Por Lenio Luiz Streck
Uma das séries mais famosas do mundo é House of Cards. Já alerto para spoilers. Por sinal, há discussões éticas cada vez profundas e acaloradas sobre o que se pode ou não ser contado de séries e filmes para quem ainda não os assistiu; teoria da decisão jurídica é que é bobagem! Imagina, querer dar sentido a uma coisa dessas — a decisão... Mas vamos à série e à teoria. A cena é: o presidente dos EUA leva um tiro. Precisa transplante de fígado. No hospital, o médico diz que ele é o terceiro da fila. Mesmo que seja o presidente dos EUA, a fila não pode ser ignorada. Nada de furar a fila. O médico diz: It’s the law. É a lei. Fiquei pensando: correto o médico. Foi uma resposta não consequencialista. Decisão por princípio (para quem ficou preocupado com a saúde do presidente dos "Isteites", novo spoiler: ele se salva). Não é só pela “letra da lei” que se recusa. É que há um princípio que enuncia essa regra da “fila”. E outro pelo qual uma vida é uma vida. E mais um que diz que todos são iguais perante “a fila”, se me permitem estender um pouco e deixar isso mais claro.
Quero apenas usar isso para falar sobre o valor da lei. A modernidade somente surgiu com a interdição proporcionada pela lei. Entre civilização e barbárie, optamos pela primeira. O custo disso é obedecermos à lei. A lei passa a ser um princípio. O princípio de que se obedeça a lei. Uma sociedade sem princípios é anarché (anarquia).
A Constituição passou a ser a lei das leis. Ela constitui tudo o que existe em termos de direito. Há uma metáfora — que circula há anos — interessante para explicar o valor da Constituição. Ulisses, voltando de Ítaca, pede para seus marinheiros que o amarrem no mastro do navio. E lhes ordena que, sob hipótese alguma obedeçam qualquer gesto seu no sentido de que o soltem. Só devem obedecer à primeira ordem: “amarrem-me ao mastro”. A sobrevivência de Ulisses reside no cumprimento da primeira ordem. Porque Ulisses sabe que, caso contrário, morrerá. E por quê? Porque ele não resistirá ao canto das sereias. As maiorias são como as sereias. Tem um canto sedutor. Quem não se proteger, pode sucumbir. Ulisses se salvou porque ficou amarrado às correntes.
Essas correntes são a segurança de Ulisses. A Constituição é como as correntes. A Constituição sustenta as leis. Isso quer dizer que uma lei para não ser aplicada deve ser declarada inconstitucional. Ou se faz uma interpretação conforme a Constituição. Ou uma declaração de nulidade parcial sem redução de texto. Ou uma nulidade parcial com redução de texto. Ou um modo de resolver o problema com a aplicação dos critérios das antinomias. Ou, ainda, na contraposição regra-princípio, nos moldes explicitados em Verdade e Consenso. Fora disso, estamos saindo do terreno da democracia e entrando no decisionismo e seus congêneres.
Eis, portanto, um modo de verificar em que momento não há saída para o judiciário: aplicar a lei ou atuar fora da lei e alheio ao direito. Por exemplo, proferir uma decisão fundada na...excepcionalidade.
Poderia falar da ADI que a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) ingressou contra o Tribunal Superior do Trabalho (leraqui) contra a Resolução 39 que estabelece o que deve ser cumprido do novo Código de Processo Civil. Interessante é que a Anamatra, em vez de fazer uma campanha para que os juízes apliquem o CPC, insurge-se contra o TST naquilo que ele — embora com algumas omissões — estabelece, de forma alvissareira, como obrigação a ser cumprida pelos magistrados do trabalho. Tive a ocasião em dizer para os magistrados do trabalho de Santa Catarina que a Resolução do TST era muito interessante, porque simbolicamente representava um avanço. Por outro lado, é lamentável ser necessário fazer uma Resolução para que alguém cumpra aquilo que já está estabelecido em uma lei federal, pois não?
Poderia também falar das insurgências contra a aplicação do artigo 10 na sua integralidade e substancialidade. Ou do artigo 489, parágrafo primeiro, que alguns tribunais insistem em não cumprir. Ou não dar bola. Na coluna passada falei disso. O plano é muito simples: devagarinho, o judiciário “naturaliza” o não cumprimento. Depois os advogados se acostumam. Já nem sentem o látego. A naturalização é um fenômeno que faz com que, mais tarde, alguém diga: mas isso sempre foi assim.
