno de transcrição: “Esta Corte possui entendimento firmado no sentido de que, apesar de a certidão de intimação da decisão agravada constituir peça obrigatória para a formação do instrumento do Agravo (art. 525, I, do CPC), sua ausência pode ser relevada desde que seja possível aferir, de modo inequívoco, a tempestividade do agravo por outro meio constante dos autos. Tal posicionamento é aplicado em homenagem ao princípio da instrumentalidade das formas para o qual o exagerado processualismo deve ser evitado de forma a que o processo e seu uso sejam convenientemente conciliados e realizados”.

Observo, ademais, que este relevante aresto foi objeto de expressivo elogio pelo colega e amigo José Miguel Garcia Medina, na revista Consultor Jurídico (Avançando contra a jurisprudência defensiva: uma decisão a ser elogiada), ressaltando que os jurisdicionados têm a expectativa de que os tribunais caminhem nesse sentido, “preocupando-se não apenas com números, mas, também, com a qualidade da prestação jurisdicional. Trata-se de algo que mais se ajusta à ideia de processo justo, ou equitativo”.

Tratando-se, pois, de julgamento em processo repetitivo, dúvida não pode subsistir de que os tribunais inferiores, estruturados num sistema hierárquico federativo, devem seguir, em casos análogos, a orientação consolidada nas cortes superiores. É elementar que isso deva ocorrer, sobretudo para infundir segurança aos jurisdicionados e tranquilidade aos advogados!

Lamento dizer: não é o que tem ocorrido no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Com efeito, recentemente — por paradoxal que possa parecer —, deparei-me com decisão de órgão fracionário do tribunal bandeirante, proferida no início do mês de agosto corrente, que, examinando situação idêntica, asseverou: “Oportuno consignar que a adoção do processo eletrônico não afasta a obrigatoriedade da demonstração da tempestividade do agravo, sendo que a agravante deveria ter solicitado à serventia a anotação de seu aparente ingresso voluntário nos presentes autos, com ciência do referido decisum ou, ainda, ter providenciado qualquer outra prova oficial que atestasse, de forma inequívoca, a interposição do recurso no prazo legal, o que não fez”. E, o que é pior, para abonar tal entendimento, o julgado invoca precedente de 1998, do STJ, por certo ultrapassado, relatado pelo saudoso ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira!

Esta decisão desponta criticável sob todos os aspectos. Em primeiro lugar, porque revela desconhecer o decantado e vigoroso princípio da instrumentalidade do processo, pelo qual o que realmente importa é o julgamento do direito material em jogo. Ademais, o ato decisório do TJ-SP evidencia obsolescência, quando nada, porque se escuda em jurisprudência absolutamente superada. Por fim, com notória falta de humildade e conspirando contra a racionalidade, despreza posicionamento consolidado de tribunal superior (STJ), na esfera de processo repetitivo, o qual, como é cediço, deve ser seguido pelos tribunais inferiores, exatamente para evitar a multiplicação de recursos!

José Rogério Cruz e Tucci é advogado, diretor e professor titular da Faculdade de Direito da USP e ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo.



Revista Consultor Jurídico, 12 de agosto de 2014, 09:00h

terça-feira, 15 de julho de 2014

Novo Código de Processo Civil aprimora regras sobre a sustentação oral nos tribunais


Novo CPC aprimora regras sobra a sustentação oral nos tribunais 




Em face da explosão da litigiosidade, vem se tornando cada vez mais comum a utilização de julgamentos massificados mediante a adoção de padrões decisórios (fruto ou não de consensos jurisprudenciais), listas[1] nos tribunais, entre outras “técnicas” de otimização numérica de julgamento nas quais a fundamentação do julgado não é produzida como decorrência do diálogo ocorrido ao longo do processo, mas, por um imperativo de produtividade, parte-se de “temas” para tal situação,[2] anteriormente analisados com amplo debate (ou não) acerca do mesmo.

Este fenômeno convida a advocacia à mudança de seu papel, eis que, na hipótese de se contentar, como de praxe, em somente apresentar seus arrazoados escritos (petições) ao longo do processo, sem qualquer interlocução de outra espécie, correrá o enorme risco de simplesmente receber uma resposta jurisdicional “padrão” com a reprodução de decisão anteriormente prolatada por aquele juízo.

Tal situação não é nova, mas vem se agravando pelo esvaziamento cada vez maior da técnica da oralidade no curso do processo.

Sabemos que desde os grandes movimentos reformistas capitaneados por Klein no final do século XIX existe a busca de modelos orais de processo e de formação das decisões.[3] Sabemos, também, que apesar da adoção de uma matriz oral desde o CPC de 1939, tal técnica no Brasil nunca obteve aplicação adequada, por inúmeros fatores, desde o déficit de formação dos profissionais, passando pela ausência de um ambiente de debates entre os sujeitos processuais (dentro do processo) e chegando à criação de um falso mito de que a oralidade não auxiliaria na busca da formação do convencimento do juiz.

Tal pauperização da oralidade se amplia com os movimentos de informatização e com o uso, já comentado, da padronização decisória nos julgamentos, criando a falsa crença de que a busca, pelos advogados, de interlocução oral com os julgadores seria inócua.

Ocorre que não poderia haver erro maior.

Tanto do plano teórico, quanto da experiência prática de bons anos de advocacia promovendo interlocuções orais com juízes em todos os níveis, especialmente nos Tribunais, constato que a apresentação oral da linha de defesa é decisiva para que os argumentos produzidos sejam levados à sério.

No nosso sistema em que cada magistrado se vê na responsabilidade de julgar milhares de casos e no qual a leitura acurada de cada um dos autos se torna cada vez mais incomum, a oralidade pontual, ao longo do iter, promove o destaque necessário do caso ou de situação específica que se patrocina como advogado da massa anônima de feitos, sob a responsabilidade do juiz.

No âmbito dos tribunais a situação se agrava muito pois a alegação de que as conversas prévias à sessão pública e de que as sustentações orais não mudam julgamentos, pelos votos já estarem produzidos, na última hipótese, despreza o fato de que muitas vezes, pelo excesso de trabalho, são os “modelos decisórios” que forjam o julgamento de “casos aproximados” (não propriamente idênticos), ampliando a importância para o destaque oral de peculiaridades do caso, que poderão gerar a mudança de entendimento.

Somente a manifestação oral do advogado poderá viabilizar a distinção (distinguishing) entre estes casos, fazendo que os argumentos sejam levados em consideração; algo que o discurso de produtividade e padronizador impede que ocorra.

O novo Código de Processo Civil (CPC) viabilizará de modo claro a adoção dogmática do contraditório como influência e não surpresa (artigo 10) [4] e imporá, nos julgamentos, o respeito ao dever de informação pelo juízo e dos direitos de manifestação e de consideração para as partes.

Além de impedir que o magistrado surpreenda as partes com fundamentos novos (decisão de surpresa),[5] em face do referido direito de se levar em consideração os argumentos das partes (Recht auf Berücksichtigung von Äußerungen), atribui-se ao magistrado não apenas o dever de tomar conhecimento das razões apresentadas (Kenntnisnahmepflicht), como também o de considerá-las séria e detidamente (Erwägungspflicht).[6]

No entanto, em decorrência da utilização cada vez mais corrente dos “padrões” para otimizar julgamentos, caberá ao advogado, cada vez mais, saber atuar de modo mais técnico de forma a chamar a atenção para as peculiaridades de seu caso.

E não tenho dúvidas que isto passa necessariamente pelo aprimoramento da técnica oral de manifestação.

Ciente disso, no âmbito dos tribunais, o CPC projetado aprimora o regramento acerca da sustentação oral em seus artigos 946 e 950.[7]

Cabe aos advogados em formação ou em exercício, assim, a percepção do aumento da importância da sustentação e intelocução oral para o julgamento dos casos, pois, em face de estudos acerca da oralidade[8] e da experiência de bons anos atuando no tribunal com esta finalidade, tal intervenção, certamente, determina, com recorrência, o sucesso de uma linha de defesa.

Venho com recorrência pontuando (por aqui)[9] os dilemas brasileiros no uso dos precedentes e da jurisprudência no Brasil, e, assim, devo pontuar que no ponto aqui trabalhado temos também muito a aprender com os países do common law, pois lá a oralidade sempre foi respeitada na construção das decisões e, se caminhamos a passos largos no uso corriqueiro do direito jurisprudencial como fundamento decisório, devemos voltar ao debate sobre a oralidade a fim de viabilizar uma influência concreta dos advogados (partes) na formação das decisões, especialmente, dos tribunais.

Este é uma grande desafio para a advocacia e para seus órgãos representantivos pois, caso contrário, ficaremos cada vez mais à mercê de julgamentos que não levarão em conta os argumentos das partes para sua formação.



[1] Cf. LEAL, Saul Tourinho. Julgamentos em listas, com advogado silenciado, mostra que fracassamos. http://www.valor.com.br/legislacao/fio-da-meada/3573268/julgamentos-em-listas-com-advogado-silenciado-mostra-que-fracassamos


[2] Cf. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=publicacaoInformativoRG&pagina=BoletimdaRepercussaoGeral2013


[3] NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008.




[4] “Art. 10. Em qualquer grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício”.


[5] THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicaçao como garantia de influência e não surpresa. RePro v. 168. 2009. Acessível em : https://www.academia.edu/4563667/Principio_do_contraditorio_como_influencia_e_nao_surpresa_-_Dierle_Nunes_e_Humberto_Theodoro_Jr


[6] GEISLER, Herbert. Die Gewährleistung rechtlichen Gehörs in den Tatsacheninstanzen: Hinweise für den erfolgreichen Zivilprozess. AnwBl 3 / 2010, p. 149-154.


[7] Art. 946. Se o relator constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida, ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada, que devam ser considerados no julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no prazo de cinco dias. § 1º Se a constatação ocorrer durante a sessão de julgamento, este será imediatamente suspenso a fim de que as partes se manifestem especificamente, em sustentação oral, na própria sessão, no prazo de quinze minutos.§ 2º Se a constatação se der em vista dos autos, deverá o juiz que a solicitou encaminhá-los ao relator, que tomará as providências previstas no caput e, em seguida, solicitará a inclusão do feito em pauta para prosseguimento do julgamento, com submissão integral da nova questão aos julgadores.

Art. 950. Na sessão de julgamento, depois da exposição da causa pelo relator, o presidente dará a palavra, sucessivamente, ao recorrente e ao recorrido, e ao membro do Ministério Público, nos casos de sua intervenção, pelo prazo improrrogável de quinze minutos para cada um, a fim de sustentarem suas razões nas seguintes hipóteses: I – no recurso de apelação; II – no recurso ordinário; III – no recurso especial; IV – no recurso extraordinário; V – nos embargos de divergência; VI – na ação rescisória, no mandado de segurança e na reclamação; VII – em outras hipóteses previstas em lei ou no regimento interno do tribunal. § 1º A sustentação oral no incidente de resolução de demandas repetitivas observará o disposto no § 1º do art. 994.§ 2º O procurador que desejar proferir sustentação oral poderá requerer, até o início da sessão, que seja o feito julgado em primeiro lugar, sem prejuízo das preferências legais. § 3º Caberá sustentação oral no agravo interno interposto contra decisão de relator que extingue o processo nas causas de competência originária previstas no inciso VI. § 4º É permitido ao advogado cujo escritório se situe em cidade diversa daquela onde está sediado o tribunal realizar sustentação oral por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que o requeira até o dia anterior ao da sessão.


[8] NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. cit.


[9] NUNES, Dierle. NOVO CPC: É preciso repensar o modo como os tribunais vêm atuando. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2014-jun-11/dierle-nunes-preciso-repensar-modo-tribunais-atuam. NUNES, Dierle. NOVO CPC: Afastamento de precedente não pode continuar sendo regra. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2014-jun-04/dierle-nunes-afastamento-precedente-nao-regra. NUNES, Dierle. Acórdãos deveriam ter linearidade argumentativa. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2012-out-24/dierle-nunes-aos-tribunais-atribuida-forma-julgamento. NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Enunciados De Súmulas: Falta aos tribunais formulação robusta sobre precedentes. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2014-jan-07/falta-aos-tribunais-formulacao-robusta-precedentes


Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na UFMG e PUCMinas e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia.



Revista Consultor Jurídico, 15 de julho de 2014, 12:17h

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Supremo precisa definir cabimento de Recurso Extraordinário


Supremo precisa definir cabimento de Recurso Extraordinário



Em texto anterior, examinamos a divergência que há entre as orientações adotadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça a respeito da configuração do denominado “prequestionamento ficto”. Sugerimos, no referido texto, que se fizesse modificação no projeto de novo Código de Processo Civil, em atenção a recente variação da jurisprudência do Supremo, que, numa releitura do Enunciado 356 de sua Súmula, aproxima-se da orientação firmada pelo STJ no Enunciado da Súmula 211.

Qualquer que seja a orientação que venha a preponderar sobre o que devemos considerar por “prequestionamento ficto”, o que nos parece injustificável é a existência — e a persistência, por tanto tempo — de divergência jurisprudencial a respeito desse tema, bem como de outros assuntos relacionados à admissibilidade dos recursos extraordinário e especial.[1]

Seus fundamento são distintos (um diz respeito à questão constitucional, o outro à questão federal infraconstitucional), mas a estrutura dos recursos extraordinário e especial é muito parecida, quase idêntica. Há diferenças, é evidente, e isso ficou marcante particularmente após a Emenda Constitucional 45/2004. Mas há mais semelhanças que diferenças entre esses recursos. Sustentamos, aliás, que a divisão de competências entre o STF e o STJ não faz sentido.

Parte dos problemas relacionados à diversidade de entendimentos a respeito do cabimento dos dois recursos certamente seria resolvido, caso se admitisse recurso extraordinário contra decisão do STJ relativa à admissibilidade do Recurso Especial.

O cabimento do Recurso Extraordinário, no caso, faz todo sentido. Afinal, os fundamentos e hipóteses de cabimento do Recurso Especial encontram-se previstos na Constituição Federal (artigo 105, III). Ora, como compete ao Supremo a guarda da Constituição, cabendo-lhe julgar, mediante Recurso Extraordinário, as causas decididas em única e última instância quando a decisão recorrida contrariar dispositivo da Constituição (artigo 102, III, a, da Constituição), parece claro que deve caber recurso extraordinário quando violado o artigo 105, III da Constituição Federal, mesmo que a decisão recorrida seja proferida pelo Superior Tribunal de Justiça.

Essa orientação, contudo, não vem sendo admitida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Prevalece o entendimento de que apenas o Superior Tribunal de Justiça deve deliberar sobre a admissibilidade do recurso especial.[2]

Essa orientação, no entanto, pode vir a ser modificada, ao menos na 1ª Turma do Supremo. No julgamento do recurso extraordinário 798.740, a relatora, ministra Rosa Weber, manifestou-se no sentido de que ao Superior Tribunal de Justiça examinar requisitos de admissibilidade de recurso de sua competência (como é o caso do Recurso Especial), mas votaram em sentido contrario os ministros Marco Aurélio e Luiz Fux. Houve pedido de vista do ministro Roberto Barroso.[3]

A questão não pode ser resolvida de modo precário. Convém, no caso, afetar ao Plenário o julgamento do referido Recurso Extraordinário, evitando, com isso, que haja divergência entre as turmas que compõem o referido tribunal, a respeito do tema. Se preponderar a orientação no sentido do cabimento do Recurso Extraordinário, é imprescindível que o Supremo defina, com precisão, as hipóteses em que o recurso extraordinário poderá ser interposto. Não poderá ser aceito Recurso Extraordinário se não estiver em jogo a inteligência do texto constitucional e a questão constitucional não ostentar repercussão geral. Caso, no entanto, o STF não estabeleça os limites do cabimento do Recurso Extraordinário em tais situações, este será admissível, ao menos em tese, contra qualquer decisão final do Superior Tribunal de Justiça relacionada à admissibilidade do Recurso Especial — o que, além de não corresponder ao que dispõe a Constituição, levaria ao grave aumento de recursos extraordinários dirigidos ao Supremo.

[1] Esse estado de coisas, além de gerar insegurança jurídica, contribui para o aumento do número de recursos dirigidos aos Tribunais superiores. Afinal, diante da dúvida (fomentada pela jurisprudência) a respeito do cabimento de seu recurso, tende a parte a apresentá-lo para demonstrar que, em seu caso, o recurso é admissível.

[2] Examinamos o tema no livro O prequestionamento nos recursos extraordinário e especial (1.ed., Ed.Revista dos Tribunais, 1998, n. 3.5.7, p. 229 ss.). Mais recentemente, cf. o que escrevemos em Prequestionamento e repercussão geral – e outras questões relativas aos recursos extraordinário e especial (6.ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2012, n. 2.2.4, p. 76 ss.) e emConstituição Federal comentada (3.ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2014, p. 469 ss.). 

[3] Cf. Informativo STF 750, disponível aqui


José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.



Revista Consultor Jurídico, 14 de julho de 2014.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

É preciso repensar o modo como os tribunais vêm atuando

É preciso repensar o modo como os tribunais vêm atuando


Vivemos um movimento invertido dos países do common law. Se lá se busca cada vez mais técnicas para se flexibilizar a alta estabilidade do uso dos precedentes (stare decisis) nós, do civil law, especialmente no Brasil, procuramos cada vez mais pensar em premissas para estabilizar nossa jurisprudência, em face de sua completa instabilidade e da falta de uma teoria dos precedentes adequada às nossas peculiaridades.
Pela ausência de uma compreensão prática e técnica do uso dos precedentes, nas palavras do processualista mineiro, Ronaldo Brêtas, da PUCMINAS, vivenciamos um “manicômio jurisprudencial”, no qual, além de se permitir fundamentos voluntarísticos nos julgados, são usados argumentos não debatidos pelo colegiado decisor ou mesmo votos individuais, não embasados em consensos argumentativos (jurisprudência dominante), em casos futuros, como se vinculantes fossem.
Sem olvidar, o fenômeno cada vez mais corrente do uso de ementas e enunciados de súmula completamente dissociados do caso concreto que lhes deu fundamento, como se fossem normas gerais e abstratas que se desligariam, como a lei, de seus fundamentos originalistas (quando, corretamente, os julgados precisam ser aplicados, como fundamento, em consonância com os limites argumentativos do caso analisado).[1]
Todo este movimento merece muita atenção e cuidado quando se percebe que este uso dos precedentes ainda desafia várias intempéries, como a da aqui nominada “pseudo colegialidade”.
Tal fenômeno que vem sendo justificado pela quantidade de processos nos tribunais ocorre quando as decisões, que deveriam ser efetivamente colegiadas, são proferidas monocraticamente pelo relator, sem que haja real pacificação de entendimentos sobre o caso julgado, ou mesmo, de modo mais perverso, quando a decisão fruto de uma turma é, de fato, a decisão monocrática do relator na qual os demais julgadores do colegiado simplesmente chancelam com um superficial “de acordo”, que pode, muitas vezes, significar “não olhei, mas acho que concordo com o relator”.
E esse “não olhei, mas acho que concordo com o relator”(vulgo “de acordo”) cai por terra quando se vislumbra, numa breve pesquisa das decisões anteriores daqueles “julgadores concordantes”, que em casos anteriores, como relatores, julgaram em sentido diametralmente contrário.
Se a discussão, em outros sistemas, seria se o Tribunal respeita seus próprios entendimentos (vinculação horizontal) e se respeita os entendimentos dos Tribunais Superiores (vinculação vertical) aqui o desafio é o de perquirir, inclusive, se o julgador respeita suas próprias decisões, uma vez que se torna cada vez mais recorrente que encontremos, em curto espaço de tempo, decisões de um mesmo juiz com posicionamentos claramente opostos sobre casos idênticos, sem que ocorra qualquer motivação ou peculiaridade que os distinguisse.[2]
A situação também não é boa quando se analisa a técnica de julgamento monocrático pelo relator, mediante o uso da chamada “jurisprudência dominante” (art. 557, CPC reformado).
Nesta hipótese, não é incomum o uso da técnica, em alguns tribunais, em juízos monocráticos do relator, no qual se julga embasado em ementas ou acórdãos que em nenhuma medida representam o entendimento dominante do tribunal ao qual pertençam ou superior.[3]
Aplicação deletéria, mecanicista e cada vez mais comum são os usos das listas de julgamentos[4] que ferem não só a colegialidade, como qualquer noção de que a abertura para o diálogo processual é imprescindível na formação das decisões.
É cada vez mais evidente a necessidade legítima de se procurar uma estabilidade decisória das decisões dos tribunais, premissa forte do CPC Projetado, ora em tramitação no Senado, após uma etapa extenuante de debates na Câmara dos Deputados. O CPC projetado inclusive se preocupa muitíssimo com a formação e aplicação (fundamentação) dos precedentes (artigos 10 e 499 Projetados), de modo a prevenir e impedir o atual uso recorrente de julgados de modo mecânico.
Para tanto, o CPC Projetado otimiza dois grandes corolários do princípio do contraditório como garantia de influência e não surpresa[5] para o sistema de precedentes: as técnicas de distinção e superação em seus artigos 521 e 1050.[6] As aludidas técnicas de distinguishing e overruling viabilizam a participação das partes na indução de que o tribunal se afaste de “regras jurisprudenciais” de modo legítimo (justified departures), e não afastamentos subjetivos e desprovidos de embasamento, eis que “sempre que um juiz ou tribunal for se afastar de seu próprio precedente, este deve ser levado em consideração, de modo que a questão do afastamento do precedente judicial seja expressamente tematizada”.[7]
No entanto, já se faz imperativa, ainda no atual contexto normativo de aplicação, se repensar o modo como os tribunais vêm atuando.
A pseudo-colegialidade é mais uma clara manifestação da pauperização e mecanização do uso de precedentes em nosso país.
Medidas simples como a de criação de turmas de uniformização e de pesquisa interna dos julgados, de forma temática, já seriam um bom começo para que os Tribunais, especialmente aqueles com mais juízes, passem a descobrir como estão julgando, de modo a se mitigar esta jurisprudência instável e lotérica.

