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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Multa excessiva em cláusula penal de contrato deve ser reduzida, não declarada nula




A multa excessiva prevista em cláusula penal de contrato deve ser reduzida a patamar razoável, não podendo ser simplesmente declarada nula. O entendimento foi adotado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar disputa entre uma administradora de cartões de crédito e uma empresa de locação de banco de dados, em contrato de locação de banco de dados cujo processo de filtragem utiliza o método merge and purge.

O relator é o ministro Villas Bôas Cueva. A multa contratual foi estipulada em valor superior ao da obrigação principal. Para o magistrado, constatado o excesso da cláusula penal, o juiz deve reduzi-la conforme as obrigações cumpridas, observadas a natureza e a finalidade do contrato.

A administradora de cartões alugou o banco de dados para realizar ações de marketing por telefone e mala-direta. O contrato foi baseado na adoção do processo de filtragem denominado merge and purge (fusão e expurgo), que consiste no cruzamento de dados, de modo a eliminar duplicidade de registros.

Duplo cruzamento

No caso, a administradora cruzou seu banco de dados com o de seus clientes e, posteriormente, com o banco de dados do Serasa para evitar contato com consumidores negativados. Isso reduziu os 3,2 milhões de nomes locados para 1,8 milhão, no primeiro cruzamento, e depois para 450 mil, na segunda filtragem. A empresa de locação do banco de dados sustentou que o duplo cruzamento não teria sido autorizado em contrato. O pagamento seria por cada nome utilizado.

O ministro afastou a alegação da administradora de cartões de que se trataria de contrato de adesão, elaborado unilateralmente, e de que haveria ambiguidade nas cláusulas. Para Villas Bôas Cueva, a inexistência de cláusulas padronizadas, o objeto singular do contrato (locação de banco de dados), a adoção do método de filtragem merge and purge, o valor estipulado e outras peculiaridades afastam o caráter impositivo e unilateral da avença. Assim, não deve ser aplicado o disposto no artigo 423 do Código Civil.

Quanto à multa contra a administradora de cartões, a turma reconheceu a obrigação do pagamento de 20% do valor da condenação, que foi de aproximadamente R$ 400 mil. A condenação corresponde à extensão das obrigações não cumpridas, isto é, o pagamento pelos dados de pessoas efetivamente utilizados e a indiscutível dúvida sobre o alcance da cláusula que estabeleceu o método merge and purge.

Leia o acórdão.

Fonte: STJ

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O caso da contagem do prazo para vigência das leis





Há uma intervenção muito simples da antiga Consultoria-Geral da República a propósito de contagem de prazos de vigência de leis publicadas no Diário Oficial. Especialmente, chama-se atenção o modo como o parecerista tratou do princípio relativo à impossibilidade de se alegar ignorância da lei. Segue o parecer:

“Gabinete do Consultor-Geral da República – Rio de Janeiro, 16 de outubro de 1926.

Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda – Com o Aviso nº 107, de 14 do corrente, transmitiu-me Vossa Excelência, para dar parecer, o processo originado ela representação da Diretoria da Despesa Pública sobre a data em que deve ter início o abono de vencimentos de que trata o Decreto nº 5.025, de 1 do corrente, publicado no Diário Oficial do dia 6.

Motiva a representação a circunstância de fixar o art. 2º da Introdução do Código Civil para a obrigatoriedade das leis, diversos prazos, a contar da sua publicação, neste Distrito e nos Estados, prazos que variam de 3 a 100 dias e parecia injusto que os funcionários públicos fossem beneficiar do abono de modo desigual, conforme a sede de seu emprego.

Ouvidos diversos funcionários do Tesouro, inclusive o Senhor Dr. Consultor-Geral da Fazenda, foram todos acordes em resolver a injustiça, opinando que se devia mandar observar a lei desde a data de sua sanção, a 1 do corrente.

Não me é possível aderir a esse modo de ver, que viria: a) pôr de lado o princípio fundamental do direito público por força do qual a publicação é elemento essencial para a existência legal das leis, princípio expressamente contido no citado artigo da Introdução do Código Civil; b) deixar de dar execução á mesma disposição legal na parte que fixa o prazo para que a lei se torne obrigatória.

Não me parece, todavia, Senhor Ministro que o caso possa dar lugar às dúvidas apresentadas.

A razão de ser da necessidade da publicação oficial e autêntica das leis e da fixação de um prazo para início de sua obrigatoriedade corresponde ao princípio de que a ninguém é lícito alegar a ignorância da lei (Introdução do Código civil, art. 5º). E, assim, as leis são publicadas para ciência daqueles a quem incumbe subordinar-se a suas prescrições.

Ora, no caso presente a lei apenas obriga ao Estado e, pois, no dia em que essa lei entrar em vigor no Distrito Federal, onde foi publicada no Diário Oficial, está o Estado, que tem seu domicílio neste Distrito (Código Civil, art. 35, I), na obrigação legal de fazer o pagamento nela determinado, e não somente em relação aos funcionários que residam nesta Capital, mas a todo o funcionalismo a que a lei se refere.

Em face destas considerações, e obedecendo a terminantes princípios de lei, é meu parecer que a Lei n 5.025, de 1 do corrente, publicada no Diário Oficial do dia 6, entrou em vigor 3 dias depois de sua publicação e dessa data diante está o Estado obrigado a pagar o abono pela mesma lei estatuído.

Com este parecer, que submeto ao critério superior de Vossa Excelência, devolvo os papéis e tenho a honra de reiterar a Vossa Excelência à segurança de minha elevada estima e subido apreço.

Rodrigo Octávio”


Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP, professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).



Revista Consultor Jurídico, 5 de novembro de 2015, 13h42

ConJur não deve apagar notícia sobre acusado de atentado contra gays, diz juiz






Notícia que se limita a informar o público sobre decisões judiciais, sem acrescentar nenhuma circunstância ao caso, não abusa da liberdade de imprensa nem viola a vida privada ou a honra de quem é citado no texto. Com esse entendimento, o juiz da 3ª Vara Cível de São Paulo Théo Assuar Gragnano livrou a revista Consultor Jurídico de indenizar Rodrigo Alcântara de Leonardo, citado na seção Noticiário Jurídico de 21 de setembro de 2010.

Na ocasião, a ConJur — com base em notícia do jornal Folha de S.Paulo — informou que a Justiça tinha condenado dois dos sete indiciados pela explosão de uma bomba caseira lançada no centro de São Paulo durante a Parada Gay, em junho de 2009. Leonardo, conhecido como Tumba, era um deles, e recebeu pena de dois anos de prisão em regime fechado por associação criminosa. A publicação ainda apontou que ele era integrante do grupo neonazista "Impacto Hooligan".

Em julho de 2015, Leonardo moveu ação contra a ConJur. Na petição inicial, ele alegou que a notícia é falsa, uma vez que foi absolvido das acusações de lesão corporal e explosão, e que a manutenção dela internet traz prejuízos ao seu prestígio pessoal e renome profissional. Leonardo sustentou que, por causa disso, teve que fazer terapia e que não consegue recolocação no mercado de trabalho, tendo que sobreviver como freelancer de tradução de textos. Invocando o direito ao esquecimento, ele pediu a retirada da nota do site e indenização de R$ 100 mil por danos morais.

Os advogados da ConJur Alexandre Fidalgo e Jonathan Palhares, em contestação, afirmaram que o site se limitou a reproduzir uma notícia verídica publicada em diversos veículos de comunicação naquele dia. Além disso, eles destacaram o interesse público da informação, tendo em vista que a violência contra homossexuais na Parada Gay teve grande repercussão social. A defesa da publicação ainda argumentou que eventual constrangimento sofrido por Leonardo decorre unicamente de seus atos em tal ocasião, e não da veiculação de reportagens sobre eles.

Ao julgar o caso, Gragnano apontou que o texto do Noticiário Jurídico daquela data apenas reproduz informações contidas na sentença que condenou Leonardo, como as de que recebeu pena de dois anos de prisão por associação criminosa, de que era integrante do grupo neonazista “Impacto Hooligan”, e de que foi indiciado — e não condenado — por explosão de bomba caseira no evento.

Segundo o juiz, a condenação pelo crime de formação de quadrilha está “longe de constituir fato circunscrito à vida privada do autor”. Ele explica que decisões judiciais como essa têm natureza eminentemente social, tanto devido ao princípio da publicidade dos atos estatais quanto pelo fato de tal delito ser crime de ação pública. Com isso, Gragnano destacou não haver qualquer abuso no exercício da liberdade de imprensa, nem violação à honra ou à vida privada do autor.

Embora tenha reconhecido que o direito ao esquecimento pode ser a “única alternativa apta a resguardar a dignidade humana” em tempos de “hiperinformacionismo”, o juiz avaliou que tal prerrogativa não se aplicava ao caso. Isso porque o caso é recente, a ConJur não divulgou novamente a informação, e Leonardo não informou se a pena foi extinta.

Dessa forma, Gragnano julgou improcedentes os pedidos de Rodrigo Alcântara de Leonardo e o condenou a pagar honorários sucumbenciais aos advogados da ConJur no valor de R$ 3 mil, além de custas processuais.

Clique aqui para ler a íntegra da decisão.

Processo 1007662-43.2015.8.26.0011 

Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 5 de novembro de 2015, 17h58

terça-feira, 13 de outubro de 2015

A metadogmática do Direito Comercial brasileiro (parte 1)






Por Walfrido Jorge Warde Jr e Jose Luiz Bayeux Neto


É com grande satisfação que contribuímos para esta prestigiosa coluna, mantida pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

A metadogmática transcende a dogmática[1] na sua objetividade, referindo-se, contudo, a categorias e conceitos dogmáticos. O termo é empregado, no contexto de uma metódica (teoria do método), para designar um produto da interpretação (possivelmente para fins de atualização do direito), que expresse uma visão externa do fenômeno jurídico, às vezes voltada à aplicação da norma, mas sempre dedicada a uma reflexão que confronta fatores exógenos aos dogmáticos.[2] Qualquer rearranjo programático (do âmbito, das funções ou das técnicas) de uma disciplina jurídica, que produza um resultado dogmático, pressupõe um diálogo entre política do direito e dogmática, que é próprio da metadogmática.

Uma metadogmática do direito comercial propõe, por exemplo, à porção da ciência objetiva do direito que caracteriza o direito comercial, um objeto, funções e técnicas, sem dizer a norma em seu conteúdo objetivo (mesmo que da proposta decorra um conteúdo).

