É comum entre nós a ideia de que a democracia exige uma espécie de identidade essencial entre o que deseja o povo e a ação de seus representantes políticos. Em termos mais ingênuos, não são poucos os que acreditam que a democracia se revela tanto mais perfeita quanto mais identidade existir entre a vontade do povo e os atos dos governantes. Como pretendo demonstrar, a democracia não só prescinde de uma tal identidade, como de fato recusa a sua existência. Segundo Konrad Hesse, nem mesmo as democracias diretas podem pretender uma exata correspondência entre povo e detentores do poder. Portanto, se isso fosse verdadeiro, todos os regimes democráticos teriam falhado no essencial.
Contudo, bem observados os fatos, precisamente pela ausência de identidade fundamental entre o povo e os seus representantes, é que a virtude da democracia não está na transmissão sem contraste entre a vontade popular e as decisões e os atos de governo. Pelo contrário, a virtude da democracia consiste, precisamente, no fato de que, na sua conformação e existência, não havendo identidade entre o povo e os seus representantes no poder, mesmo a vontade do titular soberano do poder (o povo) pode sofrer — e de fato sofre — limitações, sobretudo, quando queira manifestar-se legitimamente. Por sua vez, essa distinção implica também, nos regimes democráticos, a existência de outros elementos essenciais à sua configuração: limites constitucionais e legais à vontade da maioria, controle e responsabilidade dos agentes de poder, além de respeito aos direitos das minorias.
Diversamente, nos regimes em que se possa afirmar a identidade entre a vontade do povo — como totalidade — e de seus governantes, suportados nessa identidade, obviamente, será mais fácil recusar tanto os direitos das minorias como também recusar a necessidade de controle e de responsabilidade dos governantes. De fato, dir-se-ia: para que se controlar governantes, ou respeitar direitos de minorias, num regime em que as decisões dos governantes apenas representam — em identidade essencial — a vontade de toda gente?
Mas enfrentemos melhor essas ideias.
Como todos sabem, o artigo 14 da Constituição da República, com seus incisos, alíneas e parágrafos, representa a concretização do princípio da soberania popular, por sua vez, já preconizado no artigo 1º, parágrafo único, do mesmo texto constitucional. Sendo um dos dispositivos mais conhecidos de nossa Lei Fundamental, o parágrafo único do seu artigo 1º prescreve que o poder soberano do Estado pertence em última instância ao povo, que o pode exercer tanto diretamente (através de plebiscito, referendo ou iniciativa popular), como por intermédio dos seus representantes, cuja escolha se desenvolve pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, conforme disciplina legal.
É, pois, esse princípio democrático que governa, tanto formal como materialmente, o processo político, no qual se expressa o poder do Estado, e sob cujo influxo, direta ou indiretamente, ganha esse poder legitimidade para desenvolver-se. Contudo, e isso nem sempre se consegue notar, ao afirmar o princípio da democracia representativa, nega-se aqui também uma identidade essencialentre os eleitores (o povo) e os que, em seu nome, exercem o poder.
Essa separação entre povo e os seus representantes (o governo), contudo, ao invés de implicar uma fraqueza dos regimes democráticos, como passo a demonstrar, significa uma de suas maiores virtudes.
Diversa, por exemplo, era a situação dos antigos Estados absolutistas, em que expressamente se pregava uma unidade essencial entre o povo, o Estado e o governante (l’Etat c’est moi). Nos regimes totalitários, a identidade é ainda mais profunda, pretendendo-se confundir, de um lado, a vida privada do cidadão com a esfera pública; de outro, restringir a sociedade civil aos contornos do próprio Estado. Assim, fora do Estado não existe vida nem sociedade civil.
Por tudo isso, no dizer de Martin Kriele, a ideia de democracia, como concebida contemporaneamente, não se compadece com o princípio da identidade, mas apenas como o de representação. Os órgãos do Estado não pretendem ser o povo, mas (apenas) representá-lo[1]. Somente governos totalitários (muito mais que os autocráticos) podem pretender, mais do que representar a vontade popular, ser a sua própria encarnação.
A compreensão de democracia nos Estados atuais leva-nos, pois, a negar uma identidade absoluta ou essencial entre governantes e governados, o que só se poderia alcançar, de qualquer forma, mediante uma conversão totalizante e absolutamente indevida da vontade do verdadeiro titular do poder soberano, o povo, em simples vontade de quem governa. Além disso, nas modernas democracias constitucionais, há sempre a possibilidade de normas constitucionais e legais bloquearem a própria vontade popular. O povo, se quiser contrariar as opções legislativas e constitucionais tomadas deverá, previamente, segundo o devido processo legislativo, modificar as normas institucionalmente já existentes. Aliás, no caso das chamadas Cláusulas Pétreas, algumas opções são até mesmo subtraídas da possibilidade de alteração.
