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quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Limites do juiz na produção de prova de ofício no artigo 370 do CPC









Por Lenio Luiz Streck


O leitor e articulista Sérgio Niemeyer me lembra de uma questão interessante que exsurge da leitura do Código de Processo Civil 2015. O artigo 370, caput do CPC estabelece que “caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito”. Que tipo de prova o juiz poderá determinar, isto é, de que tipo de prova o juiz poderá ser o protagonista, sem que voltemos mais de cem anos no tempo, ao tempo do socialismo processual de Menger e Klein? Eis o busílis.

Niemeyer coloca o seguinte exemplo: Vamos supor um litigio entre duas pessoas, versando sobre indenização por perdas e danos (materiais, morais, etc) em razão de obra conduzida pela parte ré em terreno vizinho. A parte que move a ação junta documentos que julga pertinentes (receita mensal, etc). Conforme a lei, o juízo determina que as partes digam das provas que pretendem produzir. Por incrível que possa parecer, a parte autora diz que nada há a produzir. Por consequência, a parte ré solicita o julgamento antecipado, mas, em caso de prosseguimento para a instrução, requer a produção de prova documental nova e o depoimento pessoal da parte autora. Por alguma razão há troca de juízes. O novo determina, de ofício, a produção de perícia contábil para verificar os prejuízos alegados pela autora.

A pergunta é: se a parte autora diz que não há mais provas para produzir, qual é a razão pela qual o juiz “assume a causa” por ela? Os direitos eram indisponíveis? Não. Então? Não é necessário explicitar mais o exemplo para entender os limites e a ultrapassagem dos limites feitos por uma decisão desse jaez. Neste caso, se é de ofício a prova, cabe a pergunta: o juiz, ele mesmo, por sua conta, faz os quesitos? Quem paga o perito? De quem é(ra) a dúvida para o deslinde? O autor, instado, nada produziu além do que tinha feito na inicial. O direito era seu. Dele dispunha. Correu o risco.

Este é apenas um dos exemplos que podem trazer sérias consequências caso haja uma interpretação alargada do artigo 370.

Pois bem. Nos Comentários ao CPC (Saraiva, 2016 – L.L.Streck, D.Nunes, L.C.Cunha e A.Freire), coube-me a honra de falar sobre o alcance do artigo 370. E assim o fiz:


“Esse dispositivo se constituía no artigo 130 do CPC/73. Agora desdobrado em caput e parágrafo, não introduziu alterações sintáticas. Evidentemente, se o seu texto é o mesmo, a sua norma deverá ser diferente, na medida em que o CPC se inscreve em um novo paradigma de compreensão, isto é, do superado paradigma da subjetividade parte-se para a intersubjetividade. Isso quer dizer que o juiz, quando agir de ofício, não terá a liberdade de convencimento ou a liberdade de apreciação do quadro probatório como tinha no CPC derrogado.


Mesmo que esteja autorizado a agir de ofício, não pode se colocar de um lado do processo, olvidando a necessária imparcialidade, que deve ser entendida, no plano do Constitucionalismo Contemporâneo, como o princípio que obriga o juiz a uma fairness (Dworkin), isto é, a um jogo limpo, em que as provas são apreciadas com equanimidade. Isso também quer dizer que, mesmo que possa agir de ofício, o juiz não o faça agindo por políticas ou circunstâncias de moralidade, e sim por intermédio dos princípios constitucionais.


Ainda sob o império do CPC anterior, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Nery já advertiam que o poder instrutório (agir de ofício) deve sempre garantir a igualdade de tratamento às partes (CPC comentado, Revista dos Tribunais, 14. ed., 2014, p. 488). Por isso, o agir por princípios funciona como uma blindagem contra desvios do “agir de ofício”, podendo ser cobrados pela parte prejudicada em grau recursal, inclusive em sede de recurso extraordinário.[acrescento aqui um “bingo” que não consta nos Comentários].


Ademais, há que se salientar que o próprio CPC estabelece disposições para controlar publicamente esse poder de agir de ofício. A principal ferramenta, nesse sentido, aparece prevista no artigo 10, que contemplou a proibição de decisão surpresa, inclusive para as decisões que versem sobre matéria que poderia ser apreciada de ofício. Assim, em casos tais, o juiz deve dar oportunidade de manifestação para as partes, visando um maior controle público das decisões. O poder de agir de ofício também não se confunde com o conhecimento de matérias a cujo respeito a lei exija a iniciativa da parte. Portanto, não é sobre qualquer matéria ou prova que o juiz tenha o poder de ofício. É o que a doutrina tem chamado de respeito ao princípio dispositivo. Na verdade, o poder de ofício diz respeito, primordialmente, aos direitos indisponíveis, podendo ser exercido também no segundo grau de jurisdição”.[grifei agora]

Em suma: pela melhor leitura do artigo 370 à luz do paradigma da intersubjetividade, o juiz só poderá determinar de ofício as provas necessárias ao julgamento de mérito quando se tratar de questão que verse sobre direitos indisponíveis a respeito dos quais as partes não possam transigir.

Isso porque, do contrário, o juiz jamais poderá julgar o mérito sob o fundamento de que a parte não provou, como lhe incumbia, o fato constitutivo do direito alegado (373, I) ou o fato desconstitutivo (373, II), porquanto se há prova necessária a ser realizada, cumpre ao juiz determinar sua produção de ofício. Não o fazendo, não pode julgar o mérito. Simples assim.

O Poder Judiciário deve se dar conta de que, mesmo que o texto de um dispositivo do CPC/2015 seja igual ao anterior — o que é o caso — a norma a ser, todavia, produzida, necessariamente não é a mesma. Isto é, mesmo textos podem produzir novas normas, se produzidas sob novos tempos e novos paradigmas. Direitos disponíveis não devem ter um juiz a protege-los “de ofício”.

Se vingar a tese de que “de ofício” quer dizer “aquilo que o juiz entender ao seu talante na busca de uma ‘verdade real’[1] (sic), a questão a saber é: qual das duas partes terá a sorte de ter ao seu lado o olhar de ofício do magistrado? O autor ou o réu? Serão, então, dois contra um?


1 Sobre verdade real e sua impossibilidade (e sua fraude epistêmica), escrevi rios de tinta e milhares de caracteres. Por todos, veja-se O Cego de Paris I, II e III aqui na ConJur (aqui, aqui e aqui).




Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 15 de setembro de 2016, 8h00


sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Pode um professor, em sala de aula, chamar a outro de "idiota"?







Abstract: Esta Coluna tem um caráter simbólico. Mostra o problema da ética em sala de aula. Mostra a falta de ética. Sala de aula é um palco “sagrado”: lugar do conhecimento. Da ciência. E não da aleivosia. Ou da fanfarronice.

Nas histórias de faroeste, o pistoleiro experiente sempre tinha um problema novo a cada cidade: um pistoleiro novato fazendo provocação. O novato nada tinha a perder, a não ser a vida ou um dos dedos da mão com que empunhava a arma. Alguns pistoleiros não atiravam para matar. Desarmavam o oponente. A tiros. E lá se ia o velho pistoleiro mudando de cidade, chegando sem alarde, chapéu nos olhos. Oitavado no balcão, rezava para que nenhum provocador aparecesse.

Sinto-me como esse velho pistoleiro. Depois de anos, sempre aparecem novatos para medir forças. O truque mais usado é a ofensa em sala de aula. Recebo muitas notícias com relatos. Até brinco, dizendo: Claro, falar pelas costas é que é bom; pela frente é falta de educação...! Pois hoje vou falar de um fato desse jaez. Não citarei o nome do neopistoleiro, por razões óbvias. A questão exsurgente é: o que há aí não é uma quebra da ética de uma classe, ou uma ofensa ao "espírito de corpo". Não é que o sujeito não possa ofender um "colega professor". Quero dizer é que é uma irresponsabilidade chamar qualquer pessoa, quanto mais um pensador, de "idiota", em plena sala de aula. Por exemplo: um ministro do Supremo Tribunal Federal pode ter dado uma decisão boçal; a minha liberdade de cátedra me autoriza a apontar o equívoco, amparado em minha opinião; mas dizer que "o ministro do STF é um idiota" é apenas um mau exercício da docência.

Pois recebi uma gravação feita em sala de aula. O professor chama a mim e Alexy de idiotas. E, como verão na sequência, sua metralhadora vai mais longe. Alguns de meus amigos mais próximos tentaram me desencorajar de levar a coisa adiante. Ajuizar alguma ação? Nem pensar. Mesmo a publicação de um texto relatando o "causo" foi tida como desnecessária, excessiva ou contraproducente. Conseguiram me convencer com relação ao ajuizamento de medidas (o Poder Judiciário, o Ministério Público e eu temos, certamente, mais o que fazer), mas não resisti a escrever uma coluna. Aliás, avisei ao ofensor que o faria. E não é por mim, não, que o faço. É que me sinto do dever de denunciar, mais uma vez, o estado da arte. O caso é, em si, insignificante; mas vale dar-lhe alguma publicidade, creio, pelo que simboliza — no conteúdo e na forma. Ofereço, com este texto, meu ombro àqueles que já passaram por isto, colegas professores e mesmo alunos.

Por isso, resolvi contar o fato sem dizer o nome do (neo)pistoleiro. Apenas para que muitos professores que assim procedem saibam que sempre ficamos sabendo do que ocorre. Hoje não há mais segredos. Portanto, muito cuidado com o que se fala.

O aludido professor é de uma universidade pública. Possui graduação, mestrado e doutorado feitos em universidade pública. Estes últimos com bolsa. Não publicou nem a dissertação, nem a tese. Até hoje, um artigo (meus alunos de iniciação científica têm mais publicações que ele). Leciona na graduação. Sua universidade não tem pós-stricto sensu. Acha-se no direito de ofender a mim, a Alexy e a Dworkin (afora outros). E diz mais coisas. Depois de lerem parte do diálogo — verdadeiro (tenho o print arquivado) — constatarão também porque o direito brasileiro vai mal, porque os concursos de universidades devem ser melhorados e porque um cidadão como eu não confia na Justiça, receoso de não ter guarida na busca da ofensa a sua honra, ao seu currículo e de seu substrato moral.

Ao trabalho, pois. Depois de ouvir a gravação, mandei mensagem por Facebook ao professor, dizendo que dela dispunha e na qual me ofendera. Respondeu: “— Na minha sala, exerço a liberdade de cátedra do artigo 206, II da CF. Espero que a gravação a que teve acesso tenha sido contextualizada”. Respondi-lhe, delicadamente: “— Quer ouvir o que você disse? Para acreditar nos seus próprios ouvidos?”. Ele respondeu: “— Não chamei somente você de idiota. Chamo a Alexy de idiota”. E disse mais: “— Dei essa aula hoje. Lembro-me dela com exatidão. Caso tenha recebido a gravação completa, não há o que explicar”.

Mas, sigamos com o mestre dos mestres, nosso Einstein da academia. Perguntei: “Mantém as ofensas”? Resposta: “Não são ofensas. Só se ofende quem se conhece. Não há motivo para lhe ofender. Não o conheço. Não me conhece. Não há nexo interpessoal nessa fala de aula. Aliás, falei nessa aula que Lombroso é um idiota. Que Alexy é um idiota. No puro sentido de Aulete. Daquele que diz tolices. Não é uma nota pessoal. É uma nota aos ditos que na minha liberdade de pensamento e de cátedra reputo idiotas”.

Na sequência, delicadamente lhe falei que era necessário respeitar a obra dos outros. Respondeu que “— Não sou de respeitar currículos. Respeito ideias ou delas divirjo. Acho essas divagações teóricas idiotices para resolver problemas práticos como o que explicava”. E complementou, enfático: “Doutrina não serve para nada. E se perde um tempo enorme nessas divagações (...)".

Perguntei-lhe, dando-lhe mais uma chance: “— Quantos livros você já publicou”? Resposta: “Livros são inúteis. Não são lidos. Quando lidos, não raro, não são compreendidos. Defendi uma tese contra essa cultura livresca”.

O professor acrescentou, então, que a aprendizagem não nasce dos livros. Nasce da vivência, verbis: “ Alexy nunca lidou com Direito. Nunca foi citado no tribunal alemão. Conhece livros. Não conhece o Direito em sua fenomenia [sic]. No tempo em que vivi na Alemanha, os constitucionalistas de Berlin não o conheciam”.

Estupefacto, perguntei-lhe quais os autores que usava em sua cadeira de Direito Constitucional e ele respondeu: “— Não uso nenhum. Uso a legislação e a jurisprudência. Como se fosse aulas germânicas de graduação. Aqui deveria ter um exame estatal como na Alemanha. Aí queria ver aluno perder tempo com idiotices doutrinárias”. Ups.

A discussão ainda seguiu. Os leitores podem ser poupados do restante. A última coisa que lhe disse foi que faria uma coluna sobre isso.

Quase ia esquecendo: Além da ofensa mais forte, o jovem pistoleiro ainda resolveu espicaçar (está também na gravação que recebi — ali está mais dura ainda a aleivosia) o lugar em que fiz graduação, a Unisc, de Santa Cruz do Sul. Cobrei isso dele também e me respondeu: “— Disse [na sala de aula hoje] que [o senhor] não passou no vestibular de uma universidade decente. Seu lattes informa que sua formação é na Unisc. E quem [se] forma na Unisc, minha opinião, no meu pensamento, posso estar equivocado, não tem formação adequada. É minha opinião sobre a formação da Unisc”. Ele disse isso na frente de todos os seus alunos...!

Bom, meus queridos amigos da Unisc de Santa Cruz (metade da pós fez doutorado comigo na Unisinos) não vão gostar nada disso. Vão convidá-lo para a próxima Oktoberfest. Será homenageado. Será o Fritz da festa... Pois o professor-da-federal-que-se-acha e pensa que pode chamar seus colegas professores de idiotas, tem convicção de que a Unisc é ruim. Ela não proporciona formação decente, ele diz, convicto. Fico pensando: A dele, a que ele está concursado, deve formar os melhores, por certo. Não disse isso a ele, mas digo agora: o neopistoleiro esqueceu que a Unisc é Capes 5 e a universidade dele é... bem, ao que sei, nem mestrado tem. Que pena, não? Azar o meu... que fui estudar “naquela faculdade” e fiquei sem formação, deduz-se da afirmação de nosso comanchero. Devo ser azarado. Pobre e estudar em faculdade “não decente” (sic). Deve ser por isso que passei no concurso para promotor sem fazer cursinho, ganhei um prêmio Jabuti (Comentários a Constituição do Brasil) e mais uma nominação (Jabuti) entre as dez obras mais importantes (Compreender Direito II), um Prêmio Açorianos, três prêmios Capes por orientação de tese... paro por aqui. Como se diz, Jabuti não nasce em árvore (desculpem-me a ironia a meu favor!). Essa Unisc... Que mal que me fez. Que coisa. Jogou-me no mundo sem formação... Um registro: na minha “faculdade-que-não-me-deu-uma-boa-formação” estudei em um livro que na faculdade-que-deu-uma-boa-formação ao neopistoleiro talvez o seu professor não tenha lhe indicado: saiu em 1978, pela Editora Mestre Jou: Introdução à lógica, de Irving Copi. Tem um capítulo sobre falácias. O jovem professor não deve ter lido. Mas na-minha-faculdade-ruim eu li. Uma das falácias é ad hominem: Se você não tem argumentos, ataque pessoalmente seu adversário. Bingo. Binguíssimo!

Bom, é isso. Moral da história: Em vez de me virar e olhar nos olhos do jovem pistoleiro e sacar, achei melhor ficar assim mesmo, oitavado no balcão, sem aceitar a provocação. Minha arma já está cheia de marcas. Há uma lei do velho oeste, pela qual pistoleiros — mesmo os novatos — não atiram pelas costas. Infelizmente, as ofensas dirigidas a mim, a Alexy e a tantos outros foram feitas.. à socapa. E à sorrelfa. Pelas costas. E isso é muito feio.

Eu poderia tripudiar. Ingressar em juízo. Há questões cíveis e criminais em jogo. E didáticas. Acadêmicas. A universidade tem compromisso pedagógico com a sociedade que paga impostos. O professor não pode lecionar o que quer. A sala de aula não é sua. Afinal, é uma universidade pública. Mas, embora tudo isso, preferi apenas fazer esta crônica. José Hernandez — em um dos meus livros preferidos e que ancorei em Direito & Literatura na TV Justiça — dizia, pela boca de Martin Fierro, que el diablo sabe por diablo; pero más sabe por viejo.

E digo isso porque penso que há chance de o nosso jovem professor apreender algo com tudo isso. Por exemplo, que a primeira coisa a fazer, como professor doutor, é prestigiar a doutrina. Caso contrário, ele estará dando um tiro no próprio pé. Ensinar só com jurisprudência é altamente desaconselhável.[1] Principalmente em um país em que cada juiz ou tribunal decide como quer. A propósito disso: na gravação, tem uma parte em que o nosso Einstein diz sobre o tema “fundamentação constitucional”: o juiz escolhe como fundamentar. Pode fundamentar como quiser. Bingo. Eu ouvi isso. E ele ensina isso para os alunos dele. Para ver como anda o ensino jurídico em Pindorama. Isso faz parte e é componente da crise que atravessa o ensino e a operacionalidade do direito. Bem que a Associação Brasileira de Ensino Superior (Abedi) poderia se posicionar sobre isso. E, mais: se o povo pagou os estudos do professor (graduação, mestrado e doutorado mais bolsa = uma pequena fortuna), tem o direito de saber o que ele pesquisou.

E, insisto: Como professor de universidade pública, ele não poderia desdenhar de outros professores, chamá-los de idiotas, ofender professores ilustres do exterior como Alexy e se orgulhar de não ler livros e dizer que estes são inúteis. E esculhambar com uma instituição como a Unisc. Não me parece ser um bom exemplo para os seus alunos e para o que significa o ensino público, mormente em um país pobre como o nosso, em que a relação na universidade pública é, por exemplo, de um docente para 14 alunos e, na Alemanha, de um para 35.

Por isso mesmo deveríamos valorizar mais o dinheiro investido em universidade pública, onde, como se sabe, não estudam os pobres. Estes — os pobres — como ocorreu comigo, que tive que custear os meus estudos na, segundo o professor falador, “desqualificada Unisc”, ficam de fora do butim. E têm de ir à luta e/ou depender do Fies (na minha época, fiz o crédito educativo e a empresa Mercur pagava uma parte das mensalidades). Ou do dinheiro suado ganhado em subempregos, com esperança de passar em concurso público. De um lado, isso. De outro, gente que faz mestrado e doutorado em uma pública e... ainda ganha bolsa. Bingo de novo. Isso é Pindorama.

É. O jovem professor de universidade pública parece saber muito pouco da vida. O idiota aqui, para-estudar-na-desqualificada-Unisc, levantava as 6h da manhã, pegava dois ônibus para ir trabalhar na fábrica; à noitinha, de novo dois ônibus e depois um trecho a pé para cursar a faculdade (aproveito para homenagear a memória dos meus professores falecidos, como Raul Bartholomay, Aquilino Bergonsi e Rubem Baumhardt e os demais, que, naqueles anos, em pleno regime militar, tentavam fazer com que nós estudássemos direito; fazia escuro, mas tentávamos cantar, como dizia o poeta — esta coluna é um desagravo à todos os docentes da Unisc). Formei-me em 1980. E leciono há mais de 35 anos. Sim, porque, na verdade, comecei a lecionar aos 16 anos de idade, na escola fundamental de Agudo. Passei em primeiro lugar no concurso. Depois, no mesmo ano de 1973, sofri um atentado (sim, fui atingido por um pistoleiro — vejam como sou perseguido por pistoleiros — que não me errou um balaço calibre 22 no meio do peito, do qual só sobrevivi por milagre divino e pela perícia do doutor Omizzollo e tive que ir embora para Santa Cruz do Sul, depois de ficar soprando balão durante seis meses por causa do pulmão direito perfurado pelo projetil). E o nosso neopistoleiro fala de aprender com vivências... Pois sim. Pois sim. Além do mais, há tantas frases prontas sobre quem chama alguém de idiota... Lendo o texto, os leitores saberão o que fazer.

Uma notinha, ainda: Isso tudo é um sintoma dos tempos atuais. Perdeu-se a noção de respeito e responsabilidade. O Outro não importa (uma dose de Honneth não faria mal ao professor; ups, ele não lê livros...). Ética se esfumaça. Ética virou estética. Na verdade, nem isso. Ocupa-se o — caro — espaço público de uma sala de aula para achincalhar colegas. Repito: isso é muito feio. O professor deveria ficar de castigo por isso.

Enfim, segue a vida... Nos livros de Pulp fiction que eu lia quando criança, lembro de um que tinha dois amigos como personagens. Rápidos no gatilho. Experientes. Len e Tiller eram os seus nomes. Eles não matavam os seus provocadores. Atiravam nos dedos. Metáforas, alegorias e metonímias: assim escrevemos e inscrevemos nossas ações no mundo.

Post scriptum: a propósito, há duas colunas minhas sobre alunos e professores aqui na ConJur. Na Revista Eletrônica ConJur tem tudo! Semana passada, em dois dias, mais de 50 mil leitores de minha coluna. Saludo!


1 Aliás, tivesse o professor um mínimo de seriedade, seria o caso de percorrer o debate Dworkin v. Posner sobre a (im)possibilidade da antiteoria, na academia ou nos fóruns. Certamente é possível discordar de Dworkin, quando este diz que a doutrina é a raiz oculta de toda a decisão judicial, que não há afirmação jurídica que não esteja radicada numa teoria geral (certa ou errada, ignorante ou iluminada, boa ou má) mais abrangente. O neopistoleiro não sabe que mesmo a negação do academicismo e o apego à "prática jurídica" ou às decisões judiciais em sentido estrito é, ela mesma, uma postura teórica. Ruim, na minha opinião, mas é. Ou seja, você pode fazer má filosofia, mas não pode fugir dela.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 4 de agosto de 2016, 8h00

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Cuidado: o canibalismo jurídico ainda vai gerar uma constituinte





Escrevo para denunciar, de novo, o perigo que corremos por estarmos devorando o nosso ferramental. Comportamo-nos como a ascídia, que é um animal marinho que devora o próprio cérebro após fixar residência num local que lhe pareça "tranquilo e favorável". A ascídia representa o suprassumo do canibal.

Ao trabalho. Toda democracia estável depende de uma relação equilibrada entre Direito e política para impedir que a constante disputa pelo poder, entre os diversos partidos e grupos sociais, possa colocar em risco a engenharia institucional estabelecida pelo pacto constitucional. Rafael Tomás de Oliveira e eu escrevemos sobre isso semana passada. Eis o caráter compromissório de uma constituição. Quando a política passa a funcionar na condição do vale-tudo, por meio de uma guerra generalizada entre facções que instrumentalizam o direito de acordo com seus objetivos ideológicos mais prementes, a democracia é colocada numa situação preocupante, inclusive com riscos de rompimento do pacto constitucional.

Entretanto, parece que a comunidade jurídica brasileira ainda não se atentou para esse detalhe, até porque ela não tem se preocupado muito com o direito ultimamente. A atual crise política — que há poucos dias foi responsável pelo afastamento temporário da presidente da República e teve como consequência a formação de um governo interino — ainda não levou ao rompimento constitucional, mas pode seguir este rumo, caso o direito continue a ser completamente ignorado na luta pelo poder que se instalou no país. Ou se ele for instrumentalizado ao modus da política.