Este artigo, dividido em quatro partes, expressa, nos itens II a IV, proposições próprias do discurso metadogmático, quer prestar alguma contribuição ao debate atual sobre o conteúdo do direito comercial, na medida em que as conclusões aqui expressas o antecedem, capazes, bem por isso, de inculcar impressões acerca dos seus caminhos.

O que é e para que serve o direito comercial
1. O direito comercial é o “direito privado externo da empresa”.[3] Não é, bem por isso, o estatuto jurídico da empresa, ainda que na empresa se funde o seu objeto. O direito comercial disciplina parte do fenômeno empresarial, que se secionou, para fins de regramento, por expurgos ideológicos e pela afirmação histórica de especialidades.

O regramento da empresa, que se refere a um direito interno (organização) e a um direito externo (exercício) da empresa, não é disciplina autônoma, mesmo que a empresa se converta crescentemente em uma categoria jurídica de grande força atrativa. Do seu regramento já se ocupam o direito comercial, o direito societário, e porções de outras ramas, a exemplo do direito econômico, do direito do consumo e do direito do trabalho.

2. A empresa, que corresponde – em quaisquer hipóteses conceituais – a uma fattispecie amplíssima, foi concebida, sob o espírito da regulação total[4], para desbordar os limites de um claudicante embate histórico-programático[5]; revolucionou a matriz regulatória do direito comercial, por meio da superação das velhas doutrinas objetivista e subjetivista, mas, sobretudo, por uma drástica restrição, combinada com paradoxal e majoritária contenção da autonomia privada.[6] A empresa é, nesse sentido, uma poderosa técnica de intervenção estatal na economia. A sua disciplina determina, paradoxalmente, as maiores restrições à autonomia privada e, ao mesmo tempo, boa parte do âmbito da autonomia privada.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).

[1] “A ciência do direito em sentido estrito, a ciência dogmática e sistemática do direito (Jurisprudência), é a ciência do sentido objetivo do direito positivo [...] É a ciência do sentido objetivo do direito positivo, nisto se distinguindo, sucessivamente: da História do direito, da Ciência comparativa do direito, da Sociologia e da Psicologia jurídicas as quais têm por objecto o ser do direito e os factos da vida jurídica”. Cf. Radbruch, G. A Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Armando, 1997, p. 395.

[2] Cf. SCHULZE-FIELIZ, H. “Das Bundesverfassungsgericht in der Krise des Zeitgeists – Zur Metadogmatik der Verfassungsinterpretation.” Archiv des Öffentlichen Rechts, Vol. 222, 1997, pp. 1-31.

[3] Essa assertiva caracteriza a chamada Neokonzeption des Handelsrechts. É compatível com o nosso modelo, porque atribui à empresa – a exemplo do que já se dá em nosso ordenamento – a condição de categoria jurídica estruturante do direito comercial alemão (mesmo que, naquele país, ainda não a tenham positivado). Isso se reforça pelos sucessivos expurgos que apartaram do nosso direito comercial a disciplina de porções significativas do fenômeno empresarial. Para uma descrição pormenorizada dessa noção, cf. SCHMIDT, K. Handelsrecht. 5. Aufl., Köln, Berlin, Bonn, München: Heymann, 1999, §3.

[4] Regulação total. A empresa é, em primeiro lugar, uma técnica regulatória. Decorre do desejo de engendrar um regramento de toda a atividade econômica, na certeza de que sua importância exorbita o espaço privado (i.e., o âmbito da autoconfiguração (Selbstgestaltung) das relações jurídicas por particulares), à produção de efeitos que interessam o público e que, por isso, devem ser – sob um modelo de economia normativa – submetidos pela ordem jurídica total. A ideia de um “direito da atividade econômica” se torna plausível na Alemanha de Weimar, em meio a uma forte degradação da economia e em resposta às suas causas precípuas, invariavelmente associadas ao oportunismo dos agentes de mercado e à ampla liberdade de que se beneficiavam. Cf. Hedemann, J. W. Deutsches Wirtschaftsrecht: Ein Grundriess. Berlin: Junker & Dünnhaupt, 1939. Nesse contexto, a empresa, que já era objeto de especulação doutrinária, afirmou-se como conveniente técnica de intervenção do Estado na economia.

[nota 4-I] Origens. O pensamento jurídico de tradição germânica já trabalhava, nos meados do século XIX, uma noção de empresa, sem se dar conta da amplitude e da importância de seu emprego futuro. A Geschäft, como propôs Endemann, era um organismo – afetado pelo lucro – para transcender os seus criadores. Cf. ENDEMANN, W. Das Deutsche Handelsrecht. Systematisch dargestellt. 2. Aufl. Heidelberg, 1868. § 15, p. 76 et seq. Autores como Hedemann, articulando essa forte orientação subjetivista ao interesse de dispor de uma técnica regulatória de amplíssimo espectro, propuseram que a empresa substituísse a pessoa jurídica. Cf. HEDEMANN, J. W. Das bürgerliche Recht und die neue Zeit, 1919, p. 17. Seria, todavia, na condição de objeto unitário de negócios, sob a influência de Von Ohmeyer, Pisko e Isay, que a empresa permitiria, mais tarde, um maior avanço dogmático. Cf. OHMEYER, K. E. von. Das Unternehmen als Rechtsobjekt. Mit einer systematischen Darstellung der Spruchpraxis betreffend die Exekution auf Unternehmen. Wien: Manz, 1906. p. 8 et seq; PISKO, O. Das Unternehmen als Gegenstand des Rechtsverkers. Wien: Manz, 1907. p. 46 et seq.; ISAY, R. Das Recht am Unternehmen. Berlin: Vahlen, 1910. p. 12 et seq.

[nota 4-II] Polissemia e variância tônica: do perfil subjetivo ao núcleo defletor de interesses. É certo, como nos dá conta Asquini, que na virada do século e ainda nas duas primeiras décadas do século XX, prevalecia, entre os muitos sentidos de empresa, um perfil subjetivo, sob a forte influência dos pais do Direito Econômico. Cf. Asquini, A. Profili dell’ Impresa. Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, Milano: Francesco Vallardi, v. 41, pt. 1, 1943. O perfil prevalentemente subjetivo, que se deflagrava pela intenção originária de suplantar a pessoa jurídica, sofreria ajustes, até que o conceito de empresa evoluísse em complexidade, permeado por influxos ideológicos e por interesses públicos, afirmando-se, ao fim, já nos anos 1940, um traço funcional mais acentuado, que se sente na conjunção das ideias de organização, afetação (função) e atividade. Note-se, para explicar esse ajuste conceitual, que as mais adiantadas reflexões sobre a empresa iriam tratá-la, a partir dos anos 1930 e especialmente no auge do regime nacional-socialista, como especial núcleo defletor de interesses; assumiria a tarefa de introduzir importantes influxos ideológicos no ordenamento, a exemplo do que se tentou por meio da doutrina do Unternehmen an sich. Cf. Rathenau, W. Vom Aktienwesen: Eine Geschäftlische Betrachtung g. Berlin: Fischer Verlag, 1917; NETTER, O. “Zur aktienrechtlichen Theorie des ‘Unternehmens an sich’”. JWI, p. 2953-2956, 1927; “Gesellschaftsinteresse und Interessenpolitik in der Aktiengesellschaft”. Bank-Archiv, v. 30, 1930-1931, p. 57-65 e 86-95. Para uma visão histórica desse processo, mesmo que algo distorcida, JAEGER, P. G. L’interesse sociale. Milano: Giuffrè, 1964. p. 17 et seq. E superado, com a queda do Reich, um tom demasiado publicista (que inspirou, em 1937, as reformas da Aktiengesetz), à empresa remanesceria o sentido de centro de interesses ou de valores distintos daqueles dos seus suportes humanos, à afirmação de um Unternehmensinteresse, instruído por clamores de uma variada gama de “grupos de pressão” e, antes deles, por interesses de Estado (cf., nesse sentido, todas as leis que introduziram a participação operária nos órgãos de direção da macroempresa societária alemã, i.e., a Gesetz über die Mitbestimmung der Arbeitnehmer in die Aufsichtsraten und Vorstanden der Unternehmen des Berghaus und der Eisen und Stahl erzeugende Industrie (MontaMitbestG 1951), a Betriebsverfassungsgesetz de 1952 e a gesetz über die Mitbestimmung der Arbeitnehmer (MitbestG) de 1976). Deve-se lembrar, contudo, que, curiosamente, a empresa não é uma categoria jurisdicizada pelo direito alemão atual, para o qual o direito comercial ainda é o direito das “pessoas do comércio” (Recht der Kaufleute). Cf. HOFMANN, P. Handelsrecht, 11. Aufl., Berlin: Luchterhand, 2002, ROTH, G.H. Handels- und Gesellschaftsrecht, 6. Aufl., München: Vahlen, 2001, §1, 1c. Daí por que à concepção tradicional se opõe uma Neokonzeption des Handelsrechts. Cf. SCHMIDT, K. Handelsrecht..., op. cit., §3. Para um conceito de empresa influente na Alemanha atual, cf. RAISCH, P. Geschichliche Voraussetzungen, dogmatische Grundlagen und Sinnwandlung des Handeslrechts, Karlsruhe: C. F. Müller, 1965, p. 119 et seq.

[nota 4-III] A difusão da empresa como técnica regulatória e a empresa no Brasil. Essas ideias influenciariam, alicerçadas em modelo de Estado, um grande número de ordenamentos nacionais. A Itália de Mussolini, em vista de sua proximidade com a Alemanha nazista, atribuiu à empresa a condição de conceito estruturante para a matriz regulatória que se deduz do Codice Civile de 1942. Outros países, em meio a um projeto de ampliação do Estado, também encontraram na empresa uma conveniente ferramenta. Célebres comercialistas, a exemplo de Frederiq e VanRyn, cogitaram mesmo uma absorção do direito comercial pelo direito econômico, senão a sua completa superação, pelo advento de uma nova disciplina centrada na empresa como categoria fundamental. Cf. Frederiq, L. Traité de Droit Commercial Belge. V. 1, Gand: Rombaut-Fecheyr, 1946, p. 22; VanRyn, J. Principes de Droit Commercial. Bruxelles: Bruylant, 1954, p. 12. Bem por isso, no direito francês, também, a empresa exerce, até hoje, papel fundamental. Cf. Georges. Traité Élémentaire de Droit Commercial. 2. éd. Paris: LGDJ, 1951, p. 6 et seq. Nisso tudo, em especial no direito italiano, inspirou-se o nosso Código Civil, onde a norma do artigo 966, assim como a do artigo 2.082 do Codice Civile, não conceitua a empresa, senão por meio da definição de empresário. Entre nós, a empresa, para além de todas as funções regulatórias já referidas, proveu, em meio à suposta unificação do direito privado, uma especialização mínima, indispensável à distinção de fenômenos econômicos e de sua disciplina jurídica. A empresa é a atividade econômica, que decorre da organização e do emprego de elementos de produção, pelo empresário (individual ou sociedade empresária), em caráter profissional, para a produção ou à circulação de bens e de serviços, nos mercados. A ideia de afetação empresarial serve para distinguir, nesse contexto, como se disse, de todos os demais, os fenômenos econômicos sujeitos a um regramento particular. Cf. Broseta Pont, M. La Empresa, la Unificacion del Derecho de Obligaciones y el Derecho Mercantil. Madrid: Editorial Tecnos, 1965.

