Temos todos assistido — no meu caso, absolutamente surpreso — a uma exultante e incontrastável alegria, sem qualquer concessão crítica, diante dos protestos que varrem o país. A surpresa, no meu caso, decorre, sobretudo, do fato de presenciar órgãos da imprensa, intelectuais e até juristas, que deveriam guardar algum recato e distanciamento reflexivo, sem qualquer pudor, “tomando o lado” dos manifestantes e num clima de oba-oba cívico, só comparável ao final de uma Copa do Mundo, praticamente, pregando a falência — o que implica o fim — da democracia representativa. De fato, não é difícil encontrar nas chamadas redes sociais alguns conhecidos “formadores de opinião”, num verdadeiro porre de cidadania, embriagados pelo clima do politicamente correto, decretando até mesmo a morte do Estado.
Penso que estes serão dias em que muitos, rapidamente, se arrependerão pelo que andam dizendo. Lembrando o nosso eterno “Stanislaw Ponte Preta” (Sérgio Porto), no seu impagável Febeapá (Festival de Besteira que Assola o País) será “difícil ao historiador precisar o dia em que o Festival de Besteira começou a assolar o País.”
Na terça-feira (18/6), todos os comentaristas da televisão — aberta e fechada — exigiam do prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) que, em aberta desconsideração às mais comezinhas regras de prudência e responsabilidade, violando normas de licitações e de contratos administrativos eventualmente existentes, sem reflexão e tempo necessário — o que só existe, como se sabe, com o respeito ao devido processo legal —, decidisse, ali mesmo, no joelho, pela imediata redução de tarifas públicas. Como se sabe, a menos que também isso tenha sido revogado pelos revolucionários das redes sociais, no Brasil, conforme expressos dispositivos constitucionais: 1) ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; 2) aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; e 3) a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Não que eu morra de amores por empresários de transporte coletivo (especialmente, morando em Brasília), mas quero crer que, em todas as capitais, especialmente, numa cidade como São Paulo, existam contratos e atos administrativos, decorrentes de longos processos licitatórios, mediante os quais foram concedidos os serviços de transporte urbano a esses empresários e de onde nasceram direitos e obrigações.
Quero deixar bem claro que não estou a afirmar que alguma redução de tarifas públicas não seja possível. Mas, a menos que joguemos fora todos os manuais de Direito Constitucional e de Direito Administrativo, não percebo como isso seja legítima e juridicamente realizável, como disse, no joelho do administrador, sem devido processo legal, e mais do que isso, como querem os militantes do “Movimento Passe Livre”, sob influxo irrefletido de passeatas ou de assembleias públicas (pacíficas ou não).
À vista do noticiário do dia 18 de junho, se não me falha a inteligência, o mais nefasto efeito desse comportamento da mídia e de alguns intelectuais consiste, precisamente, em insuflar e dar razão (ainda que o negando) a um bando de criminosos que – diante de um Estado e de governantes acuados e inertes – encontraram solo propício para desenvolver, a céu aberto e sob a vista de todos, os mais descontrolados atos de vandalismo e crimes contra o patrimônio público e privado, acompanhados de ameaça e agressão à vida e à integridade física de particulares e agentes do Estado. De fato, como costumo dizer a meus alunos, no Brasil o impossível é apenas uma alternativa.
Ao deslegitimar a decisão do prefeito e do governador de São Paulo, em não cederem naquele momento — “sem mais” e de inopino — à reivindicação dos manifestantes, a imprensa nacional, ainda que, buscando distinguir a maioria pacífica da minoria de vândalos, em ato inédito no mundo, legitimou — ainda que não o quisesse — toda e qualquer ação contra o poder público. Para ficar num exemplo emblemático, assim como vários outros comentadores, uma famosa jornalista brasileira, abertamente, atribuiu ao prefeito de São Paulo os atos de vandalismo que praticaram contra o prédio da Prefeitura.
Contudo, não é só isso. O comportamento da mídia é absolutamente infausto em outro sentido, pois deseduca a cidadania. Um conhecido âncora da televisão brasileira, depois de elogiar os protestos coletivos “pacíficos”, enquanto criticava sem qualquer concessão a ação do poder público, deslegitimando-o, foi surpreendido com duas pesquisas de opinião, promovidas simultaneamente, no seu programa, em que se perguntava aos telespectadores se concordavam com “protestos com baderna”. Para a surpresa do afamado “formador de opinião”, que criticava as manifestações violentas, mas apenas depois de deslegitimar com sua fala o Estado e os poderes públicos, a resposta foi positiva, com mais de 3 mil pessoas respondendo “sim” aos “protestos com baderna”, contra menos de “900” prudentes cidadãos, que conseguiram superar a deslegitimação do Estado, diária e permanentemente promovida pela mídia, e responderam não.
Agora, o que se assiste país afora são autoridades e órgãos de segurança pública receosos de agir, mesmo diante dos mais escandalosos casos de barbárie coletiva. Diante de tudo isso, sobretudo diante da inércia do poder público, paralisando a ação da polícia, mesmo diante dos mais desabridos atos de vandalismo e criminalidade bandoleira a que fomos submetidos (depredação, selvageria, agressão, baderna e arruaça), a pergunta que devemos nos colocar é a seguinte: existe mesmo — como querem os românticos — a possibilidade de liberdade e de cidadania sem a segurança e presença do Estado? Ou, de outro modo: podemos mesmo, sem maior consequência, deslegitimar os poderes públicos?
Pois bem. Não importa a forma de concebermos a relação existente entre liberdade e segurança, ninguém racionalmente poderá negar que a segurança é um pressuposto da liberdade. De fato, como se sabe, toda a filosofia que inspirou as teorias contratualistas (Locke, Hobbes, Rousseau) encontrava seu eixo na premissa de que o Estado justificava a sua existência, precisamente, na necessidade de proteger e assegurar a liberdade e o patrimônio de seus cidadãos. Sendo certo que por patrimônio a maior parte dos contratualistas (como Hobbes e Locke) entendia não apenas a propriedade em estrita consideração, mas tudo o que o indivíduo tem “como seu” (vida, liberdade, propriedade etc). Não é preciso ameaçar ninguém com a “guerra de todos contra todos”, que Hobbes enxergava na ausência do Estado, para entender que, pelo menos na atual evolução do homem e da sociedade, o Estado é absolutamente imprescindível para, mediante a segurança pública e seus poderes, resguardar a liberdade dos cidadãos. Quem conspira contra os poderes legítimos do Estado deve estocar comida e armas para sua autodefesa e proteção.
Há mais de 30 anos, ao conceber um direito “fundamental à segurança” (Grundrecht auf Sicherheit) Josef Isensee, celebrado juspublicista alemão, afirmava que não passaria de mero “cliché” (Klischee) a ideia amplamente divulgada de que, no Estado democrático de direito, existisse uma verdadeira “antinomia” entre liberdade e segurança[1]. É certo que existem aqueles que negam a existência de um verdadeiro direito “fundamental à segurança”, segundo os quais não se poderia pensar a relação entre liberdade e segurança como uma equação entre termos equivalentes. Para esses, mais corretamente, os termos “segurança” e “liberdade” conformariam uma relação entre meio (segurança) e fim (liberdade).
De qualquer sorte, conformando um direito fundamental ou apenas uma função de proteção dos demais direitos e liberdades, o fato é que a “segurança” é e será sempre um elemento essencial a todos aqueles que, com seriedade, pretendam afirmar a existência de um Estado de Direito comprometido com os direitos fundamentais. Em síntese, é simplesmente, impossível imaginar os demais direitos fundamentais, em especial a liberdade do cidadão, sem a consolidação e a legitimidade de um Estado que os possa garantir oferecendo segurança.
Em entrevista datada de 4 de dezembro de 2007, Josef Isensee foi questionado se existia de fato um “direito fundamental à segurança” e se esse direito teria prioridade sobre o direito à liberdade. A sua resposta resume, ao meu sentir, um ponto de sabedoria e prudência aparentemente não presentes em muitas das manifestações, que, de forma eufórica, inclusive por parte da própria imprensa e de muitos intelectuais, exultam os protestos agora em curso, criticando e mesmo criminalizando de forma genérica a atuação da polícia, sem perceber que não há espaço para a “liberdade do cidadão” em que não haja a “segurança do Estado”. Vejamos a resposta de Josef Isensee:
Herr Isensee, existe um direito fundamental à segurança e ele tem prioridade sobre o direito fundamental a liberdade?Josef Isensse —Recuso-me a dizer “liberdade ou segurança”. Os direitos fundamentais têm dois lados. Eles protegem a liberdade diante do Estado, que é a clássica forma democrática e liberal. Ao mesmo tempo eles (os direitos fundamentais) exigem proteção através do Estado contra o abuso (Übergriff) dos particulares. Para tanto, a fórmula ‘direito fundamental à segurança” é apenas uma abreviatura. Uma coisa deve ficar clara: não há nem segurança absoluta, nem liberdade absoluta. A liberdade só pode existir e se desenvolver em uma comunidade baseada na coexistência pacífica. A segurança perfeita não pode sequer garantir uma ditadura totalitária[2].
De fato, “quem vive ameaçado pela insegurança quanto à sua vida e seus demais direitos, não vive livremente[3].” Que os manifestantes pensem nisso, portanto, na próxima vez que saírem às ruas e, sobretudo, que os “formadores de opinião” pensem nisso na próxima vez que atacarem, sem comedimento e reflexão, o Estado democrático e os poderes legitimamente constituídos.
[1] Josef Isensee, Das Grundrecht auf Sicherheit. Zu den Schutzpflichten des freiheitlichen Verfassungsstaates, Berlin: de Gruyter 1983.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 19 de junho de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário