segunda-feira, 29 de abril de 2013

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA ESTUDARÁ SOLUÇÕES EXTRAJUDICIAIS


O Ministério da Justiça está organizando um grupo de trabalho para estudar a confecção de anteprojeto de marco legal para métodos alternativos de resolução de conflitos. A ideia vem depois de a Secretaria da Reforma do Judiciário ter identificado que o excesso de processos em trâmite é uma das causas da morosidade da Justiça e da falta de prestação jurisdicional. A pasta também pretende procurar os principais demandantes da Justiça para conversar sobre possíveis soluções para o problema.
Com quem falar
A mesma Secretaria da Reforma também identificou que, dos 90 milhões de processos em andamento, 51% são de autoria dos governos municipais, estaduais e federal. Dessa fração, estima-se que 35% sejam de responsabilidade da União. Uma das soluções para essa equação é repensar o formato e os procedimentos das execuções fiscais, de acordo com o secretário da reforma do Judiciário do MJ, Flávio Caetano.

Rotatividade
Depois de 14 anos, a empregada doméstica que trabalha para a ministra Maria Cristina Peduzzi, do Tribunal Superior do Trabalho, vai se aposentar e não será substituída. A própria ministra explica que é um reflexo da Emenda à Constituição que garantiu aos empregados domésticos os mesmos direitos e benefícios dos demais trabalhadores urbanos. “Caminhamos para uma redução substanciosa do trabalho doméstico. O empregador que não visa e nem aufere lucro não tem condições de arcar com esses custos”, justificou.

Bronca televisionada
O advogado e professor Luiz Flávio Gomes está insatisfeito com a presidência do ministro Joaquim Barbosa no Supremo Tribunal Federal. “Não se pode chamar os representantes de todas as entidades representantes da magistratura ao gabinete e convocar a imprensa para presenciar um esporro público em todos eles. Isso é falta de caráter”, bradou, em evento voltado a advogados.

Dias de raiva
A fala raivosa de LFG foi feita durante palestra do IV Encontro Anual da Aasp, que este ano aconteceu em Campos do Jordão (SP). Mas ele explicou: “Minha rotina diária é acordar às 6h ou 6h30 da manhã e ler cinco jornais. Aí eu fico puto e começo meu dia. Só assim deixo de ser o idiota dos gregos, aquele que não participa da vida pública da sociedade e não acompanha as grandes discussões sociais”.

Contra a PEC
A OAB de Mato Grosso do Sul se manifestou contra a Proposta de Emenda à Constituição 33/2011, que vem sendo chamada de PEC da Submissão, que submete decisões do Supremo Tribunal Federal e a aprovação de súmulas vinculantes ao Congresso. O presidente da seccional, Julio Cesar Souza Rodrigues, considera a proposta “uma afronta à democracia”.

Pela PEC
Mas a OAB de Mato Grosso do Sul se manifestou a favor da Proposta de Emenda à Constituição 37, segundo a qual o poder de investigação criminal é exclusivo das polícias. Membros do Ministério Público são contra a PEC. Dizem que ela lhes tolhe poder. Sò que os advogados dizem que o MP nunca teve esse poder. “Levamos em consideração que a Ordem tem entre suas atribuições a defesa da Constituição e a luta pelo aperfeiçoamento das instituições jurídicas”, disse Julio Cesar Souza Rodrigues, o presidente da OAB-MS.

Cadeira vaga
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina está com uma vaga para o quinto constitucional da advocacia. Com a aposentadoria do desembargador Luiz Carlos Freyesleben, ficou vazia uma cadeira destinada a advogados. Os interessados têm 20 dias, contados depois de 15 dias a partir desta segunda-feira (29/4) para enviar um ofício ao presidente da OAB catarinense comunicando o interesse em se togar.
Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 29 de abril de 2013

PEC 33 PRETENDE ABOLIR SEPARAÇÃO DOS PODERES


Aos poucos, mas a passos seguros, o Brasil adentra na maturidade democrática. É certo que as tensões entre os Poderes existem — e sempre existirão — por ser inerente ao próprio sistema de freios e contrapesos onde repousa o Estado Democrático de Direito.
O fato de o Poder Judiciário decidir questões que, originariamente, deveriam ser votadas e decididas pelo Parlamento não significa judicializar a política, mas delinear suas balizas a partir da própria Constituição, que foi, em última análise, produzida pelos legisladores eleitos pelo povo. Portanto, as decisões do Supremo, todas tomadas a partir da provocação de legitimados para fazê-lo, inclusive pelos próprios parlamentares (ver caso dos royalties do pré-sal e tramitação de projetos que vedam a criação de novos partidos políticos), são legitimadas pela vontade do povo contida na Constituição.
Questões como cotas raciais no ensino superior, fetos anencefálicos, união homoafetiva, liberação para pesquisa com células-tronco, constitucionalidade de terras quilombolas, direitos dos indígenas (Raposa Serra do Sol), validade da Lei da Ficha Limpa, mandato do partido e não do parlamentar, alcance da Lei da Anistia, uso de algemas, dentre vários outros, foram apreciadas pela Suprema Corte à luz da Constituição dentro de sua competência jurisdicional e não podem ser objeto de validação por outro Poder.
O Legislativo tem a oportunidade e o dever de opinar sobre a constitucionalidade das leis por ocasião da apreciação de todos os projetos de lei, na Comissão de Constituição e Justiça, como requisito primário para iniciar sua tramitação.
Ocorre que o jogo político-partidário, onde se tem diversos segmentos representados com distintos interesses, nem sempre enfrenta e decide tão relevantes matérias para os cidadãos. A verdade é que o tempo da política depende de certos acontecimentos, a maioria derivada da pressão popular, o que muitas vezes impede que o Parlamento exerça, na plenitude, suas atribuições constitucionais.
Por outro lado, não se vê o Legislativo (leia-se base governista), também em razão do jogo político-partidário, lutar contra a atrofia que o Poder Executivo lhe impõe a partir das constantes Medidas Provisórias. Poucos parlamentares, por exemplo, reclamaram contra a postura do Poder Executivo de vetar vários dispositivos do Código Florestal e editar, em seguida e antes da apreciação do veto, Medida Provisória impondo a sua visão sobre como deveriam ser os dispositivos vetados.
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC 33), de autoria do deputado Nazareno Fonteles, do PT-PI, é natimorta por pretender abolir uma cláusula pétrea da Constituição, que é a da separação dos poderes, não devendo nem ser processada no próprio Parlamento (artigo 60, parágrafo 4º, CF). A PEC 33 parte do equivocado pressuposto de que o voto popular dá poderes ao Legislativo para alterar decisões judiciais da Suprema Corte em matérias constitucionais, o que subverte a lógica do constituinte de 1988, que deu ao STF a palavra final no controle de constitucionalidade das leis.
É bem verdade que o voto popular é a essência da democracia, mas não poderá servir de salvo-conduto para acabar com a independência do Poder Judiciário, mormente quando é usado como retaliação a interesses contrariados. Veja-se a falta que um Poder Judiciário forte e independente faz à Venezuela e a outros países latino-americanos, onde a atrofia do sistema de freios e contrapesos impede a plenitude das liberdades democráticas.
Ainda há tempo para o Legislativo reavaliar essa postura, pois os interesses que representa são do povo e não dos partidos políticos e de seus integrantes.
Ophir Cavalcante Júnior é advogado e ex-presidente do Conselho Federal da OAB
Revista Consultor Jurídico, 29 de abril de 2013

sexta-feira, 26 de abril de 2013

E KELSEN SE VIROU NA TUMBA DIANTE DA SIMPLIFICAÇÃO!




O consumidor de ilusões
Já em 1967, o francês Guy Debord escreveu La Societé du Spectacule (A sociedade do espetáculo), antecipando as mazelas da fragmentação da cultura ocorrida nestas últimas duas décadas. Como bem lembra Vargas Llosa — que, de certo modo, “revisita” a temática 45 anos depois, em seu La Civilización del Espetáculo —, Debord qualifica de espetáculo o que Marx chamou de alienação decorrente do fetichismo da mercadoria. É quando o indivíduo se “coisifica”, entregando-se sistematicamente ao consumo de objetos, muitas vezes inúteis e supérfluos, destruindo sua consciência de classe. Com isso, o indivíduo se desproletarizaria. E não lutaria. Na proposição 212 de seu livro, Debord chama de espetáculo a ditadura efetiva da ilusão na sociedade moderna.

Debord dizia que, na sociedade do espetáculo, a vida deixa de ser vivida para ser representada, vivendo-se “por procuração”, como os atores da vida fingida que encarnam uma peça: “O consumidor real se torna um consumidor de ilusões”. Guardadas as desafinidades ideológicas entre Debord e Llosa, é possível dizer que ambos têm razão. Ou, no mínimo, o que Debord dizia e o que diz agora Llosa têm tudo a ver com a sociedade “pós-moderna” (com todos os problemas que o termo acarreta) que vivemos.
Llosa produz um livro em que denuncia a vulgarização da cultura, repetindo algo que T. S. Eliot já dizia, ou seja, que a cultura está a ponto de desaparecer; na verdade, talvez já tenha desaparecido. Llosa chama de “civilização do espetáculo” ou de um mundo em que o primeiro lugar na tábua de valores vigente é ocupado pelo entretenimento e em que se divertir, fugir do aborrecimento, é a paixão universal.
O novo lumpesinato cultural
Llosa critica fortemente aquilo que chama de “literatura light”, que propaga o conformismo, a complacência e a autossatisfação. Diz também — isso em uma entrevista — que a internet democratizou a informação, mas não a cultura. Foi uma grande revolução, muito positiva, do nosso tempo. Mas essa informação, se não há uma cultura que discrimine, pode também naturalizar completamente a informação, porque o excesso de informação pode ser um excesso de confusão. Por isso, a cultura é muito importante, pois permite distinguir o que é relevante do que não é relevante.

Aí está. O retrato que Llosa apresenta, apenas diferente do de Debord pelo suporte ideológico de cada um, cabe como uma luva ao que se pratica no Brasil em termos de jornalismo, ensino e práticas jurídicas (doutrina e jurisprudência – lato sensu falando). Trata-se da fabricação cotidiana de “lumpens pós-modernos”. Esse “indivíduo” fruto desse processo não reivindica. Não luta. Apenas reproduz. O que ele faz é alienar-a-sua-ação-ao-outro. Trata-se do novo homem, o que substitui ohomo sapiens: É o homo simplifier ou o homo facilitator.
Juristas, estagiários, publicitários, jornalistas e jornaleiros... Ninguém está livre desse novo homem. Tenho denunciado aqui nesta coluna — mas já há mais de uma década em Hermenêutica jurídica e(m) crise — o modo como os jornalistas fazem a cobertura dos noticiários. Nesta pós-modernidade (sic), a linguagem se aproxima cada vez mais da imagem. Isto é, “imagem é tudo”. E, portanto, tudo vira espetáculo. O repórter não consegue falar de um assunto sem mostrar a imagem. É como se construísse a cada momento uma “isomorfia” entre palavras e coisas. Ou seja: parte-se da premissa de que todos são imbecis e não possuem capacidade maior que a do Homer Simpson. Logo, só entendem o que é uma coisa se a coisa for mostrada. Eis o “poder da imagem”. Não há espaço para se pensar. A enchente é contada pelo repórter quando está com água pelos joelhos. O nascimento do primeiro bebê do ano somente “pode” ser mostrado se o repórter estiver vestido de enfermeiro. Já se sabe como será a reportagem. Ou de forma “dedutiva”, com um “conceito” do qual o repórter tirará o “particular”; ou de forma indutiva, entrando na casa da senhora com vários filhos na escola para discutir a notícia sobre o preço do material escolar: “Dona Fulana tem três filhos...” e a câmara mostra a casa, as crianças, close na lista de material escolar... e assim vai.
As metáforas perdem sua função nessa sociedade do espetáculo, eis que a pretensa metaforização é mostrada isomorficamente. Por exemplo, para que metaforizar uma situação se, para explicar a “explicação”, demonstra-se a metáfora? Ou seja, se o repórter quer demonstrar que um time de futebol quer jogar rápido e diz que “está voando”, a câmara mostra... um pássaro. Qual é, então, a função da metáfora? Nem vou falar nas metonímias e outras questões “representacionais”... Ora, se se quer dizer que um time de futebol está “na ponta dos casos”, por qual razão o repórter tem de mostrar um cavalo se preparando para correr?
“Gosto” de conceder entrevistas em que o entrevistador vai “anotando tudo o que eu falo”. Principalmente tratando de notícias jurídicas. O resultado é quase sempre mais que desastroso. A desculpa é que quem lê jornal não entende termos jurídicos. Nivelamos tudo por baixo. Logo, substitui-se a palavra por outra, que nada tem a ver com o conteúdo. Concedi uma entrevista sobre a teoria do domínio do fato... O que acham os leitores? Como explicar isso ao jovem repórter, para o qual tentei explicar isso durante mais de 15 minutos por telefone. Resultado: quatro linhas e meia, dizendo que se trata de uma teoria que estende a coautoria e alguns blá blá blá.
Nada está tão ruim que não possa piorar (?)
A prova de que o iluminismo estava errado com relação à sua crença no progresso e na sua “pregação” quase religiosa de que o império da razão faria a humanidade melhor, talvez esteja no âmbito do lumpesinato cultural que se produz no campo do direito.

Há determinadas posições que me fazem crer que o ser humano não melhora. Pelo contrário, a tendência é ficar patinando sobre erros do passado. Vejo por aí, no âmbito da teoria do direito, uma resistência de certos setores que tendem a manifestar — over and over again — coisas velhas e empoeiradas como se fossem algo natural no mundo do Direito. Transformam a filosofia em dogma. Alocam determinados pontos de partidas indiscutíveis, tidos necessariamente por verdades universais, para “facilitar as coisas” (eis o homo facilitador) para os candidatos nos mais variados certames da área do direito. A tarefa pedagógica do ensino jurídico — em tempos de sucesso absoluto da “metodologia simplificadora” (sic) — é encher os receptáculos das consciências dos candidatos, alunos etc. com conteúdos fáceis de memorizar (eis o homo simplifier) e que irão garantir sucesso nas provas.
Esta semana, tive conhecimento — por meio de um e-mail enviado por um atentíssimo leitor, Raphael Peixoto, doutorando da UnB — de uma matéria veiculada pelo portal UOL, que retrata bem aquilo que estava pressuposto na minha fala do parágrafo anterior. Trata-se de notícia que apresenta uma alerta para aqueles que irão participar do 10º Exame de Ordem Unificado: “professores alertam que o candidato deve se preparar nesse período que antecede a 10ª edição”, destaca em negrito o texto.
O “alerta” dos professores está dirigido para as questões de Filosofia — ou do que vem sendo, de forma até certo ponto acrítica, colocado como “formação humanística” — que passarão a incorporar o Exame a partir desta edição (para ler, clique aqui). A matéria afirma, ainda, que saiu à cata de posições abalizadas de notáveis professores que lecionam a referida matéria nos mais diversos cursinhos preparatórios existentes no país.
É espantoso o que se lê ali. Num primeiro momento, tive a impressão de ser um cidadão transeunte do século XIX. A maior parte das teorias que os professores consideram inescapáveis de serem cobradas na prova não são contemporâneas e estão milhas e milhas distantes das discussões que povoam o ambiente da teoria e da Filosofia do Direito no nosso contexto atual. O ápice mesmo desse acontecimento da sociedade jurídica do espetáculo ocorre quando os professores entrevistados pela matéria pretendem explicar o positivismo jurídico, levando em consideração a obra de seu principal arquiteto: Hans Kelsen (vejam: não é culpa minha. Está na internet. Foram os professores que explicitaram o que vou relatar). Assim, segundo um dos professores “o positivismo jurídico tem como ápice a doutrina de Hans Kelsen que visa demonstrar uma fórmula de aplicação do direito que pura e simplesmente declare a vontade do legislador sem criar nada novo, reduzindo o seu conteúdo às leis escritas" (sic, sic e sic!!!). Já escrevi tanto sobre isso que um posicionamento como esse chega a me dar acídia. E não apenas eu. Luis Alberto Warat, Leonel Severo Rocha, Marcelo Cattoni, Tércio Ferraz Jr. também já trataram da questão. Faço, então, aqui um alerta do alerta. A posição externada pelos professores signatário das dicas no UOL não está no Hans Kelsen que li. O velho Hans não disse nada disso. Aliás, de tanto que já escrevi sobre isso e de tanto que Warat, Rocha e outros já escreveram explicando Kelsen e sua complexidade, permito-me não explicar aqui, remetendo o leitor a, no mínimo, Verdade e Consenso (Saraiva, 4ª edição), além dos livros e textos de Warat e dos antes citados. Minha curiosidade é: de onde os professores encarregados das dicas tiraram essa explicação sobre Kelsen? Talvez eu saiba. Simples. O senso comum teórico dos juristas sempre fala mais alto. E o pior: constrói mitos sobre autores. Vejam o mito que se criou em torno de Kelsen e de sua afirmação de um direito puro, ou de que Kelsen propõe uma teoria da aplicação do direito estritamente escrito. E que história é essa do “sem criar nada”? O que é isto — “reduzindo o seu conteúdo às leis escritas”? Como vai mal o ensino jurídico de terrae brasilis. Mal. Muito mal! Ah: ia esquecendo da explicação sobre a diferença entre Constituição e Norma Fundamental (kelseniana). Diz um dos professores que a Constituição é uma norma posta porque estabelecida (imposta) de acordo com a norma pressuposta. Exemplo: a Constituição Federal de 1988 foi imposta ao povo brasileiro (promulgação, a imposição aceitável), mas a norma fundamental que a antecede, por exemplo, é a pressuposição de que havia se encerrado o ciclo da ditadura militar no país". Não vou falar muito sobre isso. Apenas lembro que a Grundnorm é uma construção epistemológico-metodológica e, como tal, só pode ser postulada retrospectivamente, sob a condição de eficácia geral do ordenamento jurídico. Em outras palavras, só se pode pressupor a norma fundamental a um ordenamento em pleno funcionamento. Não é uma Constituição que é imposta com base na norma fundamental, mas a norma fundamental que é pressuposta a uma Constituição eficaz. Em outras palavras, a "antecedência" é da Constituição, não da norma fundamental. Assim, ao contrário do que constou na dica... Portanto, muita calma nessa hora...
E quanto à hermenêutica? Bem, quanto a esta especialidade basta dizer que — vingando as teses constante na(s) dica(s) — ficaremos ainda com os pés grudados nos lamaçais teóricos do século XIX. Diz um dos professores que a hermenêutica “é a ciência que estuda a interpretação, que se dá no próprio trabalho do juiz intérprete ao exprimir a sua decisão. Dentro desses contextos, o candidato deve estudar as espécies clássicas de interpretação, em gramatical, sistemática, lógica, histórica, teleológica e sociológica e seus modos: declarativo, restritivo e extensivo.”
Sério?! Assim? Uma mistura do velho Frederico Carlos von Savigny (que foi professor do velho Carlos Marques ou, melhor dizendo, Karl Marx) e algumas invenções metodológicas como “declarativo, restritivo...”? Diretamente das pantectas aos nossos dias? É mesmo isso que os Exames de Ordem irão exigir dos candidatos? É assim que se pretende avaliar a “formação humanística” (sic) dos nossos futuros advogados? Se assim for, vou afirmar solenemente: melhor que tais conteúdos fiquem fora do exame. Essas questões todas retratadas na matéria do UOL são mitos teóricos. Muitos já sepultados. Métodos de interpretação? Aqueles do Savigny, que, por sinal, era contra a codificação? Não preciso nem falar de Gadamer ou Heidegger para desconstruir isso. Falemos de jusfilósofos como Dworkin; Alexy (com todas as diferenças que tenho com a sua teoria); Friedrich Muller, entre outros...
No final, se as provas do Exame de Ordem cobrarem os conteúdos do modo como foram explicados nas dicas, penso que aquilo que está ruim poderá/deverá piorar. Ah... o iluminismo e sua vã utopia de progresso. Coisas do humanismo, esse Outro tão incompreendido... o que faz o ser humano melhor? O que faz a humanidade melhorar? Perguntas sem respostas, indeed. Mas, com relação ao Exame de Ordem – e me perdoem pelo meu pessimismo realista –, parece que as coisas tendem mesmo a piorar.
Não é implicância minha. Não tenho culpa se o Direito é um fenômeno bem mais complexo do que se pretende que ele seja. Faço estas críticas longe de qualquer fulanização. Trata-se de uma questão acadêmica. Imaginemos se estivéssemos tratando de medicina ou de química. Não dá para dizer que o antibiótico X se destina a tratar a dengue, quando o remédio adequado é outro; e não se pode dizer que o ácido sulfúrico não é H2SO4. Embora o Direito não seja uma ciência desse mesmo jaez, trata-se de uma ciência social aplicada. E não se pode, sobre ela, fazer um livre exercício adivinhatório.
As expropriações de sentido
Sob saraivadas de críticas, tenho chamado a atenção da comunidade jurídica para essa “cultura da facilitação”. Mas, mais do que das facilitações (não preciso lembrar da literatura fast food que é vendida hoje até em supermercados e aeroportos), há um imaginário que se contenta com os “restos de sentido” dessa civilização do espetáculo.

Quando vou a congressos e seminários, por vezes assisto a algumas conferências. E constato que, para além do escrito, há um falatório desenfreado que mistura conceitos e produz “expropriações de sentido”, sem qualquer indenização significativa-significante. Quando falamos sobre um texto — e recordo-me de recente artigo que discuti com meu Amigo, Professor Ernildo Stein — fazemos desapropriações de sentido. É o que, com Harold Bloom, podemos chamar de “desleituras”. Mas o perigo é quando, a pretexto de falar sobre doutrinas e autores, o palestrante faz uma expropriação, uma “mais valia” da significação minimamente condizente com aquilo que devemos ter como uma “tradição autêntica acerca do que significa a doutrina”.
Assim, por exemplo, a crítica ao “juiz boca da lei” não pode faltar nas conferências mais requisitadas de terrae brasilis. Faz-se um espetáculo contra essa “maldita” figura. O que se ouve (vejam, estou só falando de congressos, agora; não estou me referindo ao que dizem os livros, mormente os simplificadores e quetais)? Devemos rejeitar o juiz boca da lei e, no lugar dele, temos a ponderação de princípios feitos por um “novo juiz”. Outra coisa que “adoro” — e tenho visto muito isso por aí — é quando o conferencista enche o peito para dizer que “regras é no tudo ou nada” e “princípios é na ponderação”, e citam de boca cheia Dworkin e Alexy, como se ambos fossem sócios da teoria.
Enfim, são os tempos de espetacularização. Tempos de Power Point. De animação gráfica. Do “doctor Google”, que substitui qualquer possibilidade de cultura por um conjunto de informações, no mais das vezes de quinta categoria. No Direito, então, essa questão assume ares de dramaticidade. Basta entrar no Google para ver o que quer dizer, por exemplo, “juiz boca da lei”. E ali aparece a Revolução Francesa e, depois... o juiz dos princípios. No Google, também descobri que o Judiciário ganhou autonomia com a Revolução Francesa. Uau. Há artigos no Google misturando Gadamer com.... nada mais, nada menos que Hans Kelsen. Sim. Meninos e meninas, eu vi. Li um artigo em um site jurídico, no qual alguém fala de Gadamer e emenda Kelsen quando este abre o flanco para o decisionismo. “Tudo a ver” essa mistura de Gadamer com Kelsen. Pois é. Algaravias conceituais passaram a ser lugar comum.
Outro dia passei os olhos em um livro simplificado (ou algo do gênero ou espécie) de Direito Administrativo. Poucas fontes. Poucas citações. Ao final, uma lista dos livros que seriam as fontes. Mas, no interior do livro, passagens que esquecem as fontes originais. Ora, se, por exemplo, alguém fez uma pesquisa sobre os tribunais da Relação, mas aquele que quer falar sobre isso não quer ir a essas fontes e se encher de pó e alergias, deve citar a fonte do infeliz que se esfalfelou fuçando nas velhas bibliotecas.
Perdemos o DNA (que eu chamo de mínimo “é”) entre as palavras e as coisas. Como dizia minha poeta Hilde Domin (cito de cabeça), “antes palavras e coisas dormitavam juntas; depois se separaram”. E eu me permito acrescer: e nunca mais de “ajuntaram”. Perdemos a noção de cópulas significativas mínimas para, digamos assim, a reprodução e, portanto, a sobrevivência do homo culturalis. O homo juridicus é, agora, o homo simplifier, o homo standard, perdendo-se no entremeio de extorsões de sentido, expropriações sem qualquer “indenização de sentido”. As palavras vão perdendo o seu significado de base (para lembrar, aqui, algumas noções sempre oportunas da velha filosofia da linguagem). Claro que um texto não carrega o seu significado. Não dá para fazer umaAuslegung dele (arrancar de dentro dele o sentido; afinal, interpretar não é fazer lipoaspiração!). Mas, como bem diz Gadamer, se queres dizer algo sobre ele (o texto), deixe que ele te diga algo. O que quer dizer a palavra “princípio”? O quer dizer “positivismo”? Façam o teste com seus colegas (alunos e professores). Cada um dirá algo diferente. E, pelo andar da carruagem, um alto percentual estará equivocado. O quer dizer “protesto”? É ir à rua reivindicar? Ou fazer “onda” pelas redes sociais? O que é “amizade”? É olhar nos olhos do “amigo”(a) ou ter milhares de “amigos” pelo “face”?
Um registro alvissareiro: de tanto que tenho reclamado sobre a algaravia que se formou sobre “a ponderação”, o “placar” no Google tem se modificado substancialmente. Para termos uma ideia, há um ano atrás havia cerca de 30 mil incidências para “princípio da ponderação” e menos de 600 para “regra da ponderação”. Com satisfação noto que a coisa vai mudando... Hoje a “regra da ponderação” ganhou alguns milhares de “alimentações” no Google. Já passa de 14 mil, embora a incidência do “princípio” esteja quase em 37 mil. Penso que, em mais um ano, finalmente a correção será feita. E constaremos que a correta acepção da ponderação como regra terá mais incidência no Google do que como algo que ela nunca foi, isto é, “princípio” (despiciendo lembrar o que penso sobre a tal “ponderação”... nem vou repetir aqui o que penso sobre isso para não me irritar e nem causar irritação naqueles meus leitores fiéis que já sabem de tudo o que penso sobre essa “pedra filosofal da interpretação” e os malefícios que produziu aqui em terra de Vera Cruz-Santa Cruz).
No apagar das luzes da feitura da coluna, recebi e-mail informando que há, no mercado, nova literatura. Trata-se de um resumo de Direito Constitucional descomplicado. Ora, se a matéria já está descomplicada, por que o resumo? Hein? Efetivamente, a criatividade é tanta em termos de simplismo que, em breve, não duvido surja o “Mapa mental do resumo descomplicado de direito X, Y ou Z” e depois, uma espécie de “resumo fundamental”. Isto é, um resumo do resumo do resumo..., para aqueles que não entenderam o primeiro e o segundo resumos... Nem vou explicar, aqui, que estou tentando fazer uma blague com a questão do fundamento de validade (por exemplo, o Trilema de Münschausen)... Corro o risco de fazer como o repórter que explica a metáfora. Mas, vai lá: falo do fundamento do fundamento do fundamento... Ou seja: no andar da carruagem, se se fizer sempre um resumo do resumo, a pergunta que fica(rá) é: qual é o resumo fundamental, isto é, o Grundresumo?
Mas tem mais. Em tempos de prevalência de simplificações, até mesmo fazer ironias em terrae brasilispode se configurar no semeio de nefasta semente. Me recordo que, em 2010, na bela cidade de Natal, durante o evento da Ebec (Escola Brasileira de Estudos Constitucionais), sugeri jocosamente que ainda veria criado uma espécie de “Direito twittado”. Até escrevi aqui! Só não pensei que isso seria levado “a sério”! Com efeito, um orientando high tech me mostrou (advirto: não tenho Twitter; meu mundo não cabe em 140 caracteres) um exemplo disso. Conhecido professor anuncia “bomba: durante a semana postarei no twitter 100 dicas sobre controle de constitucionalidade. A cada meia hora, uma nova dica.” Bingo! 100 dicas, cada uma em 140 caracteres. Boa sorte. É o tipo da notícia que dispensa maiores elaborações... quase como as palavras cruzadas já à venda nas boas casas do ramo. Não penso que necessito comentar a notícia, pois não? O próprio professor disse que era uma “bomba”.
A proibição de anamnese
A leitura de Llosa e Debord é lancinante. Cortante. Abre sulcos na significância ao mesmo tempo em que vai expondo a(s) insignificância(s). Soco no estômago, para ser mais direito. Devemos refletir sobre tudo isso. O que os autores denunciam — em épocas tão diferentes — pode ser visto no Jornalismo, no Direito, na Publicidade, nas escolas etc. Vivenciamos tempos duros de perda de sentidos (na ambiguidade da expressão). Neste novo “princípio epocal” (de epoché – e refiro-me a Heidegger), há uma espécie de “proibição de anamnese dos fenômenos”. Nesse novo “princípio”, vive-se o império dos simples, do standard, transformado em d(en)ominador comum do “real”, proporcionando, assim, um domínio soberano desse mundo de ficções. O homo simplifier veio para ficar. Acho, sinceramente, que fomos derrotados.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Revista Consultor Jurídico, 18 de abril de 2013

O JUDICIÁRIO TEM O DEVER DE CORRIGIR DESVIO DO LEGISLATIVO


Existem leis em nosso ordenamento jurídico que, se aplicadas a um determinado caso concreto, irão gerar uma grande injustiça, embora em tese sejam consideradas constitucionais.
A partir deste momento, podemos separar a análise a seguir em dois critérios: (i) o motivo da criação de determinada norma e (ii) o modo como foi feito este processo.
Objeto de difícil análise e comprovação se mostra a primeira fase da análise: o motivo pelo qual levou o legislador a editar determinada norma. Caso este motivo infrinja garantia de direitos fundamentais, é pacífico que esta norma será considerada inconstitucional. Porém, se não houver ofensa a direito fundamental, mas um desvio de finalidade do seu órgão propositor? A atuação ilegítima também seria passível de controle?
O processo legislativo ocorre com a votação, onde a maioria irá decidir o destino da sociedade. Esta maioria vencedora que atuar com o desvio de finalidade poderá agir sem controle?
Estas questões entram em debate no exemplo recente da nova distribuição dos royalties. Claramente há o interesse econômico em jogo, deixando em segundo plano a própria definição do instituto. A Constituição garante aos estados produtores uma compensação financeira pela exploração do petróleo e do gás natural em seu respectivo território. Isto porque há o risco nesta atividade, então o lugar deve ter uma infraestrutura para manutenção da exploração, bem como meios de reparar eventuais danos que surgirem.
Deixando de lado a questão da efetiva implementação ou não dos recursos para sua finalidade originária, o fato é que membros do legislativo advindos dos estados não produtores atuaram como corretores de valores dos seus respectivos estados, o que foge à sua atuação, que representa um caráter nacional e não interesse meramente local de enriquecimento do ente federado.
Então temos o outro aspecto da maioria. No caso específico, a maioria é de estados não produtores, o que leva a uma vitória no momento da votação e sobrepujando a minoria. A Constituição é o instrumento de garantia na democracia de que a maioria deverá respeitar os direitos da minoria. Como fica resolvido este problema? Não se pode alegar que o direito da minoria fora observado, visto que se prevê uma redução e não seu completo esvaziamento, porque tal diminuição acarreta no prejuízo de várias atividades, causando graves consequências de ordem estrutural e contratual, por exemplo.
Se o motivo é ilegítimo, poderia o Judiciário se imiscuir neste âmbito sem ferir a separação de poderes? Ouso opinar no sentido afirmativo, pois Ferrajoli ensina que a jurisdição é a garantia de um direito, que se ele não puder ser exigido, ele não existe efetivamente. No caso, embora a Administração Pública tenha auto-executoriedade, somente poderá exerçê-la nos limites legais estabelecidos e, para a definição do alcance e do sentido encontramos o Judiciário. Além do mais, cabe ao Poder Judiciário a salvaguarda de um ordenamento jurídico harmônico, com seus princípios e regras respeitando a Constituição.
Portanto, os casos análogos a este que, em uma primeira análise, não contêm vício algum, há, em verdade, após um estudo mais minucioso, a inconstitucionalidade pelo desvio de função do órgão legiferante.
A forma com a qual o Judiciário irá tutelar será vista mais adiante. Porém, há outro caso para se observar antes de chegar a este ponto: lei constitucional aplicada ao caso concreto gerando injustiça a determinado indivíduo, tendo em mente que o caráter genérico da lei irá comportar certos problemas a determinadas pessoas e que o Judiciário deve ficar atento a estas hipóteses.
Passada a fase do controle abstrato e chegando à sua aplicabilidade, é preciso observar alguns aspectos. O primeiro deles é quanto à legitimidade do julgador para definir justiça ou injustiça de determinado mandamento legal ao caso concreto: há certa esquizofrenia quando o Estado determina que uma lei deva ser respeitada e aplicada por todos e, num segundo momento, o próprio Estado se pronuncia no sentido que determinado caso não está coberto pelo mandamento que continua válido e vigente.
Entretanto, um aspecto relevante deste pensamento é que, mesmo sendo um órgão estatal, presentando o Estado (não é representando, mas sim personificando o Estado), o juiz é um ser humano e, como tal, detém suas próprias ideologias e opiniões pessoais, que necessariamente irão influenciar no momento de julgar.
A dicotomia entre juiz-Estado e juiz-ser humano ganha interessante viés com o passar dos anos e a crescente comunicação dos sistemas da civil law e common law, surgindo o tensionamento constante entre legalidade estrita e fundamentos principiológicos para a resolução do caso. Embora sempre regido pela lei, a justiça do caso concreto ganha força, mas sempre devendo equilibrar com a estabilidade de um ordenamento no qual as partes não se surpreendam com alguma decisão “tirada da cartola”. Por conseguinte, qual o limite estabelecido para o julgador atuar no controle de uma lei injusta?
Para tentar traçar linhas gerais de como seria feita esta limitação, é preciso entender que o magistrado deve ser imparcial, portanto, o resultado de seu livre convencimento não lhe trará vantagem alguma. Outra questão importante é a imprescindibilidade de motivação de sua decisão e sua consequente publicidade.
Embora a regra geral seja da vinculação dos efeitos do caso concreto ao dispositivo da sentença, a fundamentação serve para controle externo da atuação jurisdicional. Observando esta grande importância, o projeto do novo Código de Processo Civil determina a exposição com especificação analítica dos motivos que levaram o julgador a tomar determinada decisão. Mesmo sendo taxado por alguns doutrinadores mais clássicos de mero poder-saber, são inegáveis os efeitos políticos, econômicos e sociais das decisões judiciais; e o fato de não haver eleição para ocupação do cargo deve ser equilibrado com a ampla ciência dos seus atos, concretizando sua legitimação.
Outra observação de limitação e controle dos atos do Judiciário, na concepção de Picardi, reside na ideia que o juiz está submetido a uma série de etapas vinculadas de análise de valores hermenêuticos até chegar ao momento em que deverá escolher uma entre duas ou mais situações possíveis de solução da lide. Ou seja, conclui-se que a escolha entre aplicação de uma lei injusta para o caso concreto e um princípio é a etapa final a que o magistrado atinge, tendo que sopesar entre a estrita aplicação da lei ou a inserção de um princípio para retirar a subsunção do caso.
O juiz, neste sentido, deixa de ser a “boca da lei”, sabendo de seu compromisso com a justa composição da lide e da efetividade dos princípios constitucionais. Ele deve velar pela harmonia de todo o ordenamento, levando em consideração que sua atuação deve ser imparcial e que sua decisão deve ser analiticamente motivada, nunca esquecendo a razoabilidade e proporcionalidade como parâmetros.
Irapuã Santana do Nascimento da Silva é mestrando em Direito Processual na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Revista Consultor Jurídico, 25 de abril de 2013

quinta-feira, 25 de abril de 2013

MAIOR DEMANDA DA JUSTIÇA FEDERAL ESTÁ NOS JEFs


No último dia 4 de abril, foi aprovada, em segundo turno, pelo Plenário da Câmara dos Deputados a PEC 544/2002, que cria 4 novos Tribunais Regionais Federais no Paraná, Minas Gerais, Amazonas e Bahia, além dos 5 já existentes (Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco).
Para entrar em vigor, basta haver a promulgação pelo Congresso Nacional, mas, neste momento, conforme notícia veiculada pela Agência Brasil do último dia 17, o Senador Renan Calheiros suspendeu tal promulgação porque “a proposta está sob avaliação de técnicos do Poder Legislativo, uma vez que foi alegada a existência de ‘erro material’ na matéria. Calheiros não detalhou quais seriam esses erros e disse que caberá à Mesa Diretora do Congresso decidir sobre a questão...”
Na realidade, a aprovação da PEC 544 tem sido o cerne de várias polêmicas, sendo que seus defensores argumentam que os novos TRFs são necessários ante o aumento do número de processos a serem julgados e para aumentar a celeridade processual. Por outro lado, aqueles que têm tido a ousadia de discordar argumentam que os dados não comprovam esse suposto aumento do número de processos e que a criação dos novos TRFs não iria redundar em maior celeridade processual, sendo que o custo que acarretarão aos cofres públicos para serem efetivamente instalados — e sobre isso ninguém discute, embora haja dúvidas sobre o valor total desse custo — não trará efetivos benefícios para o país.
Ora, os números sobre a movimentação processual da Justiça Federal estão disponíveis no sitewww.cjf.jus.br, bastando examiná-los para se poder formular, com embasamento, uma opinião sobre a polêmica aqui retratada.
Em primeiro lugar, vale conferir a movimentação processual dos próprios TRFs. Chamo a atenção para o dado “processos distribuídos”, para destacar que a estatística evidencia que, de 1999 a 2012, anualmente, são distribuídos, entre todos os TRFs no país, em média, quase meio milhão de novos “processos” — na realidade, o mais exato seria referir novos “recursos”, que é o que, em sua maioria, são distribuídos perante os Tribunais, lembrando que, para cada processo efetivamente distribuído perante o 1º grau de jurisdição, pode haver vários recursos incidentais, como Agravos de Instrumentos, além do recurso oposto por qualquer das partes contra a sentença propriamente dita.
Certamente é um número alto. Mesmo assim, uma primeira constatação se impõe: ao contrário do que afirmam os defensores da criação dos novos TRFs, o número não vem crescendo. Pelo contrário, mesmo com o aumento da população brasileira, curiosamente, o número de processos ou recursos perante os TRFs tem se mantido estável nos últimos anos.
E por que será que isso está acontecendo?
Em primeiro lugar, parece-me importante destacar que a PEC 544 foi proposta ao Congresso Nacional no já longínquo ano de 2002. Ora, nesses 11 anos de tramitação, muitas coisas mudaram, e hoje já vivemos a era de uma nova Justiça Federal, a qual foi modificada por algumas alterações bem pontuais da legislação e que produziram resultados muito mais significativos do que os pretendidos pela PEC 544 (e praticamente sem dispêndio financeiro algum).
Refiro-me à criação dos Juizados Especiais Federais, à inovação dos processos eletrônicos e à introdução das súmulas vinculantes e das sistemáticas da Repercussão Geral e dos Recursos Repetitivos.
Em primeiro lugar, relembre-se que os Juizados Especiais Federais foram criados pela Lei 10.259/2001 e implantados paulatinamente nos anos subsequentes. Neles são julgadas as infrações criminais “de menor potencial ofensivo” e as causas cíveis de valor até sessenta salários mínimos (excluídos expressamente, porém, dentre outros, mandados de segurança e execuções fiscais, não importando o valor). Por outro lado, os recursos das decisões adotadas nos Juizados Especiais não vão para os Tribunais Regionais Federais, e, sim, para as chamadas Turmas Recursais, num sistema inovador, pois tais turmas são compostas por magistrados federais de 1º grau.
É evidente que isso, por si, já teve o efeito de “desafogar” os Tribunais Regionais Federais.
Tome-se, agora, consultando o mesmo site antes mencionado (www.cjf.jus.br), a movimentação processual por seção judiciária, onde se pode constatar que o total de processos distribuídos na Justiça Federal de 1º grau, em todo o país, nos últimos 10 anos, tem se mantido acima dos dois milhões de processos por ano — observando-se, contudo, uma discreta redução a partir de 2006, o que, adiante, será melhor desenvolvido.
De qualquer sorte, fundamental ressaltar que tal estatística, como frisado no próprio site, engloba os valores dos Juizados Especiais Federais.
Então, imprescindível cotejar-se o quadro da movimentação processual por Seção Judiciária com o quadro da movimentação processual dos Juizados Especiais Federais.
E, ao fazê-lo, constata-se que, todos os anos, a partir de 2004, o número de processos distribuídos nos Juizados Especiais Federais (dos quais, reprise-se, não se geram recursos para os TRFs), foi maior do que o número de processos distribuídos na Justiça Federal Comum. Comparem-se, exemplificativamente, os dados de 2004: 1.533.647 processos nos JEFs e 1.109.677 na Justiça Federal Comum. A única exceção foi o ano de 2011, mas, mesmo assim, com uma discreta diferença entre as Justiças: 1.182.501 processos nos JEFs e 1.196.996 na Justiça Federal Comum.
A meu sentir, tais dados, por si, já evidenciam que, se há algum setor da Justiça Federal que pode precisar de maiores investimentos e/ou atenção esse é o dos Juizados Especiais Federais. Lá é que está, atualmente, a maior demanda por justiça formulada pelo cidadão brasileiro.
Além disso, também merece destaque a Lei 11.419/2006, que admitiu a tramitação eletrônica dos processos judiciais. Na medida em que essa tramitação eletrônica seja implantada em todo o país (por ora, quem está mais adiantado nesse sentido é o TRF da 4ª Região, onde a grande maioria dos processos já é eletrônica), não há dúvidas sobre o aumento da celeridade processual, nem do aumento da democratização do próprio acesso a todas as instâncias do Judiciário, sendo possível que, de qualquer parte, pela Internet, os advogados peticionem, inclusive, aos TRFs, o que afasta o possível argumento de que a criação de novos TRFs em outras localidades aproximaria a Justiça dos cidadãos.
Mas, afora tudo isso, é preciso compreender que a introdução das súmulas vinculantes pela Emenda Constitucional 45/2004 (que inseriu o artigo 103-A na Constituição Federal), bem como a introdução das sistemáticas da Repercussão Geral (Lei 11.418/2006, que introduziu os artigos 543-A e 543-B no CPC) e dos Recursos Repetitivos (Lei 11.672/2008, que introduziu o artigo 543-C no CPC), acarretaram uma verdadeira mudança de paradigma no sistema processual brasileiro, que, talvez, ainda não tenha sido bem percebida nem pela sociedade, nem mesmo por muitos setores jurídicos.
Muito resumidamente, explico que, com os mecanismos das súmulas vinculantes, da repercussão geral e dos recursos repetitivos, todas as grandes questões de massa, sejam atinentes à constitucionalidade de uma lei, sejam atinentes à legalidade, são, ao fim e ao cabo, dirimidas pelo STF e pelo STJ, produzindo efeitos, de uma só vez, para todas as ações semelhantes em tramitação no país.
Até a introdução desses mecanismos, apenas no controle concentrado de constitucionalidade (por ações diretas de inconstitucionalidade, por exemplo), havia essa possibilidade de uma única decisão do STF produzir efeitos imediatamente para todas as ações similares em tramitação no país — o chamado efeito vinculante.
No mais, as questões, mesmo as de massa, usualmente eram decididas uma a uma, às vezes num sentido, noutras vezes em sentido diametralmente oposto, levando-se em geral muitos e muitos anos até consolidar-se a jurisprudência num sentido dominante.
Já hoje, na medida em que uma questão considerada de Repercussão Geral ou Repetitiva chegue a um tribunal, tal como qualquer dos TRFs, são selecionados apenas alguns processos com recursos ao STF e/ou ao STJ para encaminhamento. Todos os demais semelhantes ficam sobrestados até o julgamento definitivo pelo STF ou pelo STJ.[1]
Talvez, aliás, isso explique a ligeira tendência que se observa, ao examinar as estatísticas da movimentação processual, de um discreto decréscimo do número de ações distribuídas nos últimos anos perante a Justiça Federal de 1º grau, o que, sem dúvida, acabará repercutindo nos TRFs. É que várias questões objeto de Repercussão Geral ou de Recurso Repetitivo já foram decididas. Na medida em que isso vai ocorrendo, deixam de ser propostas novas ações sobre tais matérias, pois a solução é de antemão conhecida e as partes envolvidas passam a se ajustar nos termos da jurisprudência consolidada.
Por outro lado, de se observar que o ano de 2012 foi atípico pelo menos no âmbito do STF, onde os esforços foram concentrados no sentido de se julgar o processo do mensalão. A partir do presente ano, com a retomada do ritmo normal do STF, milhares de feitos que estão sobrestados em todo o país, aguardando o julgamento por força da sistemática da Repercussão Geral, devem ser decididos.
Considerando que a imensa maioria das ações que tramitam na Justiça Federal envolvem questões de constitucionalidade e/ou legalidade e são ações de massa, pode-se concluir que está havendo uma verdadeira revolução paradigmática. E, arrisco-me a dizer, é bem provável que, num futuro próximo, haja um decréscimo considerável do número de processos distribuídos e, em consequência, em tramitação na Justiça Federal.
Isso significa que a própria Justiça Federal perderá sua importância?
Penso que não, pois sua importância está justamente na necessidade de especialização para bem resolver as questões de interesse da União, de suas autarquias, fundações e sociedades de economia mista.
Mas que a Justiça Federal, como um todo, está em franco processo de mutação, isso me parece evidente.
As grandes questões de constitucionalidade e/ou legalidade estão se sedimentando e à Justiça Federal restará analisar casos mais individualizados, tais como execuções fiscais, questões aduaneiras, crimes federais etc.[2]
E se se quer efetivamente celeridade processual, hoje, o que se tem de fazer é dar maiores e melhores condições aos Tribunais Superiores para que decidam as grandes questões já submetidas às sistemáticas da Repercussão Geral e dos Recursos Repetitivos — o que passa muito ao largo da criação de novos Tribunais Regionais Federais.
Claro que há problemas pontuais que requerem atenção. Em interessante artigo publicado pela Revista Consultor Jurídico, intitulado PEC dos novos TRFs é inconveniente e inconstitucional,Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti narra a briga verdadeiramente paroquial entre os estados da Bahia e de Pernambuco, que acabou redundando no fato de que a Seção Judiciária da Bahia ficasse vinculada ao TRF da 1ª Região, ao invés do TRF da 5ª Região, o que seria mais lógico.
E aponta: Os três estados com situação mais crítica em relação à geração de processos para o 2º Grau são: Bahia e Minas, na 1ª Região; e São Paulo, na 3ª Região. Destacando-se a Bahia para a 5ª Região, com ampliação do quadro de Juízes naquele TRF, com custo reduzido e com a agregação de Minas Gerais à 2ª Região — RJ (ou a criação de um único TRF para esses dois estados), com ampliação de quadro e com ampliação do quadro do TRF-3, ter-se-ia resolvido o problema. Poder-se-ia então destinar um décimo desses recursos para solucionar o maior problema de congestionamento da Justiça Federal, que são as estruturas dos Juizados Especiais Federais, sobretudo das turmas recursais”.
De qualquer sorte, tudo isso leva a um questionamento paralelo que é o seguinte: nesta nova era, onde a celeridade depende apenas, em grande parte dos casos, das decisões dos Tribunais Superiores, o que também acaba acarretando maior segurança jurídica, como fica o campo de trabalho para os milhares de bacharéis que, todos os anos, são formados pelas faculdades de direito preparados para o litígio judicial e veem diminuir o número de ações a serem propostas?
Será que não está na hora de haver uma profunda reformulação do sistema de ensino jurídico, pensando-se, antes, em formar advogados mais preparados para a consultoria empresarial, quiçá com conhecimentos de Direito Internacional, a fim de inserir o Brasil num mundo de competição empresarial em bases globais?
Mas, sem dúvida, essas são considerações que mereceriam todo um estudo à parte.
Por outro lado, parece-me muito oportuno, a partir das observações de Armando Castelar Pinheiro[3], referir que, quando se fala em reformar o Judiciário com vistas a torná-lo mais eficiente, geralmente, o que surge, em primeiro lugar, são as propostas de aumentar a disponibilidade dos recursos disponíveis, p.ex., aumentando o número de cargos de juízes. Mas isso não é, apenas, fazer mais da mesma maneira?
Como acima amplamente demonstrado, na realidade, há alguns anos, os legisladores e administradores brasileiros têm adotado soluções não só criativas, como eficazes, tanto no sentido de democratizar o acesso à Justiça (Juizados Especiais Federais e processos eletrônicos), como em torná-la mais célere, ao mesmo tempo em que se aumentou a segurança jurídica (por meio de súmulas vinculantes e dos mecanismos de Repercussão Geral e Recursos Repetitivos).
Ou seja, não se tem simplesmente feito mais do mesmo.
Pena que, agora, na contramão de todo esse movimento, tenha sido aprovada a PEC 544.
Considerando que é falaciosa toda a argumentação fundada no aumento do número de processos ou, mesmo, de aumento da celeridade processual por meio da criação de novos TRFs, a pergunta que fica é a seguinte: a quem interessa a criação desses TRFs? Seria àqueles que pretendem ver aumentado o número de cargos de desembargador federal porque almejam ocupar algum deles?
Em pleno século XXI, não está mais do que na hora de deixarmos de lado o velho ranço luso-tupiniquim de pensar apenas no interesse próprio sem medir as consequências disso para toda a sociedade?
Embora haja divergências sobre qual o custo efetivo para a instalação de 4 novos TRFs, não há dúvidas de que será um custo alto.
E, por tudo o que foi explanado acima (em síntese, relembre-se: o maior número de demandas nos JEFs, que não ensejam recursos para os TRFs, os processos eletrônicos e a mudança do paradigma processual, com as súmulas vinculantes, Repercussão Geral e Recursos Repetitivos, o que leva à suposição razoável, inclusive, de que num futuro próximo irá diminuir o número total de novas ações perante toda a Justiça Federal), absolutamente não faz sentido para a nação brasileira a criação desses novos 4 TRFs.

[1] Não existe uma estatística mais precisa do número de processos que, atualmente, já se encontra sobrestado nos tribunais por força da repercussão geral e/ou dos recursos repetitivos. No site do STF existe um quadro parcial, relativo a alguns tribunais, que atenderam à sua solicitação, prestando algumas informações, mas de acordo com o qual já se pode aferir que, no momento, já estão em milhares as ações paralisadas nos tribunais só por força da repercussão geral.
[2] A propósito, outro dado interessante a ser analisado, a partir do site www.cjf.jus.br, é que, em 2012, continuavam em tramitação na Justiça Federal Comum (após subtraídos os processos em tramitação nos JEFs) 4.589.016 processos, dos quais 3.369.681 são execuções fiscais.
[3] Cfr. o pensamento do autor no artigo: “Direito e economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto?”, in “Direito & economia”, org. Luciano Benetti Timm, 2.ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008, p. 19-47.
Simone Anacleto é procuradora da Fazenda Nacional e professora no Curso de Especialização em Direito Tributário da UFRGS
Revista Consultor Jurídico, 25 de abril de 2013

MINISTROS CRITICAM A PEC 33/11 QUE SUBMETE AS DECISÕES DA CORTE À ANÁLISE DO CONGRESSO NACIONAL


Ministros do Supremo Tribunal Federal criticaram, nesta quarta-feira (24/4), a proposta que submete as decisões da corte em ações diretas de inconstitucionalidade contra emendas constitucionais à análise do Congresso Nacional. A Proposta de Emenda à Constituição 33/11 foi aprovada também nesta quarta pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. O texto ainda tem de ser votado pelo plenário da Câmara, em dois turnos, para ser enviado ao Senado.
O ministro Marco Aurélio afirmou que, no contexto vivenciado pelas instituições, a aprovação pela CCJ soa como retaliação. “Uma retaliação que estaria sendo promovida, e eu não acredito que as duas casas do Congresso brasileiro assim se pronunciem, por políticos”, disse. Para o ministro, a aprovação da PEC atinge uma cláusula pétrea da Constituição Federal, a da separação dos poderes da República.
“Não creio que para a sociedade brasileira, para o almejado avanço cultural, essa submissão dos atos do Supremo seja boa. Ao contrário é perniciosa”, frisou Marco Aurélio. Segundo ele, “a última palavra não cabe ao setor político, cabe ao Judiciário, o órgão de cúpula, o guarda da Constituição é o Supremo”.
De acordo com o ministro Gilmar Mendes, discussões semelhantes se arrastam há muito no tempo e já foram superadas pelo constitucionalismo mundial. Ao menos, da forma como está colocada a proposta: “Na nossa memória constitucional isso evoca coisas tenebrosas. Nós temos precedente na Constituição de 1937, chamada polaca, em que o presidente da República podia cassar decisões do Supremo e confirmar a constitucionalidade de leis declaradas inconstitucionais. Acredito que não é um bom precedente e que a Câmara vai acabar rejeitando isso”. A Constituição de 1937 foi outorgada pelo governo Getúlio Vargas.
Questionado sobre a possibilidade de a proposta ser uma reação ao resultado do julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, Gilmar Mendes disse que não emitiria juízo sobre isso. Para Mendes, os fatores que podem desagradar são múltiplos: “A toda hora temos escaramuças, decidimos mandados de segurança, decidimos pela inconstitucionalidade de leis, produzimos decisões contramajoritárias. Pode ser qualquer questão, como a decisão sobre aborto de fetos anencéfalos, a permissão de pesquisa a partir de células-tronco embrionárias, união homoafetiva. Enfim, temos esse ônus de decidir e isso, sem dúvida, acaba desagradando e, às vezes, de forma muito ampla”.
Segundo o ministro, é preciso ver a importância do trabalho do tribunal ao longo da historia e verificar que, em geral, não é essa a solução adequada para resolver esse tipo de tensão entre poderes da República. O ministro Marco Aurélio também acredita que a aprovação não esteja ligada a uma reação pelo resultado do julgamento do mensalão. “Quando o Supremo vota atendendo os anseios da maioria, muito bom. Mas ele tem um histórico de decisões contramajoritárias. Nesse caso não, porque a sociedade aplaudiu o julgamento da Ação Penal 470. Não há espaço para esta mesclagem, a meu ver imprópria, que é a submissão das decisões do Supremo a um órgão político”, disse Marco Aurélio.
O primeiro ponto da PEC, de autoria do deputado federal Nazareno Fontes (PT-PI), é a alteração do artigo 97 da Constituição Federal. O dispositivo diz, hoje, que somente os órgãos especiais de tribunais, por maioria absoluta, podem declarar a inconstitucionalidade de leis. No caso do Supremo, só o Pleno pode fazê-lo. A ideia da PEC é mudar a redação do artigo 97 e estabelecer que, para declarar uma lei inconstitucional, deve estar configurada a maioria de quatro quintos.
Hoje, para declarações de inconstitucionalidade, são necessários seis votos. Com a PEC, seriam necessários nove votos. No caso do Tribunal de Justiça de São Paulo, que tem 360 desembargadores e cujo Órgão Especial tem 25 membros, seriam necessários 20 votos para declarações de inconstitucionalidade.
O ministro Gilmar Mendes também criticou o aumento de quórum. “Se nós temos uma composição de 11 ministros e temos que decidir por maioria absoluta, e muitas vezes temos dificuldade, acredito que isso acaba por inviabilizar as decisões. Veja que hoje já temos dificuldade para modulação de efeitos, quando se exige oito votos”, afirmou.
Já Marco Aurélio disse que, “quanto a isso, é possível cogitar-se de um quórum especial”. Mas não deixou de ironizar a proposta, citando Nelson Rodrigues: “Hoje para se declarar constitucionalidade ou inconstitucionalidade nós precisamos ter na corrente seis integrantes, seis votos. Veja, por exemplo, a questão da modulação. O legislador ordinário previu um quórum de oito votos. Aí teríamos nove, quem sabe a utopia, a unanimidade. Teríamos que ouvir o Nelson Rodrigues, no que dizia que toda unanimidade é burra”.
No exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Ricardo Lewandowski preferiu não emitir qualquer juízo de valor sobre a proposta. Ele observou que a PEC ainda será submetida à análise do plenário da Câmara e, depois, do Senado. "O Congresso Nacional, então, se pronunciará dentro da soberania que a Constituição lhe garante. E quando for o caso, e se for o caso, o Supremo examinará a constitucionalidade dessa decisão". Lewandowski não quis tecer considerações sobre os motivos que levaram à elaboração do proposta: "Não me manifesto sobre as motivações do Congresso Nacional para elaborar suas leis e suas emendas à Constituição".
O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, apesar de ressaltar que não conhece o teor da proposta, disse que, à primeira vista, é algo que causa perplexidade do ponto de vista constitucional. “Na verdade, aí se está vendo algo que não parece casar muito bem com a harmonia e independência entre os poderes”, afirmou Gurgel.
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 24 de abril de 2013

quarta-feira, 24 de abril de 2013

INDEPENDÊNCIA TÉCNICA DO ADVOGADO É GARANTIA AO CIDADÃO


O Estatuto dos Advogados ou da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei 8.906/94, preserva no artigo 7º, I e § 2º e artigo 18, a liberdade funcional e independência no livre exercício da função do advogado. Essas prerrogativas decorrem da independência e inviolabilidade conferida aos advogados no artigo 133, caput, da Constituição Federal de 1988, positivada para preservar a essencialidade da Justiça e todas as normas e princípios correlatos, precipuamente o Estado Democrático de Direito.
Faz-se necessário, contudo, identificar a razão para a existência dessas garantias. Nesse pormenor, imprescindível destacar que a Constituição Federal de 1988 foi sistematizada tendo como uma de suas premissas o equilíbrio entre os poderes, que devem ser harmônicos e independentes. Todavia, para a concretização desses preceitos o Constituinte entendeu relevante positivar no Título IV da CF, que trata da Organização dos Poderes, um capítulo destinado às Funções Essenciais à Justiça (Capítulo IV).
Entre as funções essenciais à Justiça, a Carta Magna positivou o Ministério Público, a advocacia pública, a Defensoria Pública e a advocacia stricto senso em um mesmo patamar hierárquico, não fazendo qualquer menção à prevalência de uma instituição ou órgão. Outrossim, o desígnio Justiça não teve um alcance restrito, de prestação jurisdicional, mas sim de isonomia, imparcialidade, preservação dos direitos, eliminação da ingerência do Estado, cidadania e democracia, o que Diogo de Figueiredo Moreira Neto convencionou chamar de “Estado de Justiça”.
O Constituinte não restringiu ao Poder Judiciário a prestação da Justiça, exigindo a intervenção do Ministério Público, da advocacia pública, da Defensoria Pública e da advocacia privada, como garantidores e defensores dos interesses da sociedade e do Estado. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao discorrer sobre o papel afeto às Funções Essenciais à Justiça, consigna que[1]:
Sem esses órgãos, públicos e privados de advocacia, não pode haver justiça, aqui entendida como a qualidade ética que pretende exigir do Estado pluriclasse quanto à legalidade, à legitimidade e à licitude. E porque essa justiça só pode vir a ser realizada em sua essencialidade se dispuser dessas funções, autônomas, independentes, onipresentes, e, sobretudo, corajosas, o legislador constitucional as denominou de ‘essenciais à justiça’ (Título IV, Capítulo IV, da Constituição).
Mais a mais, pode-se acrescer, ainda segundo as lições de Diogo de Figueiredo Moreira Neto[2]:
Não haja dúvida de que, ao recolher, na evolução teórica e prática do constitucionalismo dos povos cultos, novíssimas expressões institucionais, como o são a participação política e as funções essenciais à justiça, o Constituinte de 1988 deu um passo definitivo e, oxalá, irreversível, para a preparação do Estado brasileiro do segundo milênio como um Estado de Justiça, aspiração, como se expôs, mais ambiciosa do que a realização de um Estado Democrático de Direito, que naquela se contém e com ela se supera.
Dito de outra forma pode-se asseverar que a positivação do Ministério Público ao lado das novas instituições constitucionais, advocacia pública, Defensoria Pública e advocacia stricto senso veio concretizar a intenção de justaposição dessas funções, necessitando-se garantir a elas atuação dentro do mesmo patamar hierárquico e repelindo-se qualquer grau de subordinação entre si ou internamente, tendo em vista sua “essencialidade”. Nesse sentido dispõe o artigo 6º da Lei 8.906/94, consignando que “não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos”.
Portanto, para o exercício das atribuições ínsitas à advocacia, garantindo a promoção da Justiça com liberdade e igualdade, é imprescindível proteger a independência técnica do advogado, que, como observado, está atrelada à defesa do Estado Democrático de Direito e dos cidadãos. Considerando a importância do bem tutelado o artigo 2º, parágrafo único, II, do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil impõe como dever do advogado “atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé”.
Especificamente em relação à advocacia pública, órgão técnico capaz de prestar auxílio ao governante e ao mesmo tempo resguardar os interesses sociais, é fundamental garantir essa liberdade através da inviolabilidade no exercício da função. Essa ferramenta é indispensável para o exercício de suas competências de maneira isenta e técnica, impedindo a intervenção que possa macular a independência profissional e indispensável para que a atividade tenha como único desiderato o interesse público. Nessa esteira, Derly Barreto e Silva Filho entende que a autonomia funcional:
"há de ser entendida como a prerrogativa que assegura aos advogados públicos o exercício da função pública de consultoria e representação dos entes políticos independente de subordinação hierárquica (seja a outro Poder, seja aos próprios chefes ou órgãos colegiados da Advocacia Pública) ou de qualquer outro expediente (como manipulação de remuneração) que tencione interferir, dificultar ou impedir o seu poder-dever de oficiar de acordo com a sua consciência e a sua missão de velar e defender os interesses públicos primários, sem receio de "desagradar" quem quer que seja, Chefes de Poderes Executivos, Ministros, Secretários, Advogado Geral da União, Procuradores Gerais de Estados, órgãos colegiados das Procuraturas, chefia mediatas ou imediatas, magistrados ou parlamentares". (Silva Filho, Derly Barreto e. O Controle da Legalidade diante da remoção e inamovibilidade dos Advogados Públicos, Tese Aprovada no XXIII Congresso Nacional de Procuradores do Estado, 11/97).
Essas razões dão amparo a uma súmula editada pela Comissão Nacional da Advocacia Pública do Conselho Federal da OAB objetivando preservar o mister da advocacia pública de defender o Estado brasileiro independente de quem esteja ocupando o governo e conforme os desígnios constitucionais:
Súmula 2 – A independência técnica é prerrogativa inata à advocacia, seja ela pública ou privada. A tentativa de subordinação ou ingerência do Estado na liberdade funcional e independência no livre exercício da função do advogado público constitui violação aos preceitos Constitucionais e garantias insertas no Estatuto da OAB.
Tolher a liberdade do advogado é fragilizar a defesa do cidadão e as premissas do Estado Democrático de Direito.

[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Constituição e Revisão: Temas de Direito Político e Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 31.
[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As Funções Essenciais à Justiça e as Procuraturas Constitucionais. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo: n. 36, dez. 1991, p. 13.
Allan Titonelli Nunes é procurador da Fazenda Nacional e presidente do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz).
Revista Consultor Jurídico, 24 de abril de 2013

A PEC 37 E OS PRESSUPOSTOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO



I. A importância e as precauções da atividade legislativa
Há muito se acentua, no âmbito da teoria da legislação, a importância e “a delicadeza da tarefa confiada ao legislador”[1]. Diante do caráter abstrato e genérico dos atos normativos editados pelo Poder Legislativo, não se pode desconsiderar, na sábia advertência do ministro Gilmar Mendes, as gravíssimas consequências que deverão ser suportadas por toda comunidade quando políticas e programas são concretamente convertidos em normas legais vinculantes, sem que, no entanto, sejam consideradas adequadamente todas as implicações daí resultantes.

Graças ao seu caráter genérico e abstrato, mas sempre de efeito vinculante, qualquer mudança legislativa — sobretudo na forma de Emenda Constitucional — deveria realçar em todos nós o mais honesto sentido de prudência, especialmente, com seus imprevisíveis efeitos colaterais, já que são eles, com frequência, os mais deletérios. Pela mesma razão, Victor Nunes Leal recomendava absoluta prudência ao Poder Legislativo, porquanto "tal é o poder da lei que a sua elaboração reclama precauções severíssimas. Quem faz a lei é como se estivesse acondicionando materiais explosivos. As consequências da imprevisão e da imperícia não serão tão espetaculares, e quase sempre só de modo indireto atingirão o manipulador, mas podem causar danos irreparáveis"[2].
É por isso também que, segundo advertência internacionalmente reiterada, especialmente nas nações mais sérias, o afazer legislativo revela-se sempre de caráter residual, devendo o legislador atuar apenas e tão somente quando, de forma incontornável, se mostre necessária alguma inovação de caráter legislativo. No dizer do ministro Gilmar Mendes, em sua ilustrada pena, “a despeito dos cuidados tomados na feitura da lei (os estudos minudentes, os prognósticos realizados com base em levantamentos cuidadosos etc.), não há como deixar de caracterizar o seu afazer como umaexperiência. Trata-se, porém, da mais difícil das experiências, a ‘experiência com o destino humano’”[3].
Pois bem, não obstante todas as implicações históricas e a apreensão social que a medida suscita,tem curso no Congresso Nacional, convertido em poder constituinte derivado, a Proposta de Emenda Constitucional 37, a já famosa PEC 37, mediante a qual, segundo sua própria ementa, pretendem seus autores “definir a competência para a investigação criminal pelas polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal”.
É importante ressaltar, para uma correta avaliação da oportunidade e conveniência de uma tal proposta de Emenda ao texto constitucional, que a defesa mais recente de sua aprovação pelo Congresso se verifica quando o Supremo desenvolve relevante esforço hermenêutico e jurisprudencial para delimitar os poderes investigatórios do ministério. Além disso, é de se anotar que, mesmo acentuando a necessidade de controles procedimentais à investigação do Parquet — aliás, como qualquer investigação do Estado —, todas as vezes que o Supremo enfrentou a matéria, jamais lhe ocorreu negar a possibilidade de investigação criminal por membros do Ministério Público.
Assim, apenas para ficar num dos melhores exemplos de sua jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal não só confirmou — mais uma vez — a possibilidade de investigação pelo Ministério Público, como estabeleceu uma série de pressupostos e condições dessa específica atuação ministerial, já que, obviamente, ninguém pode discordar que, à semelhança de qualquer poder estatal, também “o poder de investigar do Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais” (HC 84.965 / MG — relator ministro Gilmar Mendes).
Pois bem, retornando à PEC 37, não obstante todo o esforço hermenêutico do Supremo, descontadas algumas alterações que o texto vem sofrendo e ainda possa sofrer em sua peregrinação pelo Congresso, o que se busca com a referida proposta de Emenda, na essência, mais do que o seu objetivo declarado de “definir a competências para a investigação criminal da polícia federal e das polícias civis dos Estados”, é subtrair do Ministério Público o poder de investigação de fatos criminosos.
De fato, todos os pareceres favoráveis que foram produzidos, no âmbito do Congresso, não deixam a menor dúvida de que, mais do que organizar competências policiais, o que ali se pretende é excluir de nossa realidade constitucional a possibilidade de investigação criminal direta pelo Ministério Público.
De regra, o que se infere das discussões havidas na Casa do Povo é que os nossos representantes eleitos parecem ressentir-se de um certo protagonismo por parte de membros do Ministério Público, o que seria bem traduzido por certo temor de que, ao investigar, promotores de Justiça e procuradores da República, estejam, em verdade, “selecionando seus alvos, definindo seus adversários e escolhendo suas vítimas ao sabor de opções que não têm caráter técnico”, no preciso resumo de um admirado articulista nacional.
Por exemplo, em passagem de parecer exarado no âmbito da própria Câmara dos Deputados, repete-se a mesma ideia, para acentuar a posição de determinado representante da classe dos delegados de polícia, que manifestou a posição de sua entidade “no sentido da aprovação da PEC por entender que a investigação policial produzida a latere pelo MP, numa persecução penal sem regras legais e sob critério de seletividade, significa uma grave preocupação pela ofensa que pode causar aos direitos individuais”. Acrescenta-se ainda a ideia de que o monopólio da investigação criminal busca atender a um direito do cidadão de “ser investigado por uma instituição isenta, imparcial, cuja atividade de investigação visa a trazer à tona todos os atos, autoria e materialidade, permitindo ao MP, a Justiça, a defesa e a acusação que atuem conforme o foi apurado”.
II. A PEC 37 e a realidade dos fatos
Aqui, entretanto, começam, precisamente, os graves problemas de incongruência lógica entre as boas intenções da PEC 37 e os pressupostos de onde partem as entidades que a promovem de forma tão viva e honestamente.

Um dos maiores erros dos agentes públicos ao concretizar os seus ideários políticos em atos legislativos, através dos quais pretendem enfrentar os mais graves problemas da sociedade, é julgar instituições, pessoas, políticas e programas por suas intenções, e não em consideração a seus resultados e à realidade em que deverão se desenvolver. De fato, as leis, inspiradas mais nas boas intenções daqueles que as produzem do que num exame frio dos fatos, com mais frequência do que o desejável, tendem a alcançar resultados absolutamente diversos — muitas vezes opostos — daqueles que, honesta e expressamente, ostentavam por ocasião do processo legislativo do qual originaram.
O legislador, portanto, mais do que qualquer agente público, pela gravidade das funções que desempenha, não tem o direito de desconsiderar os fatos sociais que envolvem a decisão política que pretende converter em lei, assim como não pode menosprezar a possibilidade de consequências não almejadas pela concretização de seu afazer legislativo. De fato, quem quer enfrentar a sério problemas humanos não pode dar-se ao luxo de ser incoerente ou contraditório consigo mesmo e com a realidade dos fatos sociais.
Dizendo-o de uma forma teoricamente mais elaborada, Robert Alexy estabelece, como uma das principais regras de um catálogo de pressupostos de todo discurso normativo, o dever de coerência e de honestidade. De fato, se alguém pretende que, num embate discursivo, em que se pretenda produzir normas de condutas humanas, prevaleça a força da verdade e não a força de suas convicções, deve impor-se pelo menos três regras de argumentação: (1) a primeira afirma que todo falante que busca participar de uma discussão séria “só pode afirmar o que ele próprio acredita”, (2) a segunda regra dispõe que todo falante que afirma de um objeto “a” um predicado F deve estar disposto também a aplicar o mesmo predicado F a qualquer outro objeto “x”, que se assemelhe a “a” em todos os seus aspectos relevantes e (3) afirma a terceira regra que “nenhum falante pode contradizer-se”[4].
Ora, por tudo o que se conhece de investigações e ações policiais em nosso país, só um total descompromisso com a realidade dos fatos, de quem efetivamente não parece acreditar no que afirma, permitirá dizer que, de regra, a polícia em nosso país, ou em qualquer lugar do mundo, é uma instituição mais “isenta e imparcial”, ou que garante mais os direitos dos investigados, do que o Ministério Público.
Nesse ponto, pelo respeito que dedico à instituição policial, gostaria de ser bem entendido. Com essa conclusão, não quero e não posso enunciar qualquer juízo de valor absoluto em relação às instituições e aos agentes policiais. Tenho em meu rol amigos, com indisfarçável orgulho, um sem-número de delegados e agentes da Polícia Federal. Servidores públicos de indiscutíveis virtudes cívicas e relevantíssimos serviços prestados à nação. Entretanto, não se pode desconsiderar o fato de que, por sua própria natureza e vocação, instituições policiais, preocupam-se antes com o resultado de suas ações do que com a “imparcialidade ou isenção” de seu trabalho. Instituições policiais, em qualquer lugar do mundo, ao organizarem-se — sem exceção — pelo princípio da hierarquia, estão comprometidas invariavelmente — e não digo que deva ser diferente — com a política criminal do poder a que se subordinam.
A relativa e elogiosa independência que o Departamento de Polícia Federal tem ostentado nos últimos anos é, como sabemos, muito mais fruto de uma por assim dizer liberalidade republicana dos sucessivos presidentes e presidenta da República, bem como dos ministros que estiveram à frente da pasta da Justiça, do que da existência de qualquer imperativo legal ou constitucional que lhe assegure alguma independência, imparcialidade ou isenção na persecução e desenvolvimento de suas elevadas atribuições. Tanto é verdade, que uma das mais antigas reivindicações das entidades representativas dos delegados de polícia é, precisamente, a independência em relação ao Poder Executivo. De outro lado, como sabem todos, de regra não se vê em governos estaduais (não digo em todos) a mesma independência verificada no nível federal.
De qualquer sorte, e dizendo da forma mais honesta que posso dizê-lo, nenhuma polícia do mundo sai às ruas para encontrar inocentes. A prova da inocência de um investigado, conquanto possa resultar de uma investigação policial, não é, por óbvio, a preocupação primeira da autoridade policial ao investigar um crime e, sim, os elementos de convicção de autoria e materialidade. Pela mesma razão, ao contrário das elogiáveis intenções ostentadas pela PEC 37, caso de fato se consagre o eventual monopólio da atividade investigatória às autoridades policiais, a nenhum ingênuo é dado esperar que, no dia seguinte à sua promulgação, sejamos confrontados com a implausível realidade de delegados de polícia preocupados em colher provas que “inocentem” o investigado, ao invés de encontrar as provas que certifiquem o autor e o fato criminoso. Obviamente, isso não indica que a polícia tenha como propósito “fabricar” a autoria de crimes, mas tão somente que a sua preocupação está voltada à elucidação do fato criminoso e a descoberta de sua autoria, e não a certificação da inocência de quem quer que seja. Isso tampouco é uma característica apenas da polícia brasileira.
Evidentemente, não caio na armadilha lógica de comprometer-me com o sentido contrário da uma outra ingenuidade, aquela de acreditar que, só porque desenvolvida por membro do Ministério Público, a investigação criminal estaria protegida de abusos e parcialidades. Membros do Ministério Público, de regra, também estão comprometidos com a busca de provas que elucidem fatos criminosos e que, por conseqüência, assegurem — ato contínuo — uma ação penal vitoriosa. Contudo, o que, de regra assegura, ao meu sentir, uma maior isenção — não uma isenção absoluta — do membro do Ministério Público é, sobretudo, suas prerrogativas constitucionais, que garantem sua independência em relação a qualquer outra autoridade ou vontade de poder. Mas, sendo intelectualmente honesto, devo novamente acentuar que nem mesmo essas garantias protegerão o membro do Ministério Público de, ao final, acabar-se envolvido pelo resultado da investigação que autonomamente desenvolva.
Em síntese, como tem acentuado o próprio Supremo Tribunal Federal (como veremos adiante), nem a investigação do Ministério Público, nem a investigação da polícia, nem a investigação de quem quer que seja, está livre de parcialidades ou abusos. Já fui membro do Ministério Público e hoje integro a magistratura. E para afastar qualquer nota corporativa, mesmo agora devo dizer que também o magistrado, nas ocasiões que por lei deve presidir investigações, não estará livre de abusos e parcialidades.
III. Das garantias do investigado nas investigações criminais
Não será, portanto, excluindo do Ministério Público o poder de investigação criminal que se eliminará, nem mesmo se diminuirá, a possibilidade de alguém ser vítima de abusos resultantes de investigações estatais. De fato, a possibilidade de abusos e arbitrariedades não resulta essencialmente da instituição onde se desenvolve a investigação, mas da ausência de garantias que protejam o investigado no momento em que é submetido à força investigatória do Estado.

Portanto, aqueles que estejam preocupados com a possibilidade de arbitrariedades e abusos eventualmente perpetrados contra os investigados devem buscar protegê-los com acréscimos de garantias, pouco importando, pois, a instituição que desenvolva a investigação.
Apenas para ficar em exemplo absolutamente fora de discussão, ao contrário de outros países democráticos, o nosso Código de Processo Penal, na fase do inquérito policial, fruto de seu contexto histórico, basicamente desconhece — pelo menos de forma séria — a garantia de produção de prova em favor ou por solicitação do investigado. Vejamos.
De fato, nesse particular, devemos convir que no artigo 6o, do CPP, os incisos I, II e III muito pouco dizem a favor do investigado, quando impõem à autoridade policial, logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, o dever de tomar as seguintes providências: “I — dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; II — apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais e   III — colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias”. Por sua vez, o artigo 14, do mesmo CPP, não obstante possibilite ao investigado requerer diligências, conclui, sem maior fundamento, por estabelecer que a diligência assim requerida “será realizada, ou não, a juízo da autoridade”.
Como se sabe, em outras democracias, cuja história dos direitos fundamentais se revela mais consistente que a nossa, a legislação processual penal confere um amplo rol de garantias ao investigados, que se impõem a qualquer investigação criminal, não importa se desenvolvida pelo Ministério Público ou por instituição policial. Vejamos.
Deixemos de lado, por já ser amplamente conhecido de todos, o caso dos Estados Unidos, onde a Suprema Corte, na sequência do caso Miranda vs. Arizona — 384 U.S. 436 (1966) —, desenvolveu uma série de direitos e garantias em favor do investigado (Miranda rights) que se impõem ao Ministério Público e à autoridade policial antes mesmo de instaurada a instância judicial.
Na Itália, exemplo dos maiores processualistas que inspiraram nossa produção legislativa e jurisprudencial, sua Corte Constitucional, na sentença 88/1991, diante do inegável poder do Ministério Público para produzir investigação criminal, deixou todavia assentado que, “mesmo no novo processo, o Ministério Público é obrigado a realizar investigações (indagini) completas e buscar todos os elementos necessários para uma decisão justa, incluindo aqueles favoráveis ​​ao acusado” (favorevoli all'imputato)[5]. Por isso mesmo conclui Paolo Barille, “o novo código de processo penal, em harmonia com essa visão de magistrado do Ministério Público, isto é, órgão imparcial, sanciona o poder-dever do Ministério Público para realizar investigações sobre a base do exercício da acusação e da apreciação dos fatos específicos, incluindo as provas favoráveis ​​ao 'réu”[6].
Na Alemanha, não é diferente. No parágrafo 160 de seu Código de Processo Penal (Strafprozessordnung), em sua frase (2), o legislador alemão entendeu por bem deixar expressamente disposta a obrigação de o Ministério Público (Die Staatsanwaltschaft), ainda na fase da investigação, “verificar não só as circunstâncias incriminatórias (Belastung), mas também as que servem para exonerar (Entlastung), assim como tomar o cuidado de recolher as provas que se possa recear sejam perdidas”[7].
Além disso, no parágrafo 163-a, frase (2), o Código alemão, expressamente, dispõe que “requerida pelo inculpado (Beschuldigte) a coleta de provas para a sua exoneração ou liberação (Entlastung), então elas devem ser colhidas quando se revelem importantes”.
Além desses expressivos exemplos, todo o Segundo Capítulo do Segundo Livro do Código de Processo Penal alemão está dedicado expressamente à “Preparação da ação (penal) pública”. Nesse complexo normativo, além dos dispositivos já referidos, em sua maior parte, o que se ali se contem é um conjunto de normas a impor um poder-dever de investigação que, vinculando o Ministério Público e a autoridade policial, criam um procedimento de investigação criminal que visa assegurar tanto um correto esclarecimento do fato delituoso, como exonerar de responsabilidade — e da indevida atuação do Estado — o cidadão que, pelas provas que devem ser também colhidas pelas autoridades públicas, tem o direito de provar sua inocência.
Tudo considerado, se podermos nos espelhar na experiência hoje quase unânime de antigas e consolidadas democracias, muito melhor andaria o legislador pátrio se, ao invés de tomar partido de interesses acentuadamente corporativos, ficasse ao lado do cidadão e, sem comprometer a possibilidade de investigação do Ministério Público, cuidasse de regular o procedimento investigatório criminal, pouco importando se a investigação fosse desenvolvida pela polícia, pelo Ministério Público ou por qualquer outra autoridade do Estado, para prestigiar o mais possível os direitos e garantias fundamentais do investigado.
Veja que essa é precisamente a mesma conclusão que o STF, no referido HC 84.965, ao afirmar a investigação criminal pelo Ministério Público, acabou por consagrar. Ao confirmar a prerrogativa investigatória do MP, o STF estabeleceu algumas condições e pressupostos que, além de tudo, deveriam informar, em futura disciplina legal, qualquer forma de investigação criminal (cito, destacando): “A celeuma sobre a exclusividade do poder de investigação da polícia judiciária perpassa a dispensabilidade do inquérito policial para ajuizamento da ação penal e o poder de produzir provas conferido às partes. Não se confundem, ademais, eventuais diligências realizadas pelo Ministério Público em procedimento por ele instaurado com o inquérito policial. E esta atividade preparatória, consentânea com a responsabilidade do poder acusatório, não interfere na relação de equilíbrio entre acusação e defesa, na medida em que não está imune ao controle judicial — simultâneo ou posterior. O próprio Código de Processo Penal, em seu artigo 4º, parágrafo único, dispõe que a apuração das infrações penais e da sua autoria não excluirá a competência de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função. À guisa de exemplo, são comumente citadas, dentre outras, a atuação das comissões parlamentares de inquérito (CF, artigo 58, parágrafo 3º), as investigações realizadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF (Lei 9.613/98), pela Receita Federal, pelo Bacen, pela CVM, pelo TCU, pelo INSS e, por que não lembrar, mutatis mutandis, as sindicâncias e os processos administrativos no âmbito dos poderes do Estado. Convém advertir que o poder de investigar do Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais. A atividade de investigação, seja ela exercida pela Polícia ou pelo Ministério Público, merece, por sua própria natureza, vigilância e controle. O pleno conhecimento dos atos de investigação, como bem afirmado na Súmula Vinculante 14 desta Corte, exige não apenas que a essas investigações se aplique o princípio do amplo conhecimento de provas e investigações, como também se formalize o ato investigativo. Não é razoável se dar menos formalismo à investigação do Ministério Público do que aquele exigido para as investigações policiais. Menos razoável ainda é que se mitigue o princípio da ampla defesa quando for o caso de investigação conduzida pelo titular da ação penal. Disso tudo resulta que o tema comporta e reclama disciplina legal, para que a ação do Estado não resulte prejudicada e não prejudique a defesa dos direitos fundamentais. É que esse campo tem-se prestado a abusos. Tudo isso é resultado de um contexto de falta de lei a regulamentar a atuação do Ministério Público. No modelo atual, não entendo possível aceitar que o Ministério Público substitua a atividade policial incondicionalmente, devendo a atuação dar-se de forma subsidiária e em hipóteses específicas, a exemplo do que já enfatizado pelo ministro Celso de Mello quando do julgamento do HC 89.837/DF: “situações de lesão ao patrimônio público, [...] excessos cometidos pelos próprios agentes e organismos policiais, como tortura, abuso de poder, violências arbitrárias, concussão ou corrupção, ou, ainda, nos casos em que se verificar uma intencional omissão da Polícia na apuração de determinados delitos ou se configurar o deliberado intuito da própria corporação policial de frustrar, em função da qualidade da vítima ou da condição do suspeito, a adequada apuração de determinadas infrações pena(is)”.
Em resumo conclusivo, ao meu sentir, a energia de nossos legisladores deveria ser consagrada em garantir uma adequada persecução criminal, mas de ordem a resguardar sempre e sempre, não importa se em inquérito policial ou em investigação pelo Ministério Público, os mais amplos direitos fundamentais do cidadão.

[1] Brasil. Presidência da República. Manual de redação da Presidência da República / Gilmar Ferreira Mendes e Nestor José Forster Júnior. – 2. ed. rev. e atual. – Brasília : Presidência da República, 2002, p. 76.
[2] LEAL, Victor Nunes. Técnica Legislativa. In: Estudos de direito público. Rio de Janeiro, 1960. p. 7-8, apud Brasil. Presidência da República. Manual de redação da Presidência da República / Gilmar Ferreira Mendes e Nestor José Forster Júnior. – 2. ed. rev. e atual. – Brasília : Presidência da República, 2002, p. 76.
[3] No texto, o festejado constitucionalista brasileiro e magistrado de nossa Suprema Corte, refere a célebre passagem de Herman Jahrreiss: “Legislar é fazer experiências com o destino humano", cfe. JAHRREISS, Hermann. Groesse und Not der Gesetzgebung. 1953. p. 5, apud Brasil. Presidência da República. Manual de redação da Presidência da República / Gilmar Ferreira Mendes e Nestor José Forster Júnior. – 2. ed. rev. e atual. – Brasília : Presidência da República, 2002, p. 76.
[4] Como se sabe, na sua Teoria da Argumentação Jurídica, o autor enumera uma série de outras regras ínsita à argumentação e ao discurso normativo, tudo cfe. Robert Alexy. Theorie der juristischen Argumentation: die Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der juristischen Begründung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, p. 361.
[5] Paolo Barile et al. Istituzioni di Diritto Pubblico. 8ª. ed, Padova: Cedam, 1998, p. 431.
[6] Paolo Barile et al. Istituzioni di Diritto Pubblico. 8ª. ed, Padova: Cedam, 1998, p. 431/2.
[7] (2) Die Staatsanwaltschaft hat nicht nur die zur Belastung, sondern auch die zur Entlastung dienenden Umstände zu ermitteln und für die Erhebung der Beweise Sorge zu tragen, deren Verlust zu besorgen ist.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 23 de abril de 2013

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