sexta-feira, 2 de maio de 2014

THAYS, 18, PASSA NA OAB: O REI ESTÁ NU! FRACASSAMOS!

Thays, 18, passa na OAB: o rei está nu! Fracassamos!

 
Caricatura Lenio Streck [Spacca]As redes sociais pululam. Thays, 18 anos, estudante do segundo período de direito em Rondônia, passou no exame da OAB. Poderia, pois, ser advogada sem ter concluído o curso. Ela não trabalha como estagiária, não tem família “jurídica”. O mais próximo que ela está do direito é uma tia que trabalha na Justiça e um primo causídico. Não estudou processo, não estudou filosofia, não estudou processo civil, processo penal, direito penal... Mas passou.
Ela estudou para a prova durante três meses, segundo disse na entrevista (ler aqui).  Sua “metodologia”: leu as questões das provas anteriores, leu o Estatuto da OAB e o Código de Ética, porque “sabia que para acertar todas as questões de Deontologia Jurídica era essencial”. Diz mais: “A primeira fase se resumiu em fazer vários exercícios, mesmo aprendendo sobre aquele conteúdo com o gabarito das questões. Já para a 2ª fase estudei um livro de Constitucional para concursos pois a linguagem era mais direta e rápida, tendo que adotar tal doutrina por ter pouco tempo para muito conteúdo. Li também um livro com as peças prático-profissionais resolvidas, já que eu não conhecia e nem sabia como era uma peça. A partir daí passei a resolver todas as provas em casa para não errar no dia.”
Bom, as matérias que ela teve contato na faculdade foram Deontologia Jurídica, Direito Constitucional e Direitos Humanos. O restante, ela “aprendeu” lendo os manuais representados pela literatura que se usa por aí.  Na segunda fase ela escolheu Constitucional. Pronto. Passou. Tirou 4,4 de 5,0. O segredo dela, segundo suas palavras: “usou material de ótima qualidade”.
Fim do ato. Fecham-se as cortinas. Vou para o meu bunker
Os concursos e os quiz showsTenho denunciado o fracasso do modelo de concursos públicos e prova da OAB de há muito. Ao mesmo tempo em que Thays passa depois de ter cursado apenas uma pequena parte do curso de direito, mais de 50% chumbam nesse exame. Os concursos públicos aferem apenas informações. Decorebas. Thays — e não quero tirar o mérito dela (meus sinceros parabéns para ela) — é o exemplo de que basta treinar. Não é necessário estudar no sentido de refletir. É necessário tão-somente fazer um bom adestramento. 
Vamos todos para Estocolmo. O Nobel é nosso. Comunidade jurídica de terrae brasilis: por favor, vamos levar o direito a sério. Imaginemos na medicina um aluno de segundo período passar no “Exame de Ordem” deles (falo nas circunstâncias do caso retratado — não é impossível que algum Einstein passe; o que impressiona é o depoimento de Thays; ela foi aprovada sem ter cursado disciplinas, sem ter contato qualquer com a matéria, a não ser por via derivadíssima!). Quem se trataria com médicos brasileiros? Teríamos que fugir para outro lugar. E quem quer ser “tratado” pelos nossos “juristas”?
Bom, basta ver a qualidade dos livros didáticos e parte considerável da “doutrina” utilizada nas decisões e pareceres por aí. Invenção de princípios, ponderações que não passam de invencionices, reproduções de autores dos quais foram lidos resumos no Google... Nem mesmo a dogmática jurídica é levada a sério. Aliás, que dogmática jurídica temos, se, com apenas um semestre (ou dois) de Constitucional, a candidata já gabaritou o Exame da OAB? Hein?
E vejamos as salas de aula, as bancadas dos Fóruns e das meses do Tribunais. Direitos resumidos (e resumidinhos), simplinhos, mastigados (e mastigadinhos), direito Prêt-à-Porter (que não é doutrina francesa — vá que algum néscio pense que seja)... Insisto: parte (atenção, para não dar briga, eu disse parte) do material didático utilizado nas salas de aula e nos cursinhos de preparação deveria ter uma tarja com a advertência “o uso constante desse material fará mal a sua saúde epistêmica”. Na quarta capa, a foto de um “candidato” com cara “esquisita” (para ser eufemista) e a inscrição “usei e fiquei assim!”. Vejam a capa e a contracapa dos "livros mais utilizados", vistos alegoricamente:
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Terrabrasiliensis de todos os matizes e lugares: levamos “tão a sério” o Direito que basta estar cursando duas ou três disciplinas para “passar” pelo filtro profissional... O que fizemos com o Direito? É ele uma racionalidade tão meramente instrumental que é possível apreendê-lo mediante decorebas e formulinhas escritas em dois ou três “mastigadinhos”, resumos e resuminhos?
Este é o “estado da arte”. A grande “sacada” dos concursos nos últimos tempos foi a LINDB, uma “leizinha” de quinta categoria que serve só para a elaboração de questões em provas e outros quetais. E quando veio a Resolução 75 exigindo “Humanismo” nas provas, surgiu darwinianamente uma literatura de terceira divisão para demonstrar que efetivamente não é possível levar alguma a sério neste país. Basta ver o que os livros sobre humanismo fizeram com Rawls, Aristóteles, positivismo, hermenêutica, Kant, etc. Neste ConJur já escrevi várias colunas sobre isso. 
De nada adianta: vamos estocar comida!Thays é um marco simbólico. Thays denunciou o sistema. Viva a Thays (e falo seriamente isso). Sem querer, ela demonstrou a nudez do rei e da realeza terrabrasiliana. Fundamentalmente denunciou o fracasso de um “modelo” ou de um “sistema”. Mas, pergunto: Será que isso servirá para alguma coisa? Servirá de advertência? Ou a notícia será escondida por outra notícia e pelo próximo escândalo no ensino jurídico e nos concursos? 
A banalização faz com que tenhamos perdido a nossa capacidade crítica. Talvez devêssemos inventar um aparelho para colocar nas redes sociais, que apitasse de semana em semana, chamando a atenção para a notícia que vai desaparecendo, coberta por outras camadas de notícias. Poderíamos chamar a esse aparelho de “micômetro”, isto é, um mecanismo para denunciar o “mico” pago na(s) semana(s) anteriores. Talvez com isso não esquecêssemos a decisão do juiz que julgou deserto o recurso cujo prazo caiu em um domingo, a decisão que indeferiu a inicial por ter páginas “demais”, a tentativa de grampos “alrededor” do Palácio do Planalto, o professor que acabou com Aristóteles e com Gadamér (sic), o livro que “ensina” que quando a CF fala em armas da República, não está se referindo às armas de fogo... Talvez por isso ninguém se impressione quando um desembargador decide uma causa usando o Google Maps na hora da decisão, para dizer que o juiz se equivocou na prova... Ou quando doutrinadores confundem “citações de autores de filosofia” com o uso de paradigmas filosóficos... Ou quando a “grande sacada” é dizer que “o juiz boca da lei morreu”...e que agora a saída é a ponderação. Ou que “tudo é relativo”... O alarme poderia funcionar, pois não? 
Afinal, por que os leitores acham que essas coisas acontecem no cotidiano das práticas judiciárias (e da doutrina que não mais doutrina)? Por quê? Porque Thays pode passar na prova de Ordem sem ter estudado direito o Direito. Porque para passar na prova de juiz federal ou Ministério Público Federal tem que decorar a legislação e responder pegadinhas sobre dispositivos da Constituição ou responder questões sobre extradição que só o examinador conhece. Ou responder a questões sobre Caio e Tício ou sobre a ladra Jane... 
Formou-se uma imensa indústria em torno do “Direito” que parece estar sucateada, em crise, como a indústria de automóveis. As “montadoras” do direito estão em crise. E as ruas estão cheinhas de automóveis. Mas o governo agora vai financiar em 60 meses. Claro. Vai melhorar. Se me entendem a analogia, é claro! 
Vale a pena “descascar os fenômenos”?Nestes tempos de pós-modernidade, de fragilização de sentidos, de “grau zero de significação”, de instantaneidades, de “memes” e bizarrias, fico pensando, parafraseando Caetano: quem lê tanta notícia? E quem se importa com isso tudo? Na sociedade do espetáculo, vivemos a ascensão da insignificância, do mínimo, dos 140 caracteres. Não há mais segredos. E quando se tenta fazer desleituras (a la Harold Bloom), retirando as camadas de sentidos coagulados do senso comum teórico, no mesmo dia ou no dia seguinte novas camadas se superpõem, escondendo aquilo que foi desvelado. Vale a pena agir como Sísifo e rolar a pedra até o alto e ser jogado inexoravelmente para o início do tormento? Cartas para a Coluna. 
Algum néscio aparece(rá) e dirá: lá vem esse chato criticando de novo os concursos, o ensino, a dogmática, as decisões, etc (e blá, blá, blá). Pois é. Talvez a nescio-cracia vença esse Armagedom epistêmico. Talvez já tenha vencido. Nós é que não nos damos conta. Burros que somos. Como dizia Eraclio Zepeda, ás águas da enchente desceram e cobriram a tudo e a todos... Nós é que não nos apercebemos que de há muito começara a chover no alto da serra!
As coisas por aqui em terrae brasilis são difíceis. Temos que matar dois leões por dia. E não fazer atalhos ao estilo Jeca Tatu, personagem de Monteiro Lobato, com o qual demonstrava o atraso nacional (sua filosofia era de que era melhor sentar em um banquinho de três pernas; para que quatro, se com três equilibrava melhor?) e por que plantar se as formigas comerão tudo... Somos incríveis: assinamos sete cartas de intenção com o FMI na década de 80 (a década perdida). Segundo um dos negociadores, cuja revelação foi feita para Elio Gaspari, “assinamos a primeira por engano, a segunda por distração. A terceira porque somos mentirosos, mas você não acha que, a partir daí, ou mesmo antes, estava tudo combinado?” Então: não parece que, nessa algaravia de concursos, ensino, literatura meia-boca, não ocorreram enganos, distrações e mentiras? Ou tudo isso já está combinado? Ou seja: tudo o que está ai não seria algo do tipo “ao não funcionar...funciona?”
Talvez a disfuncionalidade seja a própria funcionalidade.
Melancolicamente — em alemão, a palavra é Gelassenheit (um deixamento, mas ao mesmo tempo uma serenidade) — como homenagem a todos os leitores, reproduzo abaixo uma charge que recebi esta semana, que me foi mandada pelo aluno-doutorando Marcelo Ribeiro. Ela é autorreferente. Nenhuma linha precisa ser dita. 
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Post scriptum: dia 2 de maio, sexta-feira, faço a conferência de encerramento do dia na ABDCONST em Curitiba — Teatro Guaíra. E lanço vários livros logo após. Falarei sobre O Constitucionalismo: os limites do sentidos e os sentidos dos limites.
 
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 1º de maio de 2014

quarta-feira, 30 de abril de 2014

TERMO INICIAL DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR NA AÇÃO DE ALIMENTOS E INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE


Termo inicial da obrigação alimentar na ação de alimentos e investigatória de paternidade
 
 
 
 
Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
www.mariaberenice.com.br
 
Uma verdade que se tem por absoluta é que os alimentos são devidos desde a data da citação, até porque isso é o que está escrito na Lei de Alimentos (LA, 5.578-68, art. 13, § 2º): Em qualquer caso os alimentos fixados retroagem à data da citação. Como há a determinação de incidência dessa lei às ações de separação, de anulação de casamento e às revisionais, em todas as demandas em que há a fixação de verba alimentar, o encargo tem como termo inicial o ato citatório.
Parece que este é um ponto que ninguém questiona: alimentos são devidos desde o momento em que o réu foi citado para a ação. Seja em demanda autônoma, seja o encargo alimentar estabelecido em ação outra, a eficácia da sentença tem efeito retroativo.
 
Na ação de alimentos
Para assegurar a tutela diferenciada que determinados direitos merecem, leis especiais prevêem ritos abreviados. Assim, os alimentos, que dizem com a subsistência, com a sobrevivência, necessitam de adimplemento imediato. Por isso, mediante a prova do vínculo de parentesco ou da obrigação alimentar (LA, art. 2º), o juiz estipula, desde logo, alimentos provisórios. Aliás, mesmo se não requeridos, os alimentos devem ser fixados, a não ser que o credor expressamente declare que deles não necessita (LA, art. 4º).
Os alimentos são devidos a partir do momento em que o juiz os fixa. Equivocado o entendimento que, invocando o § 2º do art. 13 da Lei de Alimentos, sustenta que os alimentos provisórios se tornam exigíveis somente a partir da citação do devedor. Não há como sujeitar o pagamento ao ato citatório. Desempenhando o devedor atividade assalariada, ao fixar os alimentos, o juiz oficia ao empregador para que ele, desde logo, dê início ao desconto da pensão na folha de pagamento do alimentante. Os descontos passam a acontecer mesmo antes da citação do réu. Porém, não dispondo o alimentante de vínculo laboral, não há como lhe conceder prazo distinto para iniciar o pagamento dos alimentos, qual seja, só após ser citado. Descabido tratamento diferenciado. Além de deixar o credor desassistido, estar-se-ia incentivando o devedor a esquivar-se da citação, a esconder-se do Oficial de Justiça.
Deferidos alimentos provisórios são devidos até o momento em que eventualmente venham a ser modificados: no curso da demanda, pela sentença ou quando do julgamento do recurso. Alterado seu valor, passa a vigorar o novo montante, quer tenha sido majorado, quer tenha sido reduzido. A eficácia retroativa dos alimentos definitivos vai depender se houve aumento ou diminuição de valores. Este tratamento diferenciado decorre do princípio da irrepetibilidade do encargo alimentar. Assim, fixados os alimentos provisórios, devem eles ser pagos. Havendo redução, o novo valor terá eficácia ex nunc, ou seja, só valerá com relação às parcelas futuras. As prestações vencidas, ainda que impagas, continuam devidas pelo valor estipulado a título provisório, pois não há como emprestar efeito retroativo à decisão, sob pena de incentivar-se a inadimplência. Somente quando são estabelecidos alimentos definitivos em valor maior que a verba provisória é que cabe falar em retroatividade. O devedor terá que proceder ao pagamento da diferença desde a data da citação. Há que atentar a um detalhe: como os alimentos provisórios vigem desde a data da fixação, e os definitivos retroagem à data da citação, havendo majoração do valor dos alimentos, a diferença alcança somente as parcelas vencidas depois da data da citação. As prestações vencidas entre a data da fixação liminar e a citação permanecem pelo valor provisório.
Esta sempre foi a posição pacífica da jurisprudência com o respaldo da doutrina amplamente majoritária. Porém, nada justifica limitar a obrigação alimentar ao ato citatório. Os encargos do poder familiar surgem quando da concepção do filho, eis que a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro (CC, art. 4º). Ora, com o nascimento, mesmo antes de o pai proceder ao registro do filho, está por demais consciente de todos os deveres inerentes ao dever familiar, entre os quais o de assegurar-lhe o sustento e a educação. Enquanto os pais mantêm vida em comum, o genitor tem o filho sob sua guarda, e os deveres decorrentes do poder familiar constituem obrigação de fazer. Cessada a convivência dos genitores, não se modificam os direitos e deveres com relação à prole (CC, arts. 1.579 e 1.632). Restando a guarda do filho com somente um dos pais, a obrigação decorrente do poder familiar resolve-se em obrigação de dar, consubstanciada no pagamento de pensão alimentícia.
Assim, o genitor que deixa de conviver com o filho deve alcançar-lhe alimentos de imediato: ou mediante pagamento direto e espontâneo, ou por meio da ação de oferta de alimentos. Como a verba se destina a garantir a subsistência, precisam ser satisfeitas antecipadamente. Assim, no dia em que o genitor sai de casa, deve pagar alimentos em favor do filho. O que não pode é, comodamente, ficar aguardando a propositura da ação alimentar e, enquanto isso, quedar-se omisso e só adimplir a obrigação após citado.
Cabe lembrar que, na ação de alimentos, há inversão dos encargos probatórios. Ao autor cabe comprovar o vínculo de parentesco ou a obrigação alimentar do réu, bem como indicar as circunstâncias em que ocorreu a mora, ou seja, a data em que houve a cessação do convívio e o não-pagamento dos alimentos. Não há como lhe impor que comprove os ganhos do demandado, pois são informações sigilosas que integram o direito à privacidade. É do réu o ônus de provar seus ganhos para que o juiz possa fixar os alimentos atendendo ao critério da proporcionalidade. Também a ele compete demonstrar que continuou assegurando a subsistência do filho a partir do momento que deixou o filho de estar sob sua guarda.
Em se tratando de obrigação decorrente do poder familiar, é inequívoca a ciência do réu do direito reclamado pelo autor. Portanto, não há por que constituir o devedor em mora pelo ato citatório para lhe impor o adimplemento da obrigação alimentar (CPC, art. 219). A mora constituiu-se quando deixa o pai de prover o sustento do filho. Assim, na ação mister que reste provado o parentesco, os ganhos do genitor bem como o momento em que ele deixou de adimplir a obrigação de prover o sustento do filho. Por ocasião da sentença, o juiz fixará os alimentos indicando o termo inicial de sua vigência: aquém da data da citação e aquém da data da propositura da ação. O dies a quo será o momento em que houve a cessação do adimplemento do dever de sustento que decorre do poder familiar. Este é o marco inicial da obrigação alimentar.
 
Na ação investigatória de paternidade
Nas ações de alimentos, separação, anulatória de casamento, entre outras, existe a prova pré-constituída do vínculo obrigacional alimentar. Daí a possibilidade de uso de lei especial (Lei 5.478-68), que dispõe de rito diferenciado e admite a concessão de tutela antecipada por meio da fixação de alimentos provisórios.
Na ação de investigação de paternidade, inexiste o vínculo constituído da relação de parentesco. Aliás, este é o próprio objeto da ação. Ainda assim, por salutar construção jurisprudencial, passou-se admitir a concessão de alimentos provisórios nessa demanda. Havendo indícios da parentalidade, são fixados alimentos initio litis. Também cabe deferir alimentos provisórios, de modo incidental, com o resultado positivo do exame de DNA ou quando se recusa o réu a submeter-se à perícia.
Sendo os alimentos fixados por ocasião da sentença, o eventual recurso, no que diz com o encargo alimentar, dispõe do só efeito devolutivo. Em qualquer dessas hipóteses cabe promover a execução dos alimentos, ainda antes do trânsito em julgado da ação investigatória.
Depois de algumas vacilações, a jurisprudência, ao atentar à natureza declaratória da demanda investigatória de paternidade, deu mais um significativo passo, e o Superior Tribunal de Justiça veio a editar a Súmula 227: Julgada procedente a investigação de paternidade, os alimentos são devidos a partir da citação.
Acabou por invocar-se o art. 13, § 2º da Lei de Alimentos. A solução foi providencial. Uma bela forma de dar um basta à postura procrastinatória do réu, que fazia uso de expedientes protelatórios e um sem-número de recursos manifestamente improcedentes para retardar o desfecho da ação. Como a condenação ao pagamento dos alimentos ocorria somente na sentença, livrava-se o réu durante anos, ou décadas, do encargo alimentar.
Mas pai é pai desde a concepção do filho. A partir daí, nascem os ônus, encargos e deveres decorrentes do poder familiar. O simples fato de o genitor não assumir a responsabilidade parental não o desonera. No entanto, é isso o que se vê acontecer todos os dias. Ao saber que a namorada ou companheira está grávida, o homem tenta induzi-la ao aborto, nega ser o pai, a abandona. Ameaça denegrir sua imagem argüindo a malsinada exceptio plurium concubentium e que levará vários amigos como testemunhas para afirmarem que tiveram contato sexual com ela. A mulher, fragilizada, muitas vezes abandonada pela família, acaba criando o filho sozinha. Tem enorme dificuldade de procurar um advogado, de amealhar provas de um relacionamento íntimo que lhe causou tanto sofrimento e que, muitas vezes, por imposição do varão, se manteve na clandestinidade.
Mas o filho tem direito à identidade, à proteção integral, merece viver com dignidade, precisa de alimentos, quer ter alguém para chamar de pai. Quando, depois de vários anos, consegue obter o reconhecimento da paternidade, os alimentos injustificadamente são fixados a partir da citação do réu, como se o filho tivesse nascido naquele dia. Essa orientação consolidada da jurisprudência esquece o que se chama de responsabilidade parental. Nenhum pai mais irá acompanhar a mãe, registrar o filho e pagar alimentos sabendo que, se ficar inerte e lograr safar-se da citação, poderá ficar anos sem arcar com nada.
O filho necessita de cuidados especiais mesmo durante a vida intra-uterina. A mãe tem que se submeter a exames pré-natais, e o parto sempre gera despesas, ainda que feito  pelo SUS. Durante a gravidez, a mãe precisa de roupas apropriadas e adequada alimentação, sem olvidar que tem sua capacidade laboral reduzida durante a gestação e depois do nascimento do filho. Também seus ganhos são limitados no período da licença-maternidade.
É necessário dar efetividade ao princípio da paternidade responsável que a Constituição (art. 227) procurou realçar quando elegeu, como prioridade absoluta, a proteção integral a crianças e adolescentes, delegando não só à família, mas à sociedade e ao próprio Estado, o compromisso pela formação do cidadão de amanhã. Esse compromisso é também do Poder Judiciário, que não pode simplesmente desonerar o genitor de todos os encargos decorrentes do poder familiar e, na ação investigatória de paternidade, responsabilizá-lo exclusivamente a partir da citação.
Mas há outro princípio constitucional que necessita ser invocado: o que impõe tratamento isonômico aos filhos, vedando discriminações (CF, art. 227, § 6º). O pai responsável acompanha o filho desde sua concepção, participa do parto, registra o filho, embala-o no colo. Com relação ao filho que não recebeu estes cuidados, deve a Justiça procurar suavizar essas desigualdades e não as acentuar ainda mais limitando a obrigação alimentar do genitor, relapso.
Claro que a alegação do demandado sempre será de que desconhecia a gravidez, não soube do nascimento do filho e sequer tomara conhecimento da sua existência, só vindo a saber de tais fatos quando da citação. Nessas ações, como a prova é de fato que acontece a descoberto de testemunha, não há divisão tarifada dos encargos probatórios segundo os ditames processuais (CPC, art. 333). Aliás, a atribuição dos ônus probatórios até perdeu relevo, em face do alto grau de certeza dos exames de DNA e da presunção que decorre da negativa em submeter-se à perícia (CC, arts. 230 e 231). Súmula do STJ[1] atribui presunção juris tantum à omissão do investigado. Com referência à prova da ciência da paternidade, cabe ao autor demonstrar as circunstâncias em que réu tomou conhecimento de sua concepção, do seu nascimento ou da sua existência. Não logrando o demandado comprovar que desconhecia ser o pai do autor antes da citação, deverá ser-lhe imposto o pagamento dos alimentos desde o momento em que tomou ciência da paternidade. 
Outro fundamento a ser utilizado pelo réu para livrar-se dos alimentos com efeito retroativo é o de que não tinha certeza da paternidade, não podendo assumir o encargo sem saber se o filho era seu. No entanto, desde o advento do exame do DNA, que dispõe de índice de certeza quase absoluto, não há mais como alegar dúvida sobre a verdade biológica. Nem o custo do teste e nem a negativa da genitora em deixar o filho submeter-se ao exame servem de justificativa para não ser  buscada a verdade. Basta ingressar com ação declaratória ou negatória de paternidade. Também pode ajuizar cautelar de produção antecipada de prova. Em todas as hipóteses, a quem não tiver condições de pagar, o acesso ao exame genético é gratuito.
Nada justifica livrar o genitor das obrigações decorrentes do poder familiar, que surgem desde a concepção do filho. Como a ação investigatória de paternidade tem carga eficacial declaratória, todos os efeitos retroagem à data da concepção, até mesmo a obrigação alimentar. A filiação, que existia antes, embora sem caráter legal, passa a ser assente perante a lei. O reconhecimento, portanto, não cria: revela-a. Daí resulta que os seus efeitos, quaisquer que sejam, remontam ao dia do nascimento, e, se for preciso, da concepção do reconhecido.[2]
Esta é a orientação que já vem se insinuando na doutrina[3] e desponta na jurisprudência.[4]
É muito bonito falar-se em dignidade humana, em paternidade responsável, em proteção integral a crianças e adolescentes. Mas é preciso dar efetividade a todos esses princípios. Certamente a responsabilidade é da Justiça. Para isso, não é necessário aguardar o legislador. Basta o Poder Judiciário continuar desempenhando o seu papel com coragem e responsabilidade, para garantir a cidadania a todos, principalmente aos cidadãos de amanhã.


