quinta-feira, 4 de setembro de 2014

MATAR O GORDINHO OU NÃO? O QUE AS ESCOLHAS MORAIS TÊM A VER COM O DIREITO


Matar o gordinho ou não? O que as escolhas morais têm a ver com o Direito?




No seminário sobre improbidade administrativa promovido pelo Conselho da Justiça Federal nos dias 21 e 22 de agosto, um dos assuntos pelos quais fui abordado nos bastidores foi a minha diferenciação entre decisão e escolha. Na própria conferência dei uma pincelada sobre esse tema. Em algumas rodinhas, tentava explicar essa minha tese, advinda da imbricação que faço da hermenêutica filosófica com a teoria integrativa de Dworkin. A soma disso rendeu a Crítica Hermenêutica do Direito, que procuro explicar no recente Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Muitos me indagavam se isso não me transformava em um positivista exegético... Candidamente, respondia que não e que isso tem sido explicado por mim já há mais de vinte anos.

Um dos pontos que sempre deixo claro é que o direito, no segundo pós-guerra, assume-se como um novo paradigma. A Constituição virou norma. Observe-se que nos EUA, bem antes disso, é pertinente observar que a Constituição deles não sofreu qualquer influxo direto do pós-guerra; na realidade, o pós-guerra da Europa Continental é o pós-guerra civil dos americanos (sempre é bom diferenciar estas tradições, até porque, por aqui, trabalhamos com ambas).

Sigo. O direito havia fracassado com as duas grandes guerras: genocídios e todos os tipos de tragédias nas e pelas quais o direito nada pode fazer ou resolver. Eis que, transformadas as constituições em norma, o direito assume uma faceta de transformação social. O ideal de vida boa é transportado para “dentro” dos textos. O velho positivismo, que havia cindido direito e moral, agora é (ou deveria ter sido) suplantado pela tese da cooriginariedade entre direito e moral (de novo, uma observação necessária: a discussão norte-americana se dá quase que paralelamente a isso; por lá, o positivismo jurídico ainda ocupa o mainstream, sem essa ênfase toda no anti [ou pós] positivismo).

Isto quer dizer, no mínimo, que a moral não pode ser corretiva. Moral não corrige o direito. Isto também quer dizer que uma decisão jurídica não é uma “questão de moral ou de filosofia moral”. A partir disso tudo, venho sustentando que os juízes tem responsabilidade política. Eles cumprem um papel. Para entender essa questão, basta ter em mente a alegoria ou metáfora dos dois corpos do rei, que aconselho sempre a leitura.[1] E assim por diante (já escrevi tanto sobre isso que hoje sofro de LEER – Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo).

Esta coluna, assim, é somente para relatar um pouco das discussões que venho travando e as que travei nos bastidores do seminário, assim como em outros congressos (como no da OAB do Paraná, no dia 15 de agosto).

Sempre aparece alguém para falar do Michael Sandel, que vende um montão de livros para os juristas. O que é fazer a coisa Certa? perguntará Sandel em um dos seus livros. Em muitos cursos de graduação e pós, estão discutindo os dilemas morais que o professor de filosofia de Harvard levanta, como se isso fosse uma discussão de e sobre o direito. Rechaço isso. Os exemplos apresentados pelo Sandel tais como o “trolley dilemma” (Dilema do Vagão) servem como pontos de partida para a problematização aceca dos sistemas éticos. Ou seja, tem uma finalidade didática e uma abordagem específica. 

Para delírio de operadores do direito (estou usando a palavra com um tom um tanto sarcástico, confesso), os exemplos acerca das “escolhas morais” que devem ser feitas fluem como se fossem um bálsamo. A partir dos exemplos de Sandel, já começam as adaptações... E os ativismos... E os decisionismos... E, lógico, as “escolhas” erradas. Claro que as vezes, a escolha é acertada... Mas um relógio parado também acerta a hora duas vezes por dia.

