Aos leitores da coluna Direito Comparado e aos que começarão a acompanhar às segundas-feiras o Direito Civil Atual, dou-lhes as boas-vindas. Os membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo darão o melhor de si para que este espaço possa servir de um fórum aberto para as mais importantes questões do Direito Privado no Brasil.
E nada melhor do que iniciar com o tema mais importante do Direito Contratual contemporâneo: a revisão judicial dos contratos. Note-se que essa relevância manifesta-se não apenas no Brasil. De fato, conforme a pesquisa de Aristide Chiotellis realizada nos anos 1980, inventariou-se, somente em língua alemã, 56 teorias diferentes para fundamentar a chamada alteração da base do negócio jurídico.[1] No Superior Tribunal de Justiça, em levantamento de dados que fiz em 2012, compreensivo do período de 2008-2011, identifiquei nada menos que 638 acórdãos sobre o tema, excluídas repetições.[2]
Se a revisão judicial dos contratos é um tópico central do Direito Civil contemporâneo, sua maior ou menor evidência está na razão direta das tormentas da civilização. Tanto maior a decadência, a perda de referências morais ou a crise econômica ou política, mais presente se fará o problema da revisão dos contratos.
É também notável que a revisão dos contratos, em termos históricos, atravessa fases de aceitação e de repúdio. Tal se torna visível quando os institutos ou as teorias que lhe dão fundamento ora são asilados dos códigos e das leis, ora são restituídos à plenitude no ordenamento jurídico.
Algo tão antigo e tão contemporâneo criou para o Direito Civil um grande inconveniente: muito se escreveu sobre a revisão contratual e há diversas afirmações sobre suas teorias que se repetem exaustivamente em decisões ou obras doutrinárias, sem que se proceda a um exame mais crítico dessas posições. Desse modo, perpetuam-se equívocos teóricos, aumenta-se a litigiosidade e cria-se um desnecessário fosso entre a academia e os tribunais. A tal respeito, o ministro Antonio Carlos Ferreira, em seu artigo “Revisão judicial de contratos: diálogo entre a doutrina e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça”, publicado no primeiro volume da Revista de Direito Civil Contemporâneo, demonstrou cabalmente que esse debate “se tem demonstrado tão necessário quanto rarefeito nos dias atuais”.
Na coluna de hoje, portanto, examinar-se-ão alguns pontos polêmicos da revisão dos contratos.
A cláusula rebus sic stantibus ainda é fundamento de revisão?
É muito comum encontrar em livros e em acórdãos a referência à cláusularebus sic stantibus como sinônimo de “teoria da imprevisão” ou como fundamento para a revisão dos contratos. Essa expressão latina, em sua forma completa, quer dizer “os contratos que têm trato sucessivo ou a termo ficam subordinados, a todo tempo, ao mesmo estado de subsistência das coisas” e sua origem está em fragmentos romanos, mas sua formulação teórica só apareceu na Idade Média.[3]
Muito bem, salvo como reminiscência histórica ou como uma licença poética, em termos técnicos rigorosos não é mais adequado se referir à cláusula rebus sic stantibus como sinônimo da revisão contratual prevista no Código Civil de 2002. De modo bem elementar, pode-se dizer que a antigarebus sic stantibus era uma condictio (no sentido romano) que, uma vez verificada, liberava as partes da execução de suas obrigações sem que respondessem por seu inadimplemento.
Mas isso não ocorre quando se está diante de um caso fortuito? Precisamente. ´Dá-se que as hipóteses da rebus sic stantibus eram diferentes das relativas ao fortuito ou à força maior. Um exemplo (que está nos autores da Antiguidade): se deixei uma arma em depósito com um amigo e, vencido o prazo para restituição da coisa, ele me procurou e viu que eu estava louco, deve o amigo cumprir a obrigação? Evidentemente que não. Mas se a inadimplir será depositário infiel e não será protegido pela excludente de fortuito ou de força maior. Muito bem, nesse caso a rebus sic stantibuspermitiria a liberação extraordinária do devedor, sem os efeitos da culpa.
Nos dias atuais, essa situação é muito rara e o efeito da rebus sic stantibus é bastante limitado, pois, na maior parte dos casos, existe um fundamento econômico para não se cumprir o contrato e o que se deseja é rever e não se extinguir o vínculo. Neste cenário, a cláusula só sobreviveria para hipóteses não-econômicas e com fins muito restritos. E, é claro, como uma expressão poética para se aludir aos fenômenos englobados pelos arts.478-480 do Código Civil.
Qual a teoria utilizada pelo Código Civil para fundamentar a revisão contratual?
Eis um tópico que gera enormes controvérsias e é extremamente importante, para além de meras questões teóricas. Quando se discute qual teoria é aplicável, está a se resolver um problema extremamente sério: quais requisitos para se rever um contrato. E isso não é pouca coisa.
De modo bem objetivo, é possível identificar as seguintes correntes de pensamento sobre o tema: a) defensores da combinação da teoria italiana da onerosidade excessiva e da teoria francesa da imprevisão: José de Oliveira Ascensão, Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias, Paulo Roque Khouri, Wanderley Fernandes, Silvio de Salvo Venosa, Otavio Luiz Rodrigues Junior e outros); b) defensores da aplicação exclusiva da teoria da onerosidade excessiva.
Qual a diferença prática? Combinar as duas teorias (onerosidade excessiva e imprevisão) significa colocar filtros na revisão dos contratos no Direito Civil, tornando-a mais difícil. E essa opção é mais coerente com o texto do Código Civil, em seu art.478, que expressamente exige os requisitos daexcessiva onerosidade da prestação com a ocorrência de acontecimentos imprevisíveis. O legislador não usa expressões inúteis.
A despeito da polêmica na doutrina, o Superior Tribunal de Justiça, conforme apontado pelo ministro Antonio Carlos Ferreira, faz essa diferenciação ao dispensar o requisito da imprevisão nas revisões de contrato de consumo e ao exigi-la nos contratos cíveis. Essa orientação é notória no célebre grupo de casos dos contratos de arrendamento mercantil indexados pelo dólar: o STJ primeiro qualificou os contratos como de consumo e depois afastou o requisito da imprevisão.[4]
Em outro grupo de casos já famoso, o relativo à compra de safra futura de soja, o STJ aplicou simultaneamente a onerosidade excessiva e a teoria da imprevisão, impedindo a revisão dos contratos, por entender que variações na cotação do projeto são fatos previsíveis.[5]
Há autores que discordam dessa aplicação simultânea e a mitigação dos filtros para a revisão de contratos submetidos ao Direito Civil. Um dos mais populares argumentos dessa respeitável corrente teórica está no art. 317 do Código Civil, localizado na seção do objeto do pagamento e sua prova, assim redigido: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.
Esse dispositivo foi originalmente elaborado para permitir a correção do valor das obrigações, em um tempo em que não havia o reconhecimento legal da correção monetária no Poder Judiciário. Essa função primitiva perdeu completamente o sentido após a inserção de vários artigos no Código Civil que tornam obrigatória a chamada “atualização monetária” (arts. 389, 404, 418, 772, 884, 1.395, parágrafo único e outros). Restaria ao art.317 uma função supletiva aos arts. 478-480, mas, ainda assim, não se pode ignorar a presença dos “motivos imprevisíveis” na abertura do texto legal.[6]
Outro argumento em favor da aplicação simultânea da onerosidade-imprevisão está no reconhecimento de que as relações cíveis são, em sua maioria, paritéticas. Não se podem eliminar esses filtros à revisão contratual quando os que se obrigam são sujeitos que suportam riscos simétricos e possuem um elevado nível de discernimento para se autovincular.
O que é essa tal de “imprevisão”?
A teoria da imprevisão é um constructo do Direito francês, nascida no Direito Administrativo para resolver problemas relativos a concessões de serviços públicos, com acórdãos célebres do Conselho de Estado. Posteriormente, ela foi transposta para o Direito Civil, de modo excepcional, pela Lei Failliot, de 21 de novembro de 1918, cuja íntegra pode ser lida nas páginas 29 e 30 de nosso livro Revisão judicial dos contratos, já citado. Na França, porém, ao menos até meados dos anos 1990, a imprevisão praticamente não teve incidência em negócios cíveis. Agora, com a incorporação das diretivas europeias e com os projetos de reforma do Código Civil de 1804, é que os franceses resolverão a que marco teórico se vincularão nesse campo do Direito Contratual.
Por mais um curioso fenômeno de recepção tardia de uma doutrina estrangeira no Brasil, a teoria da imprevisão ganhou enorme prestígio entre os civilistas nacionais desde a clássica obra de Arnoldo Medeiros da Fonseca, intitulada Caso fortuito e teoria da imprevisão, publicada pela primeira vez em 1932, no Rio de Janeiro, com o selo editorial da Tipografia do Jornal do Comércio.
A jurisprudência do século XX também se apropriou da teoria francesa da imprevisão, dando-lhe contornos tipicamente brasileiros. Em pesquisa que realizei em 2001, concluí que em todos os julgados publicados na Revista Forense e na Revista dos Tribunais, desde seus respectivos primeiros números, a maior parte dos acórdãos impedia a revisão contratual, ao contrário do que se imagina em face do número de ações em curso com esse fundamento.[7]
A razão disso está em que a palavra imprevisão significa a incapacidade de se prever o futuro. A palavra imprevisão é, sob tal aspecto, vazia de sentido. No entanto, ele foi preenchido por quase um século de construções jurisprudenciais que dizem o que não é imprevisão: mudança de moeda; inflação; variação cambial; maxidesvalorização; crise econômica; aumento do déficit público; majoração de alíquotas, enfim, toda sorte de eventos macroeconômicos tão comuns em países instáveis e que conviveram com crises periódicas.
A imprevisão constitui-se, por assim dizer, em um filtro jurídico-político, que foi burilado pelos tribunais desde o início do século passado, para impedir que houvesse uma generalizada revisão de contratos cíveis. Em Grande sertão: Veredas, João Guimarães Rosa, pela boca de sua personagem, tornou famosa a frase: “Viver é negócio muito perigoso...”. No Brasil, pode-se ir além e parafrasear o romancista: “Contratar é negócio muito perigoso...”.
Conclusão
É muito comum os estudantes ouvirem hoje que não se pode “colocar o Direito em caixinhas”. Há algum tempo, os excessos do formalismo geraram a reação, hoje vitoriosa, em favor de uma maior flexibilidade conceitual. Nos dias atuais, parece que se deve lutar pelo rigor e pela assunção dos custos argumentativos. Esse é o caminho democrático de nosso tempo e é este um dos objetivos desta coluna.
Há muitos aspectos polêmicos da revisão contratual que podem ser explorados. E não faltará oportunidade para o fazer nas próximas colunas do Direito Civil Atual. Aos leitores, deixa-se o convite para que acompanhem este novo projeto da Rede de Direito Civil Contemporâneo, cuja produção jurídica pode ser também encontrada na Revista de Direito Civil Contemporâneo – RDCC.
* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF e UFC).
[1] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Um “modelo de revisão contratual por etapas” e a jurisprudência contemporânea do Superior Tribunal de Justiça. In. ANCONA LOPEZ, Teresa; LEMOS, Patrícia Iglecias Faga; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Sociedade de risco e direito privado: Desafios normativos, consumeristas e ambientais. São Paulo: Atlas, 2013. p. 427, com base em Antonio Menezes Cordeiro.
[2] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. Cit. p. 474.
[3] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contrato: Autonomia da vontade e teoria da imprevisão.. 2 ed.. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. p.36-37
[4]STJ. REsp 472.594/SP, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Rel. p/ Acórdão Ministro Aldir Passarinho Junior, Segunda Seção, julgado em 12/02/2003, DJ 04/08/2003, p. 217.
[5] “A venda de safra futura, a preço certo, em curto espaço de tempo, há de ser cumprida pelas partes contratantes. Alterações previsíveis na cotação do produto (soja) não rendem ensejo à modificação da avença ou à sua resolução” (STJ. REsp 809.464/GO, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 10/06/2008, DJe 23/06/2008- RT v. 876, p. 161)
[6] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão...p.171.
[7] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão...p. 128-134.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.
Revista Consultor Jurídico, 2 de fevereiro de 2015, 8h22
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