[1] Súmula 301: Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.
[2] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, 3ª. ed., Tomo IX, Borsoi: 1971, p. 99.
[3] FERNANDES, Thycho Barhe. Do Termo Inicial dos Alimentos na Ação de Investigação de Paternidade, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 694, p. 268-70, 1993; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. O Termo Inicial dos Alimentos e a Ação de Investigação de Paternidade, Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, n. 6, p. 50-60, 2000; BORGHEZAN, Miguel. O Termo Inicial dos Alimentos e A Concreta Defesa da Vida na Ação de Investigação de Paternidade, Repertório IOB de Jurisprudência, São Paulo, 3/18048, 2001.
[4] INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECUSA EM SUBMETER AO EXAME DE DNA. ALIMENTOS. FIXAÇÃO E TERMO INICIAL À DATA DA CONCEPÇÃO. A recusa em se submeter ao exame de paternidade gera presunção da paternidade. O fato de inexistir pedido expresso de alimentos não impede o magistrado de fixá-los, não sendo extra petita a sentença.
O termo inicial da obrigação alimentar deve ser o da data da concepção quando o genitor tinha ciência da gravidez e recusou-se a reconhecer o filho. REJEITADA A PRELIMINAR. APELO DESPROVIDO, POR MAIORIA. (TJRGS – AC 70012915062 – 7ª C.Cív. – Rel. Desa. Maria Berenice Dias – j. 9/11/2005).
 
 
Fonte: https://www.tjrs.jus.br/.../Termo_inicial_da_obrigacao_alimentar.do

terça-feira, 29 de abril de 2014

PONDERAÇÃO NO DIREITO AMERICANO E A CRÍTICA AO FORMALISMO

Ponderação no direito americano e a crítica ao formalismo

 
Não sou exatamente um entusiasta — acrítico — do método da ponderação. Na tese que escrevi sobre o assunto (de 2000 a 2005), encontrei de fato, nas minhas conclusões, consideráveis razões para o comedimento e a necessidade de restrições à sua utilização. Entretanto, o artigo de hoje é escrito sob a advertência de que temos que tomar a sério o poder e o lugar da crítica. Não é que faltem bons e sérios trabalhos críticos. Por exemplo, para quem tiver interesse num sério confronto intelectual com a gramática hoje prevalecente dos princípios/regras, ou do modelo ponderação/subsunção, tem-se o excepcional trabalho de Marcelo Neves, Entre Hidra e Hércules: Princípios e Regras Constitucionais[1], em que o célebre professor brasileiro, apesar do itinerário abertamente crítico, mediante uma análise rica e profunda de doutrinas como a de Alexy e Dworkin, não desmerece a qualidade intelectual das teorias que põe sob o crivo fundamentado de sua discordância intelectual.
Contudo, destacadas as exceções — e, repito, elas existem —, fato é que, no Brasil, seja para enaltecer, mas especialmente para criticar, a técnica da ponderação de bens tem sido associada teoricamente, de forma quase exclusiva, às formulações intelectuais de Robert Alexy, permitindo-se sugerir aos mais ingênuos que o instituto seria mesmo, pura e simplesmente, uma criação mental do grande pensador alemão. Pior ainda, retalham-se suas proposições teóricas para, num salto epistemológico seguinte, através de remendos de ocasião, criticar-lhe conclusões que sua doutrina jamais autorizaria.
Do ponto de vista histórico, no que aqui interessa, considerada a forma aligeirada com que vem sendo tratada a sua teoria, poderá surpreender a muitos a notícia de que Robert Alexy não inventou a "ponderação de bens" (Güterabwägung), nem ela, com defeitos ou qualidades, lhe pertence.
O método já aparece na jurisdição alemã, desde o início do século passado, inicialmente no direito penal e depois no direito constitucional, difundindo-se por outras áreas. Na verdade, apenas para ficar em exemplo bem expressivo, já na Década de 50, a ponderação de bens, como sabem todos, foi a técnica de que se valeu o Tribunal Constitucional alemão para decidir aquele que todos consideram ser a principal decisão de sua judicatura, ou seja, o famoso caso Lüth (Lüth-Urteil[2]). É bom que se diga, a bem da verdade, que Robert Alexy sempre fundamentou sua teoria em decisões judiciais, especialmente, do Tribunal Constitucional do seu país, o que retira de todo a compreensão de que a ponderação pudesse ser simples escolha de uma pura abstração teórica.
Cuidando-se de experiências jurídicas mais próximas à nossa, não se pode esquecer que a ponderação de bens está também presente na jurisdição constitucional italiana (bilanciamento), portuguesa e espanhola (ponderación), além de vários outros países do mundo. Além disso, como já tive ocasião de demonstrar aqui mesmo no Conjur, quem se utiliza do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, sabendo ou não, bem ou mal, está se valendo da técnica da ponderação. Portanto, se, como querem alguns, tudo na ponderação é errado, muita gente qualificada — e em quase todas as democracias constitucionalizadas — anda perdendo seu tempo desnecessariamente.
Estados UnidosPara falar de um país, em que a ponderação teve desenvolvimento próprio e, portanto, completamente independente das formulações do célebre jurista alemão, valho-me deste artigo para recuperar a origem histórica da ponderação (balancing) no direito norte-americano. De fato, a ponderação aparece na jurisdição dos Estados Unidos, na forma de "balancing", já nas décadas de 20 e 30 e desde sempre tem provocado viva discussão (basta considerar a inabarcável bibliografia sobre o assunto). Quem quisesse, portanto, submeter a ponderação a um confronto crítico abrangente teria que proceder a uma análise do instituto também neste país, onde, aliás, o balancing já despertara o interesse da literatura antes mesmo de ter se convertido em objeto de análise de Robert Alexy, na sua Teoria dos Direitos Fundamentais.
No que respeita à sua autoria intelectual, a ponderação de interesses, na forma como acabou se revelando na doutrina e na jurisprudência dos Estados Unidos, foi principalmente construída a partir do trabalho de juristas como Holmes, James, Dewey, Pound, Cardoso e daqueles que compunham o Realismo jurídico, além de ter se valido de ideias próprias do Pragmatismo e do Instrumentalismo[3].
À sua época, Oliver W. Holmes, no célebre The Common Law, já havia criticado o excessivo formalismo no âmbito do direito. Essa ideia vinha logo ao início de seu livro explicitada na conclusão de que as necessidades sentidas em determinado tempo, a moral predominante e as teorias políticas, as intuições de políticas públicas, expressadas ou inconscientes, assim como os preconceitos que os juízes dividem com os seus concidadãos, têm contado muito mais do que o silogismo na determinação das normas pelas quais os homens devem ser governados. O direito incorpora a história de desenvolvimento de uma nação por muitos séculos, e não pode ser tratado como se contivesse apenas os axiomas e corolários de um livro de matemática[4]-[5].
Holmes, então, recriminava todos aqueles que haviam conduzido, com seu formalismo, a prática jurídica norte-americana para muito longe da realidade social. Além disso, Holmes viria criticar com uma série de artigos o que muitos chamavam de jurisprudência mecânica, isto é, aquela espécie de raciocínio jurídico que parte de uma definição abstrata de conceitos normativos e da análise do caso concreto para então proceder a um teste voltado exclusivamente a subsumir o fato concreto ao Tatbestand abstrato da norma, alcançando com isso uma conclusão cuja motivação não passava de mera aplicação mecânica daquela fórmula de subsunção[6]. O Realismo concentrava a sua crítica, portanto, na autorreferência em que tinha se transformado o Formalismo, já que entre seus defensores predominava a tendência a reproduzir os próprios pressupostos conceituais mediante uma “demonização” de qualquer mutação histórica do significado das proposições normativas[7].
Tudo isso considerado, o balancing representou uma tentativa por parte de alguns juristas, preocupados com a predominância de doutrinas e fórmulas distantes ou mesmo vazias de realidade, de demonstrar a possibilidade de ao mesmo tempo recusar essa prática jurisprudencial baseada em motivações puramente mecânicas sem, no entanto, abrir mão de uma noção racional de direito. Portanto, em sua origem, os intérpretes da Constituição norte-americana fizeram uso do balancing como instrumento concorrente ao Textualismo, sobretudo, em situações nas quais disposições diferentes conduziam a regras e conclusões abertamente inconsistentes. Também foi empregado nos casos em que diferentes doutrinas entravam em choque, ou quando a simples utilização do Positivismo conduzia a objetivos conflitantes[8].
Segundo Morton J. Horwitz, a aparição do teste de ponderação em decisivos campos do Direito seria um testemunho nada desprezível do sucesso do ataque jurídico progressista ao pensamento aprisionador e categorizante da ortodoxia clássica[9]. Confrontados, num mesmo caso, com demandas opostas, os intérpretes norte-americanos afirmavam necessitar realizar um juízo de “balanço” ou ”equilíbrio” entre as situações jurídicas afirmadas, especialmente naquelas situações em que ambos os lados em litígio afirmavam posições jurídicas opostas, simultaneamente sustentadas no texto constitucional.
Na verdade, algumas cláusulas constitucionais já por seu próprio conteúdo convidavam o intérprete a uma abordagem dessa espécie. A Quarta Emenda da Constituição norte-americana, por exemplo, protege o cidadão contra buscas e apreensões, mas apenas quando tais medidas judiciais se mostrarem “não razoáveis” ou “excessivas” (unreasonable); a Quinta Emenda, por sua vez, autoriza o uso público de uma propriedade privada, (mas) apenas de forma relativa e limitada, ao fixar como exigência uma “justa compensação” (just compensation); e a Oitava Emenda impede fianças ou multas quando demonstrarem ser “excessivas” (excessive). Evidentemente, o que aí se possa considerar como sendo «não razoável», «excessivo» ou «justo», afirmavam os defensores do balancing, muito provavelmente, apenas se poderá ter em exata medida a partir de uma avaliação, isto é, uma ponderação dos direitos e reivindicações em conflito, tudo sob a consideração das circunstâncias envolvidas na conformação factual específica[10].
O método do balancing atraiu assim os intérpretes e aplicadores do Direito em situações nas quais os dispositivos do texto constitucional norte-americano se prestavam a conferir suporte a posições jurídicas que, aparentemente legítimas, apesar de contraditórias, eram simultaneamente afirmadas em juízo. Para melhor compreensão, não é difícil imaginar, por exemplo, situações em que um indivíduo, com fundamento no direito constitucional à liberdade de expressão (desde sempre muito valorizado na história constitucional daquele país), resolvesse professar ideias racistas e com isso entrasse em oposição com a situação jurídica de um outro cidadão que almejasse desfrutar o direito também assegurado constitucionalmente da igualdade de tratamento (the status of equal citizenship). Em tais situações, o método da ponderação surgia aos sujeitos encarregados da interpretação das normas constitucionais, pelo menos como inicialmente acabou sendo compreendido pela doutrina, como sendo dotado da capacidade de resolver essas espécies de conflito de interesses constitucionais não apenas preservando um nível baixo de generalidade — já que atento e vinculado às circunstâncias específicas do caso — como também propiciando uma certa flexibilidade interpretativa[11].
Não é difícil entender, portanto, nem o entusiasmo com que o juízo de ponderação (balancing) foi recebido, inicialmente, por relevante parcela da doutrina e jurisprudência norte-americanas, nem muito menos a resistência que a parcela restante lhe opunha. Tomada a sério, num contexto em que o Formalismo e o Textualismo então eram elevados a um quase paroxismo, a metáfora do balancing, como inicialmente compreendida pelos americanos do norte, parecia capacitada a realizar promessas muito próximas a uma verdadeira quadratura do círculo. Como afirmara Louis Henkin, a ponderação além de sugerir pontes consistentes entre a abstração dos princípios e a vida dos fatos, tudo fazia mediante um compromisso de moderação e razoabilidade. Em uma palavra: a metáfora do balancing, como então se anunciava, parecia mesmo concretizar a ideia juridicamente sempre tão desejada como não alcançada de um meio termo ideal (the Golden Mean)[12].
Críticos do balancingEntretanto, uma vez que não se pode estabelecer uma balança ou escala matemática com a qual se pudesse avaliar em confronto os valores específicos de cada bem protegido pela Constituição, seria possível sopesá-los num único procedimento? Em termos mais claros, seria possível julgar se uma linha é mais longa do que uma pedra é pesada? Essa questão posta ironicamente pelo Justice Scalia, em Bendix Autolite Corp. v. Midwesco Enterprise Inc[13], bem resume uma das mais sérias objeções que considerável parcela da doutrina e jurisprudência norte-americana dirige à ideia de ponderação como fórmula destinada a resolver problemas de ordem constitucional, isto é, objeção que se funda numa suposta incapacidade do método de oferecer critérios para que se permitissem avaliar grandezas absolutamente diferentes (no exemplo, a extensão de uma linha e o peso de uma pedra).
Segundo a crítica, haveria uma incomensurabilidade imanente em qualquer juízo de ponderação que se propusesse a contrabalançar, por exemplo, a liberdade de expressão com o direito à privacidade.
Na verdade, sob a influência do recurso à intenção original do constituinte (original intent), como se sabe, tem-se desenvolvido um feroz confronto, tanto na doutrina como na prática jurisprudencial, à metáfora do balancing. Essa aversão prática e teórica, na verdade, insere-se numa já longa tradição existente tanto na doutrina como na jurisprudência, portanto, destinada a bloquear qualquer fórmula de adjudicação constitucional que possa significar transformação na jurisprudência e no Direito Constitucional daquele país.
Os defensores do original intent e do interpretativismo, como se sabe, ao mesmo tempo em que se proclamam defensores de um maior comedimento (self-restraint) por parte do Judiciário, estão sempre acusando os realistas ou defensores da ponderação de bens por suposto excessivo ativismo judiciário que conduziria a uma ilegítima evolução da interpretação constitucional e da própria Constituição. No entanto, como é evidente em casos como R.A.V. versus St. Paul[14], decisões baseadas em argumentos fundados na intenção original dos Fundadores da Pátria Americana em boa parte das vezes, ao mesmo tempo em que recusam um juízo de ponderação, mais não fazem do que dissimular o seu próprio ativismo judiciário. Reacionário, conceda-se, mas ainda assim ativismo.
Bem analisadas essas manifestações críticas à ponderação, portanto, o que se irá encontrar é um movimento voluntariamente ambíguo, em que, atrás de defesas aparentemente sinceras de um maior comedimento por parte dos tribunais (judicial self-restraint), esconde-se um ativismo judicial sem precedentes voltado a impedir transformações constitucionais que se desviem de alguma forma dos valores já bem assentados naquele país desde o século XVIII, próprios de uma burguesia predominantemente branca, masculina, protestante e anglo-saxã[15].
Não parece haver dúvida de que o original intent tem muitas vezes servido de mero instrumento retórico (Não fomos nós que fizemos. Os Constituintes é que fizeram!) para negar que são os próprios juízes da Suprema Corte que vêm há muito impondo mudanças à Constituição norte-americana. Essa proclamada concessão à autolimitação por parte dos juízes americanos, sobretudo os que têm composto a Suprema Corte, foi bem definida por Brennan como arrogância travestida em humildade[16].
Como bem avalia Alberto Vespaziani, a referência ao original intent acaba se transformando num recurso a um argumento quase místico (a referência ao texto em si), que de fato apenas acaba por dissimular uma intransigência axiológica, que tem como escopo subtrair-se a prática jurídica de uma dialética argumentativa além de eliminar o perigo de uma possível desobediência por parte dos juízes e cortes inferiores e de eventual afronta por parte da doutrina e do ensino universitário, onde se possa cultivar a imaginação institucional[17].
No âmbito das disputas metodológicas em torno da interpretação constitucional nos Estados Unidos, merece mais uma vez razão a avaliação de Vespaziani de que o original intent e o interpretivism conduzem a uma tentativa de eliminação das margens de indeterminação dos enunciados normativos que constituem a característica irrenunciável de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição[18].
Como se pode ver, as críticas à ponderação, no caso norte-americano, repetindo uma velha tradição, não se haveriam muito bem caso tivessem que observar-se a partir dos seus próprios critérios. Por tudo o que foi dito, não seria difícil concluir que os críticos enxergam na ponderação qualidades (na forma de defeitos) que provavelmente ela não tenha e, certos ou errados quanto a essas críticas, não suportariam observar-se no espelho.

