I. A importância e as precauções da atividade legislativa
Há muito se acentua, no âmbito da teoria da legislação, a importância e “a delicadeza da tarefa confiada ao legislador”[1]. Diante do caráter abstrato e genérico dos atos normativos editados pelo Poder Legislativo, não se pode desconsiderar, na sábia advertência do ministro Gilmar Mendes, as gravíssimas consequências que deverão ser suportadas por toda comunidade quando políticas e programas são concretamente convertidos em normas legais vinculantes, sem que, no entanto, sejam consideradas adequadamente todas as implicações daí resultantes.
Graças ao seu caráter genérico e abstrato, mas sempre de efeito vinculante, qualquer mudança legislativa — sobretudo na forma de Emenda Constitucional — deveria realçar em todos nós o mais honesto sentido de prudência, especialmente, com seus imprevisíveis efeitos colaterais, já que são eles, com frequência, os mais deletérios. Pela mesma razão, Victor Nunes Leal recomendava absoluta prudência ao Poder Legislativo, porquanto "tal é o poder da lei que a sua elaboração reclama precauções severíssimas. Quem faz a lei é como se estivesse acondicionando materiais explosivos. As consequências da imprevisão e da imperícia não serão tão espetaculares, e quase sempre só de modo indireto atingirão o manipulador, mas podem causar danos irreparáveis"[2].
É por isso também que, segundo advertência internacionalmente reiterada, especialmente nas nações mais sérias, o afazer legislativo revela-se sempre de caráter residual, devendo o legislador atuar apenas e tão somente quando, de forma incontornável, se mostre necessária alguma inovação de caráter legislativo. No dizer do ministro Gilmar Mendes, em sua ilustrada pena, “a despeito dos cuidados tomados na feitura da lei (os estudos minudentes, os prognósticos realizados com base em levantamentos cuidadosos etc.), não há como deixar de caracterizar o seu afazer como umaexperiência. Trata-se, porém, da mais difícil das experiências, a ‘experiência com o destino humano’”[3].
Pois bem, não obstante todas as implicações históricas e a apreensão social que a medida suscita,tem curso no Congresso Nacional, convertido em poder constituinte derivado, a Proposta de Emenda Constitucional 37, a já famosa PEC 37, mediante a qual, segundo sua própria ementa, pretendem seus autores “definir a competência para a investigação criminal pelas polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal”.
É importante ressaltar, para uma correta avaliação da oportunidade e conveniência de uma tal proposta de Emenda ao texto constitucional, que a defesa mais recente de sua aprovação pelo Congresso se verifica quando o Supremo desenvolve relevante esforço hermenêutico e jurisprudencial para delimitar os poderes investigatórios do ministério. Além disso, é de se anotar que, mesmo acentuando a necessidade de controles procedimentais à investigação do Parquet — aliás, como qualquer investigação do Estado —, todas as vezes que o Supremo enfrentou a matéria, jamais lhe ocorreu negar a possibilidade de investigação criminal por membros do Ministério Público.
Assim, apenas para ficar num dos melhores exemplos de sua jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal não só confirmou — mais uma vez — a possibilidade de investigação pelo Ministério Público, como estabeleceu uma série de pressupostos e condições dessa específica atuação ministerial, já que, obviamente, ninguém pode discordar que, à semelhança de qualquer poder estatal, também “o poder de investigar do Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais” (HC 84.965 / MG — relator ministro Gilmar Mendes).
Pois bem, retornando à PEC 37, não obstante todo o esforço hermenêutico do Supremo, descontadas algumas alterações que o texto vem sofrendo e ainda possa sofrer em sua peregrinação pelo Congresso, o que se busca com a referida proposta de Emenda, na essência, mais do que o seu objetivo declarado de “definir a competências para a investigação criminal da polícia federal e das polícias civis dos Estados”, é subtrair do Ministério Público o poder de investigação de fatos criminosos.
De fato, todos os pareceres favoráveis que foram produzidos, no âmbito do Congresso, não deixam a menor dúvida de que, mais do que organizar competências policiais, o que ali se pretende é excluir de nossa realidade constitucional a possibilidade de investigação criminal direta pelo Ministério Público.
De regra, o que se infere das discussões havidas na Casa do Povo é que os nossos representantes eleitos parecem ressentir-se de um certo protagonismo por parte de membros do Ministério Público, o que seria bem traduzido por certo temor de que, ao investigar, promotores de Justiça e procuradores da República, estejam, em verdade, “selecionando seus alvos, definindo seus adversários e escolhendo suas vítimas ao sabor de opções que não têm caráter técnico”, no preciso resumo de um admirado articulista nacional.
Por exemplo, em passagem de parecer exarado no âmbito da própria Câmara dos Deputados, repete-se a mesma ideia, para acentuar a posição de determinado representante da classe dos delegados de polícia, que manifestou a posição de sua entidade “no sentido da aprovação da PEC por entender que a investigação policial produzida a latere pelo MP, numa persecução penal sem regras legais e sob critério de seletividade, significa uma grave preocupação pela ofensa que pode causar aos direitos individuais”. Acrescenta-se ainda a ideia de que o monopólio da investigação criminal busca atender a um direito do cidadão de “ser investigado por uma instituição isenta, imparcial, cuja atividade de investigação visa a trazer à tona todos os atos, autoria e materialidade, permitindo ao MP, a Justiça, a defesa e a acusação que atuem conforme o foi apurado”.
II. A PEC 37 e a realidade dos fatos
Aqui, entretanto, começam, precisamente, os graves problemas de incongruência lógica entre as boas intenções da PEC 37 e os pressupostos de onde partem as entidades que a promovem de forma tão viva e honestamente.
Um dos maiores erros dos agentes públicos ao concretizar os seus ideários políticos em atos legislativos, através dos quais pretendem enfrentar os mais graves problemas da sociedade, é julgar instituições, pessoas, políticas e programas por suas intenções, e não em consideração a seus resultados e à realidade em que deverão se desenvolver. De fato, as leis, inspiradas mais nas boas intenções daqueles que as produzem do que num exame frio dos fatos, com mais frequência do que o desejável, tendem a alcançar resultados absolutamente diversos — muitas vezes opostos — daqueles que, honesta e expressamente, ostentavam por ocasião do processo legislativo do qual originaram.
O legislador, portanto, mais do que qualquer agente público, pela gravidade das funções que desempenha, não tem o direito de desconsiderar os fatos sociais que envolvem a decisão política que pretende converter em lei, assim como não pode menosprezar a possibilidade de consequências não almejadas pela concretização de seu afazer legislativo. De fato, quem quer enfrentar a sério problemas humanos não pode dar-se ao luxo de ser incoerente ou contraditório consigo mesmo e com a realidade dos fatos sociais.
Dizendo-o de uma forma teoricamente mais elaborada, Robert Alexy estabelece, como uma das principais regras de um catálogo de pressupostos de todo discurso normativo, o dever de coerência e de honestidade. De fato, se alguém pretende que, num embate discursivo, em que se pretenda produzir normas de condutas humanas, prevaleça a força da verdade e não a força de suas convicções, deve impor-se pelo menos três regras de argumentação: (1) a primeira afirma que todo falante que busca participar de uma discussão séria “só pode afirmar o que ele próprio acredita”, (2) a segunda regra dispõe que todo falante que afirma de um objeto “a” um predicado F deve estar disposto também a aplicar o mesmo predicado F a qualquer outro objeto “x”, que se assemelhe a “a” em todos os seus aspectos relevantes e (3) afirma a terceira regra que “nenhum falante pode contradizer-se”[4].
Ora, por tudo o que se conhece de investigações e ações policiais em nosso país, só um total descompromisso com a realidade dos fatos, de quem efetivamente não parece acreditar no que afirma, permitirá dizer que, de regra, a polícia em nosso país, ou em qualquer lugar do mundo, é uma instituição mais “isenta e imparcial”, ou que garante mais os direitos dos investigados, do que o Ministério Público.
Nesse ponto, pelo respeito que dedico à instituição policial, gostaria de ser bem entendido. Com essa conclusão, não quero e não posso enunciar qualquer juízo de valor absoluto em relação às instituições e aos agentes policiais. Tenho em meu rol amigos, com indisfarçável orgulho, um sem-número de delegados e agentes da Polícia Federal. Servidores públicos de indiscutíveis virtudes cívicas e relevantíssimos serviços prestados à nação. Entretanto, não se pode desconsiderar o fato de que, por sua própria natureza e vocação, instituições policiais, preocupam-se antes com o resultado de suas ações do que com a “imparcialidade ou isenção” de seu trabalho. Instituições policiais, em qualquer lugar do mundo, ao organizarem-se — sem exceção — pelo princípio da hierarquia, estão comprometidas invariavelmente — e não digo que deva ser diferente — com a política criminal do poder a que se subordinam.
A relativa e elogiosa independência que o Departamento de Polícia Federal tem ostentado nos últimos anos é, como sabemos, muito mais fruto de uma por assim dizer liberalidade republicana dos sucessivos presidentes e presidenta da República, bem como dos ministros que estiveram à frente da pasta da Justiça, do que da existência de qualquer imperativo legal ou constitucional que lhe assegure alguma independência, imparcialidade ou isenção na persecução e desenvolvimento de suas elevadas atribuições. Tanto é verdade, que uma das mais antigas reivindicações das entidades representativas dos delegados de polícia é, precisamente, a independência em relação ao Poder Executivo. De outro lado, como sabem todos, de regra não se vê em governos estaduais (não digo em todos) a mesma independência verificada no nível federal.
De qualquer sorte, e dizendo da forma mais honesta que posso dizê-lo, nenhuma polícia do mundo sai às ruas para encontrar inocentes. A prova da inocência de um investigado, conquanto possa resultar de uma investigação policial, não é, por óbvio, a preocupação primeira da autoridade policial ao investigar um crime e, sim, os elementos de convicção de autoria e materialidade. Pela mesma razão, ao contrário das elogiáveis intenções ostentadas pela PEC 37, caso de fato se consagre o eventual monopólio da atividade investigatória às autoridades policiais, a nenhum ingênuo é dado esperar que, no dia seguinte à sua promulgação, sejamos confrontados com a implausível realidade de delegados de polícia preocupados em colher provas que “inocentem” o investigado, ao invés de encontrar as provas que certifiquem o autor e o fato criminoso. Obviamente, isso não indica que a polícia tenha como propósito “fabricar” a autoria de crimes, mas tão somente que a sua preocupação está voltada à elucidação do fato criminoso e a descoberta de sua autoria, e não a certificação da inocência de quem quer que seja. Isso tampouco é uma característica apenas da polícia brasileira.
Evidentemente, não caio na armadilha lógica de comprometer-me com o sentido contrário da uma outra ingenuidade, aquela de acreditar que, só porque desenvolvida por membro do Ministério Público, a investigação criminal estaria protegida de abusos e parcialidades. Membros do Ministério Público, de regra, também estão comprometidos com a busca de provas que elucidem fatos criminosos e que, por conseqüência, assegurem — ato contínuo — uma ação penal vitoriosa. Contudo, o que, de regra assegura, ao meu sentir, uma maior isenção — não uma isenção absoluta — do membro do Ministério Público é, sobretudo, suas prerrogativas constitucionais, que garantem sua independência em relação a qualquer outra autoridade ou vontade de poder. Mas, sendo intelectualmente honesto, devo novamente acentuar que nem mesmo essas garantias protegerão o membro do Ministério Público de, ao final, acabar-se envolvido pelo resultado da investigação que autonomamente desenvolva.
Em síntese, como tem acentuado o próprio Supremo Tribunal Federal (como veremos adiante), nem a investigação do Ministério Público, nem a investigação da polícia, nem a investigação de quem quer que seja, está livre de parcialidades ou abusos. Já fui membro do Ministério Público e hoje integro a magistratura. E para afastar qualquer nota corporativa, mesmo agora devo dizer que também o magistrado, nas ocasiões que por lei deve presidir investigações, não estará livre de abusos e parcialidades.
III. Das garantias do investigado nas investigações criminais
Não será, portanto, excluindo do Ministério Público o poder de investigação criminal que se eliminará, nem mesmo se diminuirá, a possibilidade de alguém ser vítima de abusos resultantes de investigações estatais. De fato, a possibilidade de abusos e arbitrariedades não resulta essencialmente da instituição onde se desenvolve a investigação, mas da ausência de garantias que protejam o investigado no momento em que é submetido à força investigatória do Estado.
Portanto, aqueles que estejam preocupados com a possibilidade de arbitrariedades e abusos eventualmente perpetrados contra os investigados devem buscar protegê-los com acréscimos de garantias, pouco importando, pois, a instituição que desenvolva a investigação.
Apenas para ficar em exemplo absolutamente fora de discussão, ao contrário de outros países democráticos, o nosso Código de Processo Penal, na fase do inquérito policial, fruto de seu contexto histórico, basicamente desconhece — pelo menos de forma séria — a garantia de produção de prova em favor ou por solicitação do investigado. Vejamos.
De fato, nesse particular, devemos convir que no artigo 6o, do CPP, os incisos I, II e III muito pouco dizem a favor do investigado, quando impõem à autoridade policial, logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, o dever de tomar as seguintes providências: “I — dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; II — apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais e III — colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias”. Por sua vez, o artigo 14, do mesmo CPP, não obstante possibilite ao investigado requerer diligências, conclui, sem maior fundamento, por estabelecer que a diligência assim requerida “será realizada, ou não, a juízo da autoridade”.
