terça-feira, 5 de março de 2013

CLÁUSULAS GERAIS PROCESSUAIS


Fredie Didier Jr.
Advogado e Consultor Jurídico; Professor-
Adjunto de Direito Processual Civil da
Universidade Federal da Bahia; Mestre
(UFBA), Doutor (PUC-SP) e Pós-Doutor
(Universidade de Lisboa).
Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 44 - Set/Out de 2011




RESUMO: Este ensaio tem o objetivo de demonstrar a importância da técnica legislativa das cláusulas gerais para o Direito Processual Civil contemporâneo.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Processual Civil. Cláusulas Gerais. Criatividade Judicial.
SUMÁRIO: 1 Consideração Introdutória. 2 Cláusulas Gerais. 3 O Direito Processual Civil e as Cláusulas Gerais.
1 Consideração Introdutória
A metodologia jurídica transformou-se sensivelmente a partir da segunda metade do século XX. Embora não seja este o local adequado para fazer uma resenha deste processo histórico, não se pode deixar de afirmar uma quase obviedade: o Direito processual civil não é imune a toda essa transformação.
A compreensão e a aplicação do Direito processual não podem prescindir desta nova metodologia. É preciso fazer um aggiornarmento do repertório teórico do operador do Direito; apontar as principais marcas do pensamento jurídico contemporâneo e examinar de que modo elas vêm interferindo no Direito processual civil e na Teoria do Processo.
Uma dessas marcas é a transformação da hermenêutica jurídica, com o reconhecimento do papel criativo e normativo da atividade jurisdicional: a função jurisdicional passa a ser encarada como uma função essencial ao desenvolvimento do Direito, seja pela estipulação da norma jurídica do caso concreto, seja pela interpretação dos textos normativos, definindo-se a norma geral que deles deve ser extraída e que deve ser aplicada a casos semelhantes.
Estabelece-se, ainda, a distinção teórica entre texto e norma, sendo essa o produto da interpretação daquele 1. Consagram-se as máximas (postulados, princípios ou regras, conforme a teoria que se adote) da proporcionalidade e da razoabilidade na aplicação das normas. Identifica-se o método da concretização dos textos normativos, que passa a conviver com o método da subsunção 2.
Expande-se, ainda, a técnica legislativa das cláusulas gerais, que exigem do órgão jurisdicional um papel ainda mais ativo na criação do Direito.
Esse último aspecto é o que interessa a esse ensaio, que cuida de destacar a importância e a função das cláusulas gerais no direito processual civil.
2 Cláusulas Gerais
Cláusula geral é uma espécie de texto normativo, cujo antecedente (hipótese fática) é composto por termos vagos e o consequente (efeito jurídico) é indeterminado. Há, portanto, uma indeterminação legislativa em ambos os extremos da estrutura lógica normativa 3. Há várias concepções sobre as cláusulas gerais 4. Optamos por essa para fins didáticos, além de a considerarmos a mais adequada, mas não se ignora a existência de outras.
Judith Martins-Costa, uma das autoras que mais contribui para a correta sistematização das cláusulas gerais, assim as define: "Considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui, portanto, uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente ‘aberta’, ‘fluida’ ou ‘vaga’, caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico, a qual é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista do caso concreto, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual, reiterados no tempo os fundamentos da decisão, será viabilizada a ressistematização destes elementos originariamente extrassistemáticos no interior do ordenamento jurídico" 5. Cabe ao aplicador da norma identificar o preenchimento do suporte fático e determinar qual a consequência jurídica que dele será extraída 6.
A cláusula geral é uma técnica legislativa que vem sendo cada vez mais utilizada, exatamente porque permite uma abertura do sistema jurídico a valores ainda não expressamente protegidos legislativamente, a "standards 7, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo" 8.
A técnica das "cláusulas gerais" contrapõe-se à técnica casuística 9. Não há sistema jurídico exclusivamente estruturado em cláusulas gerais (que causariam uma sensação perene de insegurança) ou em regras casuísticas (que tornariam o sistema sobremaneira rígido e fechado, nada adequado à complexidade da vida contemporânea). Uma das principais características dos sistemas jurídicos contemporâneos é exatamente a harmonização de enunciados normativos de ambas as espécies 10.
É indiscutível que a existência de cláusulas gerais reforça o poder criativo da atividade jurisdicional 11. O órgão julgador é chamado a interferir mais ativamente na construção do ordenamento jurídico, a partir da solução de problemas concretos que lhe são submetidos.
O método da subsunção do fato ao enunciado normativo, próprio e útil para os casos de textos normativos típicos e fechados, revela-se insuficiente para a aplicação de cláusulas gerais. As cláusulas gerais exigem concretização em vez de subsunção. "Na apreciação do caso concreto, o juiz não tem apenas de ‘generalizar’ o caso; tem também de ‘individualizar’ até certo ponto o critério; e precisamente por isso, a sua actividade não se esgota na ‘subsunção’. Quanto ‘mais complexos’ são os aspectos peculiares do caso a decidir, ‘tanto mais difícil e mais livre se torna a actividade do juiz, tanto mais se afasta da aparência da mera subsunção" 12.
O Direito passa a ser construído a posteriori, em uma mescla de indução e dedução 13, atento à complexidade da vida, que não pode ser totalmente regulada pelos esquemas lógicos reduzidos de um legislador que pensa abstrata e aprioristicamente 14. As cláusulas gerais servem para a realização da justiça do caso concreto 15; revelam-se, em feliz metáfora doutrinária, como "pontos de erupção da equidade" 16.
Como afirma Wieacker, "as cláusulas gerais constituíram uma notável e muitas vezes elogiada concessão do positivismo à autorresponsabilidade dos juízes e a uma ética social transpositiva, cujo padrão propulsor para o legislador foi constituído pela organização dada pelo praetor romano ao judex para determinar o conteúdo da decisão de acordo com a bona fides. O legislador transformou o seu trabalho - através da referência à "boa-fé", aos bons costumes, aos hábitos do tráfego jurídico, à justa causa, ao caráter desproporcionado, etc. - em algo mais apto para as mutações e mais capaz de durar do que aquilo que era de se esperar" 17.
Uma das técnicas de compreensão e aplicação das cláusulas gerais é o "método do grupo de casos" (Fallgruppenmethode), desenvolvido pelos juristas germânicos e aplicado, por exemplo, na arrumação das hipóteses de aplicação do princípio da boa-fé processual. Trata-se de método que reforça a função do precedente judicial na concretização das normas gerais, inclusive as cláusulas gerais.
Conforme a explicação de Fabiano Menke, "por meio dele, compara-se o caso a ser decidido com os casos isolados que integram um grupo de casos já julgados sobre determinada norma. Caso haja identidade fático-normativa entre os casos, será possível agregar o novo caso ao grupo já consolidado, e no que toca à sua fundamentação, bastará a indicação de que pertence ao grupo, de maneira que ocorre um verdadeiro reaproveitamento das razões já expendidas nas hipóteses assemelhadas. Parece ter lugar uma nova configuração da argumentação, no sentido de que ela não busca a justificação da adequação de determinada cláusula geral ao caso em questão, mas sim a possibilidade de comparação entre o novo caso com os já decididos" 18.
A relação entre cláusula geral e o precedente judicial é bastante íntima. Já se advertiu, a propósito, que a utilização da técnica das cláusulas gerais aproximou o sistema do civil law do sistema do common law. Esta relação revela-se, sobretudo, em dois aspectos. Primeiramente, a cláusula geral reforça o papel da jurisprudência na criação de normas gerais: a reiteração da aplicação de uma mesma ratio decidendi dá especificidade ao conteúdo normativo de uma cláusula geral, sem, contudo, esvaziá-la; assim ocorre, por exemplo, quando se entende que tal conduta típica é ou não exigida pelo princípio da boa-fé 19. Além disso, a cláusula geral funciona como elemento de conexão, permitindo ao juiz fundamentar a sua decisão em casos precedentemente julgados 20.
A vagueza da proposição normativa é esclarecida paulatinamente pelas decisões judiciais, que "mediante exemplos ‘ilustrativos’ e, em seguida, ‘por via da comparação com outros casos julgados em conformidade com eles, bem como mediante a elaboração de ideias jurídicas novas e mais especiais, com base na análise jurídica dos casos em que elas se manifestam, conseguem enriquecer cada vez mais o conteúdo da pauta relativamente ‘indeterminada’, concretizá-la em relação a certos casos e grupos de casos e, deste modo, criar finalmente um entrelaçado entre modelos de resolução em que possam ser arrumados, na sua maioria, os novos casos a julgar" 21.
O método do agrupamento de casos não é perfeito, obviamente. Há casos julgados em época com contexto social muito diverso (casos sobre "bons costumes" do início do século vinte teriam pouca serventia nos dias atuais 22). Pode ser que ainda não haja casos passíveis de comparação, quando então, "mas precisamente então", só a convicção pessoal do órgão julgador do que seja a medida do justo poderá oferecer a solução 23. Finalmente, há o perigo de que o agrupamento de casos sirva de fundamento para um retorno ao método da subsunção exclusiva, impedindo o desenvolvimento judicial do Direito e acomodando a interpretação das cláusulas gerais pelos tribunais 24.
Há outros elementos que, ao lado dos precedentes, servem à concretização das cláusulas gerais.
A observância à finalidade concreta da norma é um dos elementos imprescindíveis à concretização de uma cláusula geral. O método teleológico de compreensão das normas, não obstante tenha as suas dificuldades 25, não pode ser ignorado. Cabe ao aplicador procurar os "objetivos concretos" da norma: a concretização é uma atividade, é um criativo processo de integração de valores e interesses concretos 26.
Outro elemento decisivo na concretização das cláusulas gerais é a pré-compreensão do aplicador a respeito dos elementos do enunciado normativo. "Não se pode negar que, ao apreciar as circunstâncias de fato e as hipóteses normativas, o aplicador opera seletivamente e, nessa atividade, há componentes que não estão pré-qualificados sistematicamente, mas que são, limitadamente, qualificados pelo próprio aplicador" 27.
Não pode o aplicador, na concretização das cláusulas gerais, ignorar o consenso social já estabelecido a respeito de determinadas circunstâncias que devem ser por ele examinadas 28. As práticas negociais de agricultores de uma região, por exemplo, não podem ser ignoradas na compreensão do que significa um comportamento socialmente havido como honesto (standard), para fim de concretização da cláusula geral da boa-fé. Os standards servem como parâmetro para a concretização das cláusulas gerais 29- 30.
Pedro Pais de Vasconcelos defende que a concretização das cláusulas gerais exige que o intérprete "se debruce sobre a situação concreta do caso, que intua a constelação valorativa de referência, que pondere a consequência da concretização e que formule o juízo em termos tais que seja susceptível de ser sindicado" 31. A observação é importante, exatamente para destacar o seguinte: a concretização das cláusulas gerais pode ser controlada, quer por razões formais (incompetência do órgão julgador ou falta de fundamentação), quer por razões substanciais (má compreensão da cláusula geral). É possível rever uma decisão que aplica mal uma cláusula geral, quer porque a aplicou de modo irrazoável ou inadequado (decisão injusta), quer porque a aplicou sem a devida fundamentação (decisão nula).
As cláusulas gerais trazem consigo, entretanto, o sério risco de insegurança jurídica.
A despeito do contexto político-social da época da decisão, as cláusulas gerais "possibilitam ao juiz fazer valer a parcialidade, as valorações pessoais, o arrebatamento jusnaturalista ou tendências moralizantes do mesmo gênero, contra a letra e contra o espírito da ordem jurídica. Por outro lado, o uso inadequado, hoje cada vez mais frequente, das cláusulas gerais pelo legislador atribui ao juiz uma responsabilidade social que não é a do seu ofício" 32. Esses problemas ainda podem ganhar maior vulto em tempos de efervescência social, guerras ou crise econômica. Há o perigo quase inevitável da fuga para as cláusulas gerais (Die Flucht in die Generalklauseln), conforme célebre expressão de Hedemann. Como parece ser inevitável a existência de cláusulas gerais no ordenamento jurídico, inclusive no Direito processual, cabe à teoria jurídica e à jurisprudência desenvolver técnicas dogmaticamente adequadas de manejo dessas espécies normativas.
Finalmente, é preciso distinguir cláusula geral e princípio. Cláusula geral é um texto jurídico; princípio é norma. São institutos que operam em níveis diferentes do fenômeno normativo. A norma jurídica é produto da interpretação de um texto jurídico 33. Interpretam-se textos jurídicos para que se verifique qual norma deles pode ser extraída. Um princípio pode ser extraído de uma cláusula geral, e é o que costuma acontecer. Mas a cláusula geral é texto que pode servir de suporte para o surgimento de uma regra. Da cláusula geral do devido processo legal é possível extrair a regra de que a decisão judicial deve ser motivada, por exemplo.
Este ensaio é mais um passo na empresa doutrinária de divulgação do pensamento jurídico sobre o assunto, etapa indispensável para o desenvolvimento do Direito. Muito já se construiu a respeito do tema, como visto. As linhas básicas podem assim ser resumidas: a) percepção de que não há legislação composta apenas por cláusulas gerais: a existência de regras jurídicas é indispensável para a diminuição da complexidade da regulação da vida social e o prestígio da segurança jurídica; b) a aplicação das cláusulas gerais não dispensa sólida fundamentação pelo órgão julgador, cuja decisão pode ser submetida ao controle formal ou substancial; c) o método da concretização das normas é o mais adequado para a aplicação das cláusulas gerais, que, não obstante ainda necessite de um contínuo aprimoramento teórico, exige a observância dos precedentes judiciais, da finalidade concreta da norma; da pré-compreensão, da valoração judicial dos resultados da decisão e do consenso como fundamento parcial da decisão (conforme sistematização de Humberto Ávila).
Feita a ressalva, podemos ir adiante.
3 O Direito Processual Civil e as Cláusulas Gerais
As cláusulas gerais desenvolveram-se inicialmente no âmbito do Direito Privado, cujos principais exemplos são as cláusulas gerais da boa-fé, da função social da propriedade e da função social do contrato.
Ultimamente, porém, as cláusulas gerais têm "invadido" o Direito processual, que naturalmente sofreu as consequências das transformações da metodologia jurídica no século passado 34. Afinal, o Direito processual também necessita de "normas flexíveis que permitam atender às especiais circunstâncias do caso concreto" 35.
O princípio do devido processo legal é o principal exemplo de cláusula geral processual. O CPC brasileiro contém outros vários exemplos de cláusulas gerais: a) cláusula geral executiva (art. 461, § 5º, CPC) 36; b) poder geral de cautela (art. 798 do CPC) 37; c) cláusula geral do abuso do direito do exequente (art. 620 do CPC 38); d) cláusula geral da boa-fé processual (art. 14, II, CPC); e) cláusula geral de publicidade do edital de hasta pública (art. 687, § 2º, CPC 39); f) cláusula geral de adequação do processo e da decisão em jurisdição voluntária (art. 1.109 do CPC 40) etc.
A existência de várias cláusulas gerais rompe com o tradicional modelo de tipicidade estrita que estruturava o processo até meados do século XX 41.
No Direito processual civil brasileiro, porém, as cláusulas gerais aparecem soltas, como se houvessem sido previstas sem qualquer preocupação sistemática.
O CPC português é estruturado em cláusulas gerais: a) princípio da adequação formal (art. 265º-A 42); b) cláusula geral do acesso a uma justiça efetiva, tempestiva e adequada (art. 2º, 1 e 2) 43; c) cláusula geral da igualdade das partes (art. 3º-A) 44 etc.; d) cláusula geral de cooperação processual (art. 266º, 1). Nesse aspecto, o CPC português está na vanguarda mundial. Não há legislação processual de onde se possam extrair tantas cláusulas gerais expressamente consagradas.
A flexibilidade/abertura do Direito Processual Civil português revela-se muito claramente. A topografia das previsões legislativas portuguesas é emblemática. As cláusulas gerais no CPC português aparecem no início da codificação, como que compondo o prólogo indispensável à compreensão do direito processual português. No CPC brasileiro, as cláusulas gerais mostram-se dispersas, sem qualquer ligação sistemática, produtos de inúmeras reformas legislativas que desestruturaram o sistema organizado por Alfredo Buzaid para o Direito processual civil brasileiro, sem preparar um outro para substituí-lo.
A produção doutrinária e as manifestações jurisprudenciais sobre as cláusulas gerais são quase infinitas 45. Notadamente na Alemanha, há um vastíssimo número de ensaios doutrinários a respeito do tema. Tudo isso contribuiu para que as cláusulas gerais fossem aplicadas de maneira dogmaticamente aceitável e, consequentemente, de modo a que se pudessem controlar as decisões judiciais que delas se valessem.
O princípio da boa-fé processual pode servir como exemplo do quanto ora se diz.
O princípio da boa-fé processual decorre de uma cláusula geral. As consequências normativas para o desrespeito ao princípio da boa-fé não precisam ser típicas: pode-se construir o efeito jurídico mais adequado ao caso concreto. A infração ao princípio da boa-fé pode gerar invalidade do ato processual, preclusão de um poder processual (talvez até mesmo uma supressio), dever de indenizar (se a infração vier acompanhada de um dano), direito a tutela inibitória, sanção disciplinar etc. 46 Essa parece ser a solução para o problema mais recorrente no manejo das cláusulas gerais processuais: saber a consequência normativa para o seu descumprimento. Aplicam-se aqui, em razão da proximidade entre abuso do direito e boa-fé, as considerações de Cunha de Sá sobre a sanção ao abuso do direito, cuja determinação "deverá ser feita em função e de acordo com as circunstâncias específicas do comportamento concretamente assumido pelo titular do direito" 47.
Enfim, o operador jurídico não pode prescindir desses subsídios na aplicação das cláusulas gerais processuais, atualmente tão abundantes.
TITLE: Procedural general clauses.
ABSTRACT: This essay aims to demonstrate the importance of the legislative technique of "general clauses" for the contemporary Civil Procedural Law.
KEYWORDS: Civil Procedural Law. General Clauses. Judicial Creativity.

INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS NO PROJETO DO NOVO CPC - BREVES APONTAMENTOS




Antônio Pereira Gaio Júnior
Advogado; Pós-Graduado em Direito Processual
(UGF); Mestre em Direito (UGF); Doutor em Direito
(UGF); Pós-Doutor em Direito (Universidade de
Coimbra/PT); Professor Adjunto da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ; Membro
Efetivo da Comissão Permanente de Direito
Processual Civil do IAB-Nacional; Membro
do Instituto Brasileiro de Direito Processual
- IBDP.
Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 44 - Set/Out de 2011




RESUMO: Trata-se de artigo onde se procura enfrentar as principais questões processuais decorrentes de incidente processual com previsão expressa no Projeto de Lei do Senado Federal nº 166 de 2010, mais precisamente nos arts. 930 a 941, denominado "Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas". Por ser instituto cabível em situações onde, decorrente de demandas em andamento, for detectada respectiva controvérsia que detém potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes, demonstra-se, fundamentalmente, a necessidade de análise pormenorizada dos impactos sobre a marcha procedimental e possível efetividade e presteza temporal na sistemática processual civil pátria.
PALAVRAS-CHAVE: Demandas Repetitivas. Reforma Processual. Efetividade e Celeridade.
SUMÁRIO: 1 Uma Nota Introdutória. 2 Noções Gerais e Procedimento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. 3 Referências Bibliográficas.
1 Uma Nota Introdutória
É cediço o volume de demandas que transbordam nas secretarias das numerosas comarcas que compõem a estrutura do Poder Judiciário pátrio.
Notadamente, boa parte de ditas demandas relacionam-se com conflitos que possuem, em seu particular âmago, similitude na causa de pedir, gerando, inegavelmente, lides envoltas em questões ora denominadas repetitivas 1.
Em meio a tal contexto problemático, não foge à análise que a alusiva multiplicidade de demandas de semelhante teor (litigiosidade de massas) 2, desaguada em uma estrutura técnica procedimental edificada sob outro paradigma 3 e que, por isso, vem, ainda de pouco, buscando alternativas para o enfrentamento de numerário avassalador das supracitadas lides, em que pese a problemática envolta na questão possuir tentáculos para uma variedade de causas, sendo, a nosso ver, das mais graves, o incontestável déficit em políticas públicas voltadas ao arranjo estrutural - e aí incluso o pessoal - qualitativo, apto a otimizar necessário impacto na qualidade do serviço público da justiça no país.
Por outro lado, somando-se à problemática quantitativa, tem-se a necessidade de melhor equalização das decisões judiciais aos casos concretos com nítida similitude 4, ou seja, nota-se, de muito, uma variedade de julgados com comandos discrepantes sobre uma mesma situação de direito, fortalecendo o sentimento de insegurança jurídica, realçado em sua face subjetiva, ou seja, na confiança legítima dos cidadãos quanto à calculabilidade e previsibilidade dos atos dos poderes públicos 5, contrariando assim o próprio e verdadeiro escopo da visão democrática a que o processo, como instrumento de liberdade, deva encarnar e incansavelmente perquirir: o empenho à igualdade de todos perante o direito.
Tal escopo se mostra indissociável do próprio Estado de Direito, com o equilíbrio das relações sociais, ainda que, a partir da concepção abstrata da lei, mas que razoavelmente pondera o seu exercício prático à razoabilidade através de soluções comuns à mesma medida do conflito a ser dissolvido pelo Poder Judicante estatal.
Ilógico e, por isso, inaceitável que, diante da analogia em casos concretos, repousem decisões gravemente discrepantes. Neste mesmo diapasão, bem norteiam Marinoni e Mitidiero:
"Não há Estado Constitucional e não há mesmo Direito no momento em que casos idênticos recebem diferentes decisões do Poder Judiciário. Insulta o bom-senso que decisões judiciais possam tratar de forma desigual pessoas que se encontram na mesma situação." 6
Ainda nesta toada e a título de exteriorizar a já antiga preocupação da doutrina pátria em tema de divergência jurisprudencial, João Mendes Júnior, ao tocar na temática, afirmava como causa final da atividade forense "a reparação do direito desconhecido, violado ou ameaçado" e sua "realização e segurança" 7. Indo ainda além no tema, Pontes de Miranda, na sua genialidade, lecionava que: "Se alguma sentença ou outra decisão, que se não haja considerar sentença, diverge de outra, em qualquer elemento contenutístico relativo à incidência ou à aplicação de regra jurídica, uma delas é injusta.(...). Tem-se de evitar isso e aí está a razão de algumas medidas constitucionais ou de Direito Processual que têm por fito corrigir ou evitar a contradição na jurisprudência" 8.
Assim, e em consonância com o que já fora dito linhas atrás, ainda que pesem esforços no sentido de abrandar as volumosas ações de caráter repetitivo, evitando-se, inclusive, discrepâncias nos julgados, ex vi de medidas como a das "Súmulas Impeditivas de Recursos" - art. 518, § 3º, do Código de Processo Civil (aplicando-se aí, no ato sentencial, jurisprudências consolidadas nos Tribunais Superiores, por isso, conteúdos já outrora e em similitude, julgados) 9 - e mais intensamente em sede de Tribunais Superiores, dos institutos da Súmula Vinculante (art. 103-A da Constituição Federal de 1988) e da Repercussão Geral (arts. 543-A e 543-B do CPC) 10, ambos afetos a contendas recursais endereçadas ao Supremo Tribunal Federal e igualmente de filtro recursal, visando obstar uma multiplicidade de Recursos Repetitivos decorrentes de mesma questão de direito, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (art. 543-C) 11, continuam-se os esforços no sentido de minorar cada vez mais a incidência das ações decorrentes de mesmas questões de direito, aprimorando-se métodos já no canal inicial, por onde as aludidas demandas, possivelmente de índole repetitiva, procedimentalmente, iniciam sua trajetória, ou seja, nas instâncias judiciais originárias, mais frequentemente, diante do juízo monocrático.
Nestes termos é que encontra lugar a ideia de atuação do intitulado "Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas."
2 Noções Gerais e Procedimento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas
Com previsão expressa no Projeto de Lei do Senado Federal nº 166 de 2010 12, mais precisamente nos arts. 930 a 941, encontra lugar o denominado "Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas" (IRDR) 13.
Trata-se de instituto cabível em situações onde, decorrente de demandas em andamento, for detectada respectiva controvérsia que, na exata dicção do texto (ex vi do art. 930, caput), possuir "potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes".
Notadamente, e já em início de análise, é de se observar o não cabimento do incidente quando envolto apenas em questões de fato, portanto, necessário se faz repousar sobre questões de direito, como se depreende do supracitado art. 930.
Quanto à legitimidade para suscitar o presente Incidente, podem fazê-lo o magistrado, de ofício; ou, por petição, as partes, o Ministério Público ou a Defensoria Pública, conforme sustenta o § 1º do art. 930.
Vale ressaltar, em situação similar ao que já bem acontece em sede de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85, art. 5º, § 3º), caso o Ministério Público não tenha sido o proponente do presente Incidente, intervirá obrigatoriamente e, em caso de abandono ou desistência pela parte, poderá assumir a titularidade do IRDR (§ 3º do art. 930).
