Decisões judiciais devem fazer diferença
Saber “como” os
juízes decidem é uma questão fundamental em um Estado Democrático de Direito
que propugna pela proteção dos Direitos Fundamentais. Sabemos que,
diferentemente do Estado Liberal e do Estado de Bem-Estar, no Estado
Democrático de Direito (Democratic Rule of Law) (1) há uma grande
preocupação não apenas com a declaração de direitos, mas também com garantir
formas de se proteger os mesmos.
Entre as
“garantias constitucionais”, os meios judiciais assumem singular importância.
Daí porque sabermos a “forma” em que a decisão se dá (ou como deveria) é
fundamental na promoção dos Direitos Fundamentais. Entretanto, se por um lado,
deve-se superar concepções positivistas, que reduzem a aplicação do direito à
mera subsunção, não se deve, por outro lado, transpor o “código” próprio do
Direito e transformar a resolução de casos jurídicos em sopesagem de valores,
como se direitos fossem “bens” que pudessem ser “maximizados” ou “minimizados”,
tal qual propõe Alexy e vem se utilizando o STF, através do princípio da
proporcionalidade.
Para responder às
exigências do Estado Democrático de Direito, propomos no presente mostrar as
respostas que, a partir de Habermas e de Luhmann podem ser dadas. Com Habermas
e Luhmann chamaremos a atenção para o caráter deontológico do Direito, que,
como subsistema social, se move por um código próprio (direito/não direito) — e
não por códigos graduais de valor, como propõe a teoria alexyana. A partir de
Luhmann, vemos que Direito e Política são subsistemas sociais autopoiéticos,
cada um se reproduzindo a partir de seus códigos próprios e que a Constituição
se revela como acoplamento estrutural (Luhmann) — ou, em Habermas, como
“dobradiça” — que permite que haja comunicação entre aqueles sistemas, de tal
forma que ambos podem prestar serviços mútuos um ao outro, sem, contudo,
perderem suas respectivas identidades.
Tomando-se os
postulados de Habermas, entendemos que qualquer decisão judicial deve ser o
produto de uma reconstrução do caso concreto, tomado como evento único e
irrepetível e do Ordenamento Jurídico como “mar revolto de normas”, em sua
“integridade”, é dizer, deve o magistrado mostrar como foi formado seu
convencimento, tendo em mira a conformidade ou não das pretensões a direito
levantadas pelas partes face às especificidades do caso sub judice —
de tal forma que a decisão seja o produto daquilo que foi produzido em
contraditório pelas partes, com a cooperação do magistrado, de modo racional.
Sobre o conceito
de racionalidade, Habermas faz uma diferença entre a “razão prática”, própria
da filosofia da consciência e a “razão comunicativa”, própria da filosofia da
linguagem. Para ele, após Auschwitz não há mais como continuar se acreditando
no poder emancipador da razão (prática), tal como defendido pelo cartesianismo
e kantismo (2). Por outro lado, Habermas não entende que a crítica pura e
desconstrutiva (como Nietzsche e Derrida) à razão seja possível, já que toda
crítica da razão também é produto da razão (HABERMAS, 1998, página 59) —
por razões semelhantes não acredita em uma pós-modernidade, já que também
acredita que há promessas ainda não cumpridas pela mesma. Sua alternativa é a
ideia de “razão comunicativa”, em uma perspectiva procedimental, haja vista
que, se de um lado há a crítica aos excessos da razão solipsista, por outro não
há nada “mais alto” para além de nós mesmos, mas agora não considerados
isoladamente, mas entendendo que compartilhamos formas de vida que são
estruturadas (intesubjetiva e) linguisticamente (HABERMAS, 1998, página 59).