[1] Marcelo Neves, Entre Hidra e Hércules: Princípios e Regras Constitucionais, SP: Martins Fontes, 2013, p. 270.
[2] BVerfGE 7, 198.
[3] Thomas Alexander Aleinikoff. Constitutional Law in the Age of Balancing, p. 949; J. Dewey. The historic background of corporate legal personality, in Yale Law Journal 35 (1926), p. 655 e 673; John Dewey. Logical Method and Law, in Cornell Law Quarterly. 10 (1924-25) 17 e 19; Roscoe Pound. Mechanical Jurisprudence, in Columbia Law Review 8 (1908) 605; para uma melhor visualização da produção crítica dos realistas à produção jurisprudencial mecânica do formalismo, confira-se tudo no excelente Alberto Vespaziani. Il bilanciamento dei diritti nella cultura giuridica statunitense, p. 461.
[4] Oliver W. Holmes. The Common Law, p. 1 (The felt  necessities of the time, the prevalent moral and political theories, intuitions of public policy avowed or unconscious, even with the prejudices which judges share with their follow-men, have had a great deal more to do than the syllogism in determining the rules by which men should be governed. The law embodies the story of a nation's development through many centuries, and it cannot be dealt with as if it contained only the axioms and corollaries of a book of mathematics).
[5] Essa idéia também podia ser deduzida de sua mais conhecida sentença: a vida do direito não tem sido lógica, tem sido (antes) experiência Oliver W. Holmes. The Common Law, p. 1; também citado por Alberto Vespaziani. Il bilanciamento dei diritti nella cultura giuridica statunitense, p. 460.
[6] Alberto Vespaziani. Il bilanciamento dei diritti nella cultura giuridica statunitense, p. 461.
[7] Para uma posição teórica (insinuada no texto) que não conduza a um significado antinormativo de certo Realismo jurídico, consistente na afirmação de decisões jurídicas desprovidas de sentido normativo, ou na idéia de que a legitimação do ofício de julgar é uma acontecimento natural, ver Ota Weinberger. Realismus und Systemtheorie in der Jurisprudenz, p. 3 e 4. O que parece razoável no discurso realista é o reconhecimento de contribuições legítimas da produção secundária de normas que se insere no quadro de colaboração possível e mesmo necessária entre a legislação e o momento da aplicação do direito, cf. op. cit., p. 5.
[8] Walter F. Murphy et al. American Constitutional Interpretation, p. 410.
[9] Morton J. Horwitz. The transformation of American Law, p. 18, apud Alberto Vespaziani. Il bilanciamento dei diritti nella cultura giuridica statunitense, p. 461/2.
[10] Walter F. Murphy et al. American Constitutional Interpretation, p. 410.
[11] Walter F. Murphy et al. American Constitutional Interpretation, p. 411.
[12] Louis Henkin. Infallibility under the Law: Constitutional Balancing, Columbia Law Review, 78 (1978) 1022, p. 1047. Cfe. Walter F. Murphy et al. American Constitutional Interpretation, p. 413.
[13] Em 486 U.S. 888 [897/898] (1988). Disse então Scalia: Having evaluated the interests on both sides as roughly as this, the Court then proceeds to judge which is more important. This process is ordinarily called "balancing," Pike v. Bruce Church, Inc., 397 U.S. 137, 142 (1970), but the scale analogy is not really appropriate, since the interests on both sides are incommensurate. It is more like judging whether a particular line is longer than a particular rock is heavy.
[14] 505 U.S. 377 (1992). Sobre a batalha há muito estabelecida nos Estados Unidos entre interpretivism e noninterpretivism, veja-se também John H. Ely. Democracy and Distrust, p. 1 e seguintes.
[15] Alberto Vespaziani. Il bilanciamento dei diritti nella cultura giuridica statunitense, p. 492.
[16] W. J. Brennan : The doctrine of original intent is arrogance cloaked as humilily, em The Constitution of the United States: Contemporary Ratification, in Univ. California na Davis L. Review, 19 (1985), 2, 4; também referido por Alberto Vespaziani. Il bilanciamento dei diritti nella cultura giuridica statunitense, p. 493.
[17] Alberto Vespaziani. Il bilanciamento dei diritti nella cultura giuridica statunitense, p. 493.
[18] Alberto Vespaziani. Il bilanciamento dei diritti nella cultura giuridica statunitense, idem.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 28 de abril de 2014

ATIVISMO JUDICIAL É O QUE SEPARA LEGISLATIVO DO JUDICIÁRIO

Ativismo judicial é o que separa Legislativo do Judiciário

 
Para o ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, o que hoje se convencionou chamar de ativismo judicial é uma forma de estabelecer limites nas relações entre o Judiciário e o Legislativo. Segundo ele, a "pedra angular" dessa discussão é o princípio constitucional da separação dos poderes, responsável por ditar qual deve ser a distância entre julgadores e legisladores.
O ministro falou como convidado de honra do almoço cultural promovido pelo Instituto Victor Nunes Leal na sexta-feira (25/4), em Brasília. O discurso foi breve e suscinto, como costumam ser seus votos proferidos no Plenário do Supremo. Ao todo, falou cerca de meia hora. A abertura do discurso foi feita pelo presidente da Comissão de Assuntos Institucionais da OAB do Distrito Federal, Rafael Favetti.
Zavascki explicou que o ativismo judicial também envolve o princípio constitucional da inafastabilidade do monopólio da função jurisdicional, segundo o qual a lei não pode excluir da apreciação do Judiciário qualquer lesão ou ameaça de vida. “A lei pode estabelecer comportamentos. Essa é a atividade do Legislativo, e essa atividade se estabelece mediante normas, gerais e abstratas, com características de prospectividade, porque a lei é feita para assegurar condutas futuras." Ao Judiciário, continuou, cabe definir a norma concreta. “Essa é a visão clássica da função jurisdicional.”
Na opinião do presidente do conselho curador do Instituto Victor Nunes Leal, Pedro Gordilho, o ministro Teori foi "brilhante" ao falar sobre o assunto do ponto de vista do "juiz que pratica, exercita da atividade judicante e aplica a lei, a norma jurídica no caso concreto".
Já Rafael Favetti, da OAB-DF, enxergou na fala do ministro "clara preocupação em preservar a legitimidade do Legislativo". Em seu discurso, Teori Zavascki citou o italiano Piero Calamandrei (1889-1956), professor de Direito Processual Civil: “O Estado defende, com a jurisdição, a sua autoridade de legislador”.
Além de Favetti e do professor Pedro Gordilho, o evento também contou com a presença dos ministros Sepúlveda Pertence, Cezar Peluso e Ayres Britto, ex-presidentes do STF, do presidente da OAB-DF, Ibaneis Rocha, do desembargador federal da TRF-1 Reynaldo Fonseca, da conselheira do Cade Ana Frazão e da consultora jurídica do Ministério da Justiça, Giselle Favetti.
 
Renata Teodoro é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 28 de abril de 2014

