Abstract: Esta Coluna tem um caráter simbólico. Mostra o problema da ética em sala de aula. Mostra a falta de ética. Sala de aula é um palco “sagrado”: lugar do conhecimento. Da ciência. E não da aleivosia. Ou da fanfarronice.
Nas histórias de faroeste, o pistoleiro experiente sempre tinha um problema novo a cada cidade: um pistoleiro novato fazendo provocação. O novato nada tinha a perder, a não ser a vida ou um dos dedos da mão com que empunhava a arma. Alguns pistoleiros não atiravam para matar. Desarmavam o oponente. A tiros. E lá se ia o velho pistoleiro mudando de cidade, chegando sem alarde, chapéu nos olhos. Oitavado no balcão, rezava para que nenhum provocador aparecesse.
Sinto-me como esse velho pistoleiro. Depois de anos, sempre aparecem novatos para medir forças. O truque mais usado é a ofensa em sala de aula. Recebo muitas notícias com relatos. Até brinco, dizendo: Claro, falar pelas costas é que é bom; pela frente é falta de educação...! Pois hoje vou falar de um fato desse jaez. Não citarei o nome do neopistoleiro, por razões óbvias. A questão exsurgente é: o que há aí não é uma quebra da ética de uma classe, ou uma ofensa ao "espírito de corpo". Não é que o sujeito não possa ofender um "colega professor". Quero dizer é que é uma irresponsabilidade chamar qualquer pessoa, quanto mais um pensador, de "idiota", em plena sala de aula. Por exemplo: um ministro do Supremo Tribunal Federal pode ter dado uma decisão boçal; a minha liberdade de cátedra me autoriza a apontar o equívoco, amparado em minha opinião; mas dizer que "o ministro do STF é um idiota" é apenas um mau exercício da docência.
Pois recebi uma gravação feita em sala de aula. O professor chama a mim e Alexy de idiotas. E, como verão na sequência, sua metralhadora vai mais longe. Alguns de meus amigos mais próximos tentaram me desencorajar de levar a coisa adiante. Ajuizar alguma ação? Nem pensar. Mesmo a publicação de um texto relatando o "causo" foi tida como desnecessária, excessiva ou contraproducente. Conseguiram me convencer com relação ao ajuizamento de medidas (o Poder Judiciário, o Ministério Público e eu temos, certamente, mais o que fazer), mas não resisti a escrever uma coluna. Aliás, avisei ao ofensor que o faria. E não é por mim, não, que o faço. É que me sinto do dever de denunciar, mais uma vez, o estado da arte. O caso é, em si, insignificante; mas vale dar-lhe alguma publicidade, creio, pelo que simboliza — no conteúdo e na forma. Ofereço, com este texto, meu ombro àqueles que já passaram por isto, colegas professores e mesmo alunos.
Por isso, resolvi contar o fato sem dizer o nome do (neo)pistoleiro. Apenas para que muitos professores que assim procedem saibam que sempre ficamos sabendo do que ocorre. Hoje não há mais segredos. Portanto, muito cuidado com o que se fala.
O aludido professor é de uma universidade pública. Possui graduação, mestrado e doutorado feitos em universidade pública. Estes últimos com bolsa. Não publicou nem a dissertação, nem a tese. Até hoje, um artigo (meus alunos de iniciação científica têm mais publicações que ele). Leciona na graduação. Sua universidade não tem pós-stricto sensu. Acha-se no direito de ofender a mim, a Alexy e a Dworkin (afora outros). E diz mais coisas. Depois de lerem parte do diálogo — verdadeiro (tenho o print arquivado) — constatarão também porque o direito brasileiro vai mal, porque os concursos de universidades devem ser melhorados e porque um cidadão como eu não confia na Justiça, receoso de não ter guarida na busca da ofensa a sua honra, ao seu currículo e de seu substrato moral.
Ao trabalho, pois. Depois de ouvir a gravação, mandei mensagem por Facebook ao professor, dizendo que dela dispunha e na qual me ofendera. Respondeu: “— Na minha sala, exerço a liberdade de cátedra do artigo 206, II da CF. Espero que a gravação a que teve acesso tenha sido contextualizada”. Respondi-lhe, delicadamente: “— Quer ouvir o que você disse? Para acreditar nos seus próprios ouvidos?”. Ele respondeu: “— Não chamei somente você de idiota. Chamo a Alexy de idiota”. E disse mais: “— Dei essa aula hoje. Lembro-me dela com exatidão. Caso tenha recebido a gravação completa, não há o que explicar”.
Mas, sigamos com o mestre dos mestres, nosso Einstein da academia. Perguntei: “Mantém as ofensas”? Resposta: “Não são ofensas. Só se ofende quem se conhece. Não há motivo para lhe ofender. Não o conheço. Não me conhece. Não há nexo interpessoal nessa fala de aula. Aliás, falei nessa aula que Lombroso é um idiota. Que Alexy é um idiota. No puro sentido de Aulete. Daquele que diz tolices. Não é uma nota pessoal. É uma nota aos ditos que na minha liberdade de pensamento e de cátedra reputo idiotas”.
Na sequência, delicadamente lhe falei que era necessário respeitar a obra dos outros. Respondeu que “— Não sou de respeitar currículos. Respeito ideias ou delas divirjo. Acho essas divagações teóricas idiotices para resolver problemas práticos como o que explicava”. E complementou, enfático: “Doutrina não serve para nada. E se perde um tempo enorme nessas divagações (...)".
Perguntei-lhe, dando-lhe mais uma chance: “— Quantos livros você já publicou”? Resposta: “Livros são inúteis. Não são lidos. Quando lidos, não raro, não são compreendidos. Defendi uma tese contra essa cultura livresca”.
O professor acrescentou, então, que a aprendizagem não nasce dos livros. Nasce da vivência, verbis: “ Alexy nunca lidou com Direito. Nunca foi citado no tribunal alemão. Conhece livros. Não conhece o Direito em sua fenomenia [sic]. No tempo em que vivi na Alemanha, os constitucionalistas de Berlin não o conheciam”.
Estupefacto, perguntei-lhe quais os autores que usava em sua cadeira de Direito Constitucional e ele respondeu: “— Não uso nenhum. Uso a legislação e a jurisprudência. Como se fosse aulas germânicas de graduação. Aqui deveria ter um exame estatal como na Alemanha. Aí queria ver aluno perder tempo com idiotices doutrinárias”. Ups.
A discussão ainda seguiu. Os leitores podem ser poupados do restante. A última coisa que lhe disse foi que faria uma coluna sobre isso.
Quase ia esquecendo: Além da ofensa mais forte, o jovem pistoleiro ainda resolveu espicaçar (está também na gravação que recebi — ali está mais dura ainda a aleivosia) o lugar em que fiz graduação, a Unisc, de Santa Cruz do Sul. Cobrei isso dele também e me respondeu: “— Disse [na sala de aula hoje] que [o senhor] não passou no vestibular de uma universidade decente. Seu lattes informa que sua formação é na Unisc. E quem [se] forma na Unisc, minha opinião, no meu pensamento, posso estar equivocado, não tem formação adequada. É minha opinião sobre a formação da Unisc”. Ele disse isso na frente de todos os seus alunos...!
