"Direito à felicidade eleva os propósitos do STF, não os deprecia"
A ideia de que o Produto Interno Bruto não é o melhor número para se avaliar o bem-estar de uma nação já foi defendida por prêmios Nobel como Joseph Stiglitz e Amartya Sen. O Índice de Desenvolvimento Humano já faz parte dessa avaliação desde meados de 1993 graças à Organização das Nações Unidas, e inclui padrões mínimos de vida e de sustentabilidade. Um olhar mais atento, no entanto, começa a perceber uma nova mudança, que já chega à Justiça. Em todo o mundo, diversos precedentes já usam o conceito de "direito à felicidade". Longe de ser um critério subjetivo ou de inaugurar um princípio, a novidade tem aplicações práticas e já foi usada até mesmo pelo Supremo Tribunal Federal, ao decidir que casais homoafetivos têm direito à união estável.
O advogado Saul Tourinho Leal monitorou esses julgados durante quatro anos — em três continentes. Agora, o constitucionalista, que dá aulas no Instituto Brasiliense de Direito Público, lança a obra Direito à Felicidade, fruto de sua tese de doutorado a respeito.
Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP e atua no Supremo pelo escritório Pinheiro Neto Advogados. Foi pesquisador visitante na Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, e esteve no Quênia para falar de ativismo judicial a convite da Comissão de Implementação da Constituição do país.
Embora trate do mesmo tema, a tese nada tem a ver com a chamada PEC da Felicidade, proposta em 2010 — que não andou, segundo Leal, devido ao preconceito contra seu suposto subjetivismo. "O direito à felicidade já está positivado na Constituição, quando menciona o 'bem-estar' da população", garante.
Participação popular, busca da felicidade e direito aos meios para essa busca são os três pilares que sustentam uma gama de centenas de outros, com um alicerce importante. "Diante o desafio de tomar uma decisão pública dentre várias opções possíveis, deve-se primar por aquela que amplie a felicidade de todos no longo prazo", explica.
O "cartão de visitas" da tese é o voto do ministro Celso de Mello, do STF, no julgamento do direito de casais homoafetivos formalizarem união perante o Estado — clique aqui para ler. Para o ministro, o direito dos homossexuais está baseado, entre outras previsões constitucionais, no "direito à busca da felicidade". O voto citou artigo de Tourinho Leal a respeito.
Envolvido na pesquisa, o advogado viveu outra experiência que também virou livro. Na África do Sul, acompanhou o funeral do líder Nelson Mandela e a comoção nacional causada pela partida do responsável pela unificação de um país reconstruído graças ao respeito à história das vítimas da violência do apartheid, sem ceder à tentação do revanchismo. Para Leal, diferentemente dos sul-africanos, o Brasil está longe de fechar suas feridas justamente porque insiste em manter o ódio contra algozes da ditadura militar. Publicada este ano, a obra A Construção dos Direitos Fundamentais e a Esperança: Da África do Sul ao Brasil compara as diferenças e avalia os novos movimentos populares brasileiros sob o enfoque do que diz ter sido o combustível das manifestações de junho de 2013: a esperança.
Leia a entrevista:
ConJur — Como surgiu a ideia de uma tese sobre o Direito à Felicidade?
Saul Tourinho Leal — Tem coisas que a gente não consegue explicar. Em 2008, eu estava na sessão do Supremo Tribunal Federal acompanhando os julgamentos. Estavam decidindo se o estado de Pernambuco deveria indenizar um garoto que ficou tetraplégico após ser alvejado num assalto em Recife. De repente, o ministro Celso de Mello se opôs ao voto da relatora e concedeu o pedido. Dentre os argumentos, citou o "direito à busca da felicidade". Fiquei arrepiado. Eu era aluno do mestrado no Instituto Brasiliense de Direito Público e passei a estudar o assunto. Escrevi um artigo e publiquei no site do IDP. Anos depois, novamente no STF, vejo o ministro Celso de Mello mudar o tom de voz para se manifestar sobre o caso das uniões homoafetivas. A corte era pura emoção. O ministro menciona o meu artigo e usa-o como parte dos seus argumentos, permitindo a união homoafetiva no Brasil. Eu não acreditei. Como assim? Ali eu percebi que havia um propósito maior.
ConJur — Como esse conceito pode mudar as decisões políticas e judiciais?