[5] A jurisdicização da empresa e o seu emprego como técnica regulatória ofertavam, para além de ampla cobertura da atividade econômica, um providencial efeito reflexo, capaz de superar a controvérsia original entre as concepções subjetiva e objetiva. A vertente subjetivista, mais antiga e de inspiração corporativa, tinha no direito comercial uma disciplina jurídica de classe profissional. Cf. Bracco, R. L’Impresa nel Sistema del Diritto Commerciale. Padova: CEDAM, 1960, p. 26 et seq. O objetivismo, defendido por autores do século XIX, restringia a atuação do direito comercial ao regramento dos atos de comércio. Sobre o processo de “objetivação” e expansão do direito comercial, intrinsecamente relacionado com a Revolução Industrial e a produção em massa, cf. Ascarelli, T. Iniciación al Estudio del Derecho Mercantil. Barcelona: Bosch, 1964, p. 101. A noção de ato de comércio, de um lado, seria – no contexto da empresa – absorvida pela ideia de atividade e, de outro lado, o foco das atenções deixaria de ser a conduta do comerciante, substituído pelo empresário. Em verdade, foi a natureza multifária e polissêmica da empresa que pacificou a antiga disputa pelo objeto do direito comercial (não sem ensejar, como veremos, novas controvérsias); a amplitude e plasticidade conceitual da empresa abrangeu todos os objetos programáticos até então atribuídos ao direito comercial. É certo que a transposição de tonicidade de um perfil a outro, especialmente a pendularidade subjetivo-funcional, proveria argumentos para acusações de uma superação putativa das velhas concepções subjetiva e objetiva. Cf. Fanelli, G. Introduzione alla Teoria Giuridica dell’Impresa. Milano: Giuffrè, 1950.

[6] Não sem razões, Asquini, já nos anos 1940, lecionava sobre um hibridismo público-privado do regramento da empresa. Cf. ASQuini, A. “Una Svolta Storica nel Diritto Commerciale”. Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, Milano: Francesco Vallardi, v. 38, pt. 1, 1940, p. 514.


Walfrido Jorge Warde Jr é advogado, bacharel em Direito pela USP e em filosofia pela FFLCH-USP, LLM pela New York University School of Law e doutor em Direito Comercial pela USP

Jose Luiz Bayeux Neto é advogado, bacharel e mestre em Direito Civil pela USP e professor de Direito Comercial do Mackenzie

Revista Consultor Jurídico, 12 de outubro de 2015, 8h00

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Ofensas a Gilmar Mendes custam mais de R$ 500 mil à Carta Capital





Chegou ao fim, ao menos por enquanto, o litígio entre o ministro Gilmar Mendes, a revista Carta Capital e os jornalistas Mino Carta e Leandro Fortes. No mês passado, as partes chegaram a um acordo para pagar mais de R$ 500 mil ao ministro ofendido em uma série de reportagens da revista. Gilmar Mendes afirma que destinará o dinheiro ao financiamento de bolsas de estudos.

Representado pelos advogados Alexandre Fidalgo e Michael Gleidson Araujo Cunha, o ministro Gilmar Mendes entrou na Justiça para reclamar de cinco reportagens publicadas pela revista que depreciaram sua imagem. Ele foi apontado como contraventor e teve seu nome associado a delitos que não praticou.Com base em documento falso, reportagens ofenderam Gilmar Mendes.
Carlos Humberto/SCO/STF

O ministro foi colocado como um dos beneficiários da já famosa “lista de Furnas”, um documento sabidamente falsificado que relacionava pessoas que teriam recebido valores em um esquema desonesto. A revista acusou o ministro de estar na lista quando seus autores já haviam sido condenados pela falsificação. O título de uma das notícias baseadas no documento inventado era: “Juiz? Não, réu”.

Na decisão de primeiro grau, o juiz Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, da 21ª Vara Cível de Brasília, reconheceu que a jurisprudência do STF entende que o direito à informação se sobrepõe a outros direitos constitucionais. Mas também lembrou que as reportagens devem se pautar por princípios éticos, como ser fiel à informação e dar oportunidade de os envolvidos se manifestarem.

Para Raposo Filho, esses princípios não foram observados em três ocasiões. Segundo o juiz, ao dizer que Gilmar Mendes é réu, o jornalista Leandro Fortes insinuou que ele está sendo processado pelos fatos narrados nas reportagens, o que não era verdade.

A sentença afirma que as reportagens deram à lista o caráter de prova irrefutável, sem ouvir os envolvidos. “O autor [Gilmar Mendes], na verdade, foi ‘acusado, julgado e condenado’ pelas matérias e viu sua imagem pública manchada pela pecha de beneficiário de uma suposta organização criminosa, sem que haja notícia até hoje de seu indiciamento ou denúncia criminal propriamente dita em seu desfavor, mostrando-se evidente a lesão de ordem moral como resultado da conduta imprópria dos réus", concluiu o juiz.

A editora responsável pela publicação e o diretor de redação foram condenados por um editorial publicado em 2012. De acordo com o juiz, a revista tomou o lugar do Judiciário e sentenciou o ministro como contraventor, sem sequer ouvi-lo. “Indiferente à necessidade de ponderar às várias fontes de informações disponíveis, alheio à recomendada oitiva da pessoa que acusa e desprovido até mesmo de algum espírito sarcástico ou irônico tão típico da atividade, o aturo da matéria tomou o lugar do poder competente e pôs, sem tergiversar, o autor [Gilmar Mendes] na posição de contraventor”, registra a sentença.

Ao analisar o caso, em recurso, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal manteve o valor das indenizações e ainda condenou a revista e os jornalistas por mais duas notícias que, em primeira instância, não haviam sido motivo da condenação. De acordo com o TJ-DF, "publicações que não se limitam a noticiar fatos ocorridos e que, com críticas ofensivas, utiliza expressões injuriosas e difamatórias, com imputação desabonadora à imagem, honra e dignidade da pessoa, causam danos morais".

Com o trânsito em julgado da condenação, as partes firmaram um acordo para o pagamento do valor devido, que, com correção monetária, chegou a R$ 507 mil — divididos em dez parcelas.

Clique aqui e aqui para ler as decisões. 



Revista Consultor Jurídico, 6 de outubro de 2015, 17h46

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Casal pode mudar regime de bens e fazer partilha na vigência do casamento


DECISÃO


É possível mudar o regime de bens do casamento, de comunhão parcial para separação total, e promover a partilha do patrimônio adquirido no regime antigo mesmo permanecendo casado.

A decisão é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reformou entendimento adotado pela Justiça do Rio Grande do Sul. Os magistrados de primeiro e segundo graus haviam decidido que é possível mudar o regime, mas não fazer a partilha de bens sem que haja a dissolução do casamento. Assim, o novo regime só teria efeitos sobre o patrimônio a partir do trânsito em julgado da decisão que homologou a mudança.

O relator do recurso interposto pelo casal contra a decisão da Justiça gaúcha, ministro Marco Aurélio Bellizze, ressaltou que os cônjuges, atualmente, têm ampla liberdade para escolher o regime de bens e alterá-lo depois, desde que isso não gere prejuízo a terceiros ou para eles próprios. É necessário que o pedido seja formulado pelos dois e que haja motivação relevante e autorização judicial.

Riscos

O casal recorrente argumentou que o marido é empresário e está exposto aos riscos do negócio, enquanto a esposa tem estabilidade financeira graças a seus dois empregos, um deles como professora universitária.

O parecer do Ministério Público Federal considerou legítimo o interesse da mulher em resguardar os bens adquiridos com a remuneração de seu trabalho, evitando que seu patrimônio venha a responder por eventuais dívidas decorrentes da atividade do marido – preservada, de todo modo, a garantia dos credores sobre os bens adquiridos até a alteração do regime.

Proteção a terceiros

Bellizze ressaltou que ainda há controvérsia na doutrina e na jurisprudência sobre o momento em que a alteração do regime passa a ter efeito, ou seja, a partir de sua homologação ou desde a data do casamento. No STJ, tem prevalecido a orientação de que os efeitos da decisão que homologa alteração de regime de bens operam-se a partir do seu trânsito em julgado.

O ministro salientou, porém, que há hoje um novo modelo de regras para o casamento, em que é ampla a autonomia da vontade do casal quanto aos seus bens. A única ressalva apontada na legislação diz respeito a terceiros. O parágrafo 2º do artigo 1.639 do Código Civil de 2002 estabelece, de forma categórica, que os direitos destes não serão prejudicados pela alteração do regime.

“Como a própria lei resguarda os direitos de terceiros, não há por que o julgador criar obstáculos à livre decisão do casal sobre o que melhor atende a seus interesses”, disse o relator.

“A separação dos bens, com a consequente individualização do patrimônio do casal, é medida consentânea com o próprio regime da separação total por eles voluntariamente adotado”, concluiu.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.
Fonte: STJ

Prescrição quinquenal de dívidas tem diferentes interpretações no país




Por Eduardo Tomasevicius Filho


Existem obras do espírito humano que são consideradas clássicas, como os grandes textos literários, as músicas mais emocionantes e os quadros mais admirados. Até o futebol no Brasil tomou para si o conceito de “clássico” para designar as importantes partidas regionais.

Ítalo Calvino, no primeiro capítulo de seu livro intitulado Por que ler os clássicos, listou critérios para identificação de obras às quais se atribui essa qualidade, entre os quais: “Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los”; “os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos”; ou, ainda, “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.[i]

No Direito, evidentemente, há obras clássicas. São aquelas que, além de atender aos critérios acima indicados, não perdem a sua utilidade com o passar do tempo e proporcionam autoridade na argumentação jurídica por várias gerações de profissionais do Direito. No Brasil, exemplo disso é a obra de Carlos Maximiliano, intitulada “Hermenêutica e Aplicação do Direito”,[ii] de 1925 e reeditada até hoje, que trata de importantes aspectos da atividade de interpretação, entre os quais os métodos filológico, lógico, sistemático, teleológico e histórico. Por mais sofisticadas e refinadas que sejam as teorias contemporâneas sobre interpretação, as quais, inclusive, suscitam debates acalorados, não há como fugir do uso daqueles métodos na aplicação prática do direito no caso concreto.