Bom, meus queridos amigos da Unisc de Santa Cruz (metade da pós fez doutorado comigo na Unisinos) não vão gostar nada disso. Vão convidá-lo para a próxima Oktoberfest. Será homenageado. Será o Fritz da festa... Pois o professor-da-federal-que-se-acha e pensa que pode chamar seus colegas professores de idiotas, tem convicção de que a Unisc é ruim. Ela não proporciona formação decente, ele diz, convicto. Fico pensando: A dele, a que ele está concursado, deve formar os melhores, por certo. Não disse isso a ele, mas digo agora: o neopistoleiro esqueceu que a Unisc é Capes 5 e a universidade dele é... bem, ao que sei, nem mestrado tem. Que pena, não? Azar o meu... que fui estudar “naquela faculdade” e fiquei sem formação, deduz-se da afirmação de nosso comanchero. Devo ser azarado. Pobre e estudar em faculdade “não decente” (sic). Deve ser por isso que passei no concurso para promotor sem fazer cursinho, ganhei um prêmio Jabuti (Comentários a Constituição do Brasil) e mais uma nominação (Jabuti) entre as dez obras mais importantes (Compreender Direito II), um Prêmio Açorianos, três prêmios Capes por orientação de tese... paro por aqui. Como se diz, Jabuti não nasce em árvore (desculpem-me a ironia a meu favor!). Essa Unisc... Que mal que me fez. Que coisa. Jogou-me no mundo sem formação... Um registro: na minha “faculdade-que-não-me-deu-uma-boa-formação” estudei em um livro que na faculdade-que-deu-uma-boa-formação ao neopistoleiro talvez o seu professor não tenha lhe indicado: saiu em 1978, pela Editora Mestre Jou: Introdução à lógica, de Irving Copi. Tem um capítulo sobre falácias. O jovem professor não deve ter lido. Mas na-minha-faculdade-ruim eu li. Uma das falácias é ad hominem: Se você não tem argumentos, ataque pessoalmente seu adversário. Bingo. Binguíssimo!
Bom, é isso. Moral da história: Em vez de me virar e olhar nos olhos do jovem pistoleiro e sacar, achei melhor ficar assim mesmo, oitavado no balcão, sem aceitar a provocação. Minha arma já está cheia de marcas. Há uma lei do velho oeste, pela qual pistoleiros — mesmo os novatos — não atiram pelas costas. Infelizmente, as ofensas dirigidas a mim, a Alexy e a tantos outros foram feitas.. à socapa. E à sorrelfa. Pelas costas. E isso é muito feio.
Eu poderia tripudiar. Ingressar em juízo. Há questões cíveis e criminais em jogo. E didáticas. Acadêmicas. A universidade tem compromisso pedagógico com a sociedade que paga impostos. O professor não pode lecionar o que quer. A sala de aula não é sua. Afinal, é uma universidade pública. Mas, embora tudo isso, preferi apenas fazer esta crônica. José Hernandez — em um dos meus livros preferidos e que ancorei em Direito & Literatura na TV Justiça — dizia, pela boca de Martin Fierro, que el diablo sabe por diablo; pero más sabe por viejo.
E digo isso porque penso que há chance de o nosso jovem professor apreender algo com tudo isso. Por exemplo, que a primeira coisa a fazer, como professor doutor, é prestigiar a doutrina. Caso contrário, ele estará dando um tiro no próprio pé. Ensinar só com jurisprudência é altamente desaconselhável.[1] Principalmente em um país em que cada juiz ou tribunal decide como quer. A propósito disso: na gravação, tem uma parte em que o nosso Einstein diz sobre o tema “fundamentação constitucional”: o juiz escolhe como fundamentar. Pode fundamentar como quiser. Bingo. Eu ouvi isso. E ele ensina isso para os alunos dele. Para ver como anda o ensino jurídico em Pindorama. Isso faz parte e é componente da crise que atravessa o ensino e a operacionalidade do direito. Bem que a Associação Brasileira de Ensino Superior (Abedi) poderia se posicionar sobre isso. E, mais: se o povo pagou os estudos do professor (graduação, mestrado e doutorado mais bolsa = uma pequena fortuna), tem o direito de saber o que ele pesquisou.
E, insisto: Como professor de universidade pública, ele não poderia desdenhar de outros professores, chamá-los de idiotas, ofender professores ilustres do exterior como Alexy e se orgulhar de não ler livros e dizer que estes são inúteis. E esculhambar com uma instituição como a Unisc. Não me parece ser um bom exemplo para os seus alunos e para o que significa o ensino público, mormente em um país pobre como o nosso, em que a relação na universidade pública é, por exemplo, de um docente para 14 alunos e, na Alemanha, de um para 35.