Vem Sandel e diz: você está em um trem que tem pela frente cinco pessoas... mas tem um desvio que pode ser feito, onde está um gordinho... O que você faz? Salva as cinco pessoas, matando o gordinho?[2] Na sequência: e se você está em uma plataforma do trem e este matará cinco pessoas... Mas você pode salvá-las, derrubando um gordinho sobre os trilhos, parando, assim, a trajetória do trem. No primeiro, as pessoas dizem que matariam o gordinho; na segunda, não, porque teriam que empurrá-lo... Ou não. E daí? O que isso tem a ver (diretamente) com o direito? Serve, sim, para discutir filosofia moral e correlatas; mas, para o direito, uma aplicação direta só fragiliza sua autonomia.

Permitam aqui desfazer qualquer tipo de mal entendido: sei que Sandel é um jusfilósofo dos bons. Nada tenho contra o seu célebre curso Justice, no qual trata, em linguagem direta, desanuviada e sem imposturas, do pensamento de gente como Aristóteles, Kant, Bentham e Rawls. É uma prova, aliás, de que clareza e simplificação não são sinônimos. Também, endosso sua postura de tentar resgatar o debate público, em especial o político, das trevas onde se encontra hoje em dia. Ao demonstrar que problemas morais têm repercussão no âmbito político (na construção de uma sociedade justa etc.), Sandel acerta na mosca.

Aliás, também Dworkin — fazendo aqui um brevíssimo “parênteses” — é um autor identificado com essa postura:[3] a de participar ativamente do debate público, tentando ultrapassar a barreira entre a linguagem profissional, acadêmica, e as questões que ocupam a ordem do dia. O seu Is Democracy Possible Here? é um dos muitos bons exemplos disso. Neste ensaio, Dworkin propõe que se faça uma espécie de depuração do debate político norte-americano, polarizado entre Democratas e Republicanos. Dworkin procura estabelecer um common ground entre adversários políticos (e não inimigos) que torne a discussão autêntica e produtiva. Concordamos que valores como dignidade, igualdade e democracia são importantes (ainda que discordemos a respeito do que estes conceitos significam)? Eis aí um bom ponto de partida.

Retomando, eu acho que as lições de Sandel, se bem lidas, fazem (muito) mais bem do que mal ao debate público e, mesmo, à argumentação jurídica. Mas seus exemplos devem ser lidos com uma advertência (deveriam carregar uma tarja): “você, que escolhe se mata ou não o gordinho, não está agindo como um jurista”. O agente moral que deve fazer esta escolha não representa um juiz em sua tomada de decisão enquanto agente público. Desenvolvo isso ad nauseam em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 

Voltemos ao exemplo do gordinho e à eventual moralidade do assassinato. Sandel utiliza esse problema para ilustrar as posturas utilitaristas. A morte de uma pessoa seria preferível à morte de cinco. Porém, a audiência não consegue universalizar esse princípio: a maioria fica desconfortável em assumir a responsabilidade por empurrar o gordinho nos trilhos; e isso leva a reformular, ou a refinar, o argumento inicial de que a vida de muitos vale mais do que a vida de um só. Não precisamos ir muito longe para sermos apresentados a uma versão preliminar do conceito de dignidade humana, pela qual a vida humana tem uma dimensão não instrumental.

Certo. Mas um jurista não está em condições de fazer este tipo de escolha fundamental (entre o utilitarismo e a dignidade, por exemplo). Para ser bem claro sobre esse ponto: já há um sistema (de regras, princípios etc.) que lhe antecede e que lhe coloca em condições de dizer algo. Ninguém quer saber se o juiz do caso é pragmaticista, consequencialista, ou se ele age com base em princípios morais (quais? de quem?). Melhor dito: o Direito democrático não pode depender disso.

É claro que, dada a cooriginariedade entre Direito e Moral (e o fato de o comando jurídico não poder contrariar o conteúdo moral, apesar de com este não se confundir), o argumento jurídico é, radicalmente, moral (por isso Dworkin irá ainda mais longe e dirá que o Direito é um branch da Moral). Mas a moralidade que o jurista articula quando argumenta não é a suamoralidade privada; não é a mesma que governa suas escolhas pessoais. A moralidade pública e política é outra, e gira, em Estados Democráticos ao menos, em torno de um sistema de direitos. Você tem ou não tem um direito? Essa resposta depende de uma argumentação moral, e o juiz tem areponsabilidade política de desenvolvê-la de forma adequada. Não depende de uma escolha.

Porque não posso exigir que o Estado me forneça pescoços de galos-índio!
Tenho tentado mostrar esse grau de autonomia do direito. Ele não pode ser corrigido por subjetivismos, seja com que roupagem for, se éticas ou morais ou moralizantes — por exemplo, a autorização de julgamento por equidade, presente também no projeto do novo CPC, jamais poderá significar um álibi para que o juiz se afaste do sistema de direito e julgue conforme critérios morais, econômicos, políticos, etc. Nessa linha, tenho utilizado algumas ilustrações. Confesso, ilustrações duras e até antipáticas. Mas bastante didáticas e isto ninguém pode negar! Por exemplo, um aluno de medicina ou biologia alega objeção de consciência para não frequentar a cadeira de anatomia, onde são feitos exercícios com animais (dissecação). Entra em juízo e pede que a Universidade lhe proporcione um curriculum alternativo. O judiciário concede a ordem. Qual é o problema dessa decisão? Sem dúvida, a decisão é equivocada. Sem discutir o direito dos animais (essa é outra questão), não parece constitucional que o restante da sociedade transfira recursos para proporcionar o bem estar da consciência moral do nosso pretendente a esculápio. O juiz terá que responder a algumas perguntas, como: há um direito fundamental a cursar medicina? Se não há, o pleito não vinga. Segundo: a conduta é universalizável? Um estudante de direito pode alegar problemas morais e não cursar direito penal, por exemplo? E na engenharia, pode o estudante exigir um currículo próprio? E a isonomia, a igualdade, a república, etc...onde ficam? E os recursos, que são de todos, podem ser desviados em favor de um?

Pais que professam religião que proíbe transfusão de sangue levam seu filho ao hospital. O menino está com a vida em risco. Estado grave. Os médicos prescrevem operação com transfusão de sangue. Indagam aos pais que vedam o procedimento. A criança morre. Os pais podem ser processados por homicídio? Este caso ocorreu há pouco tempo. O Superior Tribunal de Justiça entendeu que os pais não devem ir a júri, porque agiram sem dolo eventual. Qual é o busílis? Os pais têm direito a assim proceder? Vejamos. Não devemos misturar moral com direito e nem religião com direito e tampouco religião com medicina. Os médicos não deveriam ter consultado os pais. Os pais não possuem o direito fundamental a que seu filho não faça transfusão de sangue. Seu direito de crença não vai ao ponto de sacrificar uma vida. Se dermos o direito aos pais de veto a um procedimento imprescindível prescrito por esculápios entendidos no assunto, também teremos que aceitar que, daqui há um tempo, algum órgão público (MP ou Defensoria) ingresse com ação de danos morais contra o hospital que salvou o filho de um casal religioso (na terra da Jabuticaba, quem duvida é louco...). Afinal, poder-se-ia alegar que, ao salvar-lhes o filho, o hospital constituiu um dano moral na vida dos que professam a crença, porque sangue impuro estaria circulando nas veias do paciente (ou algum argumento desse jaez). Exageros meus à parte, nesse sentido o STJ acertou, embora não tenha desenvolvido à saciedade uma argumentação que possa servir para casos futuros. Não basta dizer que não há dolo eventual. Há que fixar doutrina para casos futuros. O direito deve superar a moral e as crenças pessoais em uma coletividade.

Mutatis mutandis, isso se aplica aos casos de pessoas que exigem, judicialmente, que um concurso público seja feito em outro dia que não aquele em que a religião do utente permita trabalhar ou exercer atividades. Ora, não parece que exista um direito fundamental a que o utente faça aquele concurso específico. Por que os demais concidadãos devem transferir recursos para proporcionar o bem estar de consciência de um individuo, isoladamente? Eu e você temos o direito de crer (ou não) no que quisermos: posso acreditar que se engolir três pescoços de galos-índio por dia vou purificar minha alma e assegurar meu lugar aos céus. Mas isso não me dá o direito, caso não tenha eu condições financeiras, de pleitear judicialmente ao Estado que me forneça um caminhão de pescoços sempre que necessitar (leiam o Post Scriptum). Exageros (de novo) à parte, fazer escolhas religiosas implica ônus. Muitos. Mesmo que a Constituição garanta a liberdade de credo, isto não quer dizer que tal direito se converta em direito subjetivo a obter aquilo que acredito para todas as hipóteses.

Numa palavra final:
Há hoje o "imaginário Sandel”, presente na doutrina das chamadas "escolhas trágicas" (sic) que o juiz seria levado a tomar, como se os dilemas morais apresentados fossem os casos difíceis do direito. Nesta linha dizem, equivocadamente: "quem deve morrer para que a decisão judicial em que se determina o fornecimento de leito a X seja cumprida"... Sobre isso escreverei em outra oportunidade. Em conferência que ministrei, meses atrás, aos novos juízes do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), tratei desse assunto.

De todo modo, o ponto é: a impossibilidade de transplantar a filosofia moral, sem mediação, para o Direito — coisa que acontece com quem trabalha com o paradigma das tais "escolhas trágicas", por exemplo. No âmbito judicial o juiz não é um agente moral que age guiado por suas convicções pessoais; diante da responsabilidade política que possui, a resposta jurídica decorre de uma decisão fundamentada no direito. Por isso, venho insistindo que, nodireito, temos decisões e não escolhas.

Post scriptum:
Esta é uma coluna conceitual. Trata de uma discussão sofisticada sobre a relação entre direito e moral. Espero que os comentaristas da ConJur não se digladiem em torno dos exemplos que citei. São apenas exemplos para discutir o tema. Já aviso que não gosto de engolir pescoços de galos-índio. Quem não tiver condições de discutir o cerne do problema aqui trazido, não leia até o final e poupe os demais leitores de observações periféricas, ideológicas ou de cariz idiossincrático (algo como “não entendo e não gosto” ou “não gosto do foi escrito porque não gosto do articulista”). Ah: não estou comparando a crença sobre proibição de transfusão sangue com qualquer crendice (de brincadeira ou séria). Cada crença têm o direito constitucional de ser respeitada...desde que não coloque em risco direitos humanos-fundamentais, como, por exemplo, a vida de alguém. Estamos combinamos?



[1] A ConJur trouxe, recentemente, um exemplo de um magistrado que olvidou possuir “dois corpos”, o dele mesmo (natural e representativo da pessoa humana que é), e o do juiz (corpo místico, superior ao primeiro, e no qual se concentra sua responsabilidade política). Ver aqui. Por mais horrendo que seja o crime praticado pela ré (ela ajudou o namorado a estuprar, por várias vezes, sua filha de oito anos e a abusar sexualmente, de outras formas, da filha de seis), não estava o magistrado autorizado a usar palavrões em sua sentença — nas palavras dele: “Eu não sei se eu já disse algum palavrão na minha função de juiz, mas você é provavelmente a puta mais desprezível que eu já encontrei na vida.” A questão vai além da quebra do decoro judicial, pois indica julgamento com parcialidade, apartado da responsabilidade política. Em outros termos: o juiz americano decidiu com base em seus sentimentos pessoais, preso as carências e imperfeições do seu “corpo natural”, deixou de lado o “corpo místico” do qual deve se valer todo e qualquer magistrado no exercício da nobre e difícil atividade judicante.

[2] No exemplo original do Sandel o desvio acarretaria na morte de um trabalhador. Aqui preferi colocar o gordinho por critérios, digamos assim, isonômicos, não necessitando figurar somente na hipótese em que teria que ser empurrado para a morte.

[3] Essas questões vem sendo estudas na Pós-Graduação da Unisinos (CAPES 6). Recentemente orientei a tese de doutorado de Francisco Motta, que, de forma brilhante, faz uma análise hermenêutica da teoria integrativa dworkiniana. Em breve, em livro.



Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.



Revista Consultor Jurídico, 28 de agosto de 2014, 08:00

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