Nos últimos tempos, tivemos um caso bastante curioso, decorrente da não-aplicação dos tradicionais métodos de interpretação do Direito.[iii] Trata-se da prescrição quinquenal da pretensão para a cobrança de dívidas, conforme disposto no artigo 206, parágrafo 5º, I, do Código Civil brasileiro, nos seguintes termos: “Artigo 206. Prescreve: (...) parágrafo 5º Em cinco anos: I – a pretensão para a cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular”.

A prescrição, no Direito Privado, é a extinção da pretensão do credor à satisfação do seu crédito em razão da inércia na exigência de que o devedor cumpra com sua obrigação. É o que se estabeleceu no artigo 189 do Código Civil de 2002, ao dispor que “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, que se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os artigos 205 e 206”.

O fato jurídico que enseja a ocorrência da prescrição, manifesta-se na dinâmica das relações privadas, nas quais o comportamento esperado é o adimplemento da obrigação. O credor tem a expectativa de que o devedor assim o fará, mas essa pode ser quebrada pelo inadimplemento. Ao credor resta tentar restabelecê-la, aguardando que o devedor cumpra a obrigação, ainda que em atraso, ou, então, que resolva, formalmente, exercer sua pretensão ao crédito. Considerando que o inadimplemento é fato indesejado pelo legislador, estabelecem-se prazos para que o credor tome uma atitude ou que se conforme com o inadimplemento, a fim de que relações jurídicas não continuem pendentes indefinidamente.

Parece condizente com os tempos atuais, para não usar o termo “sociedade pós-moderna”, que seja de cinco anos o prazo para que o credor exija do devedor o cumprimento da obrigação de pagar uma dívida constante de instrumento público ou particular. Afinal, tornou-se quase impossível não ser localizado — ou ser considerado juridicamente ausente — em razão dos avanços da informática, da telemática e da Internet, termos que se referem a aplicações distintas das tecnologias, ainda que aparentemente semelhantes. Todos os dias, dados pessoais são automaticamente coletados em grande quantidade e armazenados indefinidamente. Os salários são pagos mediante depósitos em contas bancárias. Produtos são comprados com cartões de débito e de crédito. Contas são pagas mediante boletos nos bancos ou em casas lotéricas. Por toda parte, o número do CPF ou do CNPJ é solicitado e anualmente se devem apresentar as declarações do imposto de renda, sob pena de tornar a inscrição em situação irregular, inviabilizando boa parte das relações jurídicas.

Ademais, houve praticamente a universalização dos serviços de telefonia móvel, de modo que quase todas as pessoas têm um número de telefone para contato. As redes sociais permitem a localização fácil de quem dela faz parte, mostrando, inclusive, com quem mantém relacionamentos sociais. Inclusive há casos em que se citou ou se intimou pelo Facebook ou pelo Whatsapp.[iv] Contra este estado de coisas, só restam as limitações do direito à privacidade e ao sigilo de dados e de comunicações.

Mas, na prática, nem sempre o que a lei dispõe com clareza — in claris cessat interpretatio — é interpretado da maneira mais adequada.

Por meio da interpretação sistemática em matéria de prescrição, constata-se que o legislador costuma adotar o prazo quinquenal para a prescrição da pretensão à cobrança de dívidas. O Código Tributário Nacional, no artigo 174, estabelece o prazo prescricional de cinco anos para cobrança do crédito tributário. A prescrição para a cobrança de créditos trabalhistas é quinquenal (CF/1988, artigo 7º, XXIX e artigo 11 da CLT), a pretensão para a cobrança de honorários também é quinquenal (EOAB, artigo 25 e CC, artigo 206, parágrafo 5º, II) e o Código de Defesa do Consumidor estabelece, no artigo 27, o prazo quinquenal para a pretensão à reparação de danos.

Ademais, do ponto de vista histórico, o prazo prescricional quinquenal no Direito luso-brasileiro já estava previsto no Regimento dos Almoxarifes, Recebedores e Ordenações, de 1516, o qual estabelecia o prazo de cinco anos para cobrança de dívidas d’El Rey. Essa regra se trasladou pela legislação imperial brasileira, foi recepcionada no Código Civil de 1916 e está até hoje no Decreto 20.910/1932.

No Código Civil de 1916, havia dois prazos prescricionais para a cobrança de dívidas: um inicialmente de 30 anos — depois reduzido para 20 anos — fixado no artigo 177, e outro prazo de dois anos, para dívidas de pequeno valor, do artigo 178, parágrafo 7º, II. No caso, aplicável a dívidas inferiores a 100 mil réis. Com a desvalorização da moeda brasileira, este prazo prescricional caiu em desuso, porque não havia mais dívida no Brasil com valor tão irrisório. Assim, consolidou-se a regra de que o prazo prescricional seria aquele maior, geral, de 20 anos.

Já no Código Civil de 2002, estatuiu-se o artigo 206, parágrafo 5º I, cujo prazo é quinquenal, o qual atinge, com clareza, todas as dívidas constantes de instrumento público ou particular. Em uma interpretação teleológica, houve evidente intenção de harmonizar o prazo de cinco anos para toda e qualquer cobrança de dívida, tal como já ocorre em matéria tributária, administrativa, trabalhista e consumerista.

A título de esclarecimento, a origem remota da redação do artigo 206, parágrafo 5º, I, está no Livro III, Título LIX, das Ordenações Filipinas e a origem próxima da redação está no artigo 442 do Código Comercial de 1850. Como diferenças específicas, as Ordenações usavam o termo “contraídas” e o Código Civil de 2002, a expressão “constantes”. Por sua vez, o Código Comercial estabelecia o prazo vintenário e o Código Civil de 2002, o prazo quinquenal.

Mesmo com todas as advertências de que não se poderia interpretar o Código Civil de 2002 como se interpretava o Código Civil de 1916, o artigo 206, parágrafo 5º, I, do Código Civil não era aplicado corretamente! A explicação é simples: como a pretensão para a cobrança de dívidas era vintenária por aplicação do artigo 177 do Código Civil de 1916, aplicou-se, por curiosa “analogia” — na verdade, incorria-se na falácia post hoc ergo propter hoc — o artigo 205 do Código Civil de 2002, regra geral que estabelece o prazo de prescrição decenal.

Assim, surgiram problemas relativos a essa matéria. O primeiro deles é a contradição entre o prazo prescricional para a cobrança de dívidas e o prazo para manutenção do devedor em cadastros de restrição ao crédito, o que compromete a ideia de pacificação social. No imaginário popular, a prescrição para o exercício da pretensão de cobrança de dívidas é quinquenal, porque o leigo confunde prescrição com retirada da restrição ao crédito. O prazo máximo para manutenção dessa restrição foi fixado como quinquenal pelo Superior Tribunal de Justiça, pela Súmula 323, que, inclusive, foi reeditada e deixa claro que o prazo prescricional não é necessariamente quinquenal, quando distingue a natureza dos dois prazos, conforme segue: “[a] inscrição do nome do devedor pode ser mantida nos serviços de proteção ao crédito até o prazo máximo de cinco anos, independentemente da prescrição da execução”.

Ao que parece, o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento de que, ao menos em matéria de dívida decorrente de contrato de abertura de crédito em conta-corrente, o prazo prescricional é quinquenal, a partir do Recurso Especial 1.327.786/RS.

Vale a pena repetir: o Código Civil de 2002 estabeleceu no artigo 206, parágrafo 5º I, que todas as dívidas constantes de instrumento público ou particular têm prazo quinquenal de prescrição. Consequentemente, é quinquenal o prazo prescricional de toda e qualquer dívida contraída por consumidor, a qual possa ser provada por escrito, porque todas essas dívidas costumam ser registradas em contratos de adesão em papel ou virtuais e são apresentadas para pagamento por meio de faturas e boletos bancários. Além disso, nada mais lógico e sistemático conicidir em cinco anos os prazos de prescrição e o de manutenção do nome do consumidor em cadastros de restrição ao crédito.

Outro problema foi o prazo para a cobrança das contribuições condominiais. Anteriormente, o prazo era vintenário, pela aplicação da regra geral do artigo 177 do Código Civil de 1916. A jurisprudência entendia ser decenal o prazo prescricional, não apenas pela falácia post hoc ergo propter hoc, mas também por não se vislumbrar contribuições condominiais como dívidas consubstanciadas em instrumento público ou particular. Porém, débitos condominiais são obrigações propter rem e a liquidez e certeza destas advém da convenção de condomínio e das subsequentes atas de assembleia. Consequentemente, a cobrança é feita mediante apresentação de boleto bancário para pagamento. Felizmente, esse lapso hermenêutico foi corrigido pelo Superior Tribunal de Justiça e o entendimento atual é o de que o prazo prescricional para cobrança de dívidas é quinquenal, a partir do Recurso Especial 1.139.030/RJ. Nada mais justo e coerente, não só pela aplicação correta do artigo 206, parágrafo 5º I, como também por ser inadmissível a alegação por parte do condomínio edilício que era impossível localizar o condômino inadimplente.

Em se tratando de títulos de crédito, o Código Civil estabeleceu, no artigo 206, parágrafo 3º VIII, o prazo trienal para a cobrança destes. Porém, mesmo sendo a pretensão fulminada pela prescrição, isso não faz com que o título de crédito perca a sua característica de dívida constante de instrumento particular, em razão de a cartularidade ser um dos requisitos para a constituição de um título de crédito. Por isso, quando estes são atingidos pela prescrição trienal, ainda podem ser cobrados em cinco anos como se fossem dívidas constantes de instrumentos particulares. É o que está consolidado na Súmula 503 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “[o] prazo para ajuizamento de ação monitória em face do emitente de cheque sem força executiva é quinquenal, a contar do dia seguinte à data de emissão estampada na cártula” e também na Súmula nº 504 do mesmo Tribunal: “[o] prazo para ajuizamento de ação monitória em face do emitente de nota promissória sem força executiva é quinquenal, a contar do dia seguinte ao vencimento do título”.

Ainda merece reparo a interpretação relativa ao prazo prescricional para a cobrança de tarifas, sobretudo as de água. Por muito tempo, houve dúvidas quanto à sua natureza jurídica: a de taxa, regida pelo direito tributário, ou a de preço público, cuja natureza jurídica seria de Direito Privado. Após longo debate, decidiu-se que a tarifa não tem natureza jurídica de taxa, sendo inaplicável o prazo prescricional quinquenal fixado no Código Tributário Nacional, mas o do Código Civil. Entretanto, considera-se decenal esse prazo, conforme julgamento no Recurso Especial 1.113.403/RJ, sob o regime dos Recursos Repetitivos.