domingo, 27 de abril de 2014

PORQUE A PONDERAÇÃO E A SUBSUNÇÃO SÃO INCONSISTENTES

Porque a ponderação e a subsunção são inconsistentes

 
Todos sabem que há muito abandonei o neoconstitucionalismo (ver aqui). Tenho referido que o neoconstitucionalismo brasileiro, com raras exceções[1], representa, apenas, a superação do positivismo tradicional, na medida em que nada mais faz do que afirmar as críticas antiformalistas deduzidas pelos partidários da escola do Direito livre, da jurisprudência dos interesses e daquilo que é a versão mais contemporânea desta última, da jurisprudência dos valores. Minhas críticas ao neoconstitucionalismo valem para as teorias da argumentação e às posturas que professam voluntarismos e defendem o poder discricionário dos juízes.
Com efeito, a partir de campos diferentes do conhecimento, é possível separar o velho e o novo no Direito. Em outras palavras, se não há segurança para apontar as características de uma teoria efetivamente pós-positivista e coerente com o que denomino de Constitucionalismo Contemporâneo — fórmula com a qual substituí o neoconstitucionalismo — há, entretanto, condições para que se possa dizer “o que não é” e “o que não serve” para a contemporânea teoria do direito, mormente em países com sistemas e ordenamentos jurídicos complexos.
De todo modo, vale a pena insistir nos pontos de convergência das teorias críticas e/ou que se pretendem pós-positivistas: diante dos fracassos do positivismo tradicional, a partir da busca da construção de uma autônoma razão teórica, as diversas posturas críticas buscaram, sob os mais diversos âmbitos, (re)introduzir os “valores” no Direito. Assim, por exemplo, diante de uma demanda por uma tutela que esteja relacionada com a vida, com a dignidade da pessoa, enfim, com a proteção dos direitos fundamentais, o que fazer? Qual é a tarefa do jurista?
Definitivamente, o novo constitucionalismo — seja qual for o seu (mais adequado) sentido — não trouxe a indiferença. Na verdade, houve uma pré-ocupação de ordem ético-filosófica: a de que o Direito deve se ocupar com a construção de uma sociedade justa e solidária. Em outras palavras, o desafio do Estado Constitucional (lato sensu) tem sido o seguinte: como fazer com que o Direito não fique indiferente às injustiças sociais? Como fazer com que a perspectiva moral de uma sociedade que aposte no Direito como o lugar da institucionalização do ideal da vida boa não venha pretender, em um segundo, “corrigir” a sua própria condição de possibilidade, que é o direito que sustenta o Estado Democrático?
Vejamos isso. O tão decantado “neoconstitucionalismo” deveria ser sinônimo de “novo paradigma”. Isto porque o Direito — do paradigma exsurgido no segundo pós-guerra — deixa de ser meramente regulador para assumir uma feição de transformação das relações sociais, circunstância que pode ser facilmente constatada a partir do exame dos textos constitucionais surgidos nesse período.
Com a desconfiança em relação ao legislativo (e às mutações produzidas pelas maiorias incontroláveis), passou-se a apostar em uma matriz de sentido dotada de garantias contra essas maiorias eventuais (ou não). Fazer democracia a partir do e pelo Direito parece que passou a ser o lema dos Estados Democráticos. Isso implicou – e continua a implicar – mudanças de compreensão: como olhar o novo com os olhos do novo?
Pois bem. Quais seriam os elementos caracterizadores desse fenômeno (que uma das vertentes denominou de “neoconstitucionalismo”)? Seria uma espécie de positivismo sofisticado? O “neoconstitucionalismo” teria características de continuidade e não de ruptura?
Não há suficiente clareza nas diversas teses acerca do significado do “neoconstitucionalismo”. De todo modo, vale lembrar que o neoconstitucionalismo tem sido teorizado sob os mais diferentes enfoques. Écio Oto, de forma percuciente, faz uma descrição das principais propriedades/características desse fenômeno.[2] Essa “planta” do neoconstitucionalismo também possui, de um modo ou de outro, a assinatura de autores como Susanna Pozzolo, Prieto Sanchís, Sastre Ariza, Paolo Comanducci, Ricardo Guastini, com variações próprias decorrentes das matrizes teóricas que cada um segue (no Brasil Luis Roberto Barroso, Daniel Sarmento, entre outros, com os quais mantenho, nesse particular, por sobejas razões, profundas — porém respeitosas — divergências). Analiso, aqui, a problemática a partir de dois pontos. Assim:
a) O neoconstitucionalismo (não) é “pós-positivista”O pós-positivismo deveria ser a principal característica do neoconstitucionalismo. Mas não é. Ou seja, o neoconstitucionalismo somente teria sentido como “paradigma do direito” se fosse compreendido como superador do positivismo ou dos diversos positivismos. Pós-positivismo não é uma continuidade do positivismo, assim como o neoconstitucionalismo não deveria ser uma continuidade do constitucionalismo liberal. Há uma efetiva descontinuidade de cunho paradigmático nessa fenomenologia, no interior da qual os elementos caracterizadores do positivismo são ultrapassados por uma nova concepção de direito. Bem, ao menos isso deveria ser assim.
Penso que o ponto fundamental é que o positivismo nunca se preocupou em responder ao problema central do Direito, por considerar a discricionariedade judicial como uma fatalidade. E isso é imperdoável. A razão prática — locus onde o positivismo coloca a discricionariedade — não poderia ser controlada pelos mecanismos teóricos da ciência do direito. A solução, portanto, era simples: deixemos de lado a razão prática (discricionariedade) e façamos apenas epistemologia (ou, quando esta não dá conta, deixe-se ao alvedrio do juiz — eis o ovo da serpente gestado desde a modernidade).
Este ponto é fundamental para que fique bem claro para onde as teorias do direito auto denominadas pós-positivistas (ou não positivistas, o que dá no mesmo) pretendem apontar sua artilharia: o enfrentamento do problema interpretativo, que é o elemento fundamental de toda experiência jurídica. Isto significa afirmar que, de algum modo, todas as teorias do Direito que se projetam nesta dimensão pós-positivista procuram responder a este ponto; procuram enfrentar o problema das vaguezas e ambiguidades dos textos jurídicos; procuram, enfim, enfrentar problemas próprios da chamada razão prática — que havia sido expulsa do território jurídico-epistemológico pelo positivismo.
Tenho que somente poder ser chamada de pós-positivista uma teoria do Direito que tenha, efetivamente, superado o positivismo, tanto na sua forma primitiva (exegético-conceitual), quanto na sua forma normativista-semântico-discricionária. A superação do positivismo implica enfrentamento do problema da discricionariedade judicial ou, também poderíamos falar, no enfrentamento do solipsismo da razão prática (veja-se a crítica que Habermas faz à razão prática eivada de solipsismo). Implica, também, assumir uma tese de descontinuidade com relação ao conceito de princípio. Ou seja, no pós-positivismo, os princípios não podem mais ser tratados no sentido dos velhos princípios gerais do direito e nem como cláusulas de abertura. Eis o desastre representado, por exemplo, pela LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) em terrae brasilis. Que lástima foi a aprovação dessa lei.
b) Ponderações, subsunções e suas impossibilidades filosóficasPois bem. Se o pós-positivismo tem sido considerado como o principal elemento diferenciador/caracterizador do neoconstitucionalismo, a ponderação acabou por se transformar no grande problema e, por assim dizer, em um obstáculo ao próprio neoconstitucionalismo.
O que quero dizer é que o neoconstitucionalismo não pode(ria) e não deve(ria) depender de juízos de ponderação, mormente se percebermos que “ponderação” e “discricionariedade” são faces de uma mesma moeda. Afinal, no modo como a ponderação vem sendo convocada (e “aplicada”) em terrae brasilis, tudo está a indicar que não passa daquilo que Philipp Heck chamava, na Jurisprudência dos Interesses, de Abwägung, que quer dizer “sopesamento”, “balanceamento” ou “ponderação”. Com a diferença de que, na Interessenjurisprudenz, não havia a construção da “regra da ponderação” (claro que essa construção está em Alexy e não nas práticas brasileiras).
Ou seja, na medida em que, nas práticas dos tribunais (assim como na doutrina) de terrae brasilis as “colisões de princípios” são “solucionadas” a partir de uma ponderação “direta”, confrontando um princípio (ou valor ou interesse) com outro, está-se, na verdade, muito mais próximo da velha Interessenjurisprudenz, com fortes pitadas da Wertungsjurisprudenz (jurisprudência dos valores). E, assim, o neoconstitucionalismo acaba revelando traços que dão condições ao desenvolvimento do ativismo judicial,[3] que à diferença do fenômeno da judicialização da política (que ocorre de modo contingencial, isto é, na incompetência dos demais Poderes do Estado), apresenta-se como uma postura judicial para além dos limites estabelecidos constitucionalmente.
Neste contexto, não surpreende que, embora citada e recitada ad nauseam pela doutrina e pelos tribunais, não seja possível encontrar uma decisão sequer aplicando a regra da ponderação. Há milhares de decisões (e exemplos doutrinários) fazendo menção à ponderação, que, ao fim e ao cabo, é transformada em álibi retórico para o exercício dos mais variados modos de discricionarismos e axiologismos. Ou de argumentos meta-jurídicos.
De todo modo, podemos “dar de barato” que a falta de concretização das Constituições programáticas demandou uma reformulação na teoria dos princípios, representada pelo abandono do chamado critério fraco de diferenciação (que considera princípio e regra com a mesma estrutura lógica hipotético-condicional e com diferentes densidades semânticas) para a adoção do critério forte de distinção, onde os princípios assumiam estrutura lógica diferente daquela que identificava a regra. Isso colocou, infelizmente, os princípios sob o manto metodológico da ponderação (enquanto que a regra se mantinha na subsunção — sic!). Permitiu-se, assim, novas possibilidades para os princípios e não demorou muito para que estivéssemos falando em aplicação direta mediante ponderação controlada pela proporcionalidade (sic).
Mas o fato é que esse giro não conferiu ao princípio suficiência ôntica-semântica, além de ter mantido intacto o erro originário: o mundo prático foi jogado para “dentro” do sistema e, a partir dessa operação, foi pensado como tal (como sistema). Ou seja, o mundo prático que é concreto ou, na falta de uma melhor palavra, pragmático, paradoxalmente é retratado ao modo da abstratalidade própria da ideia de sistema. A percepção originária de que os princípios não possuíam densidade semântica conteve, bem ou mal, o avanço — ao menos no início — da “pamprincipiologia”, mas o equívoco no diagnóstico da crise fez com que os princípios elevassem o grau de discricionariedade, decisionismo e arbitrariedade. Facilmente perceptível, assim, o “fator Katchanga Real” que atravessou a aplicação dos princípios.
Em termos práticos (e no interior do pensamento alexiano), a distinção entre regras e princípios perde a função — ao menos no plano de uma teoria do direito calcada em paradigmas filosóficos —, uma vez que não há mais a distinção subsunção-ponderação. E não é assim porque eu quero. Isso é assim porque é impossível sustentar a subsunção no plano dos paradigmas filosóficos pós-giro linguístico. Ao mesmo tempo, isso faz com que a ponderação se transforme em um procedimento generalizado de aplicação do Direito. Desse modo, em todo e qualquer processo aplicativo, haveria a necessidade de uma “parada” para que se efetuasse a ponderação. Nem vou falar aqui da ponderação de regras, por total falta de sentido.
De todo modo, o problema principal da ponderação é a sua filiação ao esquema sujeito-objeto (ou das vulgatas voluntaristas da filosofia da consciência) e a sua dependência da discricionariedade, ratio final. Desse modo, se a discricionariedade é o elemento que sustenta o positivismo jurídico nos hard cases e nas vaguezas e ambiguidades dos textos jurídicos, não parece que a ponderação seja “o” mecanismo que arranque o Direito dos braços do positivismo. Pode até livrá-lo dos braços do positivismo primitivo, mas inexoravelmente o atira nos braços de outra forma de positivismo — axiologista, normativista ou pragmati(ci)sta. Veja-se: a teoria da argumentação, de onde surgiu a ponderação, não conseguiu fugir do velho problema engendrado pelo subjetivismo, a discricionariedade, circunstância que é reconhecida pelo próprio Alexy.[4]
Aliás, quem escolhe os princípios a serem sopesados? Numa palavra: dizer que a ponderação é um elemento caracterizador do neoconstitucionalismo está correto. Mas é exatamente por isso que, nos moldes em que situo o Constitucionalismo Contemporâneo, não há espaço para a ponderação. Em definitivo: a subsunção — admitida para os easy cases — não tem lugar no plano de um paradigma filosófico que ultrapassou o esquema sujeito-objeto. De todo modo, resta uma pergunta: e por que a regra de direito fundamental adscripta (resultado da ponderação) se transforma em uma subsunção de segundo grau ou uma “metassubsunção”?
Na perspectiva do Constitucionalismo Contemporâneo que defendo — portanto, para além das diferentes formas de positivismo —, a juridicidade não se dá nem subsuntivamente, nem dedutivamente. Ela se dá na applicatio, em que interpretar e aplicar não são atos possíveis de cisão. Isso implica afirmar — e superar — a distinção entre easy e hard cases. É sabido que, para as teorias da argumentação, os easy cases são solucionados pela via da subsunção, circunstância que, no limite — como que a repetir a tese de um objetivismo ingênuo — dispensa a mediação interpretativa. Permito-me repetir: isso não passa de um objetivismo ingênuo. Afinal, subsunção pressupõe esgotamento prévio das possibilidades de sentido de um texto e um automático acoplamento do fato. Ora, tal perspectiva implica um mergulho no esquema sujeito-objeto, portanto, aquém do giro linguístico-ontológico. A questão, entretanto, assume contornos mais complexos quando as teorias da argumentação (e falo nelas porque o neoconstitucionalismo nelas se sustenta), a partir dessa distinção estrutural easy-hard cases, sustentam que os princípios (somente) são chamados à colação para a resolução dos assim denominados hard cases. Mas, pergunto: um caso pode ser fácil ou difícil antes de “acontecer juridicamente”? Veja-se que, aparentemente, a distinção easy-hard cases não acarretaria maiores problemas no plano hermenêutico-aplicativo, não fosse o seguinte ponto: o de que é pela ponderação que se resolverão os hard cases.
Dito de outro modo, a admissão da cisão estrutural easy-hard cases passa a ser condição de possibilidade do ingresso da ponderação no plano da interpretação jurídica. Tudo isso para dizer que não podemos mais aceitar que, em pleno Estado Democrático de Direito, ainda se postule que a luz para a determinação do direito in concreto provenha do protagonista da sentença. Isso quer dizer que, para além da cisão estrutural entre easy e hard cases, não pode haver decisão judicial que não seja fundamentada e justificada em um todo coerente de princípios que repercutam a história institucional do direito. Por isso, a necessidade de superarmos os discricionarismos, que, no mais das vezes, descambam na arbitrariedade interpretativa. O modo como fazer isso procuro delinear em Verdade e Consenso[5] e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica[6] , para onde me permito remeter o leitor.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio). 

