sexta-feira, 13 de maio de 2016

Livre convencimento no novo CPP: mas, já não apanha(ra)m o suficiente?




Por Lenio Luiz Streck


E vem aí o NCPP: Novo Código de Processo Penal.

Todos sabem que fui um crítico contundente ao projeto do novo Código de Processo Civil. Conseguimos algumas alterações e avanços, como a expunção do livre convencimento (artigo 371), a obrigação de a jurisprudência ser íntegra e coerente (artigo 926), além do dever de fundamentação previsto no artigo 489, sem contar a proibição de decisões surpresa (artigo 10). Minha preocupação: democracia e equanimidade nas decisões.

Pois agora estamos em face de uma nova luta. É o novo Código de Processo Penal que está em gestação. Estava parado e provavelmente as contingências o tenham tirado da gaveta. Não importam as razões. Estamos com o problema à vista.

Já enviei algumas sugestões ao projeto. Saibam os leitores que no campo do processo penal, portanto, no sagrado terreno das liberdades, o projeto, no seu artigo 168, foi aprovado (até agora) por uma comissão de juristas, mantendo, entre outros autoritarismos, o poder de livre apreciação da prova ou livre convencimento. Pois é. Inacreditável. Justificativa “genial”: a livre apreciação se dá porque está superada a prova tarifada. Ah, bom. E o livre convencimento? “Ele é motivado.” Ah, bom, digo novamente. Agora vai. Se ele é motivado, então tá. Falei disso na coluna passada (ler aqui). Parece até que estamos diante de meros truísmos, como se fossem decorrências necessárias. Sinto dizer, e aqui homenageio meus colegas analíticos, mas desta argumentação non sequitur.

Essa linha de defesa do livre convencimento ou livre apreciação vem na mesmíssima seara (de alguns) dos processualistas civis que continuam a dizer que, mesmo que o texto do NCPC tenha expungido o “livre convencimento”, isso nada quer dizer. Alega-se que o artigo 489, parágrafo 1º, CPC/2015, trata apenas do elemento chamado “motivação” e não da “liberdade na valoração da prova”. O que isto quer dizer? Simples: eles estão apenas repetindo uma velha e surrada cisão entre fato e Direito e entre interpretação e aplicação. Rios de tinta já foram gastos para demonstrar que isso é absolutamente equivocado. Gente como Müller, Castanheira Neves, Ovidio Baptista já colocaram uma pá-de-cal nessa falsa dicotomia. Mas, não adianta. Por aqui, o que vale é o velho subjetivismo. O velho solipsismo.[1] Ora, o que é esse subjetivismo – retrógrado e antidemocrático – senão aquilo que exatamente sustenta a cisão entre interpretação e aplicação? A mágica estaria no seguinte: uma coisa é interpretar a lei; outra seria valorar a prova. Mais ou menos o seguinte: para interpretar o que leio em um livro uso determinados parâmetros; para saber se devo desviar de uma pedra ou não, utilizo outros componentes “cognitivos”. Se isso fosse possível, quem defende isso seria comido pela primeira onça que encontrasse, porque primeiro “interpretaria” e depois “aplicaria”. Nesse ínterim, seria devorado.

Como diz Eros Grau, fulcrado em Müller: “o intérprete interpreta também o caso, necessariamente, além dos textos, ao empreender a produção prática do direito”. Ou seja, a filosofia enterra, com bem diz Guilherme Vale (ver aqui) essa espécie de cisão canônica entre a faticidade (prova) e o Direito (norma): “A compreensão não ocorre assim, mesmo que um juiz eventualmente ponha em sua decisão que ‘agora estou apenas valorando a prova; a partir daí, passarei a interpretar o Direito’. Aliás, sejamos claros: valorar a prova nada mais pode significar do que interpretar”.

Lamentavelmente, parece que parcela dos processualistas pouco apreendeu em termos de paradigmas filosóficos e naquilo que se entende por cognitivismo e não cognitivismo (podemos falar até de meta-ética, aqui) ou o nome que se queira dar ao modo como compreendemos os fenômenos.

