Torturaram e filmaram...Mas jabuti não sobe em árvore! Então, o que houve?
Nas prisões tudo está tão pronto para ruir que parece ser fruto de método
Recebi um vídeo contendo alguns minutos de barbárie e tortura de um preso de 22 anos no interior do Presídio de Anápolis (GO). É algo inimaginável. Mandei para Marcos de Vasconcellos, do ConJur, que igualmente se apavorou. Nunca tínhamos visto algo semelhante. Resolvemos não colocar o vídeo na rede. A notícia já havia sido publicada (ver aqui). Mas o vídeo que recebi é mais completo. Em três partes. E o paroxismo: de tão violento, ninguém consegue vê-lo até o fim. Um querido amigo meu, advogado e professor catedrático de importante universidade, teve náuseas e passou mal depois de ver o vídeo.
O jovem de 22 anos — que, segundo informações, sofre de debilidade — foi preso preventivamente acusado de estupro em Goiás. Atiraram-no no meio de mais de uma dezena de presos. Todos sabem o que ocorre com quem é estuprador ou quem é simplesmente acusado de tal crime. No caso, empalaram o infeliz, chegando a lhe perfurar o intestino. E além de o moerem a pau, ataram um fio nos órgãos genitais, puxando-o por esse fio. O preso sangrava. E tudo foi filmado. Eis a pós-modernidade. Sim, terrae brasilis, a grande jabuticaba contemporânea, ano de 2014. Sob a conivência do estado, somos a barbárie.
Eis o paradoxo: ao mesmo tempo, o episódio mostra elementos pré-modernos (a tortura, o empalamento), a modernidade (o sujeito solipsista fazendo a “sua justiça”) e a pós-modernidade (tudo vira narrativa; o fato sendo levado de forma instantânea para o resto do mundo e... a indiferença diante desse grau zero de sentido). Bingo!
De todo modo, como sabe pela epistemologia da vida, jabuti não sobe em árvore. Ou foi gente ou enchente. Em que circunstância foi decretada a preventiva? Quais os elementos existentes? Houve parecer do Ministério Público? O preso recebeu advogado? E o que ele fez? E o diretor do presídio? E os carcereiros? Qual é o grau de responsabilidade de cada um por tudo isso? Eis o busílis da questão.
Vendo o vídeo e sabendo dos detalhes sórdidos, fico pensando se ainda temos chance de concretizar uma democracia. Gastamos rios de dinheiro em pós-graduação, mandamos gente para estudar no exterior (como nenhum país do mundo), damos licença para juízes, promotores, procuradores e defensores para cursarem pós-graduação. Escrevemos milhares de livros sobre a dignidade da pessoa humana. Sobre o devido processo legal. Sobre tratados internacionais. Sobre a luta contra a tortura. E somos atropelados pelo primeiro presídio da esquina. Pedrinhas, Cascavel, Central de Porto Alegre, os containers do Espírito Santo, cabeças cortadas e chutadas como pelotas de futebol, facções que compram e administram pedaços dos presídios, acordos de policiais com chefes de facções para que o presidio “viva em paz”, presos que tem de escolher para qual das facções se entregará já na entrada da “cana”, familiares que tem de depositar dinheiro nas contas dos chefes de galerias para pagar os seguros de “bunda” para seus filhos e/ou pagar a droga utilizada diariamente ou ainda para não dormir em pé... Tudo isso é Pindorama. Tudo isso é terrae brasilis. Vejam a foto do infeliz da hora. Esse de Goiás.
As informações dão conta de os promotores de Justiça Adriana Marques Thiago, Silvana Antunes Nascimento, Publius Lentulus Alves da Rocha e Maysa Morgana Chaves pediram o afastamento do Diretor do Centro de inserção Social de Anápolis (só não entendi por que tantos promotores tem de assinar juntos um pedido). De todo modo, é boa a notícia. Ainda não sei o resultado. Mas o interessante é como a novilingua de 1984, de George Orwell, fez escola: o local medieval em que ocorreu a barbárie é chamado de Centro de Inserção Social! Fantástico. Do mesmo modo que, na obra 1984, o Ministério da Guerra era chamado de Ministério da Paz e o da fome... de Ministério da Fartura! Bingo de novo!
Este é um caso que vem a lume porque os presos filmaram os mínimos detalhes, inclusive do empalamento. E os demais casos sobre os quais não ficamos sabendo? Os casos “invisíveis”. Isso é assim porque ninguém se importa com a população carcerária do Brasil. Ninguém se importa com mais de meio milhões de pessoas presas. Eles são invisíveis. Descartáveis.
Nossas autoridades — e aqui não escapa ninguém — poderiam ao menos serem utilitaristas ou fazer uma análise econômica. Não precisa(ria)m ser humanitários. Pode(ria)m até odiar a população carcerária. O que eu pediria é que sejam “espertos economicamente”. Isto porque é um péssimo negócio gastar mais de R$ 2 mil por mês e ter certeza que o preso sairá pior do que entrou. Repito: é um péssimo negócio. As autoridades, assim, deveriam pensar utilitaristicamente.
Quando Foucault escreveu Vigiar e Punir, começou a obra relatando tortura, esquartejamento de presos, desmanchados por cavalos que arrancam seus membros. Isso antes de Beccaria. Pois passados mais de dois séculos, ainda vemos presos sendo empalados, abusados, castrados, isso para dizer o menos. Como um sujeito desse sairá do presídio? Querem que ele seja um cidadão? Ora, ora.
Escrevo esta coluna profundamente chocado. Indignado. Em tempos de campanha eleitoral, fala-se em segurança pública. E na cozinha de cada governo de Estado federado — sob o olhar convivente do governo federal (que não pode ser absolvido, porque a estrutura nacional para proteger os direitos humanos é enorme e parece que pouco faz, bastando ver o episódio de Pedrinhas) — há tortura. Empalamentos. Corte de cabeças. É hipocrisia manter secretarias de direitos humanos fazendo andanças de cima para baixo com muito blá blá blá, se, ao mesmo tempo, nas nossas barbas — mas nas nossas barbas mesmo — em plena democracia, tortura-se cotidianamente, das mais variadas formas. Anápolis é bem pertinho de Brasília, pois não?
Aliás, dias depois desse episódio em Anápolis, outro preso foi assassinado. Há denúncias de constantes violações de direitos humanos, violência sexual e tudo o que o leitor está imaginando. No Rio Grande do Sul, um galo (sim, uma ave) foi “detido” portando tornozeleira, que deveria estar em um preso. Esse preso deveria estar recolhido, porque não tinha o direito à tornozeleira. Mas não tinha vaga no presídio. E um comerciante de vila foi morto por um sujeito portando tornozeleira (que deveria também estar preso). Mas, repita-se, não tinha vaga. E não tem. E, se tem, é em um amontoado. Colocam os presos feito bichos. E depois querem que saiam como pessoas. Pobre gente. Pobre humanidade.
Os invisíveis não merecem o olhar do Estado. O mesmo Estado que prefere gastar o dinheiro com Michel Teló, que recebe mais de R$ 4 milhões para levar a sua “arte” ao povo pindoramense. Só com o dinheiro a ser dado a Teló daria para arrumar celas individuais em Anápolis. E impedir que presos sejam, de forma medieval, empalados.
Aliás, se for verdade o que disse o delator da Petrobrás, em vez de 3% que era destinado como corrupção em cada contrato, penso que apenas um por cento já daria para tornar os presídios um lugar menos bárbaro.
Numa palavra
Poderia ter explicado melhor esse negócio das tornozeleiras de monitoração eletrônica, que não são usadas para aquilo que a LEP prevê, mas como sucedâneo de vagas em presídios; e, o que não é menos importante: sem qualquer discussão com a sociedade. Sim, porque se é para “acabar” com os regimes aberto e semiaberto, que se modifique a LEP pelos canais políticos e institucionais adequados. Mas isso não pode ser feito em gabinetes, seja o de algum Superintendente de Serviços Penitenciários, seja o de algum juiz, ou ainda para acrescentar mais dados sobre a realidade prisional. Mas o tema da Coluna não é propriamente esse.
De todo modo, esse é o estado d’arte do sistema. Quando se vê o que ocorre em uma casa prisional, a impressão que se tem é a de que se trata de um “acidente esperando para acontecer”, para parafrasear a feliz expressão dos norte-americanos (accident waiting to happen).
Sim, porque está tudo tão pronto para ruir, para explodir, que parece ser fruto de método, e não de mera omissão ou descaso. A linha que divide Pedrinhas de qualquer das grandes casas prisionais não é traçada pelo Poder Público, se é que me faço entender.
É igualmente curioso que grande parte da população viva absolutamente alheia a isso tudo, como se não lhe dissesse respeito. Converso com pessoas que não são “do ramo” (e até com algumas que são, ou deveriam ser) e o resultado quase sempre é o mesmo: que se lasquem os presos, que já gastamos demais com eles etc. É uma desumanidade e um erro de cálculo (político e econômico). Esse mesmo sujeito que quer ver o preso “morto” (muitas vezes, sem aspas) fica muito surpreso e indignado quando o egresso aparece, de arma em punho, para lhe tomar algum bem.
A verdade é que no presídio se combinam as nossas misérias moral, política e econômica. O presídio não deixa de ser, assim, um espelho da sociedade (como é, por exemplo, o Congresso Nacional; de onde vem os “nossos políticos”? É impossível resistir a um programa eleitoral “gratuito” — para quem? — do início ao fim. Bom, o que dizer da “Lei da Ficha Limpa”? — “Não deixem que o ficha-suja se candidate, porque se não eu... o elegerei!” Bingo pela terceira vez! É desnecessário recorrer a Ingeborg Maus e à figura do “superego da sociedade” para que nos demos conta do absurdo. O espelho quebrou.
Por cansaço epistêmico e sem condições de continuar a escrever, em face de minha LEER (Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo), a Coluna de hoje para por aqui. Sem condições psicológicas para continuar. No meio de tanta hipocrisia.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 11 de setembro de 2014, 08:00
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