Por isso mesmo deveríamos valorizar mais o dinheiro investido em universidade pública, onde, como se sabe, não estudam os pobres. Estes — os pobres — como ocorreu comigo, que tive que custear os meus estudos na, segundo o professor falador, “desqualificada Unisc”, ficam de fora do butim. E têm de ir à luta e/ou depender do Fies (na minha época, fiz o crédito educativo e a empresa Mercur pagava uma parte das mensalidades). Ou do dinheiro suado ganhado em subempregos, com esperança de passar em concurso público. De um lado, isso. De outro, gente que faz mestrado e doutorado em uma pública e... ainda ganha bolsa. Bingo de novo. Isso é Pindorama.
É. O jovem professor de universidade pública parece saber muito pouco da vida. O idiota aqui, para-estudar-na-desqualificada-Unisc, levantava as 6h da manhã, pegava dois ônibus para ir trabalhar na fábrica; à noitinha, de novo dois ônibus e depois um trecho a pé para cursar a faculdade (aproveito para homenagear a memória dos meus professores falecidos, como Raul Bartholomay, Aquilino Bergonsi e Rubem Baumhardt e os demais, que, naqueles anos, em pleno regime militar, tentavam fazer com que nós estudássemos direito; fazia escuro, mas tentávamos cantar, como dizia o poeta — esta coluna é um desagravo à todos os docentes da Unisc). Formei-me em 1980. E leciono há mais de 35 anos. Sim, porque, na verdade, comecei a lecionar aos 16 anos de idade, na escola fundamental de Agudo. Passei em primeiro lugar no concurso. Depois, no mesmo ano de 1973, sofri um atentado (sim, fui atingido por um pistoleiro — vejam como sou perseguido por pistoleiros — que não me errou um balaço calibre 22 no meio do peito, do qual só sobrevivi por milagre divino e pela perícia do doutor Omizzollo e tive que ir embora para Santa Cruz do Sul, depois de ficar soprando balão durante seis meses por causa do pulmão direito perfurado pelo projetil). E o nosso neopistoleiro fala de aprender com vivências... Pois sim. Pois sim. Além do mais, há tantas frases prontas sobre quem chama alguém de idiota... Lendo o texto, os leitores saberão o que fazer.
Uma notinha, ainda: Isso tudo é um sintoma dos tempos atuais. Perdeu-se a noção de respeito e responsabilidade. O Outro não importa (uma dose de Honneth não faria mal ao professor; ups, ele não lê livros...). Ética se esfumaça. Ética virou estética. Na verdade, nem isso. Ocupa-se o — caro — espaço público de uma sala de aula para achincalhar colegas. Repito: isso é muito feio. O professor deveria ficar de castigo por isso.
Enfim, segue a vida... Nos livros de Pulp fiction que eu lia quando criança, lembro de um que tinha dois amigos como personagens. Rápidos no gatilho. Experientes. Len e Tiller eram os seus nomes. Eles não matavam os seus provocadores. Atiravam nos dedos. Metáforas, alegorias e metonímias: assim escrevemos e inscrevemos nossas ações no mundo.
Post scriptum: a propósito, há duas colunas minhas sobre alunos e professores aqui na ConJur. Na Revista Eletrônica ConJur tem tudo! Semana passada, em dois dias, mais de 50 mil leitores de minha coluna. Saludo!
1 Aliás, tivesse o professor um mínimo de seriedade, seria o caso de percorrer o debate Dworkin v. Posner sobre a (im)possibilidade da antiteoria, na academia ou nos fóruns. Certamente é possível discordar de Dworkin, quando este diz que a doutrina é a raiz oculta de toda a decisão judicial, que não há afirmação jurídica que não esteja radicada numa teoria geral (certa ou errada, ignorante ou iluminada, boa ou má) mais abrangente. O neopistoleiro não sabe que mesmo a negação do academicismo e o apego à "prática jurídica" ou às decisões judiciais em sentido estrito é, ela mesma, uma postura teórica. Ruim, na minha opinião, mas é. Ou seja, você pode fazer má filosofia, mas não pode fugir dela.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 4 de agosto de 2016, 8h00
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