Apontamento importante e de ordem formal é aquele constante do § 2º do art. 930, onde se atenta para a questão documental, daí instrutória, no que tange ao pedido de instauração do incidente, in verbis:
"§ 2º O ofício ou a petição a que se refere o § 1º será instruído com os documentos necessários à demonstração da necessidade de instauração do incidente."
Nota-se aqui, portanto, e ainda que em síntese apertada, a presença dos requisitos iniciais para a admissibilidade do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas:
- A identificação de controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes.
- A legitimidade para o pedido de instauração do Incidente.
- A instrução com os documentos necessários à demonstração da necessidade de instauração do incidente, logicamente, fundamentado na circunstância comprobatória da existência de "controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes".
O incidente será então distribuído a um relator do plenário do tribunal competente (ou do órgão especial, onde houver), que poderá requisitar informações ao juízo de primeiro grau onde se deu origem ao Incidente (arts. 932 e 933), cabendo ao respectivo tribunal analisar, além dos requisitos de admissibilidade já acima referendados, a conveniência em se adotar a decisão paradigmática (art. 933, § 1º).
Em sendo rejeitado o Incidente, retoma-se ação originária, caso contrário, o tribunal suspenderá todas as ações pendentes tanto em primeiro quanto em segundo grau (art. 934), cabendo assinalar que, a despeito da aludida suspensão de ações pendentes, havendo necessidade de adoção de medidas de urgência no âmbito de tais demandas, autoriza o parágrafo único do art. 934 que sejam elas praticadas.
Em síntese, uma vez julgando a questão de direito submetida, o Tribunal competente lavrará acórdão respectivo, cujo teor será vinculante e imposto a todos os juízes ou órgãos fracionários no âmbito de sua competência territorial (art. 933, § 2º) 14.
Ocorre que, para o devido processo legal referente ao próprio procedimento de julgamento do Incidente, notadamente, depois de o admitido, conforme apontado linhas atrás, serão ouvidos todos os interessados, inclusive entidade com interesse na controvérsia, que, no prazo de quinze dias, apresentarão documentos ou suas manifestações; depois ouve-se o Ministério Público (art. 935).
Feito isso, remete-se para julgamento pelo órgão colegiado (plenário ou órgão especial), no qual poderão se manifestar o autor e o réu do processo originário, bem como o Ministério Público, cada qual com trinta minutos (art. 936). Depois, manifestam-se os demais interessados no prazo comum de trinta minutos.
Então, julgado o Incidente, "a tese jurídica será aplicada a todos os processos que versem idêntica questão de direito", conforme expressa o art. 938.
Se o Incidente não for julgado em seis meses, cessa-se a eficácia da ordem de suspensão dos processos sobre a mesma questão, salvo decisão fundamentada do relator (art. 939).
Após o julgamento, dispõe o caput do art. 940 que qualquer das partes poderá interpor recursos especial ou extraordinário, estes que, diferentemente da regra geral, serão dotados de efeito suspensivo, "presumindo-se a repercussão geral da questão constitucional eventualmente discutida".
Além disso, não será feito juízo de admissibilidade na origem, como também é a regra geral da via recursal, por isso, remete-se diretamente para o tribunal competente julgar o recurso interposto, tudo consoante o art. 940 em seu parágrafo único.
Insta ainda ressaltar que, não sendo observada a tese adotada na decisão paradigmática (proferida no IRDR), reza o art. 941 que terá cabimento a "Ação de Reclamação" 15 para o tribunal competente, esse que irá analisar e decidir se ocorreu desrespeito à autoridade de sua decisão, nos termos do próprio procedimento da Reclamação (ex vi dos arts. 942 a 947), conforme aponta o parágrafo único do art. 941.
Por derradeiro, no tocante à publicidade da existência de Incidentes por parte de qualquer interessado - aí incluindo os próprios tribunais - a fim de evitar, inclusive, que haja demandas atinentes a uma mesma questão de direito já tipificada como Incidente e que ainda estejam correndo isoladamente em seu itinerário procedimental 16, reza o art. 931 que o Incidente deverá ser submetido à ampla e específica divulgação, especialmente por meio de um cadastro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), alimentado por dados fornecidos pelos tribunais (parágrafo único do art. 931).
Na mesma toada, mirando a segurança jurídica, as partes, interessados, Ministério Público ou Defensoria Pública poderão requerer que seja determinada a suspensão de todos os processos em curso no país sobre a mesma questão objeto do Incidente (art. 937); valendo pontuar o mesmo raciocínio supra para qualquer das partes de eventual demanda que esteja em andamento isoladamente perante qualquer órgão judiciário, conforme sustenta o próprio parágrafo único do art. 937:
"Parágrafo único. Aquele que for parte em processo em curso no qual se discuta a mesma questão jurídica que deu causa ao incidente é legitimado, independentemente dos limites da competência territorial, para requerer a providência prevista no caput."
A competência para conhecer de tal requerimento coincide com a competência para julgar os recursos especial e extraordinário, o que hoje corresponde, respectivamente, ao STJ e ao STF.
Tem-se aí o procedimento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas que, como visto, possuirá a serventia de desmobilizar o imenso numerário de demandas repetitivas que assolam todos os graus da Justiça Brasileira bem como minimizar o discrepante número de julgados divergentes sobre uma mesma questão de direito, tudo através de tese que, outrora, seria adotada pelo tribunal após a pacificação da jurisprudência ou em um eventual incidente de uniformização de jurisprudência. No entanto, vislumbra-se agora incidente especificamente voltado ao enfrentamento das problemáticas multicitadas, cuja aptidão será verificada com acerto, caso, efetivamente, haja o contributo e boa vontade daqueles operadores sensíveis aos problemas agudos por que passa, já de longa data, o serviço público de justiça do Brasil 17.
TITLE: Incident of resolution of repetitive demands in the New CPC bill - brief notes.
ABSTRACT: This article intends to confront the major procedural issues that comes from procedural incident with provisions in our Bill of the Senate no. 166 of 2010, specifically in articles 930-941, entitled "Incident of Resolution of Repetitive Demands". For being a institute appropriate in situations where, due to ongoing demands, their dispute is detected that has the potential to generate significant multiplication of process based on an identical question of law and could cause serious legal uncertainty, arising from the risk of coexistent conflicting decisions, demonstrates, fundamentally, the need for detailed analysis of impact on the procedural motion and possible effectiveness and readiness of civil procedure in the current brazilian systematic.
KEYWORDS: Repetitive Demands. Procedure Reform. Effectiveness and Readiness.
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domingo, 3 de março de 2013

