terça-feira, 14 de julho de 2015


Liberação do casamento igualitário abre debate sobre Direito Civil infralegal



A Suprema Corte dos Estados Unidos julgou no dia 26 de junho a inconstitucionalidade de leis estaduais que proíbem o casamento de pessoas do mesmo sexo naquele país. Reconheceu-se não ser possível essa restrição, porque a instituição jurídica do casamento deve ser permitida a todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual, além de se tratar de um direito fundamental, importante para a ordem social, cuja celebração decorre da autonomia individual e que visa ao estabelecimento de vínculos de comprometimento entre as pessoas.

A proibição desse direito a homossexuais implica mantê-los estigmatizados, como se fossem pessoas de condição inferior à dos heterossexuais.[1] Com essa decisão nos Estados Unidos, milhares de pessoas alteraram suas fotos de perfil no Facebook em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, como forma de comemorar essa conquista.

Parece que, na visão do leigo, o reconhecimento jurídico do casamento homoafetivo ocorreu somente com a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, como se a jurisdição de lá também tivesse efeitos aqui, e que somente agora se dá essa oportunidade a casais homossexuais no Brasil. Isso porque não houve reação dessa magnitude, quando, em 2013, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência, validade e eficácia da união estável entre pessoas do mesmo sexo,[2] ainda que, há bastante tempo, a jurisprudência viesse reconhecendo direitos a companheiros homossexuais.

Em seus votos, os ministros do Supremo Tribunal Federal, de forma irrepreensível, destacaram a necessidade de reconhecimento jurídico das relações de direito privado entre pessoas do mesmo sexo, porque todos são iguais perante a lei e têm direito ao livre desenvolvimento da personalidade por meio da garantia da autonomia e privacidade no exercício da sexualidade. Apontaram, ainda, que a homossexualidade é um fato da vida e que pessoas homossexuais somente são felizes e realizadas quando são reconhecidas em suas verdadeiras identidades pessoais; a família, base da sociedade, protegida pelo art. 226, caput, da Constituição Federal, não pode mais ser entendida como aquela constituída somente por casais heterossexuais.

Todavia, foi necessário evitar-se ao máximo as referências ao art. 226, § 3º, da Constituição Federal, no qual consta intencional e expressamente as palavras “homem e mulher” por vontade da Assembleia Constituinte — conforme destacado pelo ministro Ricardo Lewandowski ao resgatar transcrição do debate outrora ocorrido — para que prevalecessem os arts. 1º, IV, 3º, IV e 5º, II, X e § 2º da Constituição Federal, mesmo ao se ter afirmado que “(...) o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica”.

Dessa forma, há no texto constitucional uma norma que resulta na discriminação das pessoas! Inclusive, no passado, esse mesmo art. 226, § 3º, foi usado por alguns para sustentar a inconstitucionalidade da Lei 9.278/96, que tratava da união estável antes do Código Civil de 2002, porque a Constituição Federal estaria ordenando a conversão da união estável em casamento, não a sua manutenção.

Além disso, se esse art. 226, § 3º, não fosse discriminatório, teria sido desnecessária a provocação do Supremo para que se manifestasse acerca dessa matéria. A melhor solução seria o Congresso Nacional rediscutir a conveniência ou não de manter-se o art. 226, § 3º, tal como se fez em 1977 com o fim da proibição do divórcio e, mais recentemente, em 2010, com a alteração do art. 226, § 6º, da Constituição Federal, para não mais estabelecer prazo mínimo para a sua decretação.

Não há como negar que o reconhecimento do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo deu-se por meio da Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça,[3] tornando dispensável o reconhecimento da união estável homoafetiva para conversão subsequente em casamento homoafetivo. Dessa forma, no Brasil, há um dúplice regime: o casamento entre pessoas heterossexuais, disciplinado pelo Código Civil de 2002, em cujos enunciados se registram as palavras “homem e mulher” (arts. 1.514, 1.517 e 1.535), e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, disciplinado por meio da Resolução CNJ 175, portanto, uma norma infralegal.

Estamos diante de uma situação curiosa: em vez de a Constituição Federal ter modificado o direito civil em matéria de casamento, essa transformação deu-se por meio de resolução do Conselho Nacional de Justiça. Logo, por que não se afirmar, a partir desse exemplo, a existência de um Direito Civil infralegal, que também irradia seus valores na interpretação do Código Civil? Afinal, fenômeno similar ocorre com as resoluções das agências reguladoras e superintendências em matéria de contratos, em especial, os de transporte e seguros, além dos planos de saúde. Fatos como esses permitem a reflexão acerca da função das normas hierarquicamente superiores – e agora também aquelas inferiores – na criação de novos direitos.