Como se sabe, em outras democracias, cuja história dos direitos fundamentais se revela mais consistente que a nossa, a legislação processual penal confere um amplo rol de garantias ao investigados, que se impõem a qualquer investigação criminal, não importa se desenvolvida pelo Ministério Público ou por instituição policial. Vejamos.
Deixemos de lado, por já ser amplamente conhecido de todos, o caso dos Estados Unidos, onde a Suprema Corte, na sequência do caso Miranda vs. Arizona — 384 U.S. 436 (1966) —, desenvolveu uma série de direitos e garantias em favor do investigado (Miranda rights) que se impõem ao Ministério Público e à autoridade policial antes mesmo de instaurada a instância judicial.
Na Itália, exemplo dos maiores processualistas que inspiraram nossa produção legislativa e jurisprudencial, sua Corte Constitucional, na sentença 88/1991, diante do inegável poder do Ministério Público para produzir investigação criminal, deixou todavia assentado que, “mesmo no novo processo, o Ministério Público é obrigado a realizar investigações (indagini) completas e buscar todos os elementos necessários para uma decisão justa, incluindo aqueles favoráveis ao acusado” (favorevoli all'imputato)[5]. Por isso mesmo conclui Paolo Barille, “o novo código de processo penal, em harmonia com essa visão de magistrado do Ministério Público, isto é, órgão imparcial, sanciona o poder-dever do Ministério Público para realizar investigações sobre a base do exercício da acusação e da apreciação dos fatos específicos, incluindo as provas favoráveis ao 'réu”[6].
Na Alemanha, não é diferente. No parágrafo 160 de seu Código de Processo Penal (Strafprozessordnung), em sua frase (2), o legislador alemão entendeu por bem deixar expressamente disposta a obrigação de o Ministério Público (Die Staatsanwaltschaft), ainda na fase da investigação, “verificar não só as circunstâncias incriminatórias (Belastung), mas também as que servem para exonerar (Entlastung), assim como tomar o cuidado de recolher as provas que se possa recear sejam perdidas”[7].
Além disso, no parágrafo 163-a, frase (2), o Código alemão, expressamente, dispõe que “requerida pelo inculpado (Beschuldigte) a coleta de provas para a sua exoneração ou liberação (Entlastung), então elas devem ser colhidas quando se revelem importantes”.
Além desses expressivos exemplos, todo o Segundo Capítulo do Segundo Livro do Código de Processo Penal alemão está dedicado expressamente à “Preparação da ação (penal) pública”. Nesse complexo normativo, além dos dispositivos já referidos, em sua maior parte, o que se ali se contem é um conjunto de normas a impor um poder-dever de investigação que, vinculando o Ministério Público e a autoridade policial, criam um procedimento de investigação criminal que visa assegurar tanto um correto esclarecimento do fato delituoso, como exonerar de responsabilidade — e da indevida atuação do Estado — o cidadão que, pelas provas que devem ser também colhidas pelas autoridades públicas, tem o direito de provar sua inocência.
Tudo considerado, se podermos nos espelhar na experiência hoje quase unânime de antigas e consolidadas democracias, muito melhor andaria o legislador pátrio se, ao invés de tomar partido de interesses acentuadamente corporativos, ficasse ao lado do cidadão e, sem comprometer a possibilidade de investigação do Ministério Público, cuidasse de regular o procedimento investigatório criminal, pouco importando se a investigação fosse desenvolvida pela polícia, pelo Ministério Público ou por qualquer outra autoridade do Estado, para prestigiar o mais possível os direitos e garantias fundamentais do investigado.
