Por Lenio Luiz Streck
Um pouco de história
Desde 1495 (durante o reinado de Henrique VII, da Inglaterra) existe a ficção dos dois corpos do rei. Foi um jeito que o inicio da modernidade — na virada do medievo— encontrou para resolver o problema do corpo natural do rei e sua “divindade” (ou seu corpo imaterial). Estou preparando um livro sobre essa importante e complexa questão da qual já falo de há muito e já deixei explicitado no livro O que é isto – decido conforme minha consciência?
O auge dessa aplicação se deu quando o Parlamento inglês recorreu a essa ficção (1642) para conjurar, em nome e por meio da autoridade de Carlos I (corpo político-divino-imaterial do Rei), os exércitos que iriam combater o mesmo Carlos I (corpo natural e material do Rei). Fantástico, não? Por intermédio da Declaração dos Lordes e Comuns, o corpo político do Rei era retido no e pelo Parlamento, enquanto o corpo natural era colocado “no gelo”. Isto porque o Rei é a fonte da justiça e da proteção, mas os Atos de Justiça e proteção não são exercidos em sua própria pessoa, nem dependem de seu desejo, mas por meio de suas Cortes e seus Ministros que devem cumprir seu dever nesse sentido.[1]
Sou apaixonado por essa temática. E tenho sido pioneiro nessa discussão a partir da hermenêutica e da construção de uma teoria da decisão. Por isso ajudei a colocar no novo Código de Processo Civil a coerência e a integridade (artigo 926) e contribuí para a retirada do livre convencimento (artigo 371). Tudo para separar os dois corpos. Ou seja, tenho referido à saciedade que, em uma decisão, não devem importar as opiniões pessoais dos juízes e dos tribunais sobre os temas que julgam. Eles devem julgar segundo o direito, cujo conceito aqui já delineei tantas vezes. Por isso trouxe à baila essa história sobre a doutrina dos dois corpos do rei. Em breve lanço um livro sobre isso. E é útil para comentar o que segue.
Como obter um Habeas Corpus? De novo a tese dos dois corpos do rei
A tese dos dois corpos do rei pode ser útil para analisarmos o estado da arte do direito em Pindorama. A jornalista Vera Magalhães escreveu na Folha que está avançada uma articulação de políticos de vários partidos, membros do governo, ministros do Superior Tribunal de Justiça e advogados da operação “lava jato” para que o STJ conceda nas próximas semanas Habeas Corpus para empreiteiros presos desde junho em Curitiba. Segundo a jornalista, a expectativa dos que costuram a saída é que o STJ também critique a manutenção de prisões provisórias por tanto tempo.
Deve ser a jornalista “Vera-Vidente”. A notícia foi contestada pelos advogados dos acusados. A questão que se coloca é: qual é o interesse de o jornal noticiar isso? Para prejudicar os acusados? Sim, porque por certo não seria para ajudá-los. Ou li mal a notícia?
O que há de estranho nisso? Ou o que há de “(a)normal” na notícia? Simples. Considerando que seja verdadeira a notícia, temos que, em terrae brasilis, necessitamos fazer conchavos para que alguém alcance um Habeas Corpus em tribunal superior. Mas chegamos a esse ponto? Na minha ingenuidade de quem nasceu no meio do mato e de parteira, sempre pensei que esses conchavos não são legítimos, para usar uma palavra suave. A partir das mais de seis mil folhas que já escrevi e de tantos milhares que já li, tenho que ou se tem direito a receber uma ordem de habeas corpus, porque presentes os requisitos – afinal, não vivemos, ainda, em um estado de exceção – ou não se tem esse direito.
Já escrevi muito sobre isso. Sabem por que isso é assim? Porque – de novo – não fazemos a separação dos dois corpos do rei. Desculpem-me a chatice epistêmica: decisões judiciais devem ser por princípio e não por políticas. Para o bem e para o mal. Nem conchavos para manter preso alguém, nem conchavos para soltar. Lutamos muito para construir a democracia, com juízes e promotores vitalícios, detentores de todas as vantagens pecuniárias. Construímos uma teoria constitucional sem precedentes. Uma teoria do direito avançada, melhor que a de muitos países avançados. Claro que no processo penal ainda necessitamos avançar. Os próprios juristas sempre apostaram (mal) na livre apreciação da prova. Talvez por isso estejam pagando um alto preço, como deixei claro na minha palestra no IBCrim.
Consequentemente, se decisões devem ser sempre por princípio e não por finalismos ou teleologia(s) – portanto, decisões judiciais não devem ser consequencialistas – parece-me feio e inadequado que notícias como a da jornalista tenham espaço na República. Doa a quem doer, se alguém tem direito à liberdade ou se constata que a prova é ilícita, deve ser libertado. Mesmo que a imprensa seja contra. Mesmo que a opinião pública odeie. Quando Procurador de Justiça, exarei – como era de meu costume, suspendendo meus pré-juízos – parecer pela concessão de Habeas Corpus em um caso de três assaltantes presos em flagrante, cuja homologação da prisão dizia: flagrante prende por si. Em meu parecer, disse: doa a quem doer, a decisão é nula, porque não fundamentada. E a jurisprudência e a lei exigem fundamentação. E citei precedentes. E acrescentei: faz parte do risco da democracia ter juízes que não sabem fundamentar. Eles terão de aprender, frisei. Mas não à custa da liberdade das pessoas (mesmo que sejam culpados, teleologicamente falando). Consequência: mesmo contra todas as críticas, meu parecer foi no sentido da concessão da ordem! Tudo para manter aquilo que sempre prego: coerência e integridade.
Insisto: decisões devem ser por princípio. E não por políticas ou qualquer outra finalidade. Por isso um bom exemplo de decisão por principio é o aeroporto. Todos têm de tirar o sapato. Todos passam pelo raio X. Até a senhora idosa que chegou atrasada. Vai perder o voo. O processo do aeroporto não é finalístico. O princípio é: não passa ninguém sem revista. Inclusive a velhinha. E os funcionários. Tire o cinto. E o relógio. E as moedas. Bingo. E se não fosse assim? Seria o caos. Porque a decisão de deixar passar sem revista seria... discricionária. Binguíssimo. E isso não daria segurança... nem jurídica, nem física aos usuários. Bingo de novo! Compreendem a minha insistência sobre a decisão por princípio e sobre os dois corpos do rei? Querem falar disso de outro modo? Pensem nisso como “republicanismo” e fairness (equanimidade).
Ou seja: quando pedimos um Habeas Corpus não estamos implorando por um favor. E não estamos perguntando se o tribunal quer ou não quer soltá-lo. Perguntamos, apenas, se ele tem direito. Só isso. Lembremos-nos do que disseram as Cortes no longínquo ano de 1642, na Inglaterra, sobre o agir do Rei: “Os atos de justiça não são exercidos em sua própria pessoa e nem dependem de seu desejo”.
A inconstitucionalidade do Brasil?
A confusão entre os dois corpos do rei ocorre todos os dias. Como explicar a tese dos dois corpos do rei que existe desde 1495? Simples. Quando alguém vai ao Judiciário, não vai pedir a opinião pessoal do juiz – corpo natural - acerca do tema. Nem vai perguntar se o que diz a lei é justo ou injusto. Fosse para discutir a justiça ou a injustiça seria mais fácil pedir a opinião de um filósofo moral.
Quem recorre ao Judiciário quer saber o que o direito, enfim, a estrutura jurídica composta de leis, doutrina e jurisprudência, têm a dizer.[2] E quem deve dar a resposta é o corpo imaterial do juiz (ou membro do Tribunal). Ora, exatamente porque a resposta tem sido subjetiva, pessoal, vivemos tempos de razão te(le)ológica, não secularizada.
Por que estou trazendo isso à baila? E por qual razão estou dizendo que, quando a parte vai ao Judiciário, ela quer saber, mesmo, o que o direito tem a dizer e não o que o judiciário, “pessoalmente por seus agentes”, tem a falar? Porque é isso que me pareceu o julgamento da ADI 4.650 sobre doações de campanha. Em termos de Estado Democrático, uma ADI deve(ria) perguntar se a Constituição Federal contempla ou não proibição de doações por parte de empresas. De todo modo, quero crer que a OAB não foi perguntar, via ADI, se o STF era contra ou a favor de as empresas doarem para os partidos. Também não perguntou – ou não deveria perguntar - se o ato de doar via empresa era bom ou ruim. Parece-me que não, porque isso seria pedir um simples juízo moral ao STF. Peço que me corrijam se eu estiver equivocado. Para mim, a pergunta correta é: o que o poder constituinte disse sobre doações? Ou ele não tratou do assunto? E é isso que a Corte deve responder. A CF proíbe ou não? Ou a Constituição permite ou proíbe.
Fundindo dois assuntos
Tenho receio dessa coisa chamada ECI - Estado de Coisas Inconstitucional, que é fluída, genérica e líquida. Por ela, tudo pode virar inconstitucionalidade. Das doações em campanha ao sistema prisional (ADPF 347). Mas pergunto: o salário mínimo não faz parte desse Estado de Coisas Inconstitucional? Os juros bancários - os do cartão de crédito bateram nos 400% - não são, igualmente, uma “coisa inconstitucional”? Peço perdão pela ironia, mas, diante do tamanho da crise, receio que alguém entre com uma ação para declarar a inconstitucionalidade... do Brasil.
Será que não estamos exagerando? Poderíamos chamar a isso de panconstitucionalismo? Será que, por exemplo, essa tese do ECI não é mais uma forma de justificar ativismos? Antes que alguém fale, respondo: sim, sei que essa tese não foi usada na referida ADI das doações de empresas. Foi em outro caso (ADPF 347). Mas, de algum modo, penso que esses “estados de coisas” estão relacionados. Já estão falando até em macrossentenças e ativismo estrutural.[3] E as coisas vão trocando de nome.
Esclarecendo: o PSol (por ironia, um partido que deveria acreditar no parlamento, mas como não ganha eleição para o Executivo para fazer suas políticas públicas, vai buscar sua pretensão fora de sua atuação institucional) foi ao Judiciário pedir que se declarasse o “Estado de Coisas Inconstitucional”, a fim de determinar ao governo federal que (dentre outras coisas) elabore e encaminhe ao STF, no prazo de três meses, um “Plano Nacional” para modificação das condições do sistema carcerário; após a deliberação do “Plano Nacional”, determinar ao governo de cada estado e do DF que formule e apresente ao STF, no prazo de três meses, um plano estadual ou distrital, que “se harmonize com o Plano Nacional”; impor o “imediato descontingenciamento das verbas existentes no Fundo Penitenciário Nacional (Funpen)”; determinar ao Conselho Nacional de Justiça que coordene um ou mais mutirões carcerários etc.
Ou seja, basta que o sistema político não funcione como pensam os autores da causa que estará consagrada “a inconstitucionalidade das coisas”? Por essa tese poderíamos declarar o “estado de coisas econômico” inconstitucional. Afinal, com o dólar a mais de R$ 4... E poderíamos declará-lo com efeito ex tunc, para que o dólar voltasse ao patamar de R$ 2...
Pergunto: o que não é “coisa inconstitucional” neste país periférico que está à beira do abismo? Poderíamos aproveitar para fazer o mesmo com os juros sobre as operações de crédito, a situação do transporte público em terrae brasiliense, crise da segurança pública (o RS está um caos, o Rio nem se fala) crise na educação, dos hospitais (pessoas morrendo nas filas, tomando soro em pé...) etc. E, a partir de uma inconstitucionalidade por arrastamento, declarar a inconstitucionalidade do estado de coisas proporcionadas pelas operadoras de telefonia.
Peço que me desculpem. Não é implicância minha. Mas por que judicializar tudo? A pergunta que fica não respondida é: e a legitimidade constitucional para obrigar o Executivo a tomar essas medidas? É do Judiciário? Assim, sem mais nem menos? O que sobrou para a democracia? E se os juízes em suas comarcas começarem a declarar, em controle difuso, o estado de coisas inconstitucional das “coisas” do município? Tem município que não fornece nem merenda escolar. E não subestimemos o poder dos Tribunais do Estados Federados... Perdoem-me, de novo. Sei que isso é antipático. Mas não me perdoaria se não escrevesse isso.
Uma observação: entendo que o sistema prisional é caótico. Mas sua “inconstitucionalidade” (estado de coisas) é demasiado vaga, como dizem a PGR e a AGU. Cabe de tudo nesse “conceito ônibus” que é o ECI. Como advogado, estrategicamente, até admito lançar mão da tese. Mas como cientista (pensemos nos dois corpos do rei), o substrato se me apresenta frágil. Não esqueçamos que só a Colômbia a utilizou. O resto do mundo, não. E agora, o Brasil.
Numa palavra: a partir de um juízo político ou moral (ou econômico), o que não é inconstitucional em nosso país? O problema reside nos efeitos colaterais. O risco de uma decisão desse porte. Como em uma epidemia, a ADPF 347 é o “paciente zero”. Bem, devo estar dizendo isso talvez porque eu seja um conservador e acredite na divisão de poderes que está na Constituição. Mas, enfim, vive la différence (que quer dizer, vida longa à diferença).
Post scriptum: Quem escreveu esta coluna, creiam — e quem durante 28 anos de carreira de Ministério Público nunca confundiu os seus dois corpos —, não foi o meu corpo pessoal; quem escreveu e se responsabiliza pelo texto foi o professor e acadêmico. É o que poderia ser chamado, parafraseando o famoso livro de E. Kantorowicz, de The Streck’s Two Bodies!
[1] Ver, para tanto, MCIlwain, C.H. The High Court vs Parliament and its Supremacy, 1920, pp.389 e segs.; também E.H. Kantorowicz. The King’s Two Bodies. Princity University Press, 1957, primeira parte.
[2] A não ser em 6 hipóteses (ler aqui), há o dever de aplicar a lei.
[3] Conferir artigo do Professor Carlos Alexandre de Azevedo Campos.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 24 de setembro de 2015, 8h00