Saul Tourinho Leal — Ele abraça duas premissas: na primeira, devemos considerar as consequências das decisões públicas. Depois, a meta de boa parte delas deve ser a ampliação da felicidade ao maior número de pessoas. “Boa parte” porque pode ser que, em alguns casos, esse raciocínio colida com os direitos das minorias. Nessa hipótese, o escudo da dignidade da pessoa humana é mais forte e o raciocínio não pode ser aplicado. Quanto às políticas públicas, vamos a um exemplo: ter um carro, uma moto, é sinônimo de liberdade, de autonomia, dois bens valiosos para a teoria da felicidade. Contudo, devemos pensar sempre no longo prazo. Quais os efeitos da explosão do número de veículos? Os engarrafamentos, os atrasos, o estresse, as batidas, a ampliação do valor das franquias de seguro... Isso é bom para a felicidade? Claro que não. Devemos expulsar as pessoas das cidades? Também não, elas são felizes morando ali. Então como decidir? Primeiro, sabendo o que é importante para as pessoas e o quanto isso afeta sua sensação de felicidade. Pedágio, rodízio ou transporte público? Podemos reposicionar a política e investir naquilo que, no longo prazo, faça as pessoas mais felizes.
ConJur — De que direitos estamos falando exatamente?
Saul Tourinho Leal — Primeiramente, o direito à felicidade pública, que é a participação popular. Recente estudo que comparou a felicidade dos cidadãos de diferentes cantões suíços concluiu que há variações quanto ao nível de felicidade de acordo com a extensão da democracia direta — como iniciativas populares, referendos, plebiscitos. Quanto mais direta é a democracia, maior é a felicidade. É uma pesquisa de Bruno Frey. Se compararmos os cantões em que esses direitos são mais amplos com os em que são menos, a diferença na felicidade é tão grande quanto se a renda tivesse duplicado. Depois, temos o direito à busca da felicidade, que é o direito de perseguir um projeto de satisfação de aspirações legítimas, desde que não haja violações a direitos de terceiros. Na sequência, o direito aos meios à busca da felicidade, que consiste, segundo Adam Smith, em assegurar às pessoas um pouco de segurança, os direitos sociais. Tudo em sintonia com a dignidade da pessoa humana, ou seja, o direito à felicidade não abraça prazeres perversos. Por fim, a ponderação: diante o desafio de tomar uma decisão pública dentre várias opções possíveis, deve-se primar por aquela que amplie a felicidade de todos no longo prazo.
ConJur — Quanto essa ideia é inovadora no Brasil?
Saul Tourinho Leal — Em 1822, quando D.Pedro I decidiu desobedecer às ordens de Lisboa e permanecer no Brasil, foi saudado com gritos de “Viva a Constituição” e “Viva El Rei Constitucional”. A frase dele foi: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, diga ao povo que fico!” Era o nascimento do constitucionalismo brasileiro. Debates do STF sobre células-tronco embrionárias ou uniões homoafetivas invocam o direito à felicidade. Decisões sobre a Marcha da Maconha e as políticas de cotas, apesar de não usarem a palavra “felicidade”, se valem da escola utilitarista, cuja meta é ampliar a felicidade dos povos.
ConJur — Quais as previsões desse direito no mundo?
Saul Tourinho Leal — A felicidade é um direito na Declaração de Independência dos Estados Unidos, nas Constituições do Japão, Coreia do Sul, da República Francesa de 1958, Butão, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, até chegar à ONU, que aprovou uma resolução indicando que os governos devem elaborar suas políticas visando à felicidade. É algo relevante. A Grã-Bretanha, com David Cameron, criou um órgão para mensurar o impacto das políticas públicas na felicidade das pessoas. A França fez o mesmo, com o suporte de dois Prêmios Nobel, Amartya Sen e Joseph Stiglitz. Pesquisei o desenvolvimento da jurisprudência sul-coreana, norte-americana e brasileira. É impressionante a identidade de temas fundamentados no direito à felicidade: proteção à propriedade privada, combate aos excessos da tributação, liberdade para se casar com quem se quer, necessidade de ser deixado em paz — ou direito ao esquecimento — e respeito à privacidade.
ConJur — Quando sua tese foi defendida e quando o livro será lançado?
Saul Tourinho Leal — Defendi na PUC de São Paulo em agosto de 2013, numa banca coordenada por Marcelo Figueiredo, após quatro anos de pesquisas em três continentes, passando por instituições como a Universidade Georgetown, nos Estados Unidos, e tendo encontros com pesquisadores como Carol Graham, referência na aferição da felicidade dos povos. Agora, saiu uma edição do livro dirigida a pesquisadores. Mais à frente, quem sabe, teremos uma edição comercial.
ConJur — Quais foram os questionamentos que ela sofreu?
Saul Tourinho Leal — Falam da subjetividade da expressão. Também temem uma banalização dos direitos fundamentais e os riscos de conferir uma carta em branco a quem toma decisões públicas. Mas a fluidez do conceito de felicidade não é motivo para se negligenciar o tema. Quando o intelectual foge de temas complexos, quem perde é a comunidade. Os métodos científicos são objetivos, mas a ciência visa à verdade, e o que é a verdade? Aí já há fluidez. Imagine o pântano no qual estaríamos se não tivéssemos nos empenhado em debater o conceito de dignidade da pessoa humana. O conceito de justiça é fluido, mas nem por isso Hans Kelsen deixou de investigá-lo. O direito à felicidade invoca liberdade. Liberdade é um novo direito? Invoca condições mínimas de existência. Isso é um novo direito? Quanto à carta em branco, não sou eu quem deve fazer esse controle. O que devemos é nos precaver contra a retórica delirante, demagógica. Falo da Prússia, de Cuba, do Butão e da Venezuela, nações que invocaram a felicidade esquecendo-se da sua base: a liberdade. Questionar é um dever científico. Quem o faz está exercendo o seu papel. Mas não podemos esquecer que investigar e insistir também é. E é o que eu tenho feito.
ConJur — Essa discussão se encaixa em situações concretas ou é só um alicerce para uma mudança de pensamento?
Saul Tourinho Leal — Ela é importante porque reposiciona os propósitos públicos. Se uma nação se escandaliza quando se fala em felicidade dos povos, pode acreditar que o tempo gerou uma adaptação perversa em seu povo e que seus intelectuais estão ocupados demais para se debruçarem sobre temas valiosos. Essa tese tanto responde a inúmeros dilemas contemporâneos com segurança, como relembra o verdadeiro eixo do pensamento relativo ao papel do Estado.
ConJur — Como positivar o direito à felicidade?
Saul Tourinho Leal — Se eu escrevo num texto legal: “todos têm o direito à alimentação”, eu positivei, mas nem por isso as pessoas deixarão de sentir fome se nada for feito. A proteção jurídica ao direito à felicidade já existe na Constituição, explicitamente. Os economistas não usam só a expressão “felicidade”, eles falam em “bem-estar”. E o que diz o preâmbulo da Constituição? Que o Estado Democrático brasileiro se destina a assegurar o “bem-estar” de sua gente. Recentemente, na Associação dos Advogados de São Paulo, a ministra Cámen Lúcia, do STF, disse que o Estado existe para que as pessoas tenham mais chances de ser felizes. A ministra sabe o que está falando. Já o direito à busca da felicidade, esse é uma expressão da liberdade. Para que as pessoas busquem sua felicidade, temos que assegurar-lhes um prato de comida, um teto para dormir embaixo, um hospital para combater os males e uma escola para lhes tirar da ignorância. São os direitos sociais. Ou seja, a felicidade já está positivada.
ConJur — É possível ajuizar uma ação tendo esse princípio como base?
Saul Tourinho Leal — Ajuizar, sim, mas ter a concessão da aspiração à felicidade, por parte de um juiz, não. Imagine um sujeito que ajuíza uma ação dizendo que quer ser feliz. Isso é brincadeira. É como ajuizar uma ação querendo um bife à milanesa porque a Constituição assegura o direito à alimentação. Nós temos instituições, o Judiciário não está aí para brincadeiras. O que pode acontecer é a pessoa pleitear, por exemplo, a cirurgia conhecida como de mudança de sexo e, em seus fundamentos, suscitar o direito à busca da felicidade. Aí, sim. Estaríamos falando de desdobramentos do direito à felicidade. Nessas hipóteses, é plenamente possível.
ConJur — O condenado tem direito à felicidade? Em que medida?
Saul Tourinho Leal — Qual a finalidade das leis penais? A felicidade dos cidadãos, incluindo-se, nesse cômputo, os próprios condenados, que também devem ser considerados. Vamos a um caso concreto: um jovem do interior de Minas Gerais, sem antecedentes criminais, foi preso em flagrante e denunciado pela prática do crime de furto, por haver tentado levar um pedaço de carne de um supermercado. Após a prisão, sofreu uma ação penal. A Defensoria Pública tentou paralisar a ação no Tribunal de Justiça, mas o pedido foi negado. Um novo pedido foi feito, ao Superior Tribunal de Justiça, que também o negou. Ele chegou até a Suprema Corte. Lá, a ação penal foi paralisada. Essa decisão do STF mostra que Cesare Beccaria está certo quando disse ser melhor prevenir os crimes que puni-los: “Esta é a finalidade precípua de toda boa legislação, a arte de conduzir os homens ao máximo de felicidade, ou ao mínimo de infelicidade possível, para aludir a todos os cálculos dos bens e dos males da vida”, disse Beccaria. Deixe que eu mostre outra perspectiva: Derek Bok foi reitor de Harvard. Para ele, vale à pena conhecer os efeitos negativos que a prisão impõe ao casamento e à paternidade, principalmente nas regiões urbanas. Bok sugere que o Legislativo pode rever a aplicação de penas de prisão obrigatória para delitos de drogas e outros crimes não violentos. Isso, para determinar se os efeitos de dissuasão são suficientes para justificar as consequências devastadoras para as famílias. O raciocínio encontrou amparo no STF por meio da jurisprudência dos crimes de bagatela, que aplica o princípio da insignificância a crimes como o narrado acima.
ConJur — A atual indústria do dano moral não é um exemplo do estrago que se pode causar com um conceito subjetivo? Se calcular a honra de uma pessoa gera inúmeras discussões, como avaliar o quanto vale sua felicidade?
Saul Tourinho Leal — O dano moral é uma conquista. Não podemos temer conquistas pelo mau uso que eventualmente se dê e elas. Inclusive, acho que estamos atrasados nesse tema. Hoje em dia, fala-se em danos hedônicos, uma nova dimensão a compor os danos morais. Há decisões nos Estados Unidos entendendo que a mera reparação pecuniária quanto à dor e ao sofrimento não englobaria os delicados aspectos relativos à perda da felicidade com o gozo da vida. Danos hedônicos são compensações a um indivíduo pela perda da capacidade de desfrutar os prazeres da vida. Dois outros elementos são as expectativas do indivíduo para o futuro, bem como o gozo de atividades passadas. Para ilustrar, podemos utilizar como elementos informadores do valor do dano hedônico a incapacidade de dançar, de nadar, de praticar esporte, de se exercitar ou de se envolver em atividades recreativas, de surfar, de tomar sorvete, de ter relações sexuais, de fazer tarefas domésticas, de brincar com os filhos ou de desfrutar da companhia dos amigos. São novas dimensões do dano moral ou, para alguns, um novo tipo de dano que merece reparação.
ConJur — Um conceito tão aberto não escancara a porta para o ativismo judicial?
Saul Tourinho Leal — Excessos não virão em razão do direito à felicidade. Kant defendeu a concepção de autonomia, cuja consequência é a dignidade da pessoa humana. Há decisões judiciais no Brasil determinando indenizações a pessoas que fizeram “gambiarras” de energia, um crime, com base na dignidade. A tese é a culpada? Claro que não. Eu tive o cuidado de trabalhar bem o suporte fático do conceito para não darmos espaço para fantasias. Participação popular de qualidade, liberdade, segurança e dignidade. É a base.
ConJur — Há quem diga que a Constituição de 1988 criou um arcabouço tão grande de direitos que eles não cabem no orçamento. A ideia de felicidade não esgarça ainda mais essa corda?
Saul Tourinho Leal — Adam Smith é um dos marcos teóricos dessa tese e não posso dizer que seja um defensor de um “Estado-babá”. Imagine que uma política pública tem que optar entre água limpa para todos e um tratamento experimental para uma vítima de enfermidade incurável, cuja perspectiva é mexer um dedo a longo prazo. Conheço um caso assim. Qual das decisões seria a mais adequada segundo a teoria da felicidade? Água potável para todos, sem dúvida. Por quê? Porque concretiza em maior dimensão as bases do direito à felicidade, principalmente a segurança. Além disso, a mitigação que gera sobre o outro lado não o destrói quanto à sua dignidade. Veja que o que fizemos foi reduzir os riscos do voluntarismo político ou judicial. Não é coisa de aventureiro.
ConJur — E quanto a instituições que defendem direitos difusos e coletivos, como o MP e a Defensoria Pública? Elas teriam esse bom senso ao exigir políticas públicas?
Saul Tourinho Leal — Se o fizessem, seria um excelente uso. Recentemente, a Procuradoria-Geral da República ajuizou uma ação no Supremo contra o crime de pederastia ou outro ato de libidinagem em lugar sujeito à administração militar. Fundamentaram o pedido no direito à busca da felicidade. Isso é ruim? Penso que não. É uma tese, uma forma de compreender o mundo. Cabe ao STF responder argumentativamente.
ConJur — A Justiça é a face do Estado da qual o cidadão menos duvida, mas sua sobrecarga ameaça esse título. Princípios abertos não a sobrecarregarão ainda mais?
Saul Tourinho Leal — O Supremo Tribunal Federal vira e mexe se queixa da quantidade de casos que tem que apreciar. Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso apresentou uma proposta visando conferir agilidade à corte. Qual é o propósito de uma corte como o STF? A felicidade das pessoas. E sabe onde isso está escrito? Na certidão de nascimento da jurisdição constitucional. A Constituição da Pensilvânia de 1776, nos Estados Unidos, criou o Conselho de Censores que, posteriormente, viraria o embrião da Suprema Corte. Foi dada a ele a prerrogativa de declarar leis inconstitucionais. Eu vou ler aqui o fundamento: “Quando for necessário à conservação dos direitos e felicidade do povo”. Olhe só. Princípios garantem a eternidade dos textos constitucionais. Não devemos temê-los, mas sim compreendê-los e dar-lhes a devida aplicação. O direito à felicidade eleva os propósitos do STF, não os deprecia.
ConJur — Pelo menos um voto no Supremo sua tese já tem a favor. Em que a citação feita pelo ministro Celso de Mello no caso do casamento homoafetivo ajuda a tornar esse entendimento mais prático?
Saul Tourinho Leal — O voto mostra um compromisso intelectual sincero do ministro em investigar qual a roupagem do direito à felicidade. Ele compreende que o direito está ligado à dignidade da pessoa humana. Para mim, essa é só uma das possibilidades. De todo modo, a manifestação de um humanista da envergadura do ministro Celso de Mello mostra que o assunto é levado a sério em suas múltiplas dimensões e que a Suprema Corte brasileira, na linha de outras respeitadas supremas cortes, como a norte-americana, vem utilizando esse direito para fundamentar decisões célebres expandindo o contato com os direitos fundamentais.
ConJur — Em 2010, a comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a PEC 19/2010, a chamada PEC da Felicidade, de autoria do senador Cristovam Buarque (PDT-DF). Mas a tramitação não andou e a discussão ganhou contornos caricatos. Em que essa proposta coincide com sua tese e no que ela ajudou ou atrapalhou?
Saul Tourinho Leal — Houve uma compreensão equivocada quanto à PEC, que não é somente de iniciativa do senador Cristovam Buarque. Há também uma proposta da deputada federal Manoela D’Ávila. O senador Cristovam é um educador. Ele foi reitor da UnB, governou o Distrito Federal, foi ministro da Educação, tem uma vida dedicada à educação. Ele merecia ser aplaudido, mas quando apresentou a proposta, imediatamente veio a galhofa: “eu serei feliz com uma piscina, então quero uma piscina”; “serei feliz com um carro novo, então quero um carro novo”. E por aí vai. É uma compreensão tão superficial que chega a ser perturbadora. Falar de felicidade, de bem-estar, vinculando isso a leis e políticas públicas, é algo respeitável. Para mim, a PEC tenta realçar um compromisso que a Constituição Federal já firmou. A diferença é que a Constituição usa o termo “bem-estar”. O mundo inteiro está discutindo esse tema, por meios de instituições e pessoas respeitadas. Todos vão te cumprimentar, sentar, ouvir e trocar ideias. Ninguém vai gargalhar, debochar ou tentar te humilhar.
ConJur — Em que o conceito de “felicidade interna bruta” como medição da riqueza de uma nação coincide com sua tese? A avaliação de uma nação pelo seu Índice de Desenvolvimento Humano e não mais pelo PIB é um caminho que levará à adoção da felicidade como critério?
Saul Tourinho Leal — A Felicidade Interna Bruta, nos termos do que foi feito no Butão, é perigosa. O governante, num gabinete, aponta o que ele supõe tornar a vida pública nacional mais elevada e, então, passa a perseguir isso com um porrete na mão. Sem liberdade, não há felicidade. A questão do IDH é diferente. Esse índice, cuja criação vem de Amartya Sen, o Nobel que ajudou Nicolas Sarkozy a mensurar o impacto das políticas na felicidade dos franceses, humaniza a questão do PIB. Vou dar um exemplo: num certo fim de ano, pesquisei o valor da passagem de avião para Teresina, no Piauí, e para Roma, na Itália. Era mais barato ir para Roma. Sabe por quê? Em razão do ICMS que incide no combustível do avião. Para quê? Incrementar o PIB. Recentemente, estive no Piauí. Vi centenas de jovens, nas pequenas cidades do sertão, conduzindo motocicletas, embriagados, e, em seguida, caídos no asfalto, feridos ou mortos. Isso gera PIB, porque precisa de ambulância, das próprias motos, da bebida que foi ingerida, dos equipamentos de hospitais, do enterro, de tudo. Mas é bom para nós? O IDH mostra que não. A vanguarda está em medir o bem-estar das pessoas, a felicidade, num viés quantitativo e qualitativo. O PIB seguirá seu caminho, mas sem monopólio.
ConJur — Países como Espanha e Turquia ampliaram direitos sociais nos últimos anos. É coincidência que a crise financeira internacional os tenha afetado com força?
Saul Tourinho Leal — Na ciência, precisamos provar o que afirmamos. Eu não consigo provar que a Espanha quebrou porque tentava garantir direitos sociais. O direito à felicidade envolve participação popular. Enquanto uma juventude urbana desempregada tomava a Puerta del Sol, em Madrid, no movimento Indignados, o monarca, Juan Carlos, em pleno século XXI, caçava elefantes em um safári em Botsuana, um lazer perverso que custa até 30 mil euros. Que tal? Não acredito que a débâcle [queda] passageira desses países tenha vindo do compromisso com os direitos sociais. Veio da violação a vieses do direito à felicidade. Direitos sociais trazem segurança. Eles são extraordinários.
ConJur — A “esperança” foi outro objeto de estudo seu. A Construção dos Direitos Fundamentais e a Esperança: da África do Sul ao Brasil, que está disponível para download gratuito no site do Instituto Brasiliense de Direito Público, diz que “a esperança é uma emoção universal que tem dado o tom da construção contemporânea dos direitos fundamentais”. Qual o contexto?
Saul Tourinho Leal — Estive na África do Sul no fim de 2013, no funeral de Nelson Mandela. O sentimento me permitiu descrever tudo o que compôs esse importante momento histórico, assim como desenvolver a temática da esperança na construção contemporânea dos direitos fundamentais. A trajetória da África do Sul é apresentada com suas conquistas em relação à união da população, à luta por igualdade e à manutenção de um Estado de reconciliação, exemplo para todos, quando considerado em seu contexto. Ao fim, com uma Constituição generosa, em 1996, a nação seguiu o caminho da reconciliação, fundamental no processo de aproximação de um povo dividido por tanto tempo. Percebi que líderes políticos que apostam na divisão, que sustentam o discurso do “eles contra nós”, que incitam ou toleram a violência contra cidadãos ativos, devem se conscientizar que estão plantando sementes do ódio que inevitavelmente florescerão.
ConJur — A comissão da verdade sul-africana buscou revelações, não revanchismo. Aqui, ainda se discute a revisão da Lei de Anistia. É possível uma pacificação, no Brasil, como aconteceu lá?
Saul Tourinho Leal — Na África do Sul, a Comissão da Verdade e Reconciliação visava tratar os assassinatos e torturas da era do apartheid. Foi uma experiência poderosa. O importante era ver os rostos, ouvir as vozes, ver as lágrimas das vítimas e também o choro dos agressores ao reconhecer sua conduta brutal e buscar anistia. Era a senhora falando sobre o filho que voltara para casa com o cabelo caindo, o corpo envenenado, moribundo. Tudo isso eu ouvi do amigo Albie Sachs, juiz da Corte Constitucional da África do Sul, que relatou vários casos em seu último livro,A Estranha Alquimia entre a Vida e o Direito, prestes a ser lançado no Brasil. Ele conta que Tony Yengeni pertencera ao braço armado do ANC, partido de Nelson Mandela, e foi torturado pelo sargento Benzien, que pedia anistia. A televisão mostrava a sessão da Comissão, com Tony pedindo que o sargento Benzien mostrasse como colocara grandes sacos molhados nas cabeças de prisioneiros. A Comissão pediu que alguém se deitasse no chão. O sargento Benzien se ajoelhou e segurou o saco por um bom tempo. Depois que ele se levantou, Tony pediu para que ele explicasse como um ser humano pode fazer isso com outro ser humano. O sargento começou a chorar. Ele desabou. São momentos como esse que a nação firma os valores da sua sociedade e constrói o princípio do “nunca mais”. Não posso julgar o cenário brasileiro, porque não o investiguei suficientemente, mas não me parece leviano afirmar que não há, entre nós, a mesma dimensão que há na África do Sul no que diz respeito ao compromisso em curar as cicatrizes do passado.
ConJur — Por quê?
Saul Tourinho Leal — A trajetória da África do Sul é apresentada com suas conquistas em relação à união da população, à luta por igualdade e à manutenção de um estado de reconciliação, exemplo para todos, considerado em seu contexto. Quando falamos em reconciliação como resultado da revolução calcada na esperança, o que estamos afirmando é que o ápice do movimento revolucionário ou da luta por direitos fundamentais deve ser, sempre, a reconciliação, jamais a revanche. No Brasil, temos alguns episódios que mostram, por exemplo, uma resistência imensa às mulheres politicamente ativas. Em 2011, a advogada Roberta Fragoso foi convidada pela Universidade de Brasília para participar de um debate sobre cotas raciais. Contrária à política, ao tentar falar, assustou-se com a gritaria. Chamada de racista, ouviu ofensas. Seu carro foi vandalizado. Nas portas, estava pichado: “Loira filha da p...”. Em 2013, a blogueira cubana Yoani Sánchez desembarcou no Recife disposta a discutir sobre Cuba. “Fora, Yoani!”, foi o que ouviu. Em seguida, um sujeito tentou fazê-la engolir notas de dólares, esfregando-as em sua face. Puxaram-lhe os cabelos. Na Bahia, proibiram a exibição de um documentário com a sua participação. Em São Paulo, novos protestos impediram-na de expor suas opiniões em um debate. Atitudes como essas nunca nos trouxeram nada de bom. Só nos dividiram, plantando o ódio e fazendo nascer uma revanche interminável. É uma atmosfera hostil.
ConJur — Qual foi a importância de Nelson Mandela, um advogado, para esse processo de pacificação?
Saul Tourinho Leal — Mandela fez um curso de Direito com dificuldade, reprovou em muitas disciplinas e exerceu a advocacia muito mais como instrumento de luta política do que qualquer outra coisa. Não penso que sua profissão tenha sido a razão do seu legado extraordinário. O jovem da etnia IsiXhosa virou um advogado militante e, posteriormente, um ativista político capaz de grandes renúncias pelo compromisso de livrar o seu povo doapartheid, o modelo da colonização promovido pela Grã-Bretanha que dividia o país em dois grupos: os dos brancos europeus e o dos não-brancos. De Soweto, nos arredores de Johannesburgo, Mandela, aquele homem alto, forte, carismático, praticante de boxe, que cultivava hábitos refinados, deu uma demonstração do seu caráter diante da condenação iminente à pena de morte. “Lutei contra a dominação branca e lutei contra a dominação negra”, disse. “Tenho cultivado o ideal de uma sociedade livre e democrática na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal no qual deposito a esperança de viver e alcançar. Mas, se for preciso, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer.” Essa foi a última declaração diante do juiz que tinha a sua vida nas mãos.
ConJur — Como se deu a implementação da atual Constituição da África do Sul?
Saul Tourinho Leal — Um episódio explica bem isso. Em 1995, o então presidente Nelson Mandela, valendo-se da Lei de Transição do Governo Local [Local Government Transition Act], usou o poder de ampliar suas próprias competências e alterou a lei, passando a determinar os locais das eleições municipais seguintes, o que favoreceria seu partido, o ANC. O ato foi questionado na Corte Constitucional. Mandela havia sido eleito por uma esmagadora maioria de votos, tinha uma popularidade inimaginável e apoio majoritário no Poder Legislativo. A Corte Constitucional derrubou a proclamação do presidente e a alteração feita na lei. Violava a Constituição esse tipo de delegação, que deixava o presidente da República gozando de poderes ilimitados. Nelson Mandela convocou uma declaração pública e afirmou: “Esse julgamento não foi o primeiro, nem será o último, no qual a Corte Constitucional ajuda a ambos, o governo e a sociedade, a garantir um governo constitucionalmente eficaz”. Ele cumpriu a decisão sem discutir. Ali nascia o Estado constitucional sul-africano contemporâneo.