Parece que grande parte dos juristas ainda não entendeu a gravidade da situação institucional. Suas manifestações públicas se destacam principalmente por falas partidárias e opiniões ideológicas, sem o mínimo critério constitucional. É estranha essa situação, mas tudo indica que os juristas brasileiros não estão nem um pouco preocupados com o direito. É claro que existem exceções. Contudo, cada vez menos juristas falam sobre o direito. Seu interesse maior é pela política. E se comportam como torcedores. Sem esquecer os moralistas, é claro. Antes de analisarem constitucionalmente qualquer assunto, o cinismo ideológico se impõe para justificar todo tipo de violação contra o Estado de Direito, como as interceptações telefônicas ilegais; inversão do ônus da prova; vazamentos seletivos e ilegais; conduções coercitivas ilegais; a violência policial nas periferias das grandes cidades; as constantes decisões discricionárias/decisionistas do Poder Judiciário, os comportamentos ativistas do Ministério Público e da Defensoria, Tribunal de Contas, etc, promovendo uma farra estamental, para dizer pouco. Na verdade, tudo é considerado válido quando a ilegalidade atinge somente adversários políticos ou setores marginalizados da sociedade brasileira. E o mais assustador é que parte significativa dos juristas se coloca na primeira fila como principal apoiadora das medidas de exceção. Isso porque, para grande parte dos “doutores”, defender o Estado de Direito não é uma questão de princípio e sim uma questão de conveniência.

Mas depois de todas as demonstrações de falta de apreço pelo direito — e não faltaram violações nesses vinte e sete anos da Constituição de 1988 —, alguns juristas também resolveram encampar a ideia estranha (para ser generoso) de que o Brasil necessita de uma nova Assembleia Constituinte para reformar o sistema político. Fala-se em convocar uma Constituinte exclusiva e apostam novamente na política como solução de todos males. Seria um haraquiri institucional, como já dissemos aqui.[1]

Afinal, a Constituição de 1988 não tem nada a dizer sobre a atual crise? Por acaso ela autoriza a convocação de uma Constituinte exclusiva? Respondo: não! E assumo essa tarefa institucional porque sei o quanto a tradição do constitucionalismo moderno foi fundamental para aplacar a vontade de poder que atinge todos os segmentos da política. Direita e esquerda, quando governam sem qualquer forma de interdição jurídica, acabam caindo na tentação de usurpar o poder e exercê-lo de forma autoritária. No século XX tivemos diversas demonstrações de regimes autocráticos que instrumentalizaram o direito para seus objetivos políticos e, como consequência, instituíram um estado de exceção permanente contra opositores. Diante da falta de Constituições normativas, pelas quais a limitação do poder e a defesa das liberdades individuais e sociais sempre são garantidas pelo direito, restou a política arbitrária como forma de controle social.

Foi por isso que, depois da Segunda Guerra Mundial, a concepção favorável a uma Constituição normativa, capaz de garantir a autonomia do direito frente à política, retornou com força na Alemanha. Depois de todas as atrocidades ocorridas em solo alemão — desde a unificação nacional pelas mãos de Otto Von Bismarck até o nazismo de Adolf Hitler — ficou claro que a construção de uma comunidade política democrática dependia do controle da política pelo direito. É a partir dessa nova condição institucional que Habermas se apropria (e bem) do conceito de patriotismo constitucional, cunhado por Dolf Sternberger em 1979, para dizer que o estabelecimento de uma comunidade política dependia da adesão aos princípios que orientam a formação de um Estado constitucional democrático. Ou seja, a defesa do controle da política pelo direito via Constituição.

Constituição é norma. Não por capricho. É norma porque, no direito “Auschwitz nunca mais”, a democracia só se faz no direito e pelo direito. Política e moral (principalmente estes dois predadores) devem ser controlados. Caso contrário, o direito se transforma em política ou moral. Simples: se não há controle sobre a política, então não há mais direito. Quem acha que vale, excepcionalmente, dar um drible no direito, está dizendo que política e moral valem mais do que o direito.

Isto tudo quer dizer que os mesmos que vibraram com as escutas ilegais feitas contra o senador Demostenes foram, depois, vítimas do mesmo drible jurídico. Quem vibrou com Protógenes, morreu do mesmo veneno. Quem lembra do Fausto De Sanctis? Vou falar com Milton Neves para ver o quadro “Por onde anda”. Ele chegou a ser ídolo.Para ele, os fins justifica(va)m os meios. Ora, direito quer dizer: contra tudo e contra todos. É uma questão de princípio. Como o cara do Tubos Tigre (ver aqui). Algo como “— Mas, e se a escuta ilegal for para derrubar o meu inimigo? Ah, se for meu inimigo...— não”! “— E se passarmos por cima da Constituição para pegar o Eduardo Cunha? Ah, neste caso, já que é o Cunha...”— não”! Como na propaganda, trata-se do “não necessário”, como dizemos Fernando Facury Scaff e eu de há muito.

Todos os dias vemos pamprincipiologismos, mut(il)ações (in)constitucionais, rebeldia contra o CPC novo e ninguém se apercebe do ovo da serpente? Um juiz federal disse, em Juiz de Fora, há alguns dias, face to face com uma Comissão da OAB que "Nós do TRF não nos submetemos ao novo CPC." Simples assim. Com receio de contestarem (leiam a coluna sobre servidão voluntária — ler aqui), os causídicos saíram. Sem nada dizer. Uma ministra do Superior Tribunal de Justiça já disse que o CPC não se aplica aos juizados especiais. Há centenas de decisões em todo o país negando o novo CPC. Ensino jurídico de baixa densidade, cursinhos a milhão, livros cada vez maisstandartizados e, me digam: quem é culpado pelo fracasso? Quem? Tempestade perfeita que está armada.

Por isso, pergunto: Fazer uma nova Constituição resolverá essa fragilização do Direito? Quem garante que a) o novo texto será melhor do que este? b) melhor para quem? e 3) quem garante que a nova Constituição será obedecida por juízes, ministros e membros do MP? Sim, porque, atualmente, vivemos em um estado de exceção interpretativo.

No dia em que foi feita a primeira ponderação depois da CF/88, começou o erodição (e não a erudição) do Direito. Quando aplicaram pela primeira vez um princípio ad hoc, inventado sob pretexto de que “princípios são valores” (oh, que estrago que isso fez!), ali foi dado um passo importante rumo ao...fracasso. Hoje estamos nesse estado. Tendo que dizer o óbvio: a Constituição é norma. E que ser “revolucionário” é defender a legalidade constitucional. Porque não tem Cristo que consiga fazer com que se cumpra nem mesmo um Código como o de Processo. Pior: descumprimento incentivado por professores, magistrados e outros quetais. Sim, porque no direito, hoje, ocorre algo como no futebol: todos técnicos são “professores”. É professor prá cá, professor prá lá...É o luxemburgamento da dogmática jurídica. Vê-se cada coisa escrita e falada...Como diz o professor Luxa, “temos ‘pojetos’”...!

E, com tudo isso, vêm me falar em constituinte “exclusiva”? Só se for uma Constituição que será aplicada por juízes alemães. Ou norte-americanos. Por que com o que temos hoje, desculpem-me... Prefiro ficar com esta e lutar para que os juristas a levem a sério e parem de canibalizar o direito. Ou alguém acha que um novo texto constitucional fará com que os juízes o cumpram? No dia seguinte começa tudo de novo. Quem tiver dúvida, veja o que está ocorrendo com o novo CPC.

Quem sabe, começamos de novo — pelo menos metaforicamente? A lição número um poderia ser: onde está escrito x, por favor, pelo amor de Deus, leia-se...x. Isso para começar. Na lição número dois, poderemos já ler coisas que vem depois do século XIX. Mas bem devagarinho. Folha por folha. E quem disser que “o juiz boca da lei morreu porque agora o que vale é o juiz dos princípios”, ficará de castigo. Porque foi esse mantra que ajudou a chegarmos a esse estado de coisas. E terá de fazer ficha de leitura da Teoria Pura do Direito. E do Conceito de Direito. E do Levando os Direitos a Sério. Também terá de fazer ficha de leitura do modelo 2 (alô, querido Professor Cesar Pasold). Até do conto “a Sereníssima República”, de Machado de Assis. E de Alice Através do Espelho. E do Círculo de Giz Caucasiano. E da peça de Brecht “Santa Joana dos Matadouros” (que nos proteja do canibalismo jurídico! E dos néscios!).

Numa palavra final: com tantos vazamentos, a República está fazendo água. Parece que tem gente que acha que a política é dispensável. Claro que a política não se ajuda muito. Entretanto, cabe um aviso aos navegantes: uma crise na Itália, por exemplo, é uma crise...na Itália. Milhares de anos de história, uma das maiores economias do mundo, base social sólida, educação, saúde, rodovias, muito turismo, etc. Outra coisa é uma crise no esgualepado país chamado Pindorama, em que... bem, todos sabemos. Vou dizer algo que aqui já disse: no caos, não há direito. Se o direito é predado pela política e/ou se o direito preda a política, sempre sobra para a patuleia. Ou quando o direito se transforma em política e, em uma fagocitose, captura a política. E sabem quem se aproveita? O moralismo. Lá vem o novo, gritam alguns; mas, por debaixo das roupas do novo, esconde-se o velho. Parece que isso é de Brecht. Que também escreveu Santa Joana dos Matadouros. Rogai por nós!


1 Obviamente não quero comprometer, nesta Coluna, os meus co-signatários deste texto publicado em 26.08.2014.. Esta coluna reflete, apenas, neste momento, a minha ideia e a de Marcelo Cattoni. Ambos mantemos essa posição.


Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.



Revista Consultor Jurídico, 9 de junho de 2016, 8h00

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Livre convencimento no novo CPP: mas, já não apanha(ra)m o suficiente?




Por Lenio Luiz Streck


E vem aí o NCPP: Novo Código de Processo Penal.

Todos sabem que fui um crítico contundente ao projeto do novo Código de Processo Civil. Conseguimos algumas alterações e avanços, como a expunção do livre convencimento (artigo 371), a obrigação de a jurisprudência ser íntegra e coerente (artigo 926), além do dever de fundamentação previsto no artigo 489, sem contar a proibição de decisões surpresa (artigo 10). Minha preocupação: democracia e equanimidade nas decisões.

Pois agora estamos em face de uma nova luta. É o novo Código de Processo Penal que está em gestação. Estava parado e provavelmente as contingências o tenham tirado da gaveta. Não importam as razões. Estamos com o problema à vista.

Já enviei algumas sugestões ao projeto. Saibam os leitores que no campo do processo penal, portanto, no sagrado terreno das liberdades, o projeto, no seu artigo 168, foi aprovado (até agora) por uma comissão de juristas, mantendo, entre outros autoritarismos, o poder de livre apreciação da prova ou livre convencimento. Pois é. Inacreditável. Justificativa “genial”: a livre apreciação se dá porque está superada a prova tarifada. Ah, bom. E o livre convencimento? “Ele é motivado.” Ah, bom, digo novamente. Agora vai. Se ele é motivado, então tá. Falei disso na coluna passada (ler aqui). Parece até que estamos diante de meros truísmos, como se fossem decorrências necessárias. Sinto dizer, e aqui homenageio meus colegas analíticos, mas desta argumentação non sequitur.

Essa linha de defesa do livre convencimento ou livre apreciação vem na mesmíssima seara (de alguns) dos processualistas civis que continuam a dizer que, mesmo que o texto do NCPC tenha expungido o “livre convencimento”, isso nada quer dizer. Alega-se que o artigo 489, parágrafo 1º, CPC/2015, trata apenas do elemento chamado “motivação” e não da “liberdade na valoração da prova”. O que isto quer dizer? Simples: eles estão apenas repetindo uma velha e surrada cisão entre fato e Direito e entre interpretação e aplicação. Rios de tinta já foram gastos para demonstrar que isso é absolutamente equivocado. Gente como Müller, Castanheira Neves, Ovidio Baptista já colocaram uma pá-de-cal nessa falsa dicotomia. Mas, não adianta. Por aqui, o que vale é o velho subjetivismo. O velho solipsismo.[1] Ora, o que é esse subjetivismo – retrógrado e antidemocrático – senão aquilo que exatamente sustenta a cisão entre interpretação e aplicação? A mágica estaria no seguinte: uma coisa é interpretar a lei; outra seria valorar a prova. Mais ou menos o seguinte: para interpretar o que leio em um livro uso determinados parâmetros; para saber se devo desviar de uma pedra ou não, utilizo outros componentes “cognitivos”. Se isso fosse possível, quem defende isso seria comido pela primeira onça que encontrasse, porque primeiro “interpretaria” e depois “aplicaria”. Nesse ínterim, seria devorado.

Como diz Eros Grau, fulcrado em Müller: “o intérprete interpreta também o caso, necessariamente, além dos textos, ao empreender a produção prática do direito”. Ou seja, a filosofia enterra, com bem diz Guilherme Vale (ver aqui) essa espécie de cisão canônica entre a faticidade (prova) e o Direito (norma): “A compreensão não ocorre assim, mesmo que um juiz eventualmente ponha em sua decisão que ‘agora estou apenas valorando a prova; a partir daí, passarei a interpretar o Direito’. Aliás, sejamos claros: valorar a prova nada mais pode significar do que interpretar”.

Lamentavelmente, parece que parcela dos processualistas pouco apreendeu em termos de paradigmas filosóficos e naquilo que se entende por cognitivismo e não cognitivismo (podemos falar até de meta-ética, aqui) ou o nome que se queira dar ao modo como compreendemos os fenômenos.

Retornando ao projeto do CPP, entre outras sugestões, obviamente está a de retirar a palavra “livre” do artigo 168 do projeto. O CPC já não o tem. De todo modo, parece inconcebível que, no processo civil, haja um dever de accountabillity maior que no processo penal, que trata das liberdades. É um contrassenso que, para decidir o sentido de uma lide civil, o juiz não possua livre convencimento, e, para decidir um Habeas Corpus, sim. Por isso, para que os códigos tenham coerência, também aqui necessitamos intervir filosoficamente. Ademais, esta exigência provém da própria democracia. O Estado-juiz deve tratar a todos de modo equânime, e isto, em todos os ramos do Direito.

Para tanto as regras do jogo precisam estar expostas antes do jogo, devendo haver limitações/impedimentos a mudanças repentinas, ou movimentos/ações que obscurecem os sentidos para um resultado final que poderíamos dizer que seja constitucionalmente adequado. Por isso, a adjetivação “livre”, seja do convencimento ou da apreciação das provas, deve ser extraída do ordenamento. O Direito em ambientes democráticos demanda uma justificação pública que não se coaduna com estes exames particularistas/solipsistas. Sendo bem explícito, resumo assim a minha tese:

Que processualistas-juízes sustentem o livre convencimento é até possível de entender; afinal, neste Pindorama estamental e autoritário, pode ser “normal” cada um defender seu feudo e interpretar as leis como bem querem; mas o que é incompreensível é que não-juízes o façam. E continuem sofrendo no lombo todos os dias o chicote do livre convencimento e da livre apreciação. Trata-se de um autêntico “látego epistêmico” que lanha as costas do utente e dos advogados. Por isso se diz que “do couro saem as correias”.

O processo penal está atrasado no tempo. É um osso de megatério filosófico, porque admite até hoje a verdade real, outra coisa ridícula que faz com que filósofos façam troça dos juristas. Filósofos riem dos juristas quando estes falam da verdade real. Nós, os juristas, não nos damos o devido respeito. Convivemos com livros simplificadores, mastigadinhos, que conformam um novo paradigma: a nesciontologia. Há livros de processo penal que dizem que o juiz, a partir de sua consciência[2], busca a verdade real (sic). Genial, não? Prêmio Nobel. Bingo. Como explicar essa mixagem que vai do nada ao lugar nenhum? Vivemos uma tempestade perfeita.

Por isso, a hora é de mudar. Não esqueçamos a surra que a dogmática jurídico-processual levou no julgamento do mensalão. E as agruras dos advogados nas lides cotidianas... Ora, há coisas acacianas que deveriam fazer com que os juristas se dessem conta do perigo que é dar um tiro no pé ao desdenhar da importância da filosofia. Quando falamos em livre convencimento ou livre apreciação da prova inegavelmente estamos tratando do paradigma filosófico instituidor da modernidade. O sujeito da modernidade é uma descoberta de Descartes. Aquilo que se mostrava nos sofistas ou no nominalismo ainda não era “o sujeito”. Ainda na modernidade, Kant mostra a impossibilidade da apreensão da coisa em si, isto é, o que precisamos para compreender algo não vem da coisa (em si), mas da autonomia do sujeito, liberto do “mito do dado”, por assim dizer. O contraponto foi o voluntarismo que tomou conta inclusive das correntes “críticas” do Direito. O que se diz sobre “a verdade”[3] é fruto de tudo isso: da metafísica clássica, da filosofia moderna e das teses e teorias que buscaram ultrapassar aquilo que superou o objetivismo (realismo) pré-moderno. É nesse caldo de cultura que nos movemos, queiramos ou não.

Afinal, quando tratamos de “provas no processo penal ou civil”, estamos tratando das condições de possibilidade de dar sentido a um determinado fenômeno. Pois não é que o Tribunal do Júri admite a íntima convicção? Fantástico. O indivíduo é condenado por uma maioria que entende, no seu íntimo, que ele é culpado. Íntima convicção, que no fundo é igual a livre convencimento. E mais não precisa ser dito. Já sugeri, há anos, que se alterasse isso.

Numa palavra. Vi que tem gente defendendo a ideia de que o livre convencimento seria necessário para o melhor direito, supondo uma “discricionariedade racionalizada” a meio caminho da íntima convicção e as provas tarifadas. Contra isso, afirmo: esse tipo de defesa só teria sentido se o Direito estivesse separado da filosofia. Só quem pensa o Direito fora dos paradigmas é que pode dizer que o livre convencimento é necessário, ignorando dois linguistic turns e toda a intersubjetividade que mudou a história do pensamento. Claro – e aqui vai uma ironia – o livre convencimento é necessário se o direito é visto como uma racionalidade instrumental. Ele é tão necessário (outra ironia) quanto a ponderação “à brasileira”, essa katchanga real que talvez tenha sido a maior fraude jurídica já manejada pelos juristas (e que está no parágrafo 2º do artigo 489 do CPC: já me ofereci para a Ordem dos Advogados do Brasil para elaborar a inicial de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para expungir essa verruga epistêmica do Código). A presidente da República (clique aqui para ler coluna “Veta Dilma”) não quis vetar: deve ter sido “bem instruída” por sua equipe de assessoramento jurídico. Bom, isso apenas demonstra o cuidado com que o governo tratou o Direito nestes 14 anos. Repito: o Brasil é incrível. Por aqui ainda tem gente que acha que o Direito é apenas uma superestrutura. Ou uma mera racionalidade instrumental. O que dá no mesmo.

Mas, por outro lado, se o Direito tem um papel de garantir a democracia – como deve ser sob o Estado Democrático – discricionariedade é igual a arbítrio. Chega a ser cansativo ter de explicar que um juiz sem livre convencimento (motivado que seja), não é um juiz do século XIX, o velho boca-da-lei. Definitivamente, expungir o livre convencimento dos códigos não equivale à proibição de interpretar. Não se reproduz sentido nem se o atribui livremente. Lembremos de Gadamer: antes de dizer algo sobre o texto, deve-se deixar que o texto diga algo. Também Müller, Habermas e Dworkin são testemunhas de que nem de longe o mundo é tão simples quanto a divisão entre exegese e não-exegese, ou realismo e não-realismo. Falta só aparecer alguém para dizer que onde está escrito “coerência e integridade” no artigo 926 do CPC, deve-se ler apenas “estabilidade”. Não me surpreenderia.

Nesse sentido, tenho referido de há muito, ironicamente, que “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa no Direito”. Veja-se que os franceses, para garantir o produto do legislador, tiveram que institucionalizar uma rígida exegese. Mas isso foi no século XIX. Não creio que em plena democracia e na vigência do paradigma do Estado Democrático de Direito, seja necessário, para garantir uma legalidade mínima, seja necessário voltar a ter esse tipo de “amarração”. Vivemos hoje no paradigma da intersubjetividade. Logo, não há lugar nem para o “dono da lei”, nem para o “escravo da lei”. Ou há? Alunos de todo Brasil (nada – mais – tendes a perder): perguntem isso aos seus professores, principalmente para esse que fica dizendo que princípios são valores. Cobrem dele. Ponham-no contra a parede. E perguntem também por que o Brasil já é refém de um positivismo jurisprudencialista, fruto exatamente dessa algaravia que se transformou a teoria e a aplicação do direito. Se ele disser: “Isso só pode ser coisa de Lenio Streck”, não se zanguem com ele. Apenas continuem insistindo. Digam que ele pode responder a vocês na semana seguinte, dando a ele tempo para estudar isso.

Penso que mais não precisa ser dito, nos limites desta coluna. Voltarei ao assunto, por óbvio. Também aproveito para falar de outra sugestão de extrema relevância, que é a introdução, nos moldes em que ficou a redação do artigo 926 do CPC, da obrigatoriedade de a jurisprudência ser estável, integra e coerente no CPP. Estabilidade é autoexplicativa. Coerência evita decisões fora da curva, ressalvadas, obviamente, as situações excepcionais em que a própria faticidade aponte para a inauguração de novas cadeias jurisprudenciais, sendo sempre mantida a integridade. Por isso afirmo que não basta ser coerente, porque é possível ser coerente no erro. Para isso a necessidade de se exigir a integridade. Essa vem da lei e da Constituição. Fecha-se o círculo. É o mínimo para que tenhamos um CPP democrático. Outras sugestões tratarei em outra coluna.

Que aproveitemos as agruras, do solipsismos e as decisões tipo “ponto fora da curva” para construirmos barreiras contra o subjetivismo. Democracia não rima com discricionarismo e com subjetivismo. E com livre convencimento, tampouco com a livre apreciação da prova...

E não adianta se irritarem. Vou continuar batendo nisso. E para quem acha que isso que eu acabei de dizer é abstração e coisa sem importância e desnecessária, invoco a máxima do filósofo Avicena:


“Um sábio sabe a diferença entre o que é necessário e o que não é necessário; um néscio, não; então, bata-se nele até que ele diga em alto e bom som que ‘isso não é necessário’. Pronto: agora ele sabe a diferença”!

Tenho a certeza que os leitores são sábios. E sabem a diferença.

Post Scriptum: Uats ap: juiz atirou em um “lagarto” com um canhão e...errou!

Por falar em livre convencimento – eis um bom exemplo: o juiz de Lagarto (SE) está livremente convencido... Pois é. Fico pensando se podemos caçar um lagarto, ou uma lagartixa, com uma arma de destruição em massa. Mesmo dizendo “livremente que sim” (sic), diríamos, acredito, que não deveríamos, porque o meio é desproporcional – os alexyanos entendem bem disso, nos vários sentidos. O problema maior são efeitos demasiadamente gravosos para quem nada tem com a situação. Caros leitores, crédulos e incrédulos: a suspensão do WhatsApp é representativa deste estado da arte. O “Eu” juiz posso determinar que uma ferramenta já incorporada no dia a dia de parcela significativa dos brasileiros, incluindo instituições públicas, seja suspensa devido ao não fornecimento de informações que ainda não se sabe tecnicamente se é exequível. Não importa se milhares e milhares de pessoas serão (indevidamente) prejudicadas. Não importa se minha decisão não tem respaldo jurídico. Pergunto: Onde está a responsabilidade política? A accountability? Ah! Antes que eu me esqueça. Todo este desgaste pode ter sido em vão – e mesmo que tenha êxito nesta situação continua sendo injustificável, mesmo com a previsão no Marco Civil –, assim o lagarto permanece vivo. Sugiro, em tempos como os nossos, que reflitamos seriamente sobre os limites dessa nossa “liberdade” (de consciência), caso contrário a juristocracia se tornará a esperança política de muitos, se já não é.



[1] Aqui cai como uma luva a lição de Ramón Rodrigues, o germanófilo filósofo espanhol por quem tenho imenso carinho e respeito, em palestra proferida anos atrás: a crítica do sujeito metafísico da modernidade exercida durante todo o século XX tem um sentido inequívoco: desalojá-lo de seu lugar transcendental e “desposeerlo” (entfernen Sie sie aus dem Besitz) de seu papel de instância constituinte do mundo em que vive e do fundamento de sua própria legalidade. Bingo, professor Ramon.


[2] Estamos atrasados em relação às ordenações filipinas, precisamente a parte constante do Livro III, Título LXVI ao tratar das sentenças definitivas. Já há, aqui, uma passagem interessante, que é a que diz [o juiz] tem que proferir “... a sentença ‘definitiva’, segundo o que achar ‘alegado’ e comprovado de ‘uma’ parte e da outra, ainda que lhe a consciência ‘dite’ outra ‘coisa’, e ‘ele’ saiba a verdade ser em contrário do que no feito ‘for’ provado; porque somente ao Príncipe, que não reconhece superior, ‘é’ outorgado ‘por’ Direito, que julgue segundo sua consciência”. Naqueles dias...


[3] Talvez o texto mais profundo dos últimos tempos esteja em Puntel, Lorenz. . Wahrheitstheorien in der neueren Philosophie. Eine kritisch-systematische Darstellung. Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt 1978; Auflage 1993; Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. W. de Gruyter, Berlin/New York 1990. Por aqui, os livros de Ernildo Stein e tantos outros filósofos que desmistificam as concepções voluntaristas acerca da verdade.

Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 5 de maio de 2016, 8h00

As notícias não são boas. Judiciário não cumpre o CPC: Is it the law?






Por Lenio Luiz Streck


Uma das séries mais famosas do mundo é House of Cards. Já alerto para spoilers. Por sinal, há discussões éticas cada vez profundas e acaloradas sobre o que se pode ou não ser contado de séries e filmes para quem ainda não os assistiu; teoria da decisão jurídica é que é bobagem! Imagina, querer dar sentido a uma coisa dessas — a decisão... Mas vamos à série e à teoria. A cena é: o presidente dos EUA leva um tiro. Precisa transplante de fígado. No hospital, o médico diz que ele é o terceiro da fila. Mesmo que seja o presidente dos EUA, a fila não pode ser ignorada. Nada de furar a fila. O médico diz: It’s the law. É a lei. Fiquei pensando: correto o médico. Foi uma resposta não consequencialista. Decisão por princípio (para quem ficou preocupado com a saúde do presidente dos "Isteites", novo spoiler: ele se salva). Não é só pela “letra da lei” que se recusa. É que há um princípio que enuncia essa regra da “fila”. E outro pelo qual uma vida é uma vida. E mais um que diz que todos são iguais perante “a fila”, se me permitem estender um pouco e deixar isso mais claro.

Quero apenas usar isso para falar sobre o valor da lei. A modernidade somente surgiu com a interdição proporcionada pela lei. Entre civilização e barbárie, optamos pela primeira. O custo disso é obedecermos à lei. A lei passa a ser um princípio. O princípio de que se obedeça a lei. Uma sociedade sem princípios é anarché (anarquia).

A Constituição passou a ser a lei das leis. Ela constitui tudo o que existe em termos de direito. Há uma metáfora — que circula há anos — interessante para explicar o valor da Constituição. Ulisses, voltando de Ítaca, pede para seus marinheiros que o amarrem no mastro do navio. E lhes ordena que, sob hipótese alguma obedeçam qualquer gesto seu no sentido de que o soltem. Só devem obedecer à primeira ordem: “amarrem-me ao mastro”. A sobrevivência de Ulisses reside no cumprimento da primeira ordem. Porque Ulisses sabe que, caso contrário, morrerá. E por quê? Porque ele não resistirá ao canto das sereias. As maiorias são como as sereias. Tem um canto sedutor. Quem não se proteger, pode sucumbir. Ulisses se salvou porque ficou amarrado às correntes.

Essas correntes são a segurança de Ulisses. A Constituição é como as correntes. A Constituição sustenta as leis. Isso quer dizer que uma lei para não ser aplicada deve ser declarada inconstitucional. Ou se faz uma interpretação conforme a Constituição. Ou uma declaração de nulidade parcial sem redução de texto. Ou uma nulidade parcial com redução de texto. Ou um modo de resolver o problema com a aplicação dos critérios das antinomias. Ou, ainda, na contraposição regra-princípio, nos moldes explicitados em Verdade e Consenso. Fora disso, estamos saindo do terreno da democracia e entrando no decisionismo e seus congêneres.

Eis, portanto, um modo de verificar em que momento não há saída para o judiciário: aplicar a lei ou atuar fora da lei e alheio ao direito. Por exemplo, proferir uma decisão fundada na...excepcionalidade.

Poderia falar da ADI que a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) ingressou contra o Tribunal Superior do Trabalho (leraqui) contra a Resolução 39 que estabelece o que deve ser cumprido do novo Código de Processo Civil. Interessante é que a Anamatra, em vez de fazer uma campanha para que os juízes apliquem o CPC, insurge-se contra o TST naquilo que ele — embora com algumas omissões — estabelece, de forma alvissareira, como obrigação a ser cumprida pelos magistrados do trabalho. Tive a ocasião em dizer para os magistrados do trabalho de Santa Catarina que a Resolução do TST era muito interessante, porque simbolicamente representava um avanço. Por outro lado, é lamentável ser necessário fazer uma Resolução para que alguém cumpra aquilo que já está estabelecido em uma lei federal, pois não?

Poderia também falar das insurgências contra a aplicação do artigo 10 na sua integralidade e substancialidade. Ou do artigo 489, parágrafo primeiro, que alguns tribunais insistem em não cumprir. Ou não dar bola. Na coluna passada falei disso. O plano é muito simples: devagarinho, o judiciário “naturaliza” o não cumprimento. Depois os advogados se acostumam. Já nem sentem o látego. A naturalização é um fenômeno que faz com que, mais tarde, alguém diga: mas isso sempre foi assim.

Vou trazer alguns dados e elementos que mereceriam uma CPI Epistêmica. Fosse em um país civilizado, isso geraria um escândalo. Realizei a pesquisa em alguns tribunais. Pesquisei o termo "livre convencimento", deixando de fora o 'motivado' que aparecem em ementas. Claque, ao lado desses descumprimentos, há também a não aplicação dos incisos do parágrafo primeiro do artigo 489. As notícias não são animadoras. Da data de 18 de março até 4 de maio — TJ-SP - 114 menções em ementas de processo civil ou trabalhista de sua competência; TJ-RJ – 264 (de todo o período de 2016 — não há como fatiar por meses); TJ-MG - 20 menções ao livre convencimento; TRF-4 - 44 menções e, por fim, e por fim, o TJ-RS com 483 registros em ementas na seção cível do TJ-RS (incluindo turmas recursais). Ressalto que incluí as turmas recursais. Nos demais, os números podem ser menores por não incluir as turmas recursais. Atenção: também estão presentes em vários desses julgados violações a outros dispositivos do novo CPC.

Cito algumas passagens que mostram o que estou dizendo. Trago à baila alguns trechos das decisões, sem fulanizar os relatores ou os demais votantes (decisões entre a entrada em vigor do CPC e a data de 4 de maio):

Preliminar de nulidade da sentença rejeitada. (...) Matéria de direito que dispensa a produção de prova pericial. Ademais, o juiz é o destinatário da prova, incumbindo a ele decidir acerca da necessidade e utilidade da prova para a formação do seu livre convencimento motivado (...).

Ao contrário do defendido pelo autor no recurso, a prova dos autos foi objeto de minudente análise por parte do Juízo de Origem, o qual, em nome do princípio do livre convencimento motivado, externou o entendimento de que não houve prova do direito alegado pelo autor, ônus que lhe incumbia (artigo 373, I, do novo CPC).

Contradição e omissão na valoração da prova. A prova testemunhal foi valorada segundo a apreciação da Relatora, que expôs os motivos do seu convencimento, cumprindo a regra do artigo 489, § 1º, da novel legislação processual. Ademais, persiste, no novo diploma, o princípio da livre valoração da prova pelo julgador, desde que motivadamente, como se confere do artigo 371 do novo Código de Processo Civil: O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.

Ainda: Embargos de declaração — Inexistência de omissão e contradição — Livre convencimento motivado do magistrado — Não há necessidade de se abordarem todos os argumentos apresentados pelas partes, desde que o julgado esteja devidamente fundamentado. Quantas violações há aqui?

E vejamos este julgamento do dia 4 de maio de 2016? “Faculdade atribuída ao magistrado, prendendo-se ao seu prudente arbítrio e livre convencimento, dependendo a concessão de prova inequívoca e convencimento da verossimilhança da alegação e dos requisitos legais”.

Julgamento de 27 de abril de 2016: “O julgador não é obrigado a exaurir todas as questões propostas, mas a dizer o direito (pretensão e resistência), conforme livre convencimento motivado, o que enseja concluir na aplicação de uma ou mais proposições, sem obrigação de exaurir todas, em razão do limite técnico do convencimento formado”.


E, quem sabe, este? É firme o entendimento desta Corte no sentido de que, sendo o juiz o destinatário da prova, cabe a ele, com base em seu livre convencimento, avaliar a necessidade desta, podendo determinar a sua produção até mesmo de ofício.... (julgado em 4 de maio de 2016).

Como canja, eis o que vem da primeira instância de Belo Horizonte, só que do processo penal. Um juiz tem “o costume” de marcar Audiência de Instrução e Julgamento antes de que a defesa apresente a resposta à acusação. Diz-se, por lá, que isso é praxe na “Vara do juiz”. Vamos ganhar o Nobel. Vamos para Estocolmo. Mas, então, para que (for what) serve a resposta à acusação e, no fim das contas, o advogado? O juiz irá acolher eventual tese de absolvição sumária ou de rejeição da denúncia e cancelar audiência já marcada? Mais um item para a CPI epistêmica do processo em Pindorama. Faço desta coluna a tribuna dos humilhados.


Precisa ser dito mais alguma coisa? Talvez apenas repisar uma citação da coluna passada. A das Ordenações Filipinas, que diz que [o juiz] tem que proferir

“... a sentença ‘definitiva’, segundo o que achar ‘alegado’ e comprovado de ‘uma’ parte e da outra, ainda que lhe a consciência ‘dite’ outra ‘coisa’, e ‘ele’ saiba a verdade ser em contrário do que no feito ‘for’ provado; porque somente ao Príncipe, que não reconhece superior, ‘é’ outorgado ‘por’ Direito, que julgue segundo sua consciência”.

And I rest my case. It’s the law, diria o médico americano.

Aqui, perguntamos: Is it the law?

Resposta: For what?

Post scriptum: a coluna foi fechada antes da decisão do STF sobre a ação do governo para suspender o impeachment.



Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2016, 8h00

quinta-feira, 17 de março de 2016

CPC: conclamamos a que olhemos o novo com os olhos do novo!





Por Lenio Luiz Streck e Dierle Nunes


E o novo Código de Processo Civil chegou! Nesta sexta-feira (18/3) ele estará em vigor! E todos nós ficamos esperançosos que ele possa ao menos implementar uma aproximação verdadeira dos ditames de nossa Constituição com o contexto de aplicação cotidiano do direito.

Mas o grande desafio é o de se promover a institucionalização das garantias constitucionais que o Código busca procedimentalizar especialmente quando promove a nova regência dogmática de algumas decisões que obterão o status de precedentes normativos no quadro legislativo nele dimensionado.

Perceba-se que o CPC não atribui o nome de “precedentes” a alguns pronunciamentos judiciais por simples escolha normativa, mas pelo fato de que no novo sistema dogmático haverá procedimentos específicos, altamente dialógicos (por exemplo artigos 10 e 1.038) e com rigoroso respeito à fundamentação (artigo 489) para que tais decisões sejam assim encaradas e aplicadas em casos futuros (artigo 985, II), o que para tanto deverá exigir o cumprimento de uma série de pressupostos.

De como decisões do passado, sem o crivo do novo CPC, não vinculam o futuro
Tal advertência se faz necessária neste momento para que se evite que a partir do 18 de março de 2016, decisões formadas no passado, sem o cumprimento dos pressupostos normativos de formação que o CPC-2015 impõe, adquiram — automaticamente — a força de precedentes hábeis à aplicação imediata e sirvam como fundamento de julgamento (artigo 489, §1º, V e VI) em: a) julgamentos liminares de improcedência (artigo 332); b) tutelas antecipadas da evidência (artigo 311, II); c) decisões monocráticas (artigo 932, IV e V); d) resolução de conflitos de competência (artigo 955, parágrafo único, I e II); e) obtenção de executividade imediata de sentenças (artigo 1.012, V); f) impedimento de reexame necessário (artigo 496, §4º, II), não se olvidando de potenciais funções rescindentes (artigos 525, §15 e 535, §§5º e 8º).

Seria como se quando do advento e regulamentação das súmulas vinculantes em nosso país o Supremo Tribunal Federal houvesse aplicado às súmulas persuasivas (argumentativas), produzidas desde 1963, o status de enunciados com força vinculante, gerando uma força retrospectiva a pronunciamentos do tribunal anteriores ao advento da norma do artigo 927, CPC-2015. Ora, assim como uma súmula só é vinculante se passar pelo crivo da CF e da respectiva lei, assim também provimentos vinculantes do novo CPC só vinculam se obedecidos rigorosamente os pressupostos a partir do dia 18.

E não se trata só de um problema de direito intertemporal (artigos 14 e 1.046) mas de uma questão normativa de racionalidade e da busca contra-fática de institucionalização de um novo modo de se promover os julgamentos pelos tribunais a partir do advento da nova lei.

Muito cuidado, portanto. Quando a lei chama uma decisão de precedente (no artigo 927) está exigindo que para sua formação se respeite uma efetiva preparação dos debates (artigos 982, I e 1.037, I), o contraditório dinâmico (artigos 10, 933, 983, caput, §1º e 1.038, I e II) — de modo a se reduzir os problemas da sub-representação do uso da técnica de causa piloto —, e uma fundamentação estruturada (artigos 489, 984, §2º e 1.038, §3º).

Isto significa dizer que o disposto no artigo 927 não pode ser analisado de modo isolado, mas em efetiva correlação com o procedimento formativo já aludido e o respeito ao disposto no artigo 926, ao se respeitar a coerência, integridade e estabilidade. Se o artigo 926 diz que a jurisprudência deve ser estável, integra e coerente, é porque a formação de qualquer precedente não pode representar um ponto fora da curva. O artigo 926 servirá, entre outras coisas, para balizar e denunciar eventuais provimentos com caráter vinculante que surpreendam as partes ou que se mostrem como desvios hermenêuticos em relação à cadeia discursiva.

Atenção: não estamos defendendo o abandono da história institucional dos tribunais, como se as novas decisões (precedentes nos moldes do artigo 927), pudessem romper com os entendimentos ocasionalmente consolidados, pois é obvio que a integridade e a coerência devem ser respeitadas. Não existe grau zero de sentido.

Mas não é possível que julgados proferidos habitualmente hoje sejam considerados precedentes no sentido técnico trazido pela nova lei, especialmente quando se percebe que tais pronunciamentos são costumeiramente “decisões plurais (plurality decision)” [1] , nas quais cada juiz oferta sua própria opinião (decisão em separado), em vez de um único juiz escrever a opinião em nome de toda a corte, forjando uma decisão majoritária na conclusão (parte dispositiva) sem que nenhum fundamento, que lhe oferte sustentáculo, alcance a maioria. Não podemos olhar o novo com os olhos do velho.

Do mesmo modo, não é admissível a mantença do uso de modelos decisórios com completa abstração do caso, promovendo uma aplicação mecânica de padrões decisórios mediante simples aproximação temática seja pela vedação expressa do artigo 489, §1º, III, seja pela assunção da nova racionalidade do uso do direito jurisprudencial aqui comentada. Não é mais aceitável — se é que algum dia foi, desde a atual Constituição — que casos sejam julgados como temas, ou que se pretenda que a ratio decidendi de um precedente tenha algum sentido desprendendo-a do caso que lhe deu origem.

Como já dito, nesta sexta entra em vigor o novo CPC (Lei 13.105/2015) e todos aqueles comprometidos com uma concepção democrática esperam que este, dentro dos limites do que uma legislação possa realizar, promova a correção de uma série de comportamentos e atividades. Este é o Código da previsibilidade. Trata-se de construir condições para assegurar ao cidadão um tratamento equânime. Não mais julgamentos lotéricos. O novo CPC traz instrumentos para impedir “jogos de azar” no novo sistema. E assim deve ser lido.

Conclamamos a comunidade jurídica a um esforço conjunto para bem compreendermos esse recém nascido. Não o descartemos sem o conhecer e compreender. E não nos comportemos como aquela tribo do filme Os Deus Devem Estar Loucos. É assim:

Um piloto de um pequeno avião, sobrevoando uma aldeia de uma tribo “não civilizada”, descarta uma garrafa vazia de Coca-Cola. Os nativos olham para esse objeto estranho e não sabem o que fazer com ele. O primeiro problema é que há somente um objeto. E a tribo era enorme. Segundo problema: do que se trata? Afinal, não havia um a priori compartilhado acerca do sentido de “garrafa”. Eis a palavra: estranhamento. Alguns usam a garrafa para ralar tubérculos, outros assopram e pensam que é um instrumento musical e outro dá o sentido de arma, porque o objeto estranho é atirado e fere um terceiro na cabeça.

Depois dessas tentativas, os nativos decidem se livrar desse objeto-estranho-não linguisticizado, portanto, não compreendido. E elegem um deles — Zi — para levar o objeto e atirá-lo para fora do mundo, porque, para eles, o mundo tinha limites, era quadrado, e o tal objeto deveria ser descartado para o abismo do nada. E lá se foi o nativo, correndo para o fim do mundo. Que nunca chegou. Ele vê camadas de nuvens que cobrem/obnubilam a visão do horizonte. E lá atira o objeto-não-nominado. Que desaparece em uma espécie de “real-impossível-de-dizer”.

Que o CPC que nasce amanhã não seja um objeto estranho e não necessitemos chamar o Zi. Boas interpretações para todos!

Post scriptum: Há pessoas que se acham acima da lei!
Como todos sabem, o novo CPC adota normativamente em seu artigo 10 um modelo democrático do princípio do contraditório ao proibir decisões de surpresa e garantir sua aplicação como garantia de influência. E não nos espantou que em conclave trabalhista[2] se tenha decidido por não aplicá-lo[3]. Sim, juízes, agentes políticos do Estado, “decidiram” por não aplicar uma lei federal.

Parece que eles, como adeptos do modelo de Zi, escolhem seletivamente quais dispositivos aplicam ou não. Afinal, em Pindorama há muitas pessoas que se acham acima da lei e do devido processo constitucional!

Oremos para que o grupo de Zi seja pequeno....


1 THEODORO Jr., Humberto, NUNES, Dierle, BAHIA, Alexandre, PEDRON, Flávio. Novo CPC- Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2016.


2 http://forumtrabalhista.com.br


3 Enunciado 17) NCPC, ART. 10. ART. 769 DA CLT. PROIBIÇÃO DE FUNDAMENTO “SURPRESA”, EM DECISÃO SEM PRÉVIO CONTRADITÓRIO. INAPLICABILIDADE NO PROCESSO DO TRABALHO. PREVALÊNCIA DA SIMPLICIDADE, CELERIDADE E INFORMALISMO. Não se aplica ao processo do trabalho o art. 10 do NCPC, que veda motivação diversa da utilizada pelas partes, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. Prevalência dos princípios da simplicidade, da celeridade, da informalidade e do jus postulandi, norteadores do processo do trabalho. Resultado: aprovado unanimidade.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

Revista Consultor Jurídico, 17 de março de 2016, 8h00

quinta-feira, 10 de março de 2016

O canibalismo da Lei e Constituição: Quando Nebraska vira Caneca






Seriam as palavras flatus vocis?
Nestes tempos em que se diz qualquer coisa sobre os textos legais e constitucionais, faço uma reflexão sobre “o que é isto — o texto jurídico”. Por exemplo: Se está escrito que, para que ocorra a condução coercitiva, é necessário o pressuposto da prévia intimação e da negativa de atendê-la, pode o intérprete ignorar isso? Voltamos ao nominalismo, em que só há(via) coisas particulares e as palavras são (eram?) flatus vocis?

Afinal, mormente nestes tempos de distopia epistêmica, qual a importância do texto para a interpretação jurídica? Mais do que isso: num contexto em que a totalidade de nosso acesso ao mundo se dá na e pela linguagem, qual a importância do texto para o trabalho jurídico? As respostas para estas perguntas pressupõem uma abordagem hermenêutica. Isto porque, para além do duvidoso veredicto veiculado pela desgastada crítica desferida contra interpretações que se prendem à “literalidade” do texto (no sentido de que o texto de uma norma jurídica seria apenas um ponto de partida para o processo interpretativo que deveria, necessariamente, ser completado pelo intérprete), é preciso ter em mente que o trabalho interpretativo do jurista, de um ponto de vista hermenêutico, é um trabalho de mediação de sentidos que tem a ver, basicamente, com uma explicação ou tradução de “testemunhos do passado” — carregados por textos — para um horizonte do respectivo presente.

Explicando melhor: No caso da interpretação jurídica, temos que esse processo de mediação reveste-se, ainda, da peculiaridade de se manifestar na solução de um caso concreto, que, por sua vez, também tem seus conteúdos veiculados por textos, que carregam uma dimensão do passado e que precisam ser interpretados, etc. A atividade de mediação levada a cabo pelo intérprete do direito não está apenas associada à aproximação entre a generalidade da lei e a especificidade concreta do caso; ela implica, também, mediação temporal do evento passado carregado pelo texto da lei ou do caso em face da atualidade da interpretação que se está a realizar.

Daí que, sem o texto, não há sequer como se falar em interpretação: ele representa uma espécie de pressuposto hermenêutico para o desenvolvimento de toda e qualquer atividade interpretativa. Da relação entre texto da norma e âmbito da norma (Fr. Müller), descreve-se um movimento circular que vai da concretude do caso para a dimensão mais abstrata do programa da norma (Gadamer), devolvendo sentido normativo para o âmbito da norma.