[1] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Enunciados De Súmulas: Falta aos tribunais formulação robusta sobre precedentes. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2014-jan-07/falta-aos-tribunais-formulacao-robusta-precedentes
[2] Como já afirmamos em outra oportunidade: “em face da pressuposição brasileira de que os Ministros (e juízes) devem possuir liberdade decisória, cria-se um quadro de ‘anarquia interpretativa’ na qual nem mesmo se consegue respeitar a história institucional da solução de um caso dentro de um mesmo tribunal. Cada juiz e órgão do tribunal julgam a partir de um ‘marco zero’ interpretativo, sem respeito à integridade e ao passado de análise daquele caso; permitindo a geração de tantos entendimentos quantos sejam os juízes.” NUNES, Dierle; THEODORO JR., Humberto; BAHIA, Alexandre. Breves considerações da politização do judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro: Análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. In Revista de Processo, Ano 35, nº 189, Revista dos Tribunais: São Paulo, nov/2010. p. 43.
[3] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Enunciados De Súmulas: Falta aos tribunais formulação robusta sobre precedentes. http://www.conjur.com.br/2014-jan-07/falta-aos-tribunais-formulacao-robusta-precedentes
[4] Cf. LEAL, Saul Tourinho. Julgamentos em listas, com advogado silenciado, mostra que fracassamos. http://www.valor.com.br/legislacao/fio-da-meada/3573268/julgamentos-em-listas-com-advogado-silenciado-mostra-que-fracassamos
[5] THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicaçao como garantia de influência e não surpresa. RePro v. 168. 2009. Acessível em : https://www.academia.edu/4563667/Principio_do_contraditorio_como_influencia_e_nao_surpresa_-_Dierle_Nunes_e_Humberto_Theodoro_Jr
[6] As técnicas de distinção e superação representam no common law são espécies do gênero judicial departures quando se implementa o “afastamento de uma regra jurisprudencial”. Para uma compreensão adequada do tema cf. BUSTAMANTE, Thomas [2012-a]. Teoria do Precedente Judicial: A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses.
[7] BUSTAMANTE, Thomas [2012]. Teoria do Precedente Judicial: A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses. p. 388.

 é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na UFMG e PUCMinas e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia.


Revista Consultor Jurídico, 11 de junho de 2014, 06:34h

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Avançando contra a jurisprudência defensiva: uma decisão a ser elogiada

Avançando contra a jurisprudência defensiva: uma decisão a ser elogiada


Tenho criticado, em vários textos da coluna Processo Novo, aquilo que se convencionou chamar de “jurisprudência defensiva”, prática que foi definida como a criação, pelos tribunais, de “entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos”.
Penso que devem ser buscadas alternativas tendentes a auxiliar os tribunais, reduzindo a excessiva carga de trabalho de seus juízes. A prática da jurisprudência defensiva, contudo, não é, nem deve ser, uma dessas saídas. Afinal, como definem seus próprios defensores, trata-se de algo que não encontra amparo na lei, ou, no mínimo, decorre de interpretação distorcida da lei, de que se faz uso com uma única finalidade: reduzir a quantidade de processos em trâmite nos tribunais.
Devemos caminhar em outro sentido, preocupando-nos não apenas com números, mas, também, com a qualidade da prestação jurisdicional. Trata-se de algo que mais se ajusta à ideia de processo justo, ou equitativo. 
É digna de elogios, diante disso, a tendência oposta à jurisprudência defensiva, que procura dar rendimento a princípios processuais que, ao invés de enaltecer excessivamente a forma, operam com o intuito de realizar o direito material.
A forma não é mera técnica destituída de sentido. A forma como devem se passar os atos processuais é algo que propicia segurança a todos os sujeitos do processo. Por isso que, distorcida a função da forma processual, acaba-se caindo na jurisprudência defensiva, que simboliza nosso fracasso na tarefa de realizar as garantias mínimas do devido processo legal.
Bem compreendida a função da forma, porém, pode-se ir além, realizando e protegendo direitos fundamentais – não apenas através do processo, mas, também, no próprio processo.
Diante disso, merece destaque decisão recentemente proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento de recurso especial repetitivo relacionado aos requisitos do agravo de instrumento. O julgado consolidou orientação que vinha sendo manifestada pelo tribunal, no sentido de que “apesar de a certidão de intimação da decisão agravada constituir peça obrigatória para a formação do instrumento do Agravo (artigo 525, inciso I, do CPC), sua ausência pode ser relevada desde que seja possível aferir, de modo inequívoco, a tempestividade do agravo por outro meio constante dos autos”.
A razão para assim se decidir foi a seguinte: “o exagerado processualismo deve ser evitado de forma a que o processo e seu uso sejam convenientemente conciliados e realizados”. Trata-se, em poucas palavras, de aplicação pura e simples do princípio da instrumentalidade das formas.
No projeto de novo CPC há disposição que contempla solução similar à seguida pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual o agravante deve apresentar cópia “da própria decisão agravada, da certidão da respectiva intimação ou outro documento oficial que comprove a tempestividade” do agravo de instrumento (cf. art. 1.030, I, do projeto de NCPC, versão da Câmara dos Deputados, correspondente ao art. 971, I, da versão do Senado do projeto).
O projeto de novo CPC, no entanto, vai além, ao dispor que “antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de cinco dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível” (artigo 945, parágrafo único, do projeto, na versão da Câmara dos Deputados). Aprovado esse texto, o recorrente passará a ter direito à emenda do recurso, tendo em vista a previsão de uma espécie de juízo de admissibilidade “ordinatório”, em sede recursal.
O projeto de novo CPC, assim, vai ao encontro de decisões como a antes referida, que, se é verdade que não põem fim ao problema do formalismo exacerbado, dão passos importantes nesse sentido e, de certo modo, antecipam aquilo que, com a aprovação nova lei processual, poderá tornar-se uma realidade: o ocaso da jurisprudência defensiva.  
 é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.Topo da página

Revista Consultor Jurídico, 09 de junho de 2014, 08:00h

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...