Retornando ao projeto do CPP, entre outras sugestões, obviamente está a de retirar a palavra “livre” do artigo 168 do projeto. O CPC já não o tem. De todo modo, parece inconcebível que, no processo civil, haja um dever de accountabillity maior que no processo penal, que trata das liberdades. É um contrassenso que, para decidir o sentido de uma lide civil, o juiz não possua livre convencimento, e, para decidir um Habeas Corpus, sim. Por isso, para que os códigos tenham coerência, também aqui necessitamos intervir filosoficamente. Ademais, esta exigência provém da própria democracia. O Estado-juiz deve tratar a todos de modo equânime, e isto, em todos os ramos do Direito.

Para tanto as regras do jogo precisam estar expostas antes do jogo, devendo haver limitações/impedimentos a mudanças repentinas, ou movimentos/ações que obscurecem os sentidos para um resultado final que poderíamos dizer que seja constitucionalmente adequado. Por isso, a adjetivação “livre”, seja do convencimento ou da apreciação das provas, deve ser extraída do ordenamento. O Direito em ambientes democráticos demanda uma justificação pública que não se coaduna com estes exames particularistas/solipsistas. Sendo bem explícito, resumo assim a minha tese:

Que processualistas-juízes sustentem o livre convencimento é até possível de entender; afinal, neste Pindorama estamental e autoritário, pode ser “normal” cada um defender seu feudo e interpretar as leis como bem querem; mas o que é incompreensível é que não-juízes o façam. E continuem sofrendo no lombo todos os dias o chicote do livre convencimento e da livre apreciação. Trata-se de um autêntico “látego epistêmico” que lanha as costas do utente e dos advogados. Por isso se diz que “do couro saem as correias”.

O processo penal está atrasado no tempo. É um osso de megatério filosófico, porque admite até hoje a verdade real, outra coisa ridícula que faz com que filósofos façam troça dos juristas. Filósofos riem dos juristas quando estes falam da verdade real. Nós, os juristas, não nos damos o devido respeito. Convivemos com livros simplificadores, mastigadinhos, que conformam um novo paradigma: a nesciontologia. Há livros de processo penal que dizem que o juiz, a partir de sua consciência[2], busca a verdade real (sic). Genial, não? Prêmio Nobel. Bingo. Como explicar essa mixagem que vai do nada ao lugar nenhum? Vivemos uma tempestade perfeita.

Por isso, a hora é de mudar. Não esqueçamos a surra que a dogmática jurídico-processual levou no julgamento do mensalão. E as agruras dos advogados nas lides cotidianas... Ora, há coisas acacianas que deveriam fazer com que os juristas se dessem conta do perigo que é dar um tiro no pé ao desdenhar da importância da filosofia. Quando falamos em livre convencimento ou livre apreciação da prova inegavelmente estamos tratando do paradigma filosófico instituidor da modernidade. O sujeito da modernidade é uma descoberta de Descartes. Aquilo que se mostrava nos sofistas ou no nominalismo ainda não era “o sujeito”. Ainda na modernidade, Kant mostra a impossibilidade da apreensão da coisa em si, isto é, o que precisamos para compreender algo não vem da coisa (em si), mas da autonomia do sujeito, liberto do “mito do dado”, por assim dizer. O contraponto foi o voluntarismo que tomou conta inclusive das correntes “críticas” do Direito. O que se diz sobre “a verdade”[3] é fruto de tudo isso: da metafísica clássica, da filosofia moderna e das teses e teorias que buscaram ultrapassar aquilo que superou o objetivismo (realismo) pré-moderno. É nesse caldo de cultura que nos movemos, queiramos ou não.

Afinal, quando tratamos de “provas no processo penal ou civil”, estamos tratando das condições de possibilidade de dar sentido a um determinado fenômeno. Pois não é que o Tribunal do Júri admite a íntima convicção? Fantástico. O indivíduo é condenado por uma maioria que entende, no seu íntimo, que ele é culpado. Íntima convicção, que no fundo é igual a livre convencimento. E mais não precisa ser dito. Já sugeri, há anos, que se alterasse isso.