O que é
problemático, para alguns no Direito, isto é, enxergar que a crença cega no
absolutismo da razão não faz mais sentido após os excessos vivenciados nos dois
últimos séculos, onde, ao invés de gerar “libertação e igualização” gerou
exploração e genocídio instrumentalizados. Assim, quando se aprovam mecanismos
como “Súmulas Vinculantes” e “efeitos vinculantes” em controle concentrado de
constitucionalidade de leis o que se tem ainda é a crença cartesiana de que a
realidade é um dado objetivo, estático, que possa ser “presa” através de
fórmulas — de forma semelhante como se pensou ser possível com o Código Civil
francês. Complementar a isso estão outras reformas no processo nada mais fazem
do que diminuir a esfera de discussão, na ideia de que a diminuição gerará
celeridade, quando, na verdade, o efeito é justamente contrário, ou seja, que é
justamente a possibilidade do amplo debate e esclarecimento no primeiro grau
que pode, potencialmente, reduzir a possibilidade de recursos desnecessários
(NUNES; BAHIA, 2009).
A razão comunicativa
supõe que o entendimento sobre algo no mundo se dá intersubjetivamente, a
partir de um conjunto de condições contrafácticas possibilitantes; supõe, por
isso, compreender o outro como igual portador dos mesmos direitos (3).
Entretanto, a
possibilidade do entendimento fica “prejudicada” por uma sociedade descentrada
e pós-metafísica, onde não há mais homogeneidade sobre conceitos de moral,
ética, etc. (HABERMAS, 2001, página 94) Há que se atentar, no entanto, que,
mesmo não compartilhando as mesmas expectativas, existem “consensos de fundo”,
isto é, temas não questionados que possibilitam o mínimo de entendimento (a
esse pano de fundo de silêncio Habermas reutiliza a ideia de mundo da vida)
(HABERMAS, 1998, página 83).
A todo momento, no
entanto, quaisquer temas podem sair do “silêncio” e adentrar a arena pública de
discussão, o que, mais uma vez, faz ressurgir a possibilidade do dissenso
(HABERMAS, 1998, página 87 e OLIVEIRA, 1989, página 32), que deve ser
compensado por arenas públicas de integração social (4). O meio institucional
que, contingencialmente, surgiu na modernidade para fazer frente a isso foi a
constituição do Direito como medium de integração social,
possibilitando a estabilização de expectativas de comportamento (5).
O Direito não
apenas possibilita que tenha curso a ação comunicativa, mas também possui o
poder de conter ações estratégicas (isto é, orientadas apenas ao próprio
êxito)(6). Ele aparece, então, como coerção (facticidade), mas também como
conjunto de normas legítimas (validade), de forma que os destinatários das
normas podem obedecê-las por lhes reconhecer sua validade ou então simplesmente
por temer a coação. A validade do Direito advém do reconhecimento, por parte
dos destinatários das normas, como também sendo normas feitas por eles (através
de seus representantes) — o processo legislativo é o meio institucional através
do qual se gera “solidariedade social”, de forma que a possibilidade de
obtenção de consenso pode se dar não porque todos concordem sobre (isto é,
compartilhem) certos valores, mas porque concordam sobre a forma (o
procedimento) de discordar (FARIA, 1978, página 65).
Esse Direito, na
Modernidade, se origina a partir da tensão entre Soberania Popular (autonomia
pública) e Direitos Humanos (autonomia privada). Os cidadãos de um Estado,
através do processo legislativo (autonomia pública) se dão direitos, mas eles
apenas podem fazer isso porque, ao mesmo tempo, se reconhecem como livres e
iguais portadores dos mesmos direitos (autonomia privada). O conjunto desses direitos
de participação política e dos direitos individuais forma o que Habermas chama
de “Sistema de Direitos”, ou seja, aqueles direitos que os indivíduos
reconhecem reciprocamente quando decidem regular sua convivência através do
Direito (HABERMAS, 1998, página 164ss.).
Através da
institucionalização de um procedimento legislativo democrático, cria-se uma
arena institucional para onde temas fundados nos mais diversos tipos de
argumentos (éticos, morais, econômicos, pragmáticos, etc.), têm a possibilidade
de adentrar e, após discussão, virem a ser transformados em normas (e, a partir
daí, serem regidos pelo código próprio do Direito) (HABERMAS, 1998, páginas 94
e 175). O mencionado Sistema de Direitos é fundado através da Constituição e
pode garantir coerção às suas normas através do Estado de Direito, meio
institucional que possui o poder de garantir institucionalmente a
co-originalidade das autonomias públicas e privadas: sua atuação protege e faz
cumprir normas garantidoras da autonomia privada (direitos “humanos”) ao mesmo
tempo em que cria uma arena pública institucionalizada na qual influxos
comunicativos da periferia podem adentrar e “influenciar” a formação da opinião
e da vontade pública vinculante (legislativa, administrativa e judicial) na
medida em que influenciam a agenda do procedimento legislativo
institucionalizado e este, por sua vez, fornece subsídios às decisões dos
outros poderes (7).
Ao contrário do
que se tradicionalmente pensava, o Ordenamento jurídico não era um sistema
“completo”, possuindo “lacunas e antinomias”. Para solucioná-las foram
propostos uma série de “métodos”: literal, histórico, sistemático, etc. (além
de regras para solução de antinomias: lei superior derroga inferior, etc.). A
partir do uso destes métodos, acreditava-se, achar-se-ia “o verdadeiro” sentido
da lei, seja isso significando a mens legislatoris, seja a mens
legis. A percepção de que tal intento não era realizável se tornou mais
evidente quando o Direito passou a regular profundamente novos temas (economia,
contratos, trabalho, previdência e mesmo família). Isso levou autores como
Kelsen e Hart a proporem que, caso o juiz tivesse diante de si um caso sobre o
qual não houvesse clareza quanto à norma aplicável ou o sentido dessa norma
(ou, de qualquer modo, não houvesse norma), estaria o juiz “autorizado” a dar a
solução que entendesse melhor (HABERMAS, 1998, página 271; BAHIA, 2004). Esse
“decisionismo” se tornou inevitável para concepções do Direito como sistema
fechado de regras.
Para Habermas, há
que se repensar o Judiciário, desde uma perspectiva procedimental do Estado
Democrático de Direito. Todo processo judicial se move na tensão entre a
segurança jurídica (dada pela positivação das regras que regem o procedimento,
bem como pelas normas que geram direitos levados a juízo) e a pretensão de se
obter decisões corretas (isto é, racionalmente aceitáveis) (HABERMAS, 1998,
página 267) — para isso o procedimento judicial toma as normas como dados e
cria uma estrutura que possibilita a argumentação (sem, contudo, interferir no
conteúdo da argumentação mesma).
Entretanto, essa é
uma tarefa complexa. Se já não mais é possível afirmar-se que a aplicação do
Direito consista em mera subsunção, por outro lado, não se pode pretender do
Judiciário que seja colocado como o guardador das “virtudes” (pressupostamente
compartilhadas) da comunidade. De um lado, desde Kelsen já não se acredita mais
que o uso de “métodos de interpretação” nos faz alcanças “o verdadeiro” sentido
da norma (BAHIA, 2004). De outro lado, não é possível sustentar teorias que
supõem valores compartilhados (como ALEXY, por exemplo), haja vista que
confundem o caráter deontológico do direito com a graduação, própria dos
valores e ainda supõe a existência de valores que, por serem compartilhados,
poderiam ser escalonados. Sabemos que tal compartilhamento não existe em
sociedades pós-tradicionais, o que poderia levar o Judiciário — caso adotasse
tal método — a um puro decisionismo (8).
Garantido-se a
estrutura do processo de argumentação, a decisão judicial se consubstancia no
resultado daquilo que os sujeitos do processo, em simétrica paridade,
trouxeram; é dizer, a sentença será legítima se, obedecido o contraditório, for
ela o produto da reconstrução do caso e do ordenamento, dessa forma respondendo
às pretensões a direito levantadas pelas partes (NUNES, 2008).
Em Niklas Luhmann
podemos encontrar um tipo diferente de intelecção a respeito de como os juízes
decidem. No âmbito da sua teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, a
investigação da decisão jurídica é realizada por meio de uma análise das
operações de decisão como formas de distinção. Decisões são, nessa perspectiva,
operações de indicação e distinção (SPENCER-BROWN, 1979, página 1) que produzem
uma diferença no sistema. E que assim produzem também uma atualização do
sistema dentro da sua dinâmica de clausura operativa (autoreferência) e
abertura cognitiva (hetero-referência).
Importante ter
presente, antes disso, que a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann procura
observar a sociedade como formas de comunicação funcionalmente diferenciadas
(1998; 2003 e 2007). Formas de comunicação diferenciadas em sistemas/função
dotados de clