Em 2011, a quando a PEC 37 apareceu no cenário, poucos foram os que a comentaram. Por mais que alguns, desde aquela época, já tivessem se pronunciado com críticas certeiras sobre o absurdo que ela constitui, em especial do ponto de vista da democracia, seu sentido, efeitos e consequências ainda não estavam em pleno debate.
Por outro lado, atualmente, isso vem acontecendo, felizmente, e de forma até acalorada, quando autores conhecidos da doutrina brasileira vêm defendendo a PEC sob argumentos de legalidade e segurança jurídica e outros clamando pelo reconhecimento de seu caráter absurdo, em violação do princípio da (ir)razoabilidade — ao menos, como o concebemos, e também daquele outro, que lhe é complementar — e, logo, dele se deve diferenciar — o da proporcionalidade, por ocasionando um desvio de poder abusivo para o Poder do Estado que já se mostra hiperdimensionado, como aquele governamental. Estamos, a seguir esta última tendência, à qual me filio, diante de flagrante inconstitucionalidade originária, portanto, uma ilegalidade a ser repelida por todos os meios jurídicos, políticos e político-jurídicos — como entendemos serem as ações de controle de constitucionalidade — previstos entre nós.
Muito interessante é como, junto aos argumentos daqueles que de modo enfático se colocam a favor da Proposta, argumentos supostamente técnicos têm sido invocados demonstrando total desatualização e até mesmo desconhecimento jurídico básico — e não por não os possuírem quem os maneja, mas por motivos claramente ideológicos. Não é mais tempo de se sustentar argumentos com base em quimeras como a “vontade do legislador” e nunca foi tempo, desde a previsão entre nós do artigo 5º, inciso Lv da CF88, de se tratar inquérito policial como mero procedimento administrativo, ou ainda de intencionalidade de normas constitucionais, as quais, sob a visão desse tipo de intérprete, recebem a determinação de uma finalidade que não é a das normas constitucionais, muito menos de se invocar, como uma bandeira, o tema da legalidade, afirmando-se que a PEC 37 veio dizer o já dito pela Constituição e pelo Código de Processo Penal, outro equívoco por desconhecimento (doloso?) de hermenêutica, em particular, a constitucional.
A nosso ver, a PEC 37 é mais um dos absurdos que têm sido cometidos no âmbito do denominado Estado Democrático de Direito, absurdo de suspensão e excepcionalidade da lei, a provocar uma indeterminação do Estado de Direito que deveria vigorar entre nós, passível de ser então confundido com um verdadeiro Estado de Exceção, sem que sequer se perceba tal suspensão do Direito, e pior, alguns de “dentro” do próprio direito chegam a corroborá-la ao máximo. Cientes ou não (na maioria das vezes parece ser o segundo o caso) assim o fazem.
A referência ao Estado de Exceção aqui feita reporta-se, evidentemente, às ideias apresentadas claramente pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, ou seja, a uma situação em que se constitui uma zona de anomia, na qual determinada norma é suspensa, mas continua em vigor. O A. desenvolve seu pensamento a partir do adágio latino necessitas legem non habet, significando não apenas que um assim proclamado estado de emergência ou “necessidade” não só dispensa a obediência às leis, como também tal “necessidade” cria as próprias leis, legitimando-se mutuamente, a exceção e as leis dela derivadas, tal como se teve, exemplarmente, na Alemanha nazista, mas também em ditaduras, como a nossa última, militar, ou na atual, que se vem instalando, “civilmente”, e não só entre nós, com também pelo mundo afora, sob a liderança anglo-saxã.
Indiferentemente do que se possa dizer, a PEC 37 claramente mostra como a necessidade cria uma lei e, pior, como a necessidade faz com que o direito, traído pelos seus próprios “pensadores” encontre uma outra finalidade — inventada —para a Constituição que legitimada (sic) na legalidade faz imperar a figura do estado de exceção. No caso há uma estranha necessidade em querer se calar o Ministério Público. Dá-se mais um passo para a instalação do que em sua recente palestra de abertura do XXII Encontro Nacional do Conselho de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, em Curitiba, Lênio Luiz Streck caracterizou como “Juristocracia”.
Há tempos em países democráticos, no próprio STF, assim como Tribunais Internacionais presencia-se toda uma miríade adequada e legítima de anseios a defenderem a importância de haver um controle tanto da atividade investigatória do Ministério Público quanto da atividade policial, e a bem da verdade o próprio texto constitucional prevê que ao Ministério Público caberá o controle da atividade policial. A regulação de tudo o que é arbitrário, inclusive do ponto de vista do Judiciário, deve necessariamente ocorrer, para se evitar reducionismos de poder a sistemas autoritários.
O que ocorre com a PEC 37 é o que temos de último caracterizado, com apoio, sobretudo, em Niklas Luhmann, Roberto Esposito e Jacques Derrida, um problema de auto-imunidade do Direito, este (sub)sistema imunitário do sistema social, enquanto o excesso causado pela sua tentativa regulatória de inconstitucionalidade evidente, por violar a separação entre os poderes, tal como em muito boa hora denunciou recentemente o meu colega (e também muito amigo) Ricardo Sayeg, revela na verdade as condições para a criação de uma polícia não de Estado, mas de governo, como acontecia nos regimes ditatoriais, beneficiando os amigos e atingindo os inimigos para lembrar o jurista genial, que se deixou também iludir — só para lembrar que ser jurista e, mesmo genial, não é garantia alguma de estarmos “do lado certo” — e apoiou o regime nazista, Carl Schmitt.
Willis Santiago Guerra Filho é professor titular do Centro de Ciências jurídicas e Políticas da universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, professor e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos do Programa de Mestrado e Doutorado da PUC-SP, livre-Docente em Filosofia do Direito (UFC), doutor em Direito (Universidade Bielefeld, Alemanha), doutor e pós-doutor em Filosofia (UFRJ), advogado e membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-CE.
Revista Consultor Jurídico, 3 de junho de 2013
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