Rejeita-se, portanto, qualquer espécie de identidade total entre governantes e governados, mesmo que se cuide de uma implausível democracia direta que, de toda sorte, apenas se faria possível mediante a identificação forçada da vontade da maioria dos que participam das eleições e das decisões estatais com a vontade de toda a comunidade nacional. De fato, uma tal identificação (Sinne identitärer Demokratie), adverte Konrad Hesse, além do mais, resultaria numa espécie de inadmissível domínio total (totale Herrschaft), por exigir a desconsideração tanto da vontade dos não votantes como da vontade daqueles que perderam a votação (minoria), ou mesmo daqueles que não estavam legitimados ao voto (Nicht-Stimmberechtigten)[2].
Outro grave problema que se coloca na base de uma total identidade entre governantes e governados é que essa ordem de ideias implicaria negar a possibilidade e mesmo a existência de conflitos no seio da comunidade nacional. Assim, por mais que os governantes se legitimem e se esforcem por representar a vontade da — mais ampla — maioria, e mesmo que alcançassem em determinado momento a totalidade dos votos dos cidadãos do Estado legitimados a votar, a imposição constitucional de voto periódico, universal, livre e com valor igual para todos, ao trazer sempre à memória da sociedade e dos governantes a necessidade de alternância no poder, impõe a certeza de que, na democracia, os representantes do povo são e serão sempre algo diverso daquele que é o verdadeiro titular do poder soberano: o povo.
Por isso, todo poder há de ser, em nossa realidade constitucional, periódico, circunstancial, passível de mudança. Aliás, essa ideia é tão cara à nossa Constituição, que o Poder Constituinte a elevou à condição de cláusula irreversível, ao estabelecer no artigo 60, parágrafo 4º, II, da Constituição da República, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico. Ao fixar o sufrágio periódico como regra imutável, a Constituição, além de estabelecer a necessidade de eleições como processo regular para a escolha dos governantes, cumpre institucionalmente a função de (a) garantir o direito subjetivo de cada cidadão de ver considerada a sua opinião política manifestada através do voto, bem como (b) assegurar aos cidadãos o direito subjetivo de participar como candidatos de eleições[3].
Dada a importância, pois, da manifestação do voto, por meio do direito político ativo, assim como do direito fundamental de pleitear uma candidatura, ou de tomar parte de sua indicação por meio dodireito político passivo, é que a doutrina e a jurisprudência reconhecem nos direitos políticos as qualidades de um direito irrenunciável, intransmissível e inalienável, não admitindo, pois, seu exercício por representação (procuração) de terceiro, porquanto, em resumo, um direito personalíssimo[4].
Nem a chamada democracia direta suprime, entre nós, a separação entre a vontade do povo e decisão de governo ao final tomada. Não por outra ração, todas as formas de democracia direta previstas na Constituição (plebiscito, referendo e iniciativa popular), se pretendem manifestar-se legitimamente, submetem-se a limitações tanto formais quanto materiais.
Além disso, os pressupostos e a estrutura para o exercício pelo povo de uma democracia exclusivamente direta, na sábia advertência do professor Gomes Canotilho, desapareceram quase que completamente no quadro histórico da sociedade e dos Estados contemporâneos[5]. Com efeito, a estrutura territorial e social, a acentuada complexidade nas expectativas e valores sociais, a multiplicidade e especificidades dos problemas a resolver, os riscos aí envolvidos, assim como a exigência de crescentes e específicos conhecimentos técnicos para a sua solução, tudo isso acabou conformando a base das atuais sociedades (complexas, de risco e de massa), inviabilizando por completo a possibilidade de que os negócios do Estado fossem geridos permanentemente por deliberações de todo o povo reunido em assembleia.
Lembra ainda o professor Canotilho, o medo de que a vontade popular pudesse ser manipulada, seja por líderes carismáticos, na forma de alguma espécie de Cesarismo ou Bonapartismo (veja-se o exemplo de Hitler e do Partido Nacional-Socialista — NSDAP[6]), seja pela possibilidade de os meios de comunicação atuarem, nas sociedades de massa, como agenda-setter, isto é, agendarem os temas que acabam ganhando a atenção e a preferência popular (agenda-setting theory), tudo isso acabou por justificar, lembra o mestre de Coimbra, uma recorrente hostilidade contra os procedimentos de democracia semidireta[7].
Não obstante isso, em nosso país, o poder constituinte acabou consagrando instrumentos de democracia direta (o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular), que, inseridos no texto constitucional, ao mesclarem-se com a democracia representativa, explicitamente privilegiada pela Constituição, irão conformar em nosso País uma forma de democracia semidireta. A doutrina distingue os institutos do plebiscito e do referendo, basicamente, tendo em consideração o momento em que o povo é chamado a manifestar diretamente a sua vontade política.
Se o povo é chamado a manifestar a sua vontade, aprovando ou rejeitando o ato normativo,antes de sua deliberação pelo legislador, de tal ordem que a sua vontade componha o próprio processo de decisão, é caso de plebiscito[8]; se, diversamente, o povo é convocado quando o ato normativo já foi editado, na forma de ratificação ou rejeição, o caso é de referendo. Observe-se que, numa como noutra manifestação de democracia direta, conquanto preponderante, a vontade popular não é exclusiva e depende sempre, antes ou depois, da manifestação de outros órgãos de poder. Além disso, não obstante veículos de exercício de democracia direta, tanto no plebiscito como no referendo, o resultado da manifestação da vontade popular submeter-se-á sempre ao controle de constitucionalidade, tanto na forma abstrata como no caso concreto.
No Brasil, desde a edição da Lei 9.709/98, os institutos do plebiscito e do referendo ganharam precisa conformação legal, respectivamente, em seu artigo 2º, parágrafo 1º e 2º. No que respeita à forma de sua convocação, ainda segundo a Lei 9.709/98, no seu artigo 3º, nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, bem como no caso do parágrafo 3º do artigo 18 da Constituição Federal, o plebiscito e o referendo são convocados mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional, de conformidade com esta Lei.
A Constituição Federal, especificamente, impõe a consulta popular como pressuposto formal para a deliberação sobre alguns fatos jurídico-políticos. Assim, nos casos de incorporação, subdivisão e desmembramento de Estados-membros ou Municípios, em que, expressamente, a Constituição exige a consulta prévia, mediante plebiscito, da população ou das populações diretamente interessadas (artigo 18, parágrafos 3º e 4º, da Constituição da República).
Por fim, por intermédio da chamada iniciativa popular (artigo 14, III, da CF), a Constituição estimulou a participação direta do povo na formação da vontade política do Estado, conferindo-lhe a titularidade de iniciativa de lei, autorizando-lhe, sem a necessidade de intermediação de um representante político, diretamente, propor projetos de lei. Contudo, também aqui não há uma exata e incontrastável conformação da vontade do povo em ato de poder e de governo. Em outras palavras, também aqui a Constituição separa povo e governantes.
De fato, segundo o artigo 61, parágrafo 2º, da Constituição, a iniciativa popular será exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. Como se vê, a vontade popular aqui se limita à iniciativa de projeto de lei, ato que apenas faz instaurar o processo legislativo. A partir de então, o projeto de iniciativa popular, não obstante a considerável força política de sua origem, estará sujeito à mesma sorte (ou azar) de qualquer outro projeto de lei. Além disso, também aqui, ainda que convertendo-se em lei o projeto de iniciativa popular, o ato normativo daí resultante submete-se ao controle de constitucionalidade.
Como se dizia, todas essas formas de manifestação direta de poder popular sofrem restrições quanto à sua possibilidade de manifestação. Tudo isso é bom para a democracia, pois, se, de um lado, não é recomendável que algum poder, grupo ou organização de pessoas, possa postular a condição de representante essencial do povo, de outro, as minorias se veriam extremamente prejudicadas na defesa de seus interesses se a maioria e seus representantes, pretendendo representar todo o povo, pudesse — antes ou depois — exercer sua vontade sem qualquer limitação ou contraste.
Em conclusão, numa verdadeira democracia — quem o diria? — também o povo deve impor-se limitações.
[1] Kriele, Martin. Einführung in die Staatslehre. 5 ed., Opladen: Westdeutscher Verlag, 1994, p. 294.
[2] Hesse, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Heidelberg: Muller, 20 ed., 1995, p. 60.
[3] Maunz in Maunz-Dürig. Grundgesetz-Kommentar. München, Verlag C.H.Beck, 1996, Art. 38, vol. III, par. 31).
[4] Maunz in Maunz-Dürig. Grundgesetz-Kommentar. München, Verlag C.H.Beck, 1996, Art. 38, vol. III, par. 32).
[5] Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2003, p. 294.
[6] É também do prof. Canotilho a lembrança da trágica herança plebiscitária da República de Weimar assim como as consultas plebiscitárias gaullistas.
[7] Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2003, p. 297. Ver também McCombs, Maxwell. Setting the Agenda: The Mass Media and Public Opinion, 2004, p. 2
[8] Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., 2003, p. 296.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 8 de abril de 2013
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