DOCUMENTÁRIO MILTON SANTOS - POR UM OUTRA GLOBALIZAÇÃO


Por Luiz Cláudio Borges


O documentário abaixo mostra uma pequena parte do trabalho do geólogo Milton Santos. Caso queira conhecer mais a história desse grande homem, faça uma viagem no seguinte endereço eletrônico: http://miltonsantos.com.br/site.

 
 
 










O PROVÁVEL CONFRONTO ENTRE ALBERTO ASQUINI E RONALD COASE: UMA ANÁLISE DOS PERFIS DE EMPRESA A PARTIR DA TEORIA DA FIRMA




Giovani Magalhães Martins Filho

RESUMO

Resumo: o objetivo deste trabalho é avaliar a teoria da empresa, tanto do ponto de vista econômico quanto jurídico. Neste sentido, serão analisadas a teoria dos perfis de  empresa, de autoria de Alberto Asquini, bem como a teoria da firma, cujo autor é Ronald Coase. Busca-se, neste artigo, demonstrar os equívocos da doutrina jurídica dominante acerca do real entendimento que se deve ter sobre o perfil corporativo da empresa. Com efeito, a partir de uma abordagem de “Direito e Economia”, evidencia-se que é o perfil corporativo, despido de qualquer concepção política que lhe deu origem, é o elemento distintivo entre a atividade econômica empresarial e a atividade econômica não empresarial.

PALAVRAS-CHAVES: Palavras-chave: Ronald Coase. Alberto Asquini. Perfis de Empresa. Teoria da Firma. Direito e Economia.