Vou trazer alguns dados e elementos que mereceriam uma CPI Epistêmica. Fosse em um país civilizado, isso geraria um escândalo. Realizei a pesquisa em alguns tribunais. Pesquisei o termo "livre convencimento", deixando de fora o 'motivado' que aparecem em ementas. Claque, ao lado desses descumprimentos, há também a não aplicação dos incisos do parágrafo primeiro do artigo 489. As notícias não são animadoras. Da data de 18 de março até 4 de maio — TJ-SP - 114 menções em ementas de processo civil ou trabalhista de sua competência; TJ-RJ – 264 (de todo o período de 2016 — não há como fatiar por meses); TJ-MG - 20 menções ao livre convencimento; TRF-4 - 44 menções e, por fim, e por fim, o TJ-RS com 483 registros em ementas na seção cível do TJ-RS (incluindo turmas recursais). Ressalto que incluí as turmas recursais. Nos demais, os números podem ser menores por não incluir as turmas recursais. Atenção: também estão presentes em vários desses julgados violações a outros dispositivos do novo CPC.
Cito algumas passagens que mostram o que estou dizendo. Trago à baila alguns trechos das decisões, sem fulanizar os relatores ou os demais votantes (decisões entre a entrada em vigor do CPC e a data de 4 de maio):
Preliminar de nulidade da sentença rejeitada. (...) Matéria de direito que dispensa a produção de prova pericial. Ademais, o juiz é o destinatário da prova, incumbindo a ele decidir acerca da necessidade e utilidade da prova para a formação do seu livre convencimento motivado (...).
Ao contrário do defendido pelo autor no recurso, a prova dos autos foi objeto de minudente análise por parte do Juízo de Origem, o qual, em nome do princípio do livre convencimento motivado, externou o entendimento de que não houve prova do direito alegado pelo autor, ônus que lhe incumbia (artigo 373, I, do novo CPC).
Contradição e omissão na valoração da prova. A prova testemunhal foi valorada segundo a apreciação da Relatora, que expôs os motivos do seu convencimento, cumprindo a regra do artigo 489, § 1º, da novel legislação processual. Ademais, persiste, no novo diploma, o princípio da livre valoração da prova pelo julgador, desde que motivadamente, como se confere do artigo 371 do novo Código de Processo Civil: O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
Ainda: Embargos de declaração — Inexistência de omissão e contradição — Livre convencimento motivado do magistrado — Não há necessidade de se abordarem todos os argumentos apresentados pelas partes, desde que o julgado esteja devidamente fundamentado. Quantas violações há aqui?
E vejamos este julgamento do dia 4 de maio de 2016? “Faculdade atribuída ao magistrado, prendendo-se ao seu prudente arbítrio e livre convencimento, dependendo a concessão de prova inequívoca e convencimento da verossimilhança da alegação e dos requisitos legais”.
Julgamento de 27 de abril de 2016: “O julgador não é obrigado a exaurir todas as questões propostas, mas a dizer o direito (pretensão e resistência), conforme livre convencimento motivado, o que enseja concluir na aplicação de uma ou mais proposições, sem obrigação de exaurir todas, em razão do limite técnico do convencimento formado”.
E, quem sabe, este? É firme o entendimento desta Corte no sentido de que, sendo o juiz o destinatário da prova, cabe a ele, com base em seu livre convencimento, avaliar a necessidade desta, podendo determinar a sua produção até mesmo de ofício.... (julgado em 4 de maio de 2016).
Como canja, eis o que vem da primeira instância de Belo Horizonte, só que do processo penal. Um juiz tem “o costume” de marcar Audiência de Instrução e Julgamento antes de que a defesa apresente a resposta à acusação. Diz-se, por lá, que isso é praxe na “Vara do juiz”. Vamos ganhar o Nobel. Vamos para Estocolmo. Mas, então, para que (for what) serve a resposta à acusação e, no fim das contas, o advogado? O juiz irá acolher eventual tese de absolvição sumária ou de rejeição da denúncia e cancelar audiência já marcada? Mais um item para a CPI epistêmica do processo em Pindorama. Faço desta coluna a tribuna dos humilhados.
Precisa ser dito mais alguma coisa? Talvez apenas repisar uma citação da coluna passada. A das Ordenações Filipinas, que diz que [o juiz] tem que proferir
“... a sentença ‘definitiva’, segundo o que achar ‘alegado’ e comprovado de ‘uma’ parte e da outra, ainda que lhe a consciência ‘dite’ outra ‘coisa’, e ‘ele’ saiba a verdade ser em contrário do que no feito ‘for’ provado; porque somente ao Príncipe, que não reconhece superior, ‘é’ outorgado ‘por’ Direito, que julgue segundo sua consciência”.
And I rest my case. It’s the law, diria o médico americano.
Aqui, perguntamos: Is it the law?
Resposta: For what?
Post scriptum: a coluna foi fechada antes da decisão do STF sobre a ação do governo para suspender o impeachment.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2016, 8h00
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