Veja que essa é precisamente a mesma conclusão que o STF, no referido HC 84.965, ao afirmar a investigação criminal pelo Ministério Público, acabou por consagrar. Ao confirmar a prerrogativa investigatória do MP, o STF estabeleceu algumas condições e pressupostos que, além de tudo, deveriam informar, em futura disciplina legal, qualquer forma de investigação criminal (cito, destacando): “A celeuma sobre a exclusividade do poder de investigação da polícia judiciária perpassa a dispensabilidade do inquérito policial para ajuizamento da ação penal e o poder de produzir provas conferido às partes. Não se confundem, ademais, eventuais diligências realizadas pelo Ministério Público em procedimento por ele instaurado com o inquérito policial. E esta atividade preparatória, consentânea com a responsabilidade do poder acusatório, não interfere na relação de equilíbrio entre acusação e defesa, na medida em que não está imune ao controle judicial — simultâneo ou posterior. O próprio Código de Processo Penal, em seu artigo 4º, parágrafo único, dispõe que a apuração das infrações penais e da sua autoria não excluirá a competência de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função. À guisa de exemplo, são comumente citadas, dentre outras, a atuação das comissões parlamentares de inquérito (CF, artigo 58, parágrafo 3º), as investigações realizadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF (Lei 9.613/98), pela Receita Federal, pelo Bacen, pela CVM, pelo TCU, pelo INSS e, por que não lembrar, mutatis mutandis, as sindicâncias e os processos administrativos no âmbito dos poderes do Estado. Convém advertir que o poder de investigar do Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais. A atividade de investigação, seja ela exercida pela Polícia ou pelo Ministério Público, merece, por sua própria natureza, vigilância e controle. O pleno conhecimento dos atos de investigação, como bem afirmado na Súmula Vinculante 14 desta Corte, exige não apenas que a essas investigações se aplique o princípio do amplo conhecimento de provas e investigações, como também se formalize o ato investigativo. Não é razoável se dar menos formalismo à investigação do Ministério Público do que aquele exigido para as investigações policiais. Menos razoável ainda é que se mitigue o princípio da ampla defesa quando for o caso de investigação conduzida pelo titular da ação penal. Disso tudo resulta que o tema comporta e reclama disciplina legal, para que a ação do Estado não resulte prejudicada e não prejudique a defesa dos direitos fundamentais. É que esse campo tem-se prestado a abusos. Tudo isso é resultado de um contexto de falta de lei a regulamentar a atuação do Ministério Público. No modelo atual, não entendo possível aceitar que o Ministério Público substitua a atividade policial incondicionalmente, devendo a atuação dar-se de forma subsidiária e em hipóteses específicas, a exemplo do que já enfatizado pelo ministro Celso de Mello quando do julgamento do HC 89.837/DF: “situações de lesão ao patrimônio público, [...] excessos cometidos pelos próprios agentes e organismos policiais, como tortura, abuso de poder, violências arbitrárias, concussão ou corrupção, ou, ainda, nos casos em que se verificar uma intencional omissão da Polícia na apuração de determinados delitos ou se configurar o deliberado intuito da própria corporação policial de frustrar, em função da qualidade da vítima ou da condição do suspeito, a adequada apuração de determinadas infrações pena(is)”.
Em resumo conclusivo, ao meu sentir, a energia de nossos legisladores deveria ser consagrada em garantir uma adequada persecução criminal, mas de ordem a resguardar sempre e sempre, não importa se em inquérito policial ou em investigação pelo Ministério Público, os mais amplos direitos fundamentais do cidadão.
[1] Brasil. Presidência da República. Manual de redação da Presidência da República / Gilmar Ferreira Mendes e Nestor José Forster Júnior. – 2. ed. rev. e atual. – Brasília : Presidência da República, 2002, p. 76.
[2] LEAL, Victor Nunes. Técnica Legislativa. In: Estudos de direito público. Rio de Janeiro, 1960. p. 7-8, apud Brasil. Presidência da República. Manual de redação da Presidência da República / Gilmar Ferreira Mendes e Nestor José Forster Júnior. – 2. ed. rev. e atual. – Brasília : Presidência da República, 2002, p. 76.
[3] No texto, o festejado constitucionalista brasileiro e magistrado de nossa Suprema Corte, refere a célebre passagem de Herman Jahrreiss: “Legislar é fazer experiências com o destino humano", cfe. JAHRREISS, Hermann. Groesse und Not der Gesetzgebung. 1953. p. 5, apud Brasil. Presidência da República. Manual de redação da Presidência da República / Gilmar Ferreira Mendes e Nestor José Forster Júnior. – 2. ed. rev. e atual. – Brasília : Presidência da República, 2002, p. 76.
[4] Como se sabe, na sua Teoria da Argumentação Jurídica, o autor enumera uma série de outras regras ínsita à argumentação e ao discurso normativo, tudo cfe. Robert Alexy. Theorie der juristischen Argumentation: die Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der juristischen Begründung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, p. 361.
[5] Paolo Barile et al. Istituzioni di Diritto Pubblico. 8ª. ed, Padova: Cedam, 1998, p. 431.
[6] Paolo Barile et al. Istituzioni di Diritto Pubblico. 8ª. ed, Padova: Cedam, 1998, p. 431/2.
[7] (2) Die Staatsanwaltschaft hat nicht nur die zur Belastung, sondern auch die zur Entlastung dienenden Umstände zu ermitteln und für die Erhebung der Beweise Sorge zu tragen, deren Verlust zu besorgen ist.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 23 de abril de 2013
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