Numa palavra. Vi que tem gente defendendo a ideia de que o livre convencimento seria necessário para o melhor direito, supondo uma “discricionariedade racionalizada” a meio caminho da íntima convicção e as provas tarifadas. Contra isso, afirmo: esse tipo de defesa só teria sentido se o Direito estivesse separado da filosofia. Só quem pensa o Direito fora dos paradigmas é que pode dizer que o livre convencimento é necessário, ignorando dois linguistic turns e toda a intersubjetividade que mudou a história do pensamento. Claro – e aqui vai uma ironia – o livre convencimento é necessário se o direito é visto como uma racionalidade instrumental. Ele é tão necessário (outra ironia) quanto a ponderação “à brasileira”, essa katchanga real que talvez tenha sido a maior fraude jurídica já manejada pelos juristas (e que está no parágrafo 2º do artigo 489 do CPC: já me ofereci para a Ordem dos Advogados do Brasil para elaborar a inicial de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para expungir essa verruga epistêmica do Código). A presidente da República (clique aqui para ler coluna “Veta Dilma”) não quis vetar: deve ter sido “bem instruída” por sua equipe de assessoramento jurídico. Bom, isso apenas demonstra o cuidado com que o governo tratou o Direito nestes 14 anos. Repito: o Brasil é incrível. Por aqui ainda tem gente que acha que o Direito é apenas uma superestrutura. Ou uma mera racionalidade instrumental. O que dá no mesmo.

Mas, por outro lado, se o Direito tem um papel de garantir a democracia – como deve ser sob o Estado Democrático – discricionariedade é igual a arbítrio. Chega a ser cansativo ter de explicar que um juiz sem livre convencimento (motivado que seja), não é um juiz do século XIX, o velho boca-da-lei. Definitivamente, expungir o livre convencimento dos códigos não equivale à proibição de interpretar. Não se reproduz sentido nem se o atribui livremente. Lembremos de Gadamer: antes de dizer algo sobre o texto, deve-se deixar que o texto diga algo. Também Müller, Habermas e Dworkin são testemunhas de que nem de longe o mundo é tão simples quanto a divisão entre exegese e não-exegese, ou realismo e não-realismo. Falta só aparecer alguém para dizer que onde está escrito “coerência e integridade” no artigo 926 do CPC, deve-se ler apenas “estabilidade”. Não me surpreenderia.

Nesse sentido, tenho referido de há muito, ironicamente, que “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa no Direito”. Veja-se que os franceses, para garantir o produto do legislador, tiveram que institucionalizar uma rígida exegese. Mas isso foi no século XIX. Não creio que em plena democracia e na vigência do paradigma do Estado Democrático de Direito, seja necessário, para garantir uma legalidade mínima, seja necessário voltar a ter esse tipo de “amarração”. Vivemos hoje no paradigma da intersubjetividade. Logo, não há lugar nem para o “dono da lei”, nem para o “escravo da lei”. Ou há? Alunos de todo Brasil (nada – mais – tendes a perder): perguntem isso aos seus professores, principalmente para esse que fica dizendo que princípios são valores. Cobrem dele. Ponham-no contra a parede. E perguntem também por que o Brasil já é refém de um positivismo jurisprudencialista, fruto exatamente dessa algaravia que se transformou a teoria e a aplicação do direito. Se ele disser: “Isso só pode ser coisa de Lenio Streck”, não se zanguem com ele. Apenas continuem insistindo. Digam que ele pode responder a vocês na semana seguinte, dando a ele tempo para estudar isso.

Penso que mais não precisa ser dito, nos limites desta coluna. Voltarei ao assunto, por óbvio. Também aproveito para falar de outra sugestão de extrema relevância, que é a introdução, nos moldes em que ficou a redação do artigo 926 do CPC, da obrigatoriedade de a jurisprudência ser estável, integra e coerente no CPP. Estabilidade é autoexplicativa. Coerência evita decisões fora da curva, ressalvadas, obviamente, as situações excepcionais em que a própria faticidade aponte para a inauguração de novas cadeias jurisprudenciais, sendo sempre mantida a integridade. Por isso afirmo que não basta ser coerente, porque é possível ser coerente no erro. Para isso a necessidade de se exigir a integridade. Essa vem da lei e da Constituição. Fecha-se o círculo. É o mínimo para que tenhamos um CPP democrático. Outras sugestões tratarei em outra coluna.

Que aproveitemos as agruras, do solipsismos e as decisões tipo “ponto fora da curva” para construirmos barreiras contra o subjetivismo. Democracia não rima com discricionarismo e com subjetivismo. E com livre convencimento, tampouco com a livre apreciação da prova...

E não adianta se irritarem. Vou continuar batendo nisso. E para quem acha que isso que eu acabei de dizer é abstração e coisa sem importância e desnecessária, invoco a máxima do filósofo Avicena:


“Um sábio sabe a diferença entre o que é necessário e o que não é necessário; um néscio, não; então, bata-se nele até que ele diga em alto e bom som que ‘isso não é necessário’. Pronto: agora ele sabe a diferença”!

Tenho a certeza que os leitores são sábios. E sabem a diferença.

Post Scriptum: Uats ap: juiz atirou em um “lagarto” com um canhão e...errou!

Por falar em livre convencimento – eis um bom exemplo: o juiz de Lagarto (SE) está livremente convencido... Pois é. Fico pensando se podemos caçar um lagarto, ou uma lagartixa, com uma arma de destruição em massa. Mesmo dizendo “livremente que sim” (sic), diríamos, acredito, que não deveríamos, porque o meio é desproporcional – os alexyanos entendem bem disso, nos vários sentidos. O problema maior são efeitos demasiadamente gravosos para quem nada tem com a situação. Caros leitores, crédulos e incrédulos: a suspensão do WhatsApp é representativa deste estado da arte. O “Eu” juiz posso determinar que uma ferramenta já incorporada no dia a dia de parcela significativa dos brasileiros, incluindo instituições públicas, seja suspensa devido ao não fornecimento de informações que ainda não se sabe tecnicamente se é exequível. Não importa se milhares e milhares de pessoas serão (indevidamente) prejudicadas. Não importa se minha decisão não tem respaldo jurídico. Pergunto: Onde está a responsabilidade política? A accountability? Ah! Antes que eu me esqueça. Todo este desgaste pode ter sido em vão – e mesmo que tenha êxito nesta situação continua sendo injustificável, mesmo com a previsão no Marco Civil –, assim o lagarto permanece vivo. Sugiro, em tempos como os nossos, que reflitamos seriamente sobre os limites dessa nossa “liberdade” (de consciência), caso contrário a juristocracia se tornará a esperança política de muitos, se já não é.



[1] Aqui cai como uma luva a lição de Ramón Rodrigues, o germanófilo filósofo espanhol por quem tenho imenso carinho e respeito, em palestra proferida anos atrás: a crítica do sujeito metafísico da modernidade exercida durante todo o século XX tem um sentido inequívoco: desalojá-lo de seu lugar transcendental e “desposeerlo” (entfernen Sie sie aus dem Besitz) de seu papel de instância constituinte do mundo em que vive e do fundamento de sua própria legalidade. Bingo, professor Ramon.


[2] Estamos atrasados em relação às ordenações filipinas, precisamente a parte constante do Livro III, Título LXVI ao tratar das sentenças definitivas. Já há, aqui, uma passagem interessante, que é a que diz [o juiz] tem que proferir “... a sentença ‘definitiva’, segundo o que achar ‘alegado’ e comprovado de ‘uma’ parte e da outra, ainda que lhe a consciência ‘dite’ outra ‘coisa’, e ‘ele’ saiba a verdade ser em contrário do que no feito ‘for’ provado; porque somente ao Príncipe, que não reconhece superior, ‘é’ outorgado ‘por’ Direito, que julgue segundo sua consciência”. Naqueles dias...


[3] Talvez o texto mais profundo dos últimos tempos esteja em Puntel, Lorenz. . Wahrheitstheorien in der neueren Philosophie. Eine kritisch-systematische Darstellung. Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt 1978; Auflage 1993; Grundlagen einer Theorie der Wahrheit. W. de Gruyter, Berlin/New York 1990. Por aqui, os livros de Ernildo Stein e tantos outros filósofos que desmistificam as concepções voluntaristas acerca da verdade.

Lenio Luiz Streck é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

Revista Consultor Jurídico, 5 de maio de 2016, 8h00

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