sexta-feira, 12 de abril de 2013

A ANVISA E OS LIMITES CONSTITUCIONAIS DO "ESTADO BABÁ"


A propósito de reportagem assinada pelo ilustre jornalista João Ozorio de Melo, sob o títuloAmericanos rejeitam interferência em hábitos de consumo, recordo que a Confederação Nacional da Indústria (CNI) ajuizou no final do ano passado perante o Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.874. Nesse caso, busca-se a declaração de inconstitucionalidade ou a interpretação conforme de dispositivo da Lei 9.782/99, que criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e da Resolução (RDC 14/2012).
O momento não poderia ser mais oportuno para alimentar o debate na comunidade jurídica. Os temas das liberdades individuais, da livre iniciativa e dos limites da competência das agências reguladoras constitui pauta muito atual, especialmente pelo crescente número de iniciativas por parte da Anvisa que têm despertado o interesse de todos os que acompanham ou trabalham no campo regulatório.
Segundo o jornalista, a ação movida nos Estados Unidos da América referia-se à proibição de venda de refrigerantes com mais de 16 onças (0,47litro) em restaurantes, lanchonetes, cinemas, estádios e carrocinhas de rua. A medida tinha como objetivo proteger a saúde pública, na consideração da alta taxa de obesidade ou excesso de peso da população americana.
Ocorre, porém, que antes que a medida entrasse em vigor, em 12 de março do corrente, a Suprema Corte do Estado de New York suspendeu a proibição, tendo o relator do feito asseverado que se tratava de uma medida “arbitrária e caprichosa”. Dos debates havidos entre a proibição e a sua suspensão, surgiram questões relevantes de cunho jurídico e moral, do tipo: “A autodestruição é um direito inalienável do cidadão?”.
Na ação proposta pela CNI, o tema é também candente, pois se trata da proibição de aditivos de sabor nos cigarros, hoje comercializados por diversas indústrias tabagistas. Enquanto lá a proibição veio de ato da prefeitura de New York, aqui o ato judicializado emanou da Anvisa, mediante a edição da referida resolução.
Em ambos os casos exsurge a questão das liberdades individuais em face do “Estado babá” ou “nanny state”, na linguagem americana. Na ação da CNI, ademais dessa perspectiva, há também o tema relativo às atribuições dos órgãos reguladores, a reforçar a importância de o STF — em face da Constituição Federal — determinar, com precisão, os limites de atuação das agências no campo regulamentar ou normativo, inclusive, no que tange à livre iniciativa.
A primeira reflexão que se apresenta ao STF é a de ratificar, ou não, o que nas lições de Teoria Geral do Estado sempre pontificou como ideia mater de que não cabe ao Poder Executivo atuar na condição de legislador, na medida em que a competência normativa primária incumbe ao Poder Legislativo. De fato, no nosso sistema constitucional vige: (a) a demarcação expressa do regime de competências de cada poder; (b) o preceito universalmente consagrado de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei.
Nessa linha de raciocínio, qualquer restrição à liberdade ou ao exercício dos direitos constitucionalmente assegurados só pode ser legitimamente definida pelo Congresso Nacional, salvo a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário (legislador negativo) nas hipóteses de inconstitucionalidade. Fora desse parâmetro, que nos acompanha desde a primeira Constituição republicana de 1891, haverá, pelo menos, na compreensão até aqui aceita, transgressão às regras e princípios constitucionais da separação de poderes e da legalidade.
É certo que a dinâmica do mundo jurídico leva o intérprete a uma releitura permanente do complexo de normas, no sentido de conciliar os preceitos normativos e os fatos jurídicos a eles submetidos. Essa importante tarefa de atualização interpretativa é hoje um imperativo no processo de subsunção. Todavia, mesmo em face dos múltiplos interesses na consecução das políticas públicas, há uma divisão de poderes e uma distribuição de competências, que são flexibilizadas, apenas e tão somente, nas hipóteses expressamente excepcionadas no texto constitucional. No ponto, vale a convicção de que a Constituição é soberana para excepcionar as suas próprias regras e princípios.
A segunda reflexão que o STF poderá fazer é indagar até que ponto a eventual, aparente ou concreta atribuição normativa das agências reguladoras estaria limitada ao princípio da legalidade e da divisão de poderes. Ou ainda, até que ponto haveria alguma exceção constitucional ao princípio e norma geral da indelegabilidade de competência, especialmente de conteúdo normativo. A resposta, certamente, procederá do exame pormenorizado dos artigos 2º e 37, caput, e 68, da Constituição Federal e do artigo 25 do Ato das suas Disposições Transitórias. Nesse contexto, por óbvio, a questão é saber se as agências reguladoras — que integram o Poder Executivo — podem ter atribuição normativa que exceda a competência constitucional do próprio Poder Executivo.
Essa indagação tem pertinência, à medida que poderia ensejar a afirmação de que as agências reguladoras estariam autorizadas a buscar diretamente no texto constitucional a força normativa de suas iniciativas, mesmo excedendo o poder regulamentar. E isso, ao menos aparentemente, cria um dilema constitucional: se as agências assim puderem proceder, qual seria o papel remanescente do Congresso Nacional?
Sob outra perspectiva, é pertinente indagar se a especialização técnica das agências e o caráter de urgência seriam suficientes para afastar a intermediação do Congresso Nacional. É certo que até hoje, jamais se cogitou a exclusão do Congresso Nacional como instituição mediadora e avaliadora dos aspectos morais e sócio-econômicos de uma norma pretendida e, principalmente, do momento político para a sua edição.
Nessa linha de raciocínio, o STF poderá vir a enfrentar uma instigante situação de anomia: haja vista a falta de norma constitucional disciplinadora, qual ou quais seriam os critérios definidores das iniciativas “normativas” (temas/limites/conteúdo da regra), das agências reguladoras? Além disso, como compatibilizar a hipótese diante do princípio da legalidade e da indelegabilidade normativa, ambos de estatura constitucional?
Além dessa situação de anomia, importante ressaltar que o tema objeto da ação movida pela CNI foi motivo de diversas manifestações no Congresso Nacional, quando se discutia a aprovação das emendas à Medida Provisória 540. Diante da tentativa do relator de introduzir, na referida medida provisória, as proibições veiculadas pela Resolução (RDC 14) — que estava, na mesma época, sob consulta pública — houve unânime manifestação de todas as lideranças presentes no debate congressual, no sentido de que a norma pretendida (pelo relator e pela resolução) deveria ser necessariamente submetida ao Congresso Nacional na forma de projeto de lei.
Poderia, finalmente, em conseqüência, surgir a seguinte reflexão: havendo o Congresso Nacional rechaçado expressamente a possibilidade de se debater o tema fora do procedimento de projeto de lei ordinária, seria admissível que a Anvisa pudesse dispor sobre o mesmo assunto por meio de uma resolução? A resposta, ao que nos parece, terá curso, dentre outros aspectos, em face da regra e do princípio da harmonia entre os poderes constituídos e do dever de lealdade contemplado na Constituição Federal.
A terceira reflexão poderá ser provavelmente indagar se a própria Constituição Federal já não dispõe de instrumentos que permitem o exercício normativo pelo Poder Executivo, ainda que sob a forma de exceção e mediante o atendimento de condicionantes de relevância e urgência, explicita e expressamente enunciadas. É o caso das medidas provisórias, hipótese em que, a partir da Constituição de 1988, a par das leis delegadas, aceitou-se como sendo a única exceção para o exercício de faculdade normativa pelo Poder Executivo. E a razão dessa compreensão é a de que, sob essa perspectiva constitucional, atende-se tanto ao princípio da separação de poderes (a Constituição é soberana para excepcionar suas próprias regras), quanto ao principio da legalidade (em face da obrigatória submissão das medidas provisórias ao Congresso Nacional). Prepondera aratio do expresso e obrigatório requisito de submissão das medidas provisórias ao Congresso Nacional para que se legitime e contextualize o conteúdo democrático da norma.
Por isso, emerge outro aspecto do debate que até aqui não foi objeto de deliberação judicial. Se as medidas provisórias, expedidas pelo chefe do Poder Executivo, devem ser obrigatoriamente submetidas ao processo legislativo, é possível admitir que órgão integrante de sua estrutura funcional e hierárquica — quando ingressa em campo reservado à lei em sentido formal e material — esteja dispensado dessa formalidade constitucional, sem ofender ao princípio da separação de poderes? Questionando sob outro ângulo, estariam as agências reguladoras fora da estrutura do Poder Executivo, é dizer, esses órgãos constituem outra vertente de poder que não se enquadra na clássica divisão de poderes?
Ao que se verifica no processo de descentralização, introduzido pelo Decreto-Lei 200/67, os órgãos descentralizados não estavam autorizados a fazer o que não estivesse constitucional e expressamente previsto, mesmo em razão de sua especialização técnica ou de sua natureza jurídica. Nesse sentido, o STF poderá, também, enfrentar a seguinte indagação: no contexto de um processo de descentralização, quando se pretende aperfeiçoar a consecução das atividades e competências do Poder Executivo, seria possível à lei infraconstitucional conceder aos órgãos descentralizados ou delegados, no caso às agências reguladoras, competência ou atribuição que o próprio Poder a que estão vinculadas não tem?
Sem entrar diretamente no mérito da resposta, é preciso distinguir a possibilidade de imediata intervenção do Poder Público nas hipóteses de risco iminente (extraordinário e excepcional) das iniciativas de políticas públicas, associadas a riscos cujos resultados podem ser previstos ou cujos efeitos já se conhecem. Exemplo recente da primeira hipótese foi a necessária intervenção no caso dos sucos contaminados de uma conhecida marca do mercado. Outra, porém, é a intervenção no campo das liberdades individuais e em atividade empresarial legalmente estabelecida, que produz e comercializa produto lícito. Essa segunda hipótese de intervenção só se admite observado o regular processo legislativo, ainda que sob a forma de exceção, como nas hipóteses de expedição de medidas provisórias ou edição de lei delegada. Admitir o contrário, mediante ato infralegal, diante de todo e qualquer risco à saúde, ensejará admitir que a Anvisa possa editar, inclusive, uma resolução proibindo as relações sexuais, em face do risco de transmissão de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs).
Carlos Eduardo Caputo Bastos é sócio fundador do Caputo Bastos e Fruet Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 11 de abril de 2013

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