Para a Crítica Hermenêutica do Direito, sustentada na fenomenologia hermenêutica, não existe norma sem texto.[1] O que equivale a dizer: não é possível, hermeneuticamente, admitir que a interpretação desconsidere o texto. Até porque, se ela, a interpretação, desconsiderar o texto, estará mediando o quê? Qual sentido? De algum modo, há um texto legal e/ou constitucional. Não há grau zero de sentido. Gadamer dizia que o texto é como a palavra do rei: sempre vem primeiro.

O texto, nessa medida, não é apenas um conjunto de palavras que possuem o sentido sintático-semântico guardados em um grande dicionário. Vale dizer, a mediação hermenêutica entre o texto e a atualidade do sentido não é uma atividade de disputa ou discordância acerca de termos equívocos que podem denotar diversos sentidos quando empregados em uma situação concreta. A atividade mediadora, aqui, tem um espectro muito mais amplo e está associada à tradição, à historicidade do texto e às controvérsias interpretativas precisam ser encaminhadas, não a partir de uma simples terapia conceitual (que poderia restringir a complexidade semântica de significados), mas, sim, por meio de um enfrentamento do sentido que compartilhamos enquanto comunidade política.[2]

Em suma, fora do texto — entendido conforme o exposto linhas acima — não há como se falar em interpretação jurídica. Se o texto é importante, isso implica, ainda, que a sua interpretação — ou a atualização de seu sentido — não pode ser aquela mais conveniente ao desejo do intérprete. Deve haver um sentido melhor — ou mais adequado — que possa ser atribuído ao texto é que possa ser compartilhado por uma comunidade de sentido.

Estou dizendo tudo isso para que possamos refletir — uma vez mais — sobre questões triviais que perpassam o cotidiano dos juristas e que se manifestam em expressões do tipo “nada mais foi feito além de se cumprir a lei”, ou ainda, “todos os atos praticamos neste processo estão amparados pela lei”. Ora, ambas as frases apontam para o resultado de um processo interpretativo que pressupõe uma mediação de sentido absolutamente complexa e que tem, como ponto de partida, textos. Daí que é importante perguntar: essas interpretações oferecem um sentido adequado para o(s) texto(s) interpretado(s)?

Gadamer dizia: “quem quiser interpretar um texto deve primeiro deixar o que o texto lhe diga algo”. Pois parece que nossos juristas têm resistindo à voz dos textos. Eles chamam e os juristas atendem apenas quando interessa. Por isso, temos um encontro de águas bem peculiar: tudo vira política e ideologia. Quando convém, os tribunais (e os juízes) apegam-se à letra da lei; no dia seguinte, também porque convém, fazem ouvidos moucos, canibalizando o próprio material que compõe o direito.

Os exemplos são incontáveis. Tanto de um lado (texto vale tudo, inclusive com justificativas como “in claris cessat...”) como de outro (texto nada vale ou é “apenas a ponta do iceberg", em que, é claro, a parte submersa do iceberg é repleta de “valores” do intérprete). Por vezes, dá-se cinco pais a uma criança; noutros, concede-se a metade da herança para a amante; usucapião em terras públicas, por que não?; onde está escrito presunção da inocência, leia-se “não-presunção”. A lei? Ora, a lei. A lei é o que eu digo que é... Por vezes, a lei diz “muito pouco” e se faz um ativismo escancarado; noutras, em atitude self restrainting, deixa-se que a lei diga mais do que a Constituição. A questão é saber: por que o cidadão deve ficar à mercê da subjetividade de juízes e membros do Ministério Público?

Textos, palavras e coisas
Portanto, repito a pergunta: “o que é isto — o texto jurídico”? Vivemos tempos em que, em vez de fazermos palavras com coisas, estamos fazendo “coisas com palavras”. Tempos de autoritarismo, em que o personagem solipsista Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, nos assombra com seu fantasma, cujo mote era: dou às palavras o sentido que quero. Por aqui, no Pindorama law-sistem, nem isso fazemos. Aqui, nem precisamos das palavras. Elas já não valem.

Como dizia o poeta português Eugênio de Castro: Que fizeste das palavras? Que conta darás? Desde a aurora da civilização nos angustiamos com a relação “palavras e coisas”. Avançamos, pelo menos no campo da filosofia: chegamos à conclusão de que nem as coisas assujeitam as pessoas e nem as pessoas assujeitam as coisas. Traduzindo em quadrinhos: nem a lei diz tudo e nem a lei diz nada. Digo isso há mais de 25 anos. Hoje, perigosamente, estamos canibalizando o nosso próprio material de trabalho. Estamos devorando o nosso ferramental. Comportamo-nos como a ascídia, que é um animal marinho que devora o próprio cérebro após fixar residência num local que lhe pareça "tranquilo e favorável". Esse local tranquilo é o senso comum teórico. Há, pois, uma nova categoria no mundo: o juris-ascidium. O suprassumo do canibal. Eis o busílis: retrocedemos à condição de “canibalismo epistêmico”.

Repetindo-me, por causa de minha LEER: palavra é pá-que-lavra. Em grego, quem dava nome às coisas era o nomoteta. Nomos é lei. Dador de nomes. Em alemão, quem dá a lei é o legislador, não por nada chamado deGesetzgeber (dador de leis=legislador). E Gesetz é “assentado”. Pois se assentamos, civilizada e intersubjetivamente, que uma palavra significa x, não pode vir qualquer um e dizer, só porque quer, que o significado é y. Por isso, onde está escrito prévia intimação, devemos ler...prévia intimação.

A lei, a Constituição e a Sereníssima República
Busco na literatura um modo de tentar metaforizar esse “estado de natureza interpretativo” que tomou conta do Direito. Para isso, convoco o nosso Flaubert, Machado de Assis, com seu conto A Sereníssima República, na qual o Cônego Vargas relata sua descoberta: “aranhas falantes, que se organizaram politicamente”. Para quem não leu Machado, conto em quadrinhos: O Cônego lhes ofereceu um sistema eleitoral a partir de sorteio, onde eram colocadas bolas com os nomes dos candidatos em sacos. Chamou o “país das aranhas” de Sereníssima República. Claro que as aranhas arrumaram modos de driblar as próprias regras do sistema. As aranhas eram versadas no law-system pindoramense.

Com efeito, o inusitado ocorreu quando da eleição de um cargo importante para o qual concorreram dois candidatos: “Nebraska contra Caneca”. Em face de problemas anteriores — grafia errada de nomes de candidatos nas bolas — a lei estabeleceu que uma comissão de cinco assistentes poderia jurar ser o nome inscrito o próprio nome do candidato. Feito o sorteio, saiu a bola com o nome de Nebraska. Ocorre que faltava ao nome a última letra. As cinco testemunhas juraram que o nome vencedor era mesmo de Nebraska. Mas Caneca, o derrotado, impugnou o resultado. Contratou um grande filólogo, que apresentou a sua tese:

“— em primeiro lugar, não é fortuita a ausência da letra “a” do nome Nebraska. Não havia carência de espaço. Logo, a falta foi intencional. E qual a intenção? A de chamar a atenção para a letra “k”, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, na mente, “k” e “ca” é a mesma coisa. Logo, quem lê o final lerá “ca”; imediatamente, volta-se ao início do nome, que é “ne”. Tem-se, assim, “cané”. Resta a sílaba do meio “bras”, cuja redução a esta outra sílaba “ca”, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso. É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas... Vocês não entenderão. E, ai está a prova: a primeira afirmação mais as silabas “ca” e as duas “Cane”, dá o nome Caneca.” 

Eis o vencedor: Caneca! Bingo! Nebraska virou Caneca. Estava na cara, pois não? E tudo feito de acordo com a lei.

O que mais posso dizer? Apenas que está na hora de pararmos com esse canibalismo. E paremos de transformar Nebraska em Caneca. Se não for por nada, que deixemos de ser canibais... pelo menos para preservar a espécie. Salvemos o que resta: a Constituição. Fora dela, é o caos. E no caos, não há direito.


[1] Desenvolvo isso amiúde, com diálogos com as teses de Fr. Müller, em Hermenêutica Jurídica e(m) crise, 11ª. Ed. (Ed. Livraria do Advogado).


[2] Sobre o que é um texto, sugiro a leitura de Ernildo Stein, no seuAproximações Sobre Hermenêutica, 2ª. Ed. Edipucrs, em especial pp.111 e segs; também o excelente Diferença e Metafísica, Edipucrs, passim.



Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.



Revista Consultor Jurídico, 10 de março de 2016, 8h00

quinta-feira, 3 de março de 2016

O pacote anticorrupção do Ministério Público e o fator Minority Report






Atuei durante 28 anos no Ministério Público do Rio Grande do Sul e sempre acreditei que, a partir da Constituição de 1988, todos os membros do MP deveriam atuar como guardiães da Constituição. Sugiro que parem a leitura e leiam o Post Scriptum 1. Sigamos. Sempre agi assim, ainda que, para o grande público, a figura do promotor — por culpa do próprio MP — seja vista como a do grande acusador, do caçador de bandidos, do justiceiro e por aí vão tantos epítetos sugestivos...

Sempre mantive uma atuação pautada pela legalidade constitucional, leitor fiel de Elias Diaz. Por assim dizer, “sou constitucionalista, mas sou limpinho”...! Nunca me posicionei como reserva moral da sociedade, mas como um agente público que deveria zelar pela aplicação da lei. Este deve ser o papel de um membro do MP em uma democracia. Em ditaduras ocorrem o inverso. Sabemos como ocorria antes de 1988. Mas será que todos sabem que estamos em novo paradigma?

Bem, parece que, em tempos de “guerra contra a corrupção”, a noção constitucional do papel do MP tem perdido cada vez mais seu significado. Procuradores e promotores justiceiros querem combater a corrupção corrompendo a Constituição. E sempre em nome de uma “boa causa”.

É nessa perspectiva que alguns agentes do Ministério Público Federal estão apresentando uma solução facilitadora para o grave problema da corrupção. Ao proporem as 10 medidas anticorrupção (ver aqui) os autoresestão jogando a criança fora junto com a água suja. Querem fragilizar direitos que foram conquistados a duras penas neste país tristemente marcado por ditaduras ao longo de sua história. Demoramos tanto tempo para conquistar uma Constituição democrática e agora estamos tomando um rumo perigoso, capaz de colocar em risco os avanços.

É sempre bom lembrar que ninguém é a favor da corrupção, salvo o corrupto. Pensando bem, nem o corrupto é a favor da corrupção — com exceção da praticada por ele, é claro. O inferno são os outros... Da mesma forma, ninguém é a favor da impunidade. Tanto a corrupção como a impunidade são verdadeiras pragas que agridem a sociedade. A grande questão é a seguinte: o que estamos dispostos a sacrificar em nome do combate à corrupção? Vamos, por exemplo, relativizar as garantias constitucionais? Abrir mão do Habeas Corpus? Fazer valer prova ilícita?

Pois bem. Já apresentei críticas em relação a tais medidas. Fazendo umaanamnese das medidas propostas, chego à conclusão que o porteiro [1] do Supremo Tribunal Federal já as declarará inconstitucionais. Mas, sigo analisando algumas das principais “bandeiras” dessa cruzada:

Flagrante forjado: na pressa, o pacote do MPF ataca a presunção de inocência. Lá se vai a criança... Em vez de apresentar provas lícitas que possam comprovar a prática de conduta ilícita de seu agente público, o Estado estará autorizado a simular situações que permitam testar a conduta do agente. Uma proposta, além de inconstitucional, patética. Funcionaria muito bem em regimes totalitários. Quero testar a conduta de um agente público e, para isso, ofereço propina para ele... O agente, sem saber que se trata de uma simples pegadinha, aceita a propina e, logo em seguida, é preso em flagrante. Por que o Brasil demorou tanto a ter essa ideia? O projeto do MPF pretende o quê com isso?

