quinta-feira, 25 de setembro de 2014

VIVEMOS ENTRE ANOREXIA E BULIMIA INFORMACIONAIS: ASSISTAM AO VÍDEO!


Vivemos entre anorexia e bulimia informacionais: assistam ao vídeo!




Não queria voltar tão cedo ao assunto da tortura e da violência estatais. Há duas semanas faleiaqui do empalamento medieval feito e filmado na prisão de Anápolis (GO). O interessante — e trágico — é que não mais se soube o que ocorreu com a vítima e com o diretor do presídio. Aliás, não há accountabillity nestas plagas. O diretor saiu? Conseguiram “saí-lo”? E em que circunstâncias foi dada a ordem de prisão? O indiciado (depois empalado) tinha advogado? Foram cumpridos os requisitos constitucionais da prisão? Mais: já existe ação penal instaurada contra o indiciado-empalado? Três promotores assinaram o pedido de destituição do diretor do ergástulo, mas nenhum deles se dignou a informar à ConJur ou à própria imprensa o que ocorreu efetivamente. Para que serve a opinião pública?

Notícia cobre notícia. Banalizamos o mal, para repetir ad nauseam a máxima cunhada por Hannah Arendt. E quando o mal se banaliza, perdemos a capacidade de perceber a diferença. Perdemos a capacidade de separar o joio do trigo. E quando o fazemos, ficamos com o joio. Vai mal a sociedade. E por quê? Porque não consegue fazer uma antropofagia do mal e das maldades cotidianas. Indignamo-nos no varejo e nos omitimos no atacado. Somos um misto de anorexia e bulimia informacionais. Não queremos mastigar informações mais complexas e que possam nos fazer refletir; e quando alguma delas passar pelo nosso filtro do mal-estar-civilizacional, vomitamos (bulimia) tudo. Assim, vamos enfraquecendo. É o raquitismo gnosiológico pós-moderno. Não tem saída. Não dá nem para estocar alimentos epistêmicos. Quem os comerá?

A coluna não é e nem quer ser sensacionalista. Senso Incomum é o lugar da sofisticação. Da crítica. Da ironia. Do sarcasmo. Não é o lugar do programa do Ratinho ou do Datena. Mas as cenas que irão ver merecem ser vistas pela população. Já devem ter passado na TV. Mas logo foram esquecidas. Desapareceram em face de outras cenas do dia seguinte. Como sempre, notícia cobre notícia. São camadas de sentido alienadas e alienantes, que, uma vez incrustadas, obnubilam um olhar mais crítico. Por isso, esta coluna serve para fazer des-leituras do cotidiano. Des-ler os fatos. Eis a tarefa!



Então? Como chegamos a isto? Todos queremos bem estar e estar bem. Mas isso parece impossível.[i] Como diz Freud em seu Mal Estar na Civilização, há uma questão inconciliável entre as exigências pulsionais e as restrições da civilização. O mal-estar na civilização está encalastrada em todos nós. Parece ser o nosso destino. A miséria, a barbárie, a violência e a tortura fazem parte de nosso cardápio. Machado de Assis tem um conto chamado A Causa Secreta, onde nos revela a personalidade de um sádico, capaz de realizar "boas ações" desde que estas lhe permitam o exercício de seu prazer. A descrição da tortura a que submete um rato é página antológica na literatura brasileira. O personagem é Fortunato, que tem prazer com a desgraça alheia. Qual é o verdadeiro sentido da palavra “sadismo”? Penso que Fortunato representa a sociedade. É a metáfora do mal-estar. A alegoria de que nós não damos certo e que somos um projeto fracassado. Talvez ao sabermos que somos finitos e nada podermos fazer com relação a isso e que nada podemos fazer contra a natureza, nosso maior problema se volte à nossa relação homem-homem. Eis o nosso mal-estar. Daí que buscamos paliativos e compensações. A violência, a miséria, a tortura serão assim, coisas-de-nosso-cotidiano. Ao final, naturalizamos tudo. E vamos vivendo.

Falamos dos alemães que ficaram inertes vendo os nazistas mandarem os judeus para os campos de concentração. No fundo, não há muita diferença entre os campos de concentração e a prisão de Pedrinhas ou de Anápolis ou do Presídio Central de Porto Alegre ou de Cascavel. E não se faz nada. Diz-se sempre o chavão: haverá investigação... Onde está nossa intelligentia? Há um ministério que trata do assunto “direitos humanos”. Mas que tem muito mais um efeito de flambar as coisas. Como está Pedrinhas, hoje? Outro dia houve fuga em massa. E como está o caso de Anápolis? Diz-se que o acusado-empalado foi para prisão domiciliar. Mas, se isso é verdade, porque teve sua preventiva decretada? Gostaria de por os olhos na decisão de preventiva do acusado-empalado. Quem a tiver, mande-a, por favor. E o parecer do Ministério Público. Aliás, como a Coluna será lida pelos promotores que pediram o afastamento do diretor, eles mesmo poderiam me mandar (ou para a ConJur) tanto o pedido de preventiva como o parecer ministerial e a decisão do magistrado.

Do mesmo modo que gostaria de saber o que houve com os policiais do vídeo que os leitores acabaram de ver. Passou-se no Pará. Belém. Esta coluna não é um Observatório de Direitos Humanos. Mas, na falta dele, na precariedade da atuação de quem é pago para isso, posso, no limite, prestar esse serviço à comunidade.

Pronto. E nada mais precisa ser dito. Por ora.

Numa palavra final:
Kafka também nos mostra a maldade humana, o corolário de que Hobbes tinha razão e que o motor da história é(ra) o medo. O livro é Colônia Penal. Trata-se da história de explorador que, em uma visita a uma colônia penal francesa, testemunha a execução de um prisioneiro (na verdade, prestes a ser executado). O sistema que o condenou está baseado numa doutrina jurídica arbitrária, em que o acusado não tem direito à defesa (quem olha o vídeo objeto desta coluna percebe bem isso, pois não?). Quem administra essa "justiça maquinal" é um instrumento de tortura que escreve lentamente sobre a pele, no corpo do condenado, com agulhas de ferro, presas à uma estrutura de vidro, a sentença do crime que, muitas vezes, ele mesmo não sabe que cometeu.

O interessante é a metáfora que a tal máquina de tortura representa. Ela é infalível. A única coisa que destoa da estória de Kafka é que, diferentemente de A Colônia Penal, na vida real os chefes não se auto-imolam. Eles riem. Eles “curtem”. No livro de Kafka, as agulhas se enterram no couro do oficial nessa auto-imolação:

"Não apresentava sinal algum da redenção prometida. O que outros teriam encontrado na máquina acabara por lhe ser negado. Os lábios se achavam apertados com firmeza, os olhos abertos, com a mesma expressão que tinham quando vivos, o olhar seguro de si, convencido. A testa se achava perfurada pela grande agulha de ferro".

Post scriptum:
Mas, atenção: saber do mal-estar civilizacional implica também compreender o grau de responsabilidade do “outro lado”. A interdição hobbesiana (entre civilização e barbárie) quer dizer, também, limites. A ausência de limites também é fator fundante desse estado de coisas. Gritar que “Deus morreu” não resolve. Agora pode tudo? Estado de natureza? Esgarçar a autoridade do Estado “ajuda” a que se chegue ao abismo mais rapidamente. Discursos niilistas e relativistas também são responsáveis pela violência e pela tortura. Afinal, se não há verdades, tudo é relativo... Inclusive a violência. E também o que o relativista acabou de dizer. Por exemplo: se tudo é relativo, também as cenas que vimos são “verdades relativas”? Hein?

Tenho lido e visto discursos empolgados pregando a “morte da verdade”. Ou tudo vira psicologia cognitiva (o que é isto, afinal, aplicado ao direito? Quem sabe substituímos os juízes por psicólogos? Ou por filósofos morais?). E tudo vira relativismo. Fora com a verdade. Li um livro sobre prova e verdade dizendo que Heidegger é relativista (ou algo assim “tipo subjetivista”). Outra coisa que fragiliza o direito é pensar que o jurista (o juiz, por exemplo) pode se contentar com discursos de segundo nível (apofânticos), isto é, o juiz primeiro decide, para, só depois, “fundamentar” (como se fosse possível atravessar o abismo gnosiológico do conhecimento, chegar lá e depois voltar para construir a ponte pela qual o intérprete já passou — é o que eu chamo, no meu Verdade e Consenso, de “o dilema da ponte”). Vi a série Os Borgias, inspirada na obra de Mario Puzo que trata da primeira família mafiosa da história. Trata do Papa Alexandre VI e de sua família (a filha era a famosa Lucrécia Borgia). Da série (e do livro) podemos aprender muito sobre esse modo-teleológico-de-aplicar-a-lei (primeiro decido, depois fundamento): cada vez que o Papa tomava uma decisão, pedia, em seguida, para seus escribas-advogados encontrarem um precedente para justificar a sua decisão-já-tomada. Bingo! E tem gente que pensa que, ainda por estes dias, decisões devem e podem ser tomadas desse jeito: primeiro decidir...e depois buscar o fundamento. Consequência: decide-se como se quer. O restante todos sabemos. É só olhar em redor.

Ah: Para quem pensa que as cenas do filme acima ocorrem por ausência de Rousseau, digo, tranquilamente: não! Isso ocorre por falta de Hobbes. A sociedade não soube fazer interdições. E o Estado não interdita a si mesmo. Como já disse: também os que bradam "é proibido proibir”, como se quisessem reviver woodstock’s jurídicos, são responsáveis por tudo-isso-que-está-aí! Por exemplo: o que dizer da soltura do policial que matou o camelô em São Paulo? Nisso também não está o ovo (ou um ovinho) da serpente? Na verdade, pensando bem... a serpente já está bem criada, pois não? E como la ley es como la serpiente... também aqui o resto todos sabemos!



[i] Conforme a notícia (veja aqui), o “flanelinha” agredido sumiu e continua desaparecido. Impressão minha ou é queima de arquivos?!




Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.



Revista Consultor Jurídico, 25 de setembro de 2014, 08:00

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