Deve-se observar que o envio de contas impressas em papel para a casa do consumidor — portanto, instrumentos particulares — ou, se o consumidor desejar, por e-mail ou por SMS, é justamente o fato descrito no artigo 206, parágrafo 5º, I, sendo, portanto, prazo quinquenal e não, decenal. Também cabe questionar se uma prestadora desses serviços públicos tem mesmo enormes dificuldades para fazer valer sua pretensão à satisfação do crédito.

À guisa de conclusão, vale ainda refletir sobre mais um aspecto referente à prescrição, por uma questão lógica: se dívidas registradas em instrumentos particulares têm prazos prescricionais quinquenais, as dívidas não formalizadas por escrito deveriam ter prazos prescricionais menores, e não, maiores, ante a dificuldade maior quanto à sua prova, comprometendo-se a pacificação social. Por isso, bom seria a redução do prazo prescricional do artigo 205 para cinco anos, estabelecendo-se prazo maior somente quando expressamente previsto em lei. Mas que isso se dê por alteração legislativa e não, por distorções interpretativas, porque ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.[v] Ou, como diria Carlos Maximiliano, “(..) cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhuma das expressas”.[vi]

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).



[i] CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos; tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 10-12


[ii] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e applicação do direito. Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, Barcellos, Bertaso & Cia, 1925 (A 20ª edição de 2011, mas optei por usar a primeira edição).


[iii] Para maiores detalhes, deixo o texto usado como base para a elaboração deste menor: TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. “A prescrição quinquenal para cobrança de dívidas no Código Civil de 2002”. São Paulo. Revista dos Tribunais. Volume 100. Número 907, pp. 31–58. maio de 2011.


[iv] Cf. CONJUR. “NOVOS TEMPOS. Corte inglesa autoriza citação de parte pelo Facebook”. São Paulo, 23 de fevereiro de 2012. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-fev-23/corte-superior-inglaterra-autoriza-parte-seja-citada-facebook; CONJUR. “CELERIDADE PROCESSUAL. Juiz usa Whatsapp para intimar réu que vive no exterior”. São Paulo, 10 de julho de 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jul-10/juiz-usa-whatsapp-intimar-reu-vive-exterior


[v] A tradução é a seguinte: “Não cabe ao intérprete distinguir, se a lei não distingue”. Para Carlos Maximiliano (Idem. p. 264),


[vi] MAXIMILIANO, Carlos. Idem. p. 264


Eduardo Tomasevicius Filho é Professor Doutor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.

Revista Consultor Jurídico, 5 de outubro de 2015, 8h00

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Jornada de Direito Civil termina sua 7ª edição com a aprovação de 36 enunciados


A 7ª Jornada de Direito Civil terminou na noite de terça-feira (29/9) com a aprovação de 36 enunciados. A plenária final analisou, no total, 48 sugestões de enunciados apresentadas pelas comissões temáticas, responsáveis por avaliar e debater as 277 propostas recebidas pela coordenação científica do evento.

Sob a coordenação do ministro do Superior Tribunal de Justiça, ministro Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, a Comissão de Responsabilidade Civil analisou 44 propostas, das quais dez foram levadas para votação pelos participantes do evento, sendo que quatro se tornaram enunciados, e outras sete foram rejeitadas.

Já a Comissão de Parte Geral analisou 48 propostas, das quais seis foram apresentadas à plenária, que aprovou cinco enunciados e rejeitou apenas um. Ela foi coordenada pelo presidente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, desembargador Rogério de Meneses Fialho Moreira.

As Comissões de Obrigações e Contratos trabalharam em conjunto, sob a coordenação dos professores Paulo Khouri e Ana de Oliveira Frazão. O grupo analisou 65 propostas, das quais seis foram submetidas à votação. A plenária aprovou cinco enunciados e rejeitou também apenas um.

Coordenada pelo professor Gustavo José Mendes Tepedino, a Comissão de Coisas analisou 41 propostas, apresentou 11 à plenária, das quais oito foram aprovadas como enunciados, e três, rejeitadas.

A Comissão de Família foi a que mais recebeu e analisou propostas de enunciados, num total de 79. Sob a coordenação do professor Otávio Luiz Rodrigues Júnior, o grupo apresentou 15 sugestões aos participantes do evento, que aprovaram 14 e rejeitaram apenas uma.

Votação eletrônica
A novidade desta edição da jornada foi a votação eletrônica, que proporcionou mais agilidade na aprovação dos enunciados. Todos os participantes, cerca de 300 inscritos, receberam um controle e tinham dois botões para apertar: um aprovava o enunciado, e o outro rejeitava. O tempo de votação era de 15 segundos, e o resultado, em percentuais, era exibido imediatamente no telão do evento.


Revista Consultor Jurídico, 2 de outubro de 2015, 10h21

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Pais de aluno que agrediu professor terão de pagar R$ 10 mil por danos morais







Os pais de um adolescente que agrediu seu professor terão de pagar indenização por danos morais no valor de R$ 10 mil. A sentença foi mantida pela 13ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O caso aconteceu em uma escola estadual de Santos (SP), depois que o professor não deu a chave da sala de jogos para o aluno, pois não havia ninguém para supervisioná-lo. Diante da negativa, o estudante passou a insultá-lo e, em determinado momento, acertou um soco no olho direito do professor.

Os pais do jovem alegaram que ele “apenas revidou injusta agressão”. O desembargador Luiz Ambra, relator do processo, não foi convencido pelo argumento. “Conforme se verifica das narrativas, o filho dos apelantes proferiu agressões físicas contra o autor, em seu local de trabalho. As provas constantes dos autos não deixaram dúvidas acerca de que o menor lhe desferiu um soco”. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-SP.


Revista Consultor Jurídico, 20 de setembro de 2015, 9h54

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Lei 13.146 acrescenta novo conceito para capacidade civil



Capacidade, dignidade e a Lei 13.146/6.7.2015
Quando Kant afirmou de forma inovadora, no inicio do século XIX, que as coisas têm preço, e as pessoas dignidade, fazendo novas assim as noções de dignidade e indignidade, não imaginava o quanto isto modificaria o pensamento contemporâneo e faria nascer o que hoje chamamos de Direitos Humanos. Portanto, a expressão dignidade da pessoa humana é uma criação Kantiana (ele usou originalmente dignidade da natureza humana), está inscrito e tornou-se a palavra de ordem de todos os ordenamentos jurídicos contemporâneos. A dignidade da pessoa humana além de ser um macro princípio constitucional, é o vértice do Estado democrático do Direito.

Em razão deste valor e princípio jurídico que o Direito de Família pôde reescrever sua história de injustiças e incluir todas as categorias de filhos e famílias no ordenamento jurídico brasileiro. Em nome da dignidade da pessoa humana todos os filhos e famílias são legítimos e devem receber proteção do Estado (In. Dicionário de Direito de Família e Sucessões. Ilustrado. Saraiva, pag. 229). E assim, em toda relação jurídica, o sujeito deve ter preponderância e maior valor sobre o objeto da relação.

É a compreensão da dignidade da pessoa humana que começou-se a considerar e a valorizar a humanidade de cada sujeito em suas relações pessoais, sociais e consigo mesmo. O sujeito de direitos, como sujeito de desejos que também é, passou a ser reconhecido como um sujeito desejante, isso é, o direito a ser humano com todas as suas mazelas e idiossincrasias. Isto nos remete a repensar a capacidade e a responsabilidade de cada sujeito de direito. E foi assim que os institutos de proteção aos incapazes, guarda, tutela e curatela ganharam novas perspectivas.

A expressão guarda, por veicular um significante muito mais de objeto do que de sujeito, tende a desaparecer. Por isto o PLS 470/2013, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e apresentado pela senadora Lídice da Mata (PSB-BA), substituiu tal expressão por convivência familiar. De fato a humanidade que há em cada criança e adolescente já não comporta que ela seja “guardada“ pelos pais. Foi também em respeito a esses menores de idade que, mesmo com esse significado pejorativo, a guarda tornou-se obrigatoriamente compartilhada, quebrando assim uma estrutura de poder e beneficiando os filhos.

A tutela, instituto de proteção aos menores incapazes, isto é, aos menores de 18 anos cujos pais faleceram ou desapareceram, deve ser nomeado um tutor, também sofreu alteração. O CCB 2002 inovou ao criar a figura do pró-tutor, que significa um reforço à tutela, como se fosse um tutor adjunto. Tudo isto em nome de proteger e dar mais valor ao menor incapaz.

Em nome da dignidade e da humanidade de cada sujeito é que também o instituto da curatela vem sendo repensado e sendo visto por novas perspectivas. E assim, aquilo que a jurisprudência já vinha concedendo, está prestes a se tornar lei: foi aprovado na Câmara dos Deputados, dia 16 de julho de 2015, o PL que institui a Curatela compartilhada. Certamente o Senado também a aprovará, assim como todos os projetos de lei que tragam esse conteúdo de valorização e facilitação de vida dos sujeitos incapazes. Mas nem precisa desse PL, pois o artigo 1775-A, introduzido pela Lei 13.146/2015 já estabelece a curatela compartilhada. Na prática muitos curadores, assim como na guarda, já compartilham a curatela de seus pais ou parentes. É uma forma de suavizar o árduo trabalho com o exercício da curatela e interdições, e dividir responsabilidades.

Esta nova roupagem da curatela insere-se também no contexto e noção de cidadania, inclusão e evolução do pensamento psiquiátrico. Quando se interdita alguém, retira-lhe a capacidade civil e consequentemente expropria-se sua cidadania. O curatelado, ou interditado, é retirado do lugar de sujeito de desejo e sujeito social. A própria expressão curatelado e interditado já veiculam significados e significantes de exclusão. No ambiente da psiquiatria recebem a denominação de “Portadores de sofrimentos psíquico”, introduzindo um novo significante para as pessoas interditáveis, suavizando assim o preconceito e o estigma que recaem, principalmente, para os denominados loucos. A curatela, ou melhor, a interdição da pessoa só deveria ser feita como último recurso, uma vez que significa simbolicamente uma “morte civil”. O filósofo francês, Louis Althusser em seu livro O futuro dura muito tempo, em que relata sua própria história, trás um dos melhores depoimentos e reflexões sobre o assunto, pois fala da loucura de dentro dela, de quem viveu o processo de interdição inimputabilidade, o que ele também considerou uma morte em vida. Machado de Assis no conhecido conto O Alienista também já tinha nos proporcionado esta reflexão sobre os limites da razão e desrazão .