[1] Cito, por todos, Écio Oto, que trabalha o neoconstitucionalismo como anti-positivismo. Nesse sentido, seu livro no prelo: Constitucionalismo Global ou Pluriversalismo Internacional? O neoconstitucionalismo na perspectiva da teoria e da filosofia políticas contemporâneas. Lumen Juris, 2014.
[2] Ver, para tanto: Oto, Écio e Pozzolo, Susanna. Neoconstitucionalismo e Positivismo jurídico: as faces da Teoria do Direito em tempos de interpretação moral da Constituição. Florianópolis, Conceito, 2012. Nessa obra conjunta, Écio Oto, na primeira parte, elenca onze características que vem sendo atribuídas ao neoconstitucionalismo. Todas elas são analisadas por mim no Posfácio da referida obra.
[3] Ativismo judicial tem a ver com teses que circulam por aí, tais como a de que decisão judicial é um ato político porque é um ato de escolha... Ora, isso Kelsen já dizia lá no capítulo oitavo de sua TPD. Mas esse era o seu lado decisionista. Ele nunca se preocupou com a decisão judicial. O resto da história todos conhecemos. Ou não.
[4] Alexy, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Luis Virgilio A. Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 611.
[5] Streck, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
[6] Streck, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 26 de abril de 2014

EMPRESA NÃO PODE IMBUTIR SEGUROS EM PREÇO DE PRODUTOS

Empresa não pode embutir seguros em preço de produtos

 
É dever da empresa ser leal ao seu cliente, expondo a ele todas as nuances do produto. Com esse entendimento, a 10ª Vara Cível de Brasília determinou a uma companhia que pare de embutir seguros facultativos e garantias estendidas no preço final dos bens comercializados sem o consentimento do consumidor, sob pena de multa de R$ 200 por cada infração.
Segundo o Ministério Público do Distrito Federal, autor da ação, no período de 1° de abril de 2008 a 19 de fevereiro de 2013, foram registradas 21 reclamações contra a empresa.
O MP-DF havia proposto um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para que fossem afixados cartazes nas lojas da empresa com as informações de que os seguros são opcionais e o cliente pode desistir deles a qualquer momento. O acordo foi rejeitado pela empresa.
A companhia argumentou que não orienta seus vendedores a venderem garantia estendida, seguros e outros serviços sem autorização prévia do consumidor.
Em sua decisão, o juiz de direito substituto Matheus Stamillo Santarelli Zuliani afirmou que “a presente demanda nada mais é do que uma forma de proteger os consumidores que estão sendo ultrajados no seu direito à informação, uma vez que acreditam que estão pagando o preço bruto do produto, enquanto que, na verdade, estão arcando, também, com uma garantia não desejada e não avaliada por eles”.
Zuliani acrescentou que o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º, inciso III, garante o acesso do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferente produtos e serviços. Com informações da assessoria de imprensa do TJDFT.
 
Revista Consultor Jurídico, 26 de abril de 2014

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...