Teste de integridade: aqui entra o fator Minority Report, filme futurista em que o Estado consegue acabar com os assassinatos usando uma divisão pré-crime. Essa divisão visualiza o crime antes de ocorrer através dos precogs(pré-cognição, por óbvio). Ali, o culpado é punido antes que o crime seja praticado. Pois o pacote do MPF propõe algo parecido. Trata-se de o que chamo de "eugenia cívica". Pelo pacote, o agente público deve se submeter a testes que apontem se é propenso a cometer crimes. Como assim? Já existe tal ciência? Mais: e se o “teste” for positivo, será meio idôneo de prova, ainda que o acusado a tenha produzido contra si mesmo? E será aplicado nos concursos de juiz e procurador? E na indicação de ministros? Eles não são agentes públicos? Seria algo como o teste de fidelidade que se vê na televisão brasileira?

Chama a atenção a ressalva do MPF de que tal teste não pode ser feito de forma a representar “uma tentação desmedida, a qual poderia levar uma pessoa honesta a se corromper”. Ok. Quer dizer que quanto maior a propina melhor para o corrupto que sem dúvida vai alegar “tentação desmedida”? Ou existe uma “medida” da tentação “desmedida”? Então quer dizer que uma pessoa honesta é honesta só até certo ponto? Claro, todo mundo tem um preço! Será?

Inversão do ônus da prova: sugere o MPF o crime de “enriquecimento ilícito”, no qual o agente é culpado caso não consiga explicar o aumento de seu patrimônio. Nítida inversão do ônus da prova. Segundo o MPF, isso não seria inversão, mas “escolher a única explicação para a discrepância”, com “base na experiência”. Nessa mesma linha, é proposto o chamado “confisco alargado”, onde diante da condenação por determinados crimes a diferença entre o patrimônio existente e aquele cuja origem foi demonstrada é perdido. Trata-se, como o próprio MPF reconhece na justificativa, de uma “presunção razoável” da ilicitude (sic). Sim, vocês leram corretamente: Presunção Razoável da Ilicitude! Não sei o que é pior: condenar com base na inversão do ônus da prova ou partindo de uma presunção?

Aproveitamento de prova ilícita: O porteiro do STF terá muito trabalho. O pacote propõe o aproveitamento de provas ilícitas no artigo 157 do CPP quando estas servirem para refutar álibi, fizerem contraprova de fato inverídico deduzido pela defesa ou demonstrarem falsidade ou inidoneidade de prova por ela produzida, ou necessária para provar a inocência do réu. Algo como “álibi não provado, réu culpado”. O que chama a atenção é que a nulidade somente deve ser decretada quando servir para dissuadir os agentes do Estado, ou seja, quando servir para orientá-los a não mais violar direitos. E eu que pensei que o processo deveria servir ao réu! Quer dizer que, nesses casos, mesmo sendo produzida ilicitamente o azar seria do réu?

Extensão da prisão preventiva: o MPF quer que seja possível decretar prisão preventiva para “permitir a identificação do produto e proveito do crime” ou “assegurar sua devolução” ou “evitar utilização para fuga ou defesa”. Será que entendi? O cidadão pode ser preso como forma de pressão para que devolva o dinheiro? A prisão como forma de coação? Claro, seguem a linha da prisão para celebrar “delação”. Adverte o MPF que “não se trata de prisão por dívida”! Claro que não. Afinal, se permitem a ironia, sequer uma dívida foi constituída ainda! Sequer um julgamento ocorreu! Chamando as coisas pelo nome: É uma prisão como constrangimento, coação, simplesmente para que o acusado entregue o dinheiro.

Informante confidencial: pretende legalizar o denuncismo próprio de regimes autoritários, onde as pessoas incriminam vizinhos, colegas de trabalho, familiares, desafetos, etc., sem ter que mostrar o rosto para o denunciado (lembram de Lon Fuller – O caso dos denunciantes invejosos?). Nem é necessário gastar caracteres para criticar essa pretensão. Só o nome já se delata.

Transformação da corrupção em crime hediondo: é a ideia mágica de fazer com que a corrupção tenha uma pena mais grave do que o homicídio em casos de desvio igual ou superior a cem salários mínimos. Em vez de buscar soluções mágicas, apresentadas por seguidores do direito penal máximo que acreditam que uma simples mudança na lei — no sentido de torná-la mais rigorosa — pode mudar a realidade, não seria melhor lutar para ampliar a democratização do nosso sistema político?

O velho punitivismo nunca foi a melhor solução... Vejam a Inglaterra do século XVIII, que transformou o ato de bater carteiras em pena de morte por enforcamento. No dia dos primeiros enforcamentos — em praça pública — foi o dia em que mais carteiras furtaram. O exemplo fala por si.

Restrição de recursos e fragilização do Habeas Corpus: com um discurso preocupado com a eficiência (sic) da Justiça, o MPF propõe reduzir os recursos. Os argumentos são parecidos com os do tempo da ditadura. Em nome de uma boa causa se ataca o Estado (Democrático?) de Direito. Afinal, as alterações servirão para caçar somente os homens maus que habitam a república. E assim o MPF retoma o argumento dos militares a favor da restrição do habeas corpus: “estamos aperfeiçoando o sistema processual brasileiro”.

Ora, o Habeas Corpus já foi melhor há mais de mil anos. Sendo mais explícito: pela proposta do MPF, fica vedada a concessão do HC de ofício; em caráter liminar; quando houver supressão de instância; para se discutir nulidade, trancar investigação ou processo e, além disso, condiciona sua concessão à prévia requisição de informações ao promotor natural da instância de origem. Por que não proibir logo o Habeas Corpus?

Declaração do trânsito em julgado de ação: decretação do trânsito em julgado em casos de recursos manifestamente protelatórios. Num país marcado pela discricionariedade judicial, querem que o trânsito em julgado da ação possa ser declarado monocraticamente. Inacreditável. Não seria mais fácil propor uma PEC dizendo: o réu será amarrado com uma pedra no pescoço e jogado na água; se flutuar, estará absolvido; se afundar, culpado. Muito mais barato.

Ampliação dos prazos de prescrição: ao mesmo tempo, propõem eternizar o processo. De acordo com os procuradores, “[...] a busca da prescrição e consequente impunidade é uma estratégia de defesa paralela às teses jurídicas, implicando o abuso de expedientes protelatórios”. Assim, a polícia, o MP e o Judiciário poderão atuar sem qualquer preocupação com o tempo,pois o Estado terá todo tempo do mundo para exercer a punição. Algo “eficiente”, se não estivéssemos falando de uma democracia.

Antecipação do cumprimento de pena: bom, esse é o tema da moda. Como a proposta dos procuradores é anterior à decisão do Supremo Tribunal, parece que eles venceram essa, não? De todo modo, estamos lutando para uma virada na decisão do STF, conforme escrevi no artigo sobre a proposição de ADC.

Enriquecimento ilícito de agentes públicos: considera-se situação de enriquecimento ilícito quando houver amortização ou extinção de dívidas do servidor público por terceiro. O negócio é tão surreal que se o próprio pai paga dívida de filho servidor público endividado, pode ser processado porque é um terceiro enriquecendo ilicitamente o rebento.

Eis aí o pacote. Se a moral corrige o Direito, minha pergunta é: quem corrige a moral?

Post scriptum 1: em defesa (prévia) da coerência e integridade de meu discurso.
Antes que alguém venha de novo (nas redes sociais e nas redes internas do MP isso se tornou voz corrente) com o argumento de que Lenio Streck escreve isso porque hoje é advogado, sugiro que não se atirem de peito aberto nessa empreitada... para não quebrarem a cara. Não há diferença entre o Lenio MP e o Lenio pós-MP. Todos os meus livros seguem uma linha antidiscricionária, garantista e social. Mesmo em questões, digamos assim, mais conservadoras, sempre a Constituição esteve presente (por exemplo, na questão de a CF conter mandados de criminalização). Alguns pontos que mostram L=L: na revisão constitucional de 1993, defesa intransigente de uma revisão restrita (escrevi um livro sobre isso); propus durante anos a proibição do uso de antecedentes no plenário do júri (e assim agi), porque o direito penal é do fato e não do autor; rejeição do in dubio pro societate, por não ser um princípio; combate ao moralismo; fui um dos primeiros a introduzir Ferrajoli explicitamente no processo criminal; defendi sempre a secularização do Direito; mais: o garantismo explicitado no livro sobreInterceptações Telefônicas e no livro sobre o Júri; e em Criminologia e Feminismo, escrito com Alessandro Barata; e em Hermenêutica em Crise(com 15 edições e tiragens), etc. Fiz a primeira arguição de inconstitucionalidade difusa em outubro de 1988 para afastar o processo judicialiforme; primeiro a sustentar que a lei da sonegação fiscal devia ser usada a favor de quem comete crime de furto (isso em 1990), tese acatada no TJ-RS; pena abaixo do mínimo — uma das teses que ajudei a sustentar junto com a 5ª Câmara; sustentei a tese de que a majorante do roubo por concurso de pessoas (1/3) devia ser usada a favor dos réus em crime de furto qualificado; sustentei, pioneiramente, a inconstitucionalidade da reincidência (acórdão do desembargador Amilton); como procurador, em mais de 80% dos processos em que oficiei, sustentei teses garantistas, a maioria vitoriosas a favor dos acusados (não que isso fosse bom ou ruim, mas porque era de lei); presente, em todos os pareceres, a filtragem hermenêutico-constitucional; as seis hipóteses de minha teoria da decisão foram criadas ainda como procurador; propus que o MP levasse ao PGR a feitura de uma ADC no caso da progressão de regime, para evitar que apenas alguns réus recebessem o benefício da progressão nos crimes hediondos; aliás, sempre defendi a progressão; quando nem a OAB se dera conta, sustentei, em comandita com a 5ª Câmara do TJ-RS, que todos as ações penais em que o interrogatório fora feito sem a presença de advogado eram... nulos (na época, o STJ anulava as nossas anulações sob o argumento de que CPP não exigia isso — quer dizer, obedecia-se o CPP e não a CF!); fui pioneiro em criticar o pamprincipiologismo... Posso fazer uma lista que levaria algumas páginas. Meus companheiros de 5ª Câmara criminal do TJ-RS (Amilton, Aramis, Genaceia e Gonzaga Moura podem falar sobre isso). Portanto, quem quiser entrar nessa seara de falácia ad hominem, chegará tarde. Para registro, minha defesa do poder investigatório do MP está em textos e livros... da década de 90 e, interessante, como advogado, continuei a defender essa tese. Sem esquecer as orientações de mestrado e doutorado sobre a defesa ortodoxa da CF, com dois prêmios Capes na algibeira.

Post scriptum 2: A relativização dos princípios e da Constituição
Fico muito preocupado com discursos nas redes sociais apoiando teses tipo “relativização dos princípios constitucionais” em nome da segurança pública e do combate à impunidade. Já se fala até do uso da tortura. Diz-se até que o único princípio intocável é o de não ser escravizado. Tudo para sustentarem que o STF acertou na decisão da presunção da inocência. Se os ministros do STF lerem e verem o que está nas redes sociais, mudarão seu voto, porque ficarão assustados com os “apoios”.

O que quero dizer é que estou muito preocupado com o rumo que o Direito está tendo no país. Estamos esticando demais a corda. O moralismo pode nos arrastar para o abismo, rompendo o pacto da modernidade.

Por isso, meu brado: Acorda, comunidade jurídica. Não “a corda” (para enforcar alguém), mas “acorda”!


1 Escrevi em um jornal que até o porteiro... e recebi críticas, porque estaria menosprezando o porteiro. Incrível como tem gente que, em nome da linguagem PC, acha “pelo em ovo”. 



Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.



Revista Consultor Jurídico, 3 de março de 2016, 8h00

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