Por Lenio Luiz Streck
Como sabemos, o novo Código de Processo Civil (CPC) vem gerando desconfortos em setores da magistratura. Já escrevi aqui sobre o juiz (ler aqui) que disse que, tivesse que fundamentar amiúde e não mais pudesse decidir conforme seu livre convencimento, mudar-se-ia para os Estados Unidos. Depois vem o episódio do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP), em que um juiz (ler aqui) disse que, tivesse que obedecer o artigo 489 do novo CPC, mudar-se-ia para a antiga Rodésia.
Afora isso, há notícias que dão conta que há uma onda anti-novo CPC. Parcela da magistratura não admite ter de obedecer aquilo que na Alemanha já se faz há décadas, conforme Dierle Nunes e eu explicamos aqui. Há até desdém pelo novo Código, com desafios do tipo “quero ver se vai dar certo”; “na hora H, quem decide sou eu”, etc. Vejo tudo isso com tristeza. E tenho a certeza de que a maior parte da magistratura também.
Hoje, trago um exemplo que demonstra como determinados magistrados continuam se comportando como verdadeiros donos do poder, bem ao estilo daquilo que tão bem denunciou Raimundo Faoro em sua clássica obra. Em Pindorama, alguns estão acima da lei. E podem dizer, abertamente, que não a cumprirão.
É o caso de um juiz do trabalho-professor-doutor, que, em palestra recente (ver aqui) — não desmentida —, afirmou
que a Justiça do Trabalho deveria resistir à aplicação do novo Código de Processo Civil, por entender que a nova lei é fruto do pensamento liberal e da lógica de mercado, tendendo a diminuir a potencialidade da influência dos juízes do trabalho dentro da realidade social.
Vejam que não declino o nome do magistrado (embora a matéria o nomine, é claro) porque não tenho a intenção de fulanizar a discussão. Trata-se de uma questão maior, isto é, refletir acerca dos limites da função de juiz e a própria democracia.
O presente caso trata do seguinte: O juiz que jurou defender as leis e a Constituição e que cursou doutorado, prega, em pleno Estado Democrático de Direito, a desobediência a uma lei aprovada pelo parlamento e sancionada pela presidente. Em países como Alemanha, França, Espanha e Portugal (para citar apenas estes), tal conduta traria uma série de aborrecimentos a Sua Excelência, para dizer o menos. Em Pindorama, ao que sei, a declaração gerou... aplausos.
Sigo. Segundo sua tese, a magistratura deveria funcionar como uma trincheira de resistência ao atual conservadorismo jurídico (sic) e, por isso, o direito deveria ser instrumentalizado para os magistrados poderem fazer justiça social. Vou repetir: “Magistrados poderem fazer justiça social”. Algo como “a justiça sou eu”.
Diante da defesa desse protagonismo, seja ele de esquerda ou de direita, progressista ou conservadora (para quem?), é preciso insistir nas grandes conquistas do direito, que, sem dúvida alguma, foram fundamentais para o estabelecimento da democracia. Manifestar-se de forma personalista, em qualquer instituição pública, apenas contribui para enfraquecer o Estado de Direito. É assim que devemos olhar para qualquer tipo de ode à discricionariedade. Não existem ativismos bons e ativismos ruins. Se insistirmos em retornar a esta dicotomia, estaremos retomando o velho debate que atravessou a Guerra Fria, que girava na disputa entre ditaduras de esquerda e ditaduras de direita. Afinal, existe alguma ditadura boa? Ambas diziam que se posicionavam a favor da democracia, mas, no fim, contribuíram para fragilizá-la e, por fim, extingui-la. E isso serve para a necessária crítica que devemos fazer a qualquer tipo de voluntarismo interpretativo-aplicativo, seja em defesa do mercado ou da justiça social.
Em seu desdém — e devemos chamar as coisas pelo seu nome — pelo novo Código, o juiz paulista asseverou:
“O novo CPC sofre de megalomania e flerta com a esquizofrenia”.
Quer dizer que isso que o ministro Fux e uma plêiade de juristas e deputados fizeram durante anos é uma obra “megalômana”? Pergunto, ademais: na medida em que uma obra (coisa inanimada) não pode ser esquizofrênica, seriam esquizofrênicos os autores do Código? Vejam: a matéria não foi desmentida. E está em site oficial. Palavras suas.
E a matéria acentua ainda que o magistrado teria dito que “precisamos resolver as coisas de forma mais simples e basear nossas escolhas na lógica da confiança entre o juiz e as partes e entre as partes e o juiz”. E eu indago: Como assim? O que é isto — “a lógica da confiança entre o juiz e as partes”? Não tem Parlamento neste país? Juiz faz juízos morais sobre o direito?
Na sequência, o mesmo juiz criticou a segurança jurídica (sic) que o novo CPC traz. Para ele, não se pode facilitar a vida das empresas que são reincidentes no descumprimento das normas trabalhistas. OK. Mas isso não acarreta um pré-julgamento do juiz acerca da empresa? Por que o magistrado teria dito que “as empresas precisam sentir o desconforto”? Com essa declaração, em sendo advogado de empresa, peço a sua suspeição. Mutatis, mutandis, disso tudo se extrai, confessadamente, que o direito da parte dependerá (da opinião pessoal) do juiz e não do direito. Ou seja, se for um juiz progressista, a decisão é “X”; se for um “conservador”, será Y. Isso só mostra que estamos 100 anos atrasados. Ainda cultivamos coisas como Escola do Direito Livre, Livre Investigação, Realismo Jurídico, Direito Achado na Rua e outras coisas do gênero. Peço vênia, mas isso precisa ser dito. E denunciado. De forma clara.
Não entendi também porque o novo CPC seria liberal (sic) ou algo do gênero. Seria o novo CPC “de direita”? E o que seria um Código “de esquerda”? A exigência de fundamentação detalhada e accountability é uma mostra de “liberalismo” e da prevalência da lei de mercado? Devo ter perdido essa parte das aulas de ciência política. E falarei com Bolzam de Morais para reescrevermos nosso livro Teoria do Estado e Ciência Política, hoje já na 9ª. Edição.
De fato, o Brasil vai mal. Quem deve respeitar a lei e fazê-la cumprir faz uma ode à... desobediência. Sim, sei que é antipático criticar juiz em um país de estamentos. Afinal, podemos estar nas mãos “dele” como advogados na próxima causa. Dizem-me isso todos os dias. Algo como “você não deve criticar os juízes”. “— Isso pode lhe custar caro”, etc. Como se a defesa do direito fosse algo “feio” ou “pegajoso”. Quem ler, por exemplo, Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica verá a verdadeira ode que faço à jurisdição. Mas isso só sabe quem se der a pachorra de ler antes de criticar.
É claro que isso é assim porque o nosso direito é tão atrasado que ainda dependemos do solipsismo judicial e não do direito entendido como uma estrutura. E isso pode ser visto na própria declaração do juiz constante na matéria. Para ele, não deve importar um Código novo aprovado pelo legislador. Vale mesmo é a “relação juiz-partes”. Pois é isso que dá medo no usuário. Os advogados tem pânico disso. Depender da posição pessoal do juiz e não do direito. Eis o busílis da questão. Estamos atrasados mais de um século. Vou repetir algo que já disse em outra coluna, quando critiquei uma decisão da Justiça Federal que, à revelia da lei e da Constituição, concedeu metade da herança a uma concubina adulterina: vendo tudo isso, cada vez mais gosto dos pandectistas alemães. Muitos não entenderão isto que estou dizendo. Mas, não importa. Alguns entenderão. Em um país de fugitivos, quem anda na contramão parece que está fugindo!
Numa palavra final.
Lendo o que disse o magistrado da justiça laboral, tenho de chamar à colação, duas vezes, o ministro Teori Zavascki. A uma, porque no dia do episódio em que outro juiz do trabalho disse que se mudaria para a antiga Rodesia, o ministro, em conferência proferida à tarde, com inteligência e a elegância que lhe é própria, colocou um balde de água fria nesses ímpetos de desobediência civil contra o novo CPC. Disse, claramente, que a fundamentação prevista no Código é condição de possibilidade da democracia: juiz deve priorizar fundamentação em vez da celeridade. Mas chamo o ministro Teori ainda uma vez mais à colação, em seu brilhante voto na Reclamação 2.645, quando diz que o juiz somente pode deixar de aplicar uma lei se esta for inconstitucional, ratificando, implicitamente, a primeira das seis hipóteses, constantes em minha teoria da decisão, pelas quais um juiz pode deixar de aplicar um texto normativo (conforme Verdade e Consenso e Jurisdição e Decisão Jurídica). Isso se aplica aos juízes que pregam a desobediência ao novo CPC. Não se trata, por óbvio, de um Código perfeito. Longe disso. Mas foi aprovado pelo parlamento. Temos de cumpri-lo e aperfeiçoá-lo. Mas isso se faz por intermédio do próprio parlamento e pela jurisdição constitucional, pelos mecanismos específicos como interpretação conforme, antinomias, nulidade parcial sem redução de texto, etc. Sei também que há quem defenda o aumento do prazo de vacatio legis. Mas essa vacatio estendida, se ocorrer, será por determinação soberana do parlamento. E não da simples vontade do judiciário.
Fico imaginando o desconforto não só do ministro Teori com declarações como as do juiz em tela, como também dos demais ministros da Suprema Corte encarregados últimos da constitucionalidade das leis. Lembro, aqui, de uma conferência do presidente do STF, ministro Lewandoski sobre o cumprimento das leis (leia aqui). E de tantas palestras que participei com a ministra Cármen Lúcia, que, brandindo a Constituição, falava de da necessidade de seu cumprimento. Do ministro Toffoli, na ADI 4.451, criticando a principiolatria. Do ministro Gilmar Mendes, tantas vezes falando das garantias do Estado de Direito. Do ministro Marco Aurélio, falando da ordem em que os Poderes se encontram escritos na Constituição. Poderia citar um por um por um dos ministros. E, é claro, um dos mentores do novo CPC, o ministro Luiz Fux, que tanto lutou para termos esse novo estatuto. Todos na contramão do que disse o juiz trabalhista.
Em síntese: vamos levar o direito a sério. São mais de mil faculdades de Direito. Uma centena de programas de pós-graduação. Centenas de autores produzindo doutrina. Preocupados com a aplicação das leis e da Constituição. Não há mais espaço para voluntarismos e axiologismos tardios. Repito, aqui, pela enésima vez, que “não é proibido que o juiz deixe de aplicar uma lei”. Mas, se ele não estiver de acordo com o conteúdo de uma lei, deve lançar mão dos mecanismos próprios para tal. De todo modo, repito as seis hipóteses pelas quais é possível não aplicar uma lei stricto sensu. Melhor dizendo, indico o link da coluna da semana passada, em que discuti isso detalhadamente. Até minha LEER tem limites.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 2 de julho de 2015, 8h00
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