ConJur — Brasil e África do Sul têm coincidências entre suas Constituições e cortes supremas?
Saul Tourinho Leal — São trajetórias diferentes. Contudo, os dois países têm um compromisso com a solidariedade, que, para os sul-africanos, se chama Ubuntu. Essa sintonia é virtuosa, pois estabelece um novo constitucionalismo, marcado pelas seguintes características: esperança como sentimento coletivo agregador; recusa à revanche em benefício da reconciliação; e construção de um constitucionalismo transformador. Deixe que eu leia o preâmbulo da Constituição sul-africana para você: “Nós, o povo da África do Sul, reconhecemos as injustiças do nosso passado; honramos aqueles que sofreram por justiça e liberdade em nossa terra; respeitamos aqueles que trabalharam para construir e desenvolver o nosso país, e acreditamos que a África do Sul pertence a todos que nela vivem, unidos na nossa diversidade”. É de arrepiar ou não é?
ConJur — A Constituição sul-africana é considerada generosa e complexa como a nossa?
Saul Tourinho Leal — Quanto à generosidade, não imagino nenhuma outra Constituição tão generosa como a desses dois países. Ambas fundam a noção de constitucionalismo transformador, comparável a um agente cuja missão é induzir mudanças sociais por meio do processo político, sem violência e com base legal. Há um compromisso com as futuras gerações. Ela tenta manter vivo o senso de comunidade, o “Ubuntu”, a filosofia africana que foca nas alianças e relacionamento das pessoas. “Eu sou, porque nós somos”, dizem os sul-africanos. Incorporado como um dos princípios fundamentais da África do Sul, o “Ubuntu” também é utilizado para enfatizar a necessidade da união e do consenso nas tomadas de decisão, bem como na ética humanitária envolvida nessas decisões. Essa inspiração e comprometimento estão presentes aqui também, por meio da fraternidade e solidariedade.
ConJur — Como funcionam institutos como liberdade de imprensa e política? É possível comparar aos do Brasil?
Saul Tourinho Leal — Há liberdade de expressão como em nenhum outro país africano e a política tem uma efervescência impressionante. Mas há costumes políticos que precisam ser aperfeiçoados, seja lá, seja aqui. Vou falar do Brasil. Atualmente, uma praga a ser debatida é a inauguração de coisas públicas. Elas ofendem a impessoalidade, a moralidade, a paridade de armas da balança política e até mesmo a concepção moderna de República. Ministros de Estado inventam inaugurações para levar aliados políticos a tiracolo e, assim, granjear dividendos do poder. O mesmo se dá com vereadores, prefeitos, deputados, governadores, secretários, senadores e até presidentes de tribunais. Isso viola a Constituição, porque personaliza algo que não deveria ter cara. Esses personalismos políticos surgem como desafios, lá e aqui.
ConJur — Há decisões da corte sul-africana citadas no Brasil e vice-versa?
Saul Tourinho Leal — A África do Sul menciona muito a Inglaterra, Canadá e Estados Unidos. O Brasil aprecia a Alemanha, França, Itália, Portugal e Estados Unidos. Eventualmente, a Colômbia, se tivermos tratando de direitos sociais. Não tínhamos decisões sul-africanas citadas frequentemente por aqui, mas isso começa a mudar, e rápido. Casos relativos ao direito à saúde e à moradia são lembrados cada vez mais por aqui.
ConJur — E o que eles têm a nos ensinar?
Saul Tourinho Leal — A África do Sul, tendo de optar entre o medo e a esperança, na tentativa de estabelecer a sua ordem constitucional, optou por esta última. Não que não tenha sucumbido à tentação do ódio em muitos episódios. Sabemos que a violência deu o tom das manifestações em certas ocasiões. Contudo, a meta dos guerreiros da liberdade nunca foi o ódio ou a revanche. O sentimento condutor era a esperança de que, um dia, todos estariam juntos, vivendo na terra que escolheram para sua existência. Isso é extraordinário para nós. Nações que se mantiveram firmes na esperança conseguiram alcançar seus objetivos e, com a chegada de uma ordem legítima, abraçaram a reconciliação. É um novo ciclo das lutas populares por direitos fundamentais que merece o nosso estudo, compreensão, análise e discussão.
Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico
Revista Consultor Jurídico, 7 de setembro de 2014, 07:52
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