ABSTRACT
Summary: the objective of this work is to evaluate the theory of the firm, as much of how much legal the economic point of view. In this direction, they will be analyzed the theory of the company profiles, of authorship of Alberto Asquini, as well as the theory of the firm, whose author is Ronald Coase. One searchs, in this article, to demonstrate the mistakes of the dominant legal doctrine concerning the real agreement that if must have on the corporative profile of the company. With effect, from a boarding of “Law and Economics”, it is proven that it is the corporative profile, undressed of any conception politics that gave origin to it, is the distinctive element between the enterprise economic activity and not enterprise the economic activity.

KEYWORDS: Word-key: Ronald Coase. Alberto Asquini. Profiles of Company. Theory of the Firm. Law and Economics.


Texto completo disponível no seguinte endereço:

A RALÉ BRASILEIRA, QUEM É E COMO VIVE - ENTREVISTA COM JESSÉ SOUZA



Entrevista realizada pelo jornalista Uirá Machado, da Folha de S. Paulo, cedida na integra ao sempre excelente sitio Gramsci e o Brasil.  Jessé Souza é coordenador do Centro de Pesquisa sobre Desigualdade Social da Universidade Federal de Juiz de Fora e, com André Grillo e outros, lançou recentemente o livro A ralé brasileira: quem é e como vive (Belo Horizonte: Ed. UFMG), em que estuda as características dessa “parcela da população que vive como subgente”.



Diversos estudos mostram que a proporção de brasileiros vivendo abaixo da linha de miséria caiu 43% desde 2003. Em seu último livro, o senhor diz ser falsa a tese de que a desigualdade brasileira está desaparecendo. Por quê?

Em primeiro lugar há que se dizer que esses números são expressivos e refletem tanto o efeito do recente crescimento da economia brasileira, quanto, também, o sucesso inegável de diversas políticas sociais do atual governo. Os índices que demonstram recuo na miséria ou pobreza a partir de um patamar absoluto de renda, dizem, no entanto, apenas que a pobreza absoluta diminuiu. A desigualdade é um conceito relacional e diz respeito à distância — no nosso caso o abismo — entre as diversas classes sociais que disputam recursos escassos em uma sociedade dada. Existe aqui, portanto, o risco de que o “fetiche do número” encubra o principal.

O principal é que o Brasil é uma das sociedades complexas mais desiguais do planeta, porque entre 30% a 40% de sua população têm inserção precária tanto no mercado quanto na esfera pública. Existe toda uma “classe social”, nunca percebida enquanto tal no debate público — a não ser fragmentariamente enquanto temas soltos e sem relação entre si como “violência”, “desqualificação da mão de obra”, “insegurança pública”, “repetência escolar”, “criminalidade”, “transporte público”, “saúde pública”, etc. — que tende a reproduzir sua precariedade indefinidamente. Imaginam-se 500 problemas para não se ver o único problema efetivo que é a raiz e o núcleo de todos os outros. Fragmenta-se indevidamente a realidade e confundem-se as hierarquias das questões para não se ver o óbvio: que somos uma sociedade altamente conservadora e perversa que aceita conviver com uma porção significativa da sua população vivendo como “subgente”, com empregos precários e sem articulação política de seus interesses.

É esse fato, e não nenhum outro, o que verdadeiramente nos separa das sociedades política e moralmente mais avançadas do chamado “primeiro mundo”. Essa classe social, que chamamos provocativamente de “ralé”, num pais que eufemiza, nega e jamais discute seus conflitos de frente, é a mão de obra barata a serviço das classes média e alta que podem — contando com o exército de empregadas, faxineiras, moto-boys, porteiros, zeladores, carregadores, babás e prostitutas, para o serviço pesado e desvalorizado — se dedicar às ocupações rentáveis e com alto retorno em prestígio e reconhecimento. É isso que chamo de “desigualdade abissal” como nosso problema central. Os outros são “nuvens de fumaça” para que não se perceba o que é importante e o que hierarquicamente deveria vir primeiro.


O Bolsa Família é frequentemente apontado como um dos grandes trunfos do governo Lula. Qual sua avaliação sobre esse programa?

O bolsa família tem extraordinário impacto social, econômico e político, com investimento público relativamente muito baixo. É incrível que não se tenha pensado nisso antes. Mais incrível ainda que exista gente que é contra. Boa parte da dinamização do mercado interno brasileiro tem relação direta com o bolsa família, como tivemos ocasião de ver empiricamente em nossa última pesquisa, já no prelo, acerca da “nova classe média”, denominação, aliás, muito infeliz e que criticamos na pesquisa.

Por outro lado, o bolsa família não tem condições, sozinho, de reverter o quadro de desigualdade e “incluir” e “redimir” a “ralé” enquanto classe social precarizada em todas as dimensões. Esse é um desafio que tem que ser de toda a sociedade brasileira, que envolve processos de conscientização em todos os níveis. Muda-se uma sociedade quando esta “aprende coletivamente” e ascende a novos patamares de consciência moral e política, por exemplo, “se responsabilizando”, sem procurar bodes expiatórios fáceis, pelas mazelas sociais que produziu historicamente. Botar a culpa no Estado é fácil. Mas não existe ação estatal realmente efetiva sem conscientização social também efetiva e real.


Em A ralé brasileira, o senhor critica a visão da educação como panaceia para os males do país. Mas é justamente nessa área que o setor empresarial armou uma de suas mais fortes bandeiras, o “Todos pela Educação”. Trata-se de um equívoco de quem se engajou nessa campanha?

É claro que a educação é um fator fundamental para o progresso social em todas as dimensões. O problema é que a competição social não começa na escola. Ela começa em casa, no berço, na imitação e na identificação afetiva das crianças com quem elas amam. Se os pais ou figuras de referência são indivíduos de classe média ou alta, ou seja, indivíduos que aprenderam a ser disciplinados, autocontrolados e a verem o futuro como mais importante que o presente, vamos ter também certas virtudes de classe, como a que permite a “capacidade de concentração”, algo determinante no sucesso escolar e depois no mercado de trabalho.

A capacidade de se “concentrar”, vimos isso repetidas vezes na nossa pesquisa, não é “natural”. É um aprendizado de “classe”, de certas classes privilegiadas, privilégio este transmitido de modo afetivo e “invisível”. É um “privilégio de sangue”, na verdade, e não produto de qualquer “mérito individual”. De acordo com a própria justificação moral tanto do mercado quanto da sociedade modernas, fundada na pressuposição da “igualdade de oportunidades”, o que temos é toda uma classe social esquecida, abandonada e construída para servir, a baixo custo, com trabalho sujo e pesado, às necessidades das classes média e alta brasileiras que possuem privilégios sem igual na Europa e nos EUA. Sem que se considere que as crianças de classes sociais diversas chegam a escola como vencedoras ou como perdedoras já aos 5 ou 6 anos de idade, então o que iremos ter é a uma escola que só vai corroborar e oficializar o engodo do “mérito caído do céu” de uns e legitimar, com a autoridade do Estado e a anuência de toda a sociedade, o “estigma” dos outros.

É precisamente desse modo, que o abandono de uma sociedade perversa, que nunca se responsabilizou — nem quer se responsabilizar — pela miséria que ajudou a criar e a reproduzir, se transforma em “culpa individual” da própria vítima do abandono. É o pobre, que não teve a oportunidade de incorporar os pressupostos emocionais e sociais de qualquer processo de aprendizado, que se torna o “burro”, o “preguiçoso”, o “tolo”, em suma: o culpado do próprio destino. Existe melhor legitimação para a reprodução infinita de todos os privilégios?

A eleição presidencial deste ano está polarizada entre dois candidatos com um discurso gerencial. Para muitos, isso indica uma certa maturidade do país, que conseguiu consolidar suas instituições e agora precisa administrar sua economia. O senhor, contudo, critica duramente o discurso economicista. Por quê?

A pergunta enseja que nos perguntemos, em primeiro lugar, o que é “maturidade”. Maturidade, seja na dimensão individual ou coletiva, é a capacidade de perceber e de lidar com os inevitáveis conflitos e contradições da vida. Uma sociedade é madura quando ela olha de frente e sem medo para seus conflitos e contradições principais e aceita o desafio de resolvê-los. Reduzir e amesquinhar os conflitos sociais às questões técnicas de administração econômica é o contrário de maturidade.

Minha crítica ao que chamo de “discurso economicista” não é também uma negação da extraordinária importância da economia, nem muito menos uma crítica pessoal aos profissionais da economia. Minha crítica é à extraordinária pobreza de um debate público que reduz, distorce e amesquinha todas as questões e conflitos sociais aos imperativos da reprodução da economia. A inversão é patológica e reflete uma sociedade doente: ao invés do mercado ser pensado como servindo à sociedade, é a sociedade que é percebida como “insumo” do mercado. A penetração desse modo de pensar se dá de maneira, ao mesmo tempo, imperceptível e virulenta: terminamos por nos avaliar sempre pelo tamanho de nosso PIB e não pela forma que nos tratamos uns aos outros em sociedade.

O senhor afirma que o “mito da cordialidade brasileira”, de Gilberto Freyre, resulta numa “aversão a toda forma de explicitação de conflito e de crítica”. Lula foi um presidente que buscou evitar conflitos a todo custo, bem ao gosto de sua tradição sindicalista conciliadora, montando inclusive um governo de coalizão. Ele contribuiu para empobrecer o debate acadêmico e político?

Qualquer político tem de conciliar interesses contraditórios. Não existe fórmula prévia que possa definir de que modo e em que medida deve-se conciliar ou quando se deve partir para o enfrentamento. Apenas os resultados práticos que se alcançam pode nos dizer se, no caso, tratou-se de uma “boa conciliação”, que permitiu avanços sociais importantes, por exemplo, ou uma “má conciliação” que produziu resultados pífios.

Quando falei de “aversão ao conflito e a crítica” sequer pensei também numa crítica a Gilberto Freyre, que afinal criou um “conto de fadas para adultos” convincente — que é o que todo mito nacional na realidade é —, além de muito eficiente e com ampla penetração nacional. Não existe nada de mau nisso. Toda sociedade precisa de mitos que evoquem sentimentos de solidariedade e pertencimento coletivo.

Problemático é o que a inteligência nacional fez com esse mito. Nossa ciência social dominante — que influencia todo o debate público, dado que apenas a ciência possui a legitimidade para falar com autoridade sobre qualquer assunto de interesse público — se apropriou do mito “positivo” de Freyre e inverteu o sinal. Tudo o que era motivo de elogio para Freyre passa a ser negativo. Sérgio Buarque é o pioneiro dessa inversão especular de Freyre e, depois dele, praticamente todos os grandes intérpretes brasileiros desde então. Uma “cultura” emotiva e sentimental, antes elogiada, passa a ser percebida como índice de pré-modernidade. Ainda que os “homens cordiais” de Sérgio Buarque, indignos de confiança e “amigo dos próprios interesses”, sejam todos os brasileiros, pouco a pouco apenas o Estado será percebido como a “casa da cordialidade” que confunde o público e o privado. Por algum milagre, que ninguém explica, o mercado fica a salvo da “cordialidade” e de seus males. A “brasilidade cordial”, definida como emotiva e sentimental por oposição à racionalidade e ao cálculo, torna-se o problema maior do Brasil e passa a habitar apenas o Estado ineficiente, politiqueiro e corrupto, definindo o conceito mais importante das ciências sociais e do debate público brasileiro até hoje: o conceito de “patrimonialismo”.

O conceito de patrimonialismo distorce e simplifica a realidade de várias maneiras, mas, sempre, na mesma direção: o mercado é percebido como a esfera idealizada de todas as virtudes e o Estado como a esfera que encerra todo o mal e toda a corrupção. Na verdade é um absurdo separar mercado e Estado, que são realidades interdependentes e um não existe sem o outro, e mais absurdo ainda imaginar que não exista corrupção também no mercado — e isso no mundo inteiro — não existindo qualquer privilégio “patrimonialista” brasileiro nessa questão. A última crise financeira e as sucessivas crises provocadas por balanços “maquiados” de empresas e de países inteiros — como no caso recente da Grécia — apenas deixam essa questão clara como a luz do sol. Como sempre o pior cego é aquele que não quer ver.

A verdadeira função deste “conceito” é dramatizar um falso conflito — entre mercado e Estado —, de modo a esconder todos os reais conflitos que nunca chegam sequer a atingir o patamar de tema digno de ser discutido, como precisamente no caso da reprodução indefinida de uma “ralé” de indivíduos precarizados por abandono e descuido. Os falsos conflitos estão sempre no lugar de conflitos reais. A dramatização de um conflito superficial e falso serve para que os conflitos que cindem a sociedade brasileira de fio a pavio sequer sejam percebidos como problema. É assim que se constrói uma sociedade perversa e conservadora que ainda se imagina “crítica” e “moralmente indignada”.

O senhor tem argumentado que o conceito de classes sociais não pode se limitar à questão da renda e que apenas uma nova compreensão das classes sociais poderia levar o país a combater de fato a desigualdade. Como isso se daria?

A redução das classes sociais ao seu substrato apenas econômico, seja à renda ou ao lugar na produção, erro comum tanto ao liberalismo dominante quanto ao marxismo enrijecido dominado, implica “falar” de classes sociais sem que nada se compreenda de sua importância. Percebem-se apenas os aspectos “materiais” como dinheiro ou transmissão de propriedade, e se “esquece” da transmissão de “valores imateriais”, como as formas específicas de agir e reagir no mundo, os quais, esses sim, constituem os indivíduos como indivíduos de classe.

São os valores e as disposições para o comportamento individual incutidos desde a mais tenra infância na socialização familiar típica de cada classe que criam os privilégios positivos de um lado e negativos de outro. Como regra, as virtudes são todas do “espírito”, como a inteligência, o cálculo, a razão distanciada, ou até o “expressivismo blasé”; já os vícios, por outro lado, são todos ligados ao “corpo”, como a sexualidade sem controle, os afetos, a emotividade, a força muscular, etc. As classes superiores “in-corporam” — literalmente tornam “corpo”, automático, como quem anda ou respira — as virtudes espirituais como a capacidade de concentração, por exemplo, decisiva no sucesso escolar. As classes inferiores “in-corporam” as virtudes ambíguas do corpo, assim como todos os outros dominados como as mulheres — por oposição ao homem — e o negro — por oposição ao branco.

Em todas as dimensões da competição social por recursos escassos de todo tipo, no entanto, são as virtudes do espírito aquelas que recebem bons salários, prestígio e reconhecimento social. As classes do “corpo” tendem a ser literalmente “animalizadas”, podendo ser usadas e instrumentalizadas e até mortas por policiais sem que ninguém se comova com isso. O fato é que existem sociedades — que aprenderam a enfrentar seus desafios de frente — que reduziram o percentual de classes excluídas e animalizadas a um mínimo. Penso aqui nas principais democracias europeias. Nós escolhemos nos indignar moralmente com falsos conflitos e negar patologicamente qualquer responsabilidade social pela miséria econômica, existencial e política de parte considerável de nossa população.

A “meritocracia” está em larga medida consolidada nas sociedades contemporâneas, mas o senhor diz ser falsa a ideia de que o desempenho é o fator diferencial entre os indivíduos. Por quê? E qual a alternativa?

O problema não é com a idéia do “desempenho diferencial” como fundamento do mérito individual. O problema é o “esquecimento” de que todo “mérito individual” é socialmente construído. Isso tem a ver com o “esquecimento” também das heranças imateriais, emotiva e afetivamente transmitidas, que compõem as diversas classes sociais. A sociedade constrói — pelo “privilégio de sangue”, ou seja, pela sorte de se nascer na “família certa” — indivíduos destinados ao sucesso e ao “mérito”, que são os indivíduos aos quais são transmitidos os pressupostos emotivos, afetivos e morais que garantem o sucesso na escola e depois no mercado capitalista, e outros indivíduos destinados ao fracasso e ao não-mérito, ou seja, ao “estigma”, por não terem tido a mesma chance e por terem nascido na “família errada”, ou seja, por exemplo, numa família da “ralé”.

Qual a “justiça” que há nisso? Esse argumento atinge o coração da legitimação social de qualquer sociedade moderna, posto que as sociedades modernas nasceram e se legitimaram, em oposição a todas as formas pré-modernas de sociabilidade, precisamente pela idéia da superação de todo “privilégio de sangue”, ou seja, pela pressuposição da superação de todo privilegio de origem familiar. A reprodução da legitimidade no tempo de toda sociedade moderna depende também da manutenção dessa ilusão. Transferir a culpa social para o próprio indivíduo, como acontece com os membros de nossa “ralé”, que se imaginam efetivamente “burros” e incapazes de aprender, é parte fundamental dessa estratégia de distorcer a realidade para a manutenção indefinida de privilégios nada meritocráticos.


O governo Lula contribuiu em alguma medida para reduzir essa desigualdade abissal a que o senhor se refere? E o governo FHC?

As sociedades que conseguiram superar efetivamente, em medida significativa pelo menos, a separação entre gente e subgente e entre cidadão e subcidadão o fizeram como esforço de toda a sociedade e não apenas do Estado. O Estado não é um ente todo poderoso que possa atuar, com sucesso, contra consensos sociais arraigados. Houve avanços inegáveis nas últimas décadas como o ganho de racionalidade econômica no período FHC e a tentativa bem sucedida, ainda que incompleta, de repor a questão social como a questão central brasileira no período Lula. Mas o futuro pode ser mais audacioso. O crescimento econômico continuado e a descoberta de novas riquezas podem ser mecanismos importantes para redefinir e transformar o padrão excludente de sociedade que tem sido o único que conhecemos. Mas a mudança social é muito mais do que condições econômicas favoráveis. Elas exigem pensar o Brasil de modo novo. Um Brasil que encare seus conflitos de frente sem muletas fáceis do tipo “Estado patrimonial”.

O senhor diria que os dois principais candidatos empobrecem a discussão ao reproduzir um discurso gerencial de viés economicista?

Existe um aspecto “gerencial” que é perfeitamente legítimo e como tal ele enriquece o debate político. Há que se usar bem os recursos disponíveis e esse tipo de “racionalidade técnica” é indispensável. Mas a racionalidade técnica é um “meio” não é um “fim”. A questão relevante é sempre para que ou para quem serve a racionalidade técnica? Quando se fala da racionalidade técnica como um fim em si é porque não se pode nomear para quem ou para que ela serve.

Quando o senhor diz que ainda existem privilégios de sangue, parece que a Queda da Bastilha não ressoou por aqui. É isso mesmo? Nossa sociedade é medieval desse ponto de vista?

Os privilégios de sangue são, na realidade, privilégios de classe já que a reprodução emotiva e sentimental das classes se dá no seio das famílias que são, por sua vez, formatadas de acordo com uma herança de classe muito específica. Todas as sociedades modernas procuram esconder o pertencimento de classe posto que só ele pode esclarecer a origem de todos os privilégios que se reproduzem no tempo. As sociedades modernas, todas elas, têm que se apresentar como “sociedades de indivíduos”, se possível sem passado e sem vínculos sociais e comunitários. A imensa maioria dos filmes, novelas, livros de grande venda e propagandas de todo tipo reforçam essa ilusão. O “esquecimento” do vínculo que liga os indivíduos a classes sociais determinadas é, em qualquer sociedade moderna, o maior segredo da dominação social porque permite que os privilégios sejam percebidos como “mérito individual” e, sejam, portanto, justificados.

Mas as sociedades não são iguais. Existem sociedades politicamente e moralmente mais avançadas do que a nossa porque foram sociedades que aprenderam a conviver e a institucionalizar o conflito social ao invés de negá-lo patologicamente como fazemos. Nessas sociedades existem também canais alternativos para idéias e concepções alternativas. Mas nós também podemos aprender. O que foi feito pelo homem pode ser refeito por ele. Perceber o mundo como contingente e possível de ser modificado — e não como “natural” e como o único possível — é sempre o melhor começo.


Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...