Em minha opinião, novos direitos, sobretudo aqueles decorrentes de muita luta, raramente são conquistados a partir da lógica do sistema. Basta lembrar que, no século XIX, os códigos foram apresentados como a grande novidade em termos de legislação e deveriam prevalecer em face da tradição do direito medieval, por serem a concretização das liberdades entre indivíduos. No século XX, essa novidade foi atribuída às Constituições, usadas não só como suportes argumentativos para a oxigenação dos códigos, mas também pela aplicação direta de normas nelas positivadas, com o intuito de tornar ineficazes normas contidas em leis ordinárias, ou ao atribuir-lhes novos significados.

Tornou-se mais agradável e convincente argumentar que os elementos nucleares do Direito Civil deveriam ser encontrados no Direito Constitucional, restando ao Código Civil, por exemplo, apenas especificar o que estaria previsto na Constituição Federal, em vez de reconhecer-se a aptidão do direito civil, por si mesmo, para concretizar esses valores sociais.

Mas, quando a própria Constituição Federal tem em seu texto uma norma segundo a qual união estável é entre homem e mulher — em flagrante antinomia entre os arts. 1º, IV, 3º, IV e 5º, II, X e §2º, em face do art. 226 —, e silencia-se quanto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, torna-se necessário o emprego de uma norma infralegal no reconhecimento de novos direitos.

Foi magnífica a importância da Constituição Federal na proteção dos direitos da personalidade, tais como a honra, imagem e vida privada, além do reconhecimento da indenização por dano moral e, sobretudo, ao ter, de fato, absorvido o direito de família por meio dos arts. 226 e 227, até o advento do Código Civil de 2002.

Entretanto, o atual Código Civil também traz em suas normas valores socialmente importantes e condizentes com a sociedade contemporânea. Tanto que a atribuição de personalidade jurídica, ou a sua desconsideração, a autonomia privada, a análise da função social de um contrato ou da conduta de uma pessoa à luz da boa-fé, entre outros, independem de “homologação” por normas de estrato superior.

É forçoso reconhecer que o legislador, na elaboração do Código Civil de 2002 poderia ter sido mais detalhista na disciplina jurídica de diversos institutos, como já acontece em códigos civis de outros países, e deveria atualizá-lo com mais frequência, tal como ocorre com a própria Constituição Federal, a qual, em menos de 27 anos, já sofreu 88 emendas, de modo que as soluções para os problemas fossem dadas por meio de regras claras, em vez de invocar-se excessivamente o conceito de dignidade da pessoa humana, por exemplo.

Portanto, não é exato sustentar, pela lógica do sistema jurídico, que a Constituição Federal é infalivelmente o único e verdadeiro manancial axiológico do Direito brasileiro — porque, no caso do art. 226, § 3º, trata-se de valor não mais aceito por parcela da sociedade — ou argumentar que estaríamos caminhando para o reconhecimento da existência de um direito civil infralegal.

Normas constitucionais ou infralegais devem ser usadas como argumentos adicionais, complementares, jamais como requisitos obrigatórios de todo e qualquer discurso dentro do Direito Civil, para que não se desequilibre a estrutura do ordenamento jurídico, sobrecarregando a Constituição Federal ou uma resolução, enfraquecendo-se o Código Civil.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF e UFC).



[1] SUPREME COURT OF THE UNITED STATES. Obergefell et al. v. Hodges , Director Ohio Department of Health et al. Nº 14-556. Argued April, 28, 2015. Decided June, 26, 2015. Disponível em: <http://www.supremecourt.gov/opinions/14pdf/14-556_3204.pdf>. Acesso em: 3.jul.2015


[2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. Rel. Min. Ayres Brito. Requerente: Procurador-Geral da República; Requerido: Presidente da República, Congresso Nacional. Resultado Final: Procedente.


[3] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013. Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas do mesmo sexo. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/resolução_n_175.pdf>. Acesso em: 3.jul.2015


Eduardo Tomasevicius Filho é Professor Doutor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.

Revista Consultor Jurídico, 13 de julho de 2015, 8h00

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