A consolidação e reconhecimento do valor e princípio da dignidade da pessoa humana vem agora na Lei 13.146 de 6 de julho de 2015, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que alterou e revogou vários artigos do Código Civil relativos à capacidade da pessoa traduzindo em seu texto toda a evolução e noção de inclusão social: Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e afetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (artigo 2º). Portanto, ela não só alterou, mas também revolucionou ao introduzir uma nova expressão jurídica: "Tomada de Decisão Apoiada", que é um novo modelo jurídico promocional das pessoas com deficiência. Tal expressão traduz a recomendação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (artigo 12.3 Decreto 6.979/09). Este modelo já vigora na Itália desde 2004 (Lei 6), país em que nasceu a chamada luta antimanicomial, que era o movimento pela cidadania dos loucos. Também o Código Civil Argentino que passará a vigorar em 2016 (artigo 43) já prevê esta nova categoria jurídica. 

E assim a Lei 13.146/2015 que vigorará em 180 dias isto é, em 5 de janeiro de 2016, altera o instituto da capacidade civil, revogando artigos do CCB (3º, 4º 228, 1518, 1548, 1550 §2º, 1557, 1767, 1768, 1769, 1771, 1772, 1775-A, 1777) e acrescenta o novo conceito para capacidade civil, no artigo 1783-A do CCB:“A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar –lhes apoio na tomada de decisões sobre atos de vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessárias para que possa exercer sua capacidade .” Em outras palavras, agora há uma alternativa para a curatela, que só deve ser requerida como último caso. Cumpra-se aqui o que Jacques Lacan já havia anunciado há muitas décadas “Toda pessoa enquanto sujeito deve se responsabilizar pelos seus atos.” Esta nova compreensão da capacidade civil é uma boa tradução e incorporação da noção e valorização da dignidade e dignificação do humano e alguns passos adiante da noção original de Immanuel Kant em sua clássica obra Fundamentação da Metafisica dos Costumes.




Fonte: Revista Consultor Jurídico, 10 de agosto de 2015

terça-feira, 14 de julho de 2015


Liberação do casamento igualitário abre debate sobre Direito Civil infralegal



A Suprema Corte dos Estados Unidos julgou no dia 26 de junho a inconstitucionalidade de leis estaduais que proíbem o casamento de pessoas do mesmo sexo naquele país. Reconheceu-se não ser possível essa restrição, porque a instituição jurídica do casamento deve ser permitida a todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual, além de se tratar de um direito fundamental, importante para a ordem social, cuja celebração decorre da autonomia individual e que visa ao estabelecimento de vínculos de comprometimento entre as pessoas.

A proibição desse direito a homossexuais implica mantê-los estigmatizados, como se fossem pessoas de condição inferior à dos heterossexuais.[1] Com essa decisão nos Estados Unidos, milhares de pessoas alteraram suas fotos de perfil no Facebook em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, como forma de comemorar essa conquista.

Parece que, na visão do leigo, o reconhecimento jurídico do casamento homoafetivo ocorreu somente com a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, como se a jurisdição de lá também tivesse efeitos aqui, e que somente agora se dá essa oportunidade a casais homossexuais no Brasil. Isso porque não houve reação dessa magnitude, quando, em 2013, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência, validade e eficácia da união estável entre pessoas do mesmo sexo,[2] ainda que, há bastante tempo, a jurisprudência viesse reconhecendo direitos a companheiros homossexuais.

Em seus votos, os ministros do Supremo Tribunal Federal, de forma irrepreensível, destacaram a necessidade de reconhecimento jurídico das relações de direito privado entre pessoas do mesmo sexo, porque todos são iguais perante a lei e têm direito ao livre desenvolvimento da personalidade por meio da garantia da autonomia e privacidade no exercício da sexualidade. Apontaram, ainda, que a homossexualidade é um fato da vida e que pessoas homossexuais somente são felizes e realizadas quando são reconhecidas em suas verdadeiras identidades pessoais; a família, base da sociedade, protegida pelo art. 226, caput, da Constituição Federal, não pode mais ser entendida como aquela constituída somente por casais heterossexuais.

Todavia, foi necessário evitar-se ao máximo as referências ao art. 226, § 3º, da Constituição Federal, no qual consta intencional e expressamente as palavras “homem e mulher” por vontade da Assembleia Constituinte — conforme destacado pelo ministro Ricardo Lewandowski ao resgatar transcrição do debate outrora ocorrido — para que prevalecessem os arts. 1º, IV, 3º, IV e 5º, II, X e § 2º da Constituição Federal, mesmo ao se ter afirmado que “(...) o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica”.

Dessa forma, há no texto constitucional uma norma que resulta na discriminação das pessoas! Inclusive, no passado, esse mesmo art. 226, § 3º, foi usado por alguns para sustentar a inconstitucionalidade da Lei 9.278/96, que tratava da união estável antes do Código Civil de 2002, porque a Constituição Federal estaria ordenando a conversão da união estável em casamento, não a sua manutenção.

Além disso, se esse art. 226, § 3º, não fosse discriminatório, teria sido desnecessária a provocação do Supremo para que se manifestasse acerca dessa matéria. A melhor solução seria o Congresso Nacional rediscutir a conveniência ou não de manter-se o art. 226, § 3º, tal como se fez em 1977 com o fim da proibição do divórcio e, mais recentemente, em 2010, com a alteração do art. 226, § 6º, da Constituição Federal, para não mais estabelecer prazo mínimo para a sua decretação.

Não há como negar que o reconhecimento do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo deu-se por meio da Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça,[3] tornando dispensável o reconhecimento da união estável homoafetiva para conversão subsequente em casamento homoafetivo. Dessa forma, no Brasil, há um dúplice regime: o casamento entre pessoas heterossexuais, disciplinado pelo Código Civil de 2002, em cujos enunciados se registram as palavras “homem e mulher” (arts. 1.514, 1.517 e 1.535), e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, disciplinado por meio da Resolução CNJ 175, portanto, uma norma infralegal.

Estamos diante de uma situação curiosa: em vez de a Constituição Federal ter modificado o direito civil em matéria de casamento, essa transformação deu-se por meio de resolução do Conselho Nacional de Justiça. Logo, por que não se afirmar, a partir desse exemplo, a existência de um Direito Civil infralegal, que também irradia seus valores na interpretação do Código Civil? Afinal, fenômeno similar ocorre com as resoluções das agências reguladoras e superintendências em matéria de contratos, em especial, os de transporte e seguros, além dos planos de saúde. Fatos como esses permitem a reflexão acerca da função das normas hierarquicamente superiores – e agora também aquelas inferiores – na criação de novos direitos.

Em minha opinião, novos direitos, sobretudo aqueles decorrentes de muita luta, raramente são conquistados a partir da lógica do sistema. Basta lembrar que, no século XIX, os códigos foram apresentados como a grande novidade em termos de legislação e deveriam prevalecer em face da tradição do direito medieval, por serem a concretização das liberdades entre indivíduos. No século XX, essa novidade foi atribuída às Constituições, usadas não só como suportes argumentativos para a oxigenação dos códigos, mas também pela aplicação direta de normas nelas positivadas, com o intuito de tornar ineficazes normas contidas em leis ordinárias, ou ao atribuir-lhes novos significados.

Tornou-se mais agradável e convincente argumentar que os elementos nucleares do Direito Civil deveriam ser encontrados no Direito Constitucional, restando ao Código Civil, por exemplo, apenas especificar o que estaria previsto na Constituição Federal, em vez de reconhecer-se a aptidão do direito civil, por si mesmo, para concretizar esses valores sociais.

Mas, quando a própria Constituição Federal tem em seu texto uma norma segundo a qual união estável é entre homem e mulher — em flagrante antinomia entre os arts. 1º, IV, 3º, IV e 5º, II, X e §2º, em face do art. 226 —, e silencia-se quanto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, torna-se necessário o emprego de uma norma infralegal no reconhecimento de novos direitos.

Foi magnífica a importância da Constituição Federal na proteção dos direitos da personalidade, tais como a honra, imagem e vida privada, além do reconhecimento da indenização por dano moral e, sobretudo, ao ter, de fato, absorvido o direito de família por meio dos arts. 226 e 227, até o advento do Código Civil de 2002.

Entretanto, o atual Código Civil também traz em suas normas valores socialmente importantes e condizentes com a sociedade contemporânea. Tanto que a atribuição de personalidade jurídica, ou a sua desconsideração, a autonomia privada, a análise da função social de um contrato ou da conduta de uma pessoa à luz da boa-fé, entre outros, independem de “homologação” por normas de estrato superior.

É forçoso reconhecer que o legislador, na elaboração do Código Civil de 2002 poderia ter sido mais detalhista na disciplina jurídica de diversos institutos, como já acontece em códigos civis de outros países, e deveria atualizá-lo com mais frequência, tal como ocorre com a própria Constituição Federal, a qual, em menos de 27 anos, já sofreu 88 emendas, de modo que as soluções para os problemas fossem dadas por meio de regras claras, em vez de invocar-se excessivamente o conceito de dignidade da pessoa humana, por exemplo.

Portanto, não é exato sustentar, pela lógica do sistema jurídico, que a Constituição Federal é infalivelmente o único e verdadeiro manancial axiológico do Direito brasileiro — porque, no caso do art. 226, § 3º, trata-se de valor não mais aceito por parcela da sociedade — ou argumentar que estaríamos caminhando para o reconhecimento da existência de um direito civil infralegal.

Normas constitucionais ou infralegais devem ser usadas como argumentos adicionais, complementares, jamais como requisitos obrigatórios de todo e qualquer discurso dentro do Direito Civil, para que não se desequilibre a estrutura do ordenamento jurídico, sobrecarregando a Constituição Federal ou uma resolução, enfraquecendo-se o Código Civil.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF e UFC).



[1] SUPREME COURT OF THE UNITED STATES. Obergefell et al. v. Hodges , Director Ohio Department of Health et al. Nº 14-556. Argued April, 28, 2015. Decided June, 26, 2015. Disponível em: <http://www.supremecourt.gov/opinions/14pdf/14-556_3204.pdf>. Acesso em: 3.jul.2015


[2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. Rel. Min. Ayres Brito. Requerente: Procurador-Geral da República; Requerido: Presidente da República, Congresso Nacional. Resultado Final: Procedente.


[3] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013. Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas do mesmo sexo. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/resolução_n_175.pdf>. Acesso em: 3.jul.2015


Eduardo Tomasevicius Filho é Professor Doutor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.

Revista Consultor Jurídico, 13 de julho de 2015, 8h00

quarta-feira, 25 de março de 2015

Editora Caras é condenada por divulgar fotos do casamento de Doda e Athina Onassis




A Editora Caras deve pagar indenização por dano material e moral ao atleta Álvaro Affonso Miranda Neto, mais conhecido como o cavaleiro Doda, por reproduzir, sem autorização, fotos de seu casamento com a jovem milionária Athina Onassis, ocorrido em 2005.

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não conheceu do recurso da editora contra a condenação fixada pela Justiça de São Paulo, que entendeu que a revista Carasultrapassou em muito os limites da liberdade de informação.

A chamada de capa da revista dizia “Cavaleiro que ainda recebe mesada do pai, de 45 mil reais, casa-se com a jovem mais rica do mundo”. A Justiça paulista considerou a manchete depreciativa, pois induzia o leitor a pensar que Doda, embora renomado atleta, seria um mero aproveitador que vivia às custas do pai e passaria a desfrutar da riqueza da esposa.

A indenização por danos materiais pela reprodução não autorizada das fotos foi fixada em R$ 30 mil. Já a reparação dos danos morais causados pela manchete considerada depreciativa à honra do atleta ficou em R$ 50 mil.

Durante o julgamento na Terceira Turma, os ministros comentaram que a atitude da revista poderia até justificar indenização mais alta, porém não houve pedido nesse sentido por parte do atleta – que já informou que o montante será destinado a instituição de caridade.

No recurso ao STJ, a Editora Caras invocou a liberdade de imprensa. Alegou que o exercício da atividade jornalística dispensa autorização prévia de pessoa famosa para a divulgação de fotografia. 

Interesse do público

O relator do recurso, ministro João Otávio Noronha, afirmou que esportista não é homem público, pago com dinheiro público. É uma pessoa famosa, que, no caso, teve sua intimidade invadida sem o seu consentimento, apesar de todos os esforços para fazer uma cerimônia reservada. 

Noronha observou que após ampla análise de provas, a Justiça paulista constatou que houve abuso do direito de informar, seja quando a revista de grande circulação optou por inserir na capa manchete com forte apelo depreciativo, seja quando divulgou fotos obtidas clandestinamente de um evento reservado, sem prévia autorização do interessado.

Segundo o relator, consta no processo que as fotos do casamento foram tiradas de forma clandestina, porpaparazzo infiltrado na cerimônia íntima, disfarçado de garçom. Ele destacou o entendimento da Justiça paulista segundo o qual, nesse caso, “até poderia haver um interesse do público, por serem os noivos pessoas conhecidas, mas não um interesse público”, como alegou a revista.

Para alterar as conclusões da Justiça paulista sobre a ocorrência de danos morais e à imagem da vítima, o STJ precisaria reexaminar provas, o que é vedado pela Súmula 7 do próprio tribunal. Por essa razão, o recurso não foi conhecido.

Leia o voto do relator.

Fonte: STJ

quinta-feira, 19 de março de 2015

O papel do Poder Judiciário no cumprimento dos contratos







A existência de mecanismos efetivos para o cumprimento dos contratos é tida como fundamental para o desenvolvimento econômico. A tese possui longo pedigree intelectual. Numa das suas articulações mais incisivas, por Douglass North, economista agraciado com o Prêmio Nobel, a ausência desses mecanismos é a principal causa histórica e atual do subdesenvolvimento. Segundo o pensamento tradicional, incumbe ao Estado — por meio do Poder Judiciário — garantir o cumprimento dos contratos.

No Brasil, o papel do Poder Judiciário no cumprimento dos contratos tem sido alvo de duras críticas nas últimas décadas [1]. De um lado, há o problema da morosidade na resolução dos conflitos; uma decisão que manda cumprir um contrato após décadas, ainda que correta, deixa de satisfazer a sua função econômica. De outro, existe a percepção, por determinados segmentos, de que os juízes brasileiros teriam uma tendência a favorecer a parte mais fraca da relação contratual, exibindo um verdadeiro viés contrário à parte credora e frustrando o cumprimento dos contratos. No início dos anos 2000, economistas como Pérsio Arida, Edmar Bacha e André Lara Resende atribuíram às fragilidades de nosso sistema judicial algumas das principais mazelas da nossa conjuntura econômica, como a ausência de um mercado de crédito de longo prazo e as altas taxas de juros praticadas pelos bancos.

É tempo, porém, de repensar este debate, por diversas razões. Em primeiro lugar, o ambiente institucional brasileiro passou por importantes transformações na última década. As reformas do Poder Judiciário, da Lei de Falências e do Código de Processo Civil, bem como as leis esparsas que criam novas formas de garantia, são exemplos de iniciativas que contribuem para a maior exigibilidade do direito de crédito. Em parte por isso, o mercado de crédito privado no Brasil passou por grande expansão no período. 

Em segundo lugar, a crise de 2008 demonstrou que a exigibilidade judicial dos contratos tem também um lado sombrio. Nos Estados Unidos, a segurança jurídica conferida a certos contratos derivativos ao final dos anos 1990 contribuiu para a explosão de sua utilização, com consequências negativas quanto ao aumento do risco sistêmico. Por sua vez, a exigibilidade dos contratos de financiamento e hipoteca subprime — cujas cláusulas, no Brasil, provavelmente seriam consideradas abusivas — conduziu a perdas econômicas e sociais, com os consumidores perdendo suas casas e o mercado observando a queda abrupta do preço dos imóveis.

Em terceiro lugar, mas não menos importante, a exigibilidade formal dos contratos pelo Poder Judiciário é apenas um dos mecanismos possíveis para se garantir o cumprimento das obrigações assumidas pelas partes. Em nenhum lugar o Poder Judiciário é o único — ou nem mesmo o principal — mecanismo utilizado para se garantir a observância das avenças. E o recurso à via judicial é necessariamente custoso, não apenas às partes, como à toda sociedade que contribui para o financiamento deste Poder. Não é óbvio que deva ser este o foco de reformas em nosso País, onde deficiências em infraestrutura, saúde e educação criam forte demanda por recursos públicos.

É fundamental, portanto, refletir sobre o papel e contornos de possíveis soluções privadas para se garantir o cumprimento dos contratos no contexto brasileiro. A crescente adoção da arbitragem bem ilustra esse tipo de alternativa privada à via judicial. Em outros casos, a solução adotada implica o próprio abandono da via contratual. Por exemplo, um estudo do economista Paulo Furquim demonstra que a rede McDonald’s rechaçou, em larga medida, o modelo de contratos de franquia que predomina em sua prática internacional para se tornar proprietária de expressiva parcela de suas lojas no Brasil — o que ocorreu depois de numerosas brigas judiciais ocasionadas pela desvalorização cambial dos anos 1990. De forma semelhante, a recente disputa contratual entre as empresas ALL e Rumo (dos ramos de transporte ferroviário e de açúcar), amplamente divulgada pela mídia, foi recentemente encerrada por meio da fusão entre as companhias. De forma mais ampla, o cenário econômico nacional é marcado pela presença de grandes grupos empresariais — nos quais transações entre partes relacionadas substituem os contratos impessoais em condições de mercado.

Ao mesmo tempo, alguns contratos no país são surpreendentemente fortes. O Brasil desponta como líder no emprego de contratos em setores nos quais o seu uso é reduzido em outros países. Exemplo disso é a extensa utilização de acordos de acionistas (contratos, portanto) para o compartilhamento do controle nas companhias abertas brasileiras — em grande parte devido à peculiar força e proteção conferida a esses arranjos pela nossa legislação. Outros contratos também gozam de tratamento privilegiado pela jurisprudência pátria. É o caso das relações contratuais de trabalho e de consumo, para cujo cumprimento em favor da parte mais fraca tem se permitido o recurso não apenas ao patrimônio da empresa, mas também ao patrimônio dos sócios, por meio do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Nas relações de consumo, ainda, tem se admitido com surpreendente (e, quiçá, preocupante) frequência a indenização por dano moral pelo descumprimento de contratos por parte do fornecedor — remédio esse inadmissível em outros sistemas.

Tudo isso aponta para a necessidade de se repensar o papel do Judiciário brasileiro no cumprimento dos contratos no Brasil. Há espaço para o estudo e formulação de arranjos privados que substituam a ameaça da coerção estatal no incentivo à cooperação. Essas alternativas, porém, também trazem consigo custos potenciais significativos – como uma economia mais concentrada, mais opaca e menos propícia à entrada de novos atores. É preciso que se investiguem essas práticas e suas implicações, para não se cair tampouco na armadilha do “barato que sai caro”.

[1] O artigo trata de algumas questões que serão aprofundadas no Seminário Contract Enforcement in Brazil – Challenges and Substitutes, realizado pela FGV Direito SP e pela Stanford Law School no dia 24 de março. Inscrições devem ser feitas pelo site da FGV Direito SP.


Mariana Pargendler é professora da Escola de Direito da FGV-SP e professora visitante da Stanford Law School.



Revista Consultor Jurídico, 18 de março de 2015, 7h33

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Revisão judicial dos contratos e seus problemas contemporâneos







Aos leitores da coluna Direito Comparado e aos que começarão a acompanhar às segundas-feiras o Direito Civil Atual, dou-lhes as boas-vindas. Os membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo darão o melhor de si para que este espaço possa servir de um fórum aberto para as mais importantes questões do Direito Privado no Brasil.

E nada melhor do que iniciar com o tema mais importante do Direito Contratual contemporâneo: a revisão judicial dos contratos. Note-se que essa relevância manifesta-se não apenas no Brasil. De fato, conforme a pesquisa de Aristide Chiotellis realizada nos anos 1980, inventariou-se, somente em língua alemã, 56 teorias diferentes para fundamentar a chamada alteração da base do negócio jurídico.[1] No Superior Tribunal de Justiça, em levantamento de dados que fiz em 2012, compreensivo do período de 2008-2011, identifiquei nada menos que 638 acórdãos sobre o tema, excluídas repetições.[2]

Se a revisão judicial dos contratos é um tópico central do Direito Civil contemporâneo, sua maior ou menor evidência está na razão direta das tormentas da civilização. Tanto maior a decadência, a perda de referências morais ou a crise econômica ou política, mais presente se fará o problema da revisão dos contratos.

É também notável que a revisão dos contratos, em termos históricos, atravessa fases de aceitação e de repúdio. Tal se torna visível quando os institutos ou as teorias que lhe dão fundamento ora são asilados dos códigos e das leis, ora são restituídos à plenitude no ordenamento jurídico.

Algo tão antigo e tão contemporâneo criou para o Direito Civil um grande inconveniente: muito se escreveu sobre a revisão contratual e há diversas afirmações sobre suas teorias que se repetem exaustivamente em decisões ou obras doutrinárias, sem que se proceda a um exame mais crítico dessas posições. Desse modo, perpetuam-se equívocos teóricos, aumenta-se a litigiosidade e cria-se um desnecessário fosso entre a academia e os tribunais. A tal respeito, o ministro Antonio Carlos Ferreira, em seu artigo “Revisão judicial de contratos: diálogo entre a doutrina e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça”, publicado no primeiro volume da Revista de Direito Civil Contemporâneo, demonstrou cabalmente que esse debate “se tem demonstrado tão necessário quanto rarefeito nos dias atuais”. 

Na coluna de hoje, portanto, examinar-se-ão alguns pontos polêmicos da revisão dos contratos. 

A cláusula rebus sic stantibus ainda é fundamento de revisão?
É muito comum encontrar em livros e em acórdãos a referência à cláusularebus sic stantibus como sinônimo de “teoria da imprevisão” ou como fundamento para a revisão dos contratos. Essa expressão latina, em sua forma completa, quer dizer “os contratos que têm trato sucessivo ou a termo ficam subordinados, a todo tempo, ao mesmo estado de subsistência das coisas” e sua origem está em fragmentos romanos, mas sua formulação teórica só apareceu na Idade Média.[3]

Muito bem, salvo como reminiscência histórica ou como uma licença poética, em termos técnicos rigorosos não é mais adequado se referir à cláusula rebus sic stantibus como sinônimo da revisão contratual prevista no Código Civil de 2002. De modo bem elementar, pode-se dizer que a antigarebus sic stantibus era uma condictio (no sentido romano) que, uma vez verificada, liberava as partes da execução de suas obrigações sem que respondessem por seu inadimplemento.

Mas isso não ocorre quando se está diante de um caso fortuito? Precisamente. ´Dá-se que as hipóteses da rebus sic stantibus eram diferentes das relativas ao fortuito ou à força maior. Um exemplo (que está nos autores da Antiguidade): se deixei uma arma em depósito com um amigo e, vencido o prazo para restituição da coisa, ele me procurou e viu que eu estava louco, deve o amigo cumprir a obrigação? Evidentemente que não. Mas se a inadimplir será depositário infiel e não será protegido pela excludente de fortuito ou de força maior. Muito bem, nesse caso a rebus sic stantibuspermitiria a liberação extraordinária do devedor, sem os efeitos da culpa.

Nos dias atuais, essa situação é muito rara e o efeito da rebus sic stantibus é bastante limitado, pois, na maior parte dos casos, existe um fundamento econômico para não se cumprir o contrato e o que se deseja é rever e não se extinguir o vínculo. Neste cenário, a cláusula só sobreviveria para hipóteses não-econômicas e com fins muito restritos. E, é claro, como uma expressão poética para se aludir aos fenômenos englobados pelos arts.478-480 do Código Civil.

Qual a teoria utilizada pelo Código Civil para fundamentar a revisão contratual?
Eis um tópico que gera enormes controvérsias e é extremamente importante, para além de meras questões teóricas. Quando se discute qual teoria é aplicável, está a se resolver um problema extremamente sério: quais requisitos para se rever um contrato. E isso não é pouca coisa.

De modo bem objetivo, é possível identificar as seguintes correntes de pensamento sobre o tema: a) defensores da combinação da teoria italiana da onerosidade excessiva e da teoria francesa da imprevisão: José de Oliveira Ascensão, Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias, Paulo Roque Khouri, Wanderley Fernandes, Silvio de Salvo Venosa, Otavio Luiz Rodrigues Junior e outros); b) defensores da aplicação exclusiva da teoria da onerosidade excessiva.

Qual a diferença prática? Combinar as duas teorias (onerosidade excessiva e imprevisão) significa colocar filtros na revisão dos contratos no Direito Civil, tornando-a mais difícil. E essa opção é mais coerente com o texto do Código Civil, em seu art.478, que expressamente exige os requisitos daexcessiva onerosidade da prestação com a ocorrência de acontecimentos imprevisíveis. O legislador não usa expressões inúteis.

A despeito da polêmica na doutrina, o Superior Tribunal de Justiça, conforme apontado pelo ministro Antonio Carlos Ferreira, faz essa diferenciação ao dispensar o requisito da imprevisão nas revisões de contrato de consumo e ao exigi-la nos contratos cíveis. Essa orientação é notória no célebre grupo de casos dos contratos de arrendamento mercantil indexados pelo dólar: o STJ primeiro qualificou os contratos como de consumo e depois afastou o requisito da imprevisão.[4]

Em outro grupo de casos já famoso, o relativo à compra de safra futura de soja, o STJ aplicou simultaneamente a onerosidade excessiva e a teoria da imprevisão, impedindo a revisão dos contratos, por entender que variações na cotação do projeto são fatos previsíveis.[5]

Há autores que discordam dessa aplicação simultânea e a mitigação dos filtros para a revisão de contratos submetidos ao Direito Civil. Um dos mais populares argumentos dessa respeitável corrente teórica está no art. 317 do Código Civil, localizado na seção do objeto do pagamento e sua prova, assim redigido: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.

Esse dispositivo foi originalmente elaborado para permitir a correção do valor das obrigações, em um tempo em que não havia o reconhecimento legal da correção monetária no Poder Judiciário. Essa função primitiva perdeu completamente o sentido após a inserção de vários artigos no Código Civil que tornam obrigatória a chamada “atualização monetária” (arts. 389, 404, 418, 772, 884, 1.395, parágrafo único e outros). Restaria ao art.317 uma função supletiva aos arts. 478-480, mas, ainda assim, não se pode ignorar a presença dos “motivos imprevisíveis” na abertura do texto legal.[6]

Outro argumento em favor da aplicação simultânea da onerosidade-imprevisão está no reconhecimento de que as relações cíveis são, em sua maioria, paritéticas. Não se podem eliminar esses filtros à revisão contratual quando os que se obrigam são sujeitos que suportam riscos simétricos e possuem um elevado nível de discernimento para se autovincular.

O que é essa tal de “imprevisão”?
A teoria da imprevisão é um constructo do Direito francês, nascida no Direito Administrativo para resolver problemas relativos a concessões de serviços públicos, com acórdãos célebres do Conselho de Estado. Posteriormente, ela foi transposta para o Direito Civil, de modo excepcional, pela Lei Failliot, de 21 de novembro de 1918, cuja íntegra pode ser lida nas páginas 29 e 30 de nosso livro Revisão judicial dos contratos, já citado. Na França, porém, ao menos até meados dos anos 1990, a imprevisão praticamente não teve incidência em negócios cíveis. Agora, com a incorporação das diretivas europeias e com os projetos de reforma do Código Civil de 1804, é que os franceses resolverão a que marco teórico se vincularão nesse campo do Direito Contratual.

Por mais um curioso fenômeno de recepção tardia de uma doutrina estrangeira no Brasil, a teoria da imprevisão ganhou enorme prestígio entre os civilistas nacionais desde a clássica obra de Arnoldo Medeiros da Fonseca, intitulada Caso fortuito e teoria da imprevisão, publicada pela primeira vez em 1932, no Rio de Janeiro, com o selo editorial da Tipografia do Jornal do Comércio.

A jurisprudência do século XX também se apropriou da teoria francesa da imprevisão, dando-lhe contornos tipicamente brasileiros. Em pesquisa que realizei em 2001, concluí que em todos os julgados publicados na Revista Forense e na Revista dos Tribunais, desde seus respectivos primeiros números, a maior parte dos acórdãos impedia a revisão contratual, ao contrário do que se imagina em face do número de ações em curso com esse fundamento.[7]

A razão disso está em que a palavra imprevisão significa a incapacidade de se prever o futuro. A palavra imprevisão é, sob tal aspecto, vazia de sentido. No entanto, ele foi preenchido por quase um século de construções jurisprudenciais que dizem o que não é imprevisão: mudança de moeda; inflação; variação cambial; maxidesvalorização; crise econômica; aumento do déficit público; majoração de alíquotas, enfim, toda sorte de eventos macroeconômicos tão comuns em países instáveis e que conviveram com crises periódicas.

A imprevisão constitui-se, por assim dizer, em um filtro jurídico-político, que foi burilado pelos tribunais desde o início do século passado, para impedir que houvesse uma generalizada revisão de contratos cíveis. Em Grande sertão: Veredas, João Guimarães Rosa, pela boca de sua personagem, tornou famosa a frase: “Viver é negócio muito perigoso...”. No Brasil, pode-se ir além e parafrasear o romancista: “Contratar é negócio muito perigoso...”. 

Conclusão
É muito comum os estudantes ouvirem hoje que não se pode “colocar o Direito em caixinhas”. Há algum tempo, os excessos do formalismo geraram a reação, hoje vitoriosa, em favor de uma maior flexibilidade conceitual. Nos dias atuais, parece que se deve lutar pelo rigor e pela assunção dos custos argumentativos. Esse é o caminho democrático de nosso tempo e é este um dos objetivos desta coluna.

Há muitos aspectos polêmicos da revisão contratual que podem ser explorados. E não faltará oportunidade para o fazer nas próximas colunas do Direito Civil Atual. Aos leitores, deixa-se o convite para que acompanhem este novo projeto da Rede de Direito Civil Contemporâneo, cuja produção jurídica pode ser também encontrada na Revista de Direito Civil Contemporâneo – RDCC. 

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF e UFC).



[1] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Um “modelo de revisão contratual por etapas” e a jurisprudência contemporânea do Superior Tribunal de Justiça. In. ANCONA LOPEZ, Teresa; LEMOS, Patrícia Iglecias Faga; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Sociedade de risco e direito privado: Desafios normativos, consumeristas e ambientais. São Paulo: Atlas, 2013. p. 427, com base em Antonio Menezes Cordeiro.


[2] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. Cit. p. 474.


[3] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contrato: Autonomia da vontade e teoria da imprevisão.. 2 ed.. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. p.36-37


[4]STJ. REsp 472.594/SP, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Rel. p/ Acórdão Ministro Aldir Passarinho Junior, Segunda Seção, julgado em 12/02/2003, DJ 04/08/2003, p. 217.


[5] “A venda de safra futura, a preço certo, em curto espaço de tempo, há de ser cumprida pelas partes contratantes. Alterações previsíveis na cotação do produto (soja) não rendem ensejo à modificação da avença ou à sua resolução” (STJ. REsp 809.464/GO, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 10/06/2008, DJe 23/06/2008- RT v. 876, p. 161)


[6] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão...p.171.


[7] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão...p. 128-134.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.



Revista Consultor Jurídico, 2 de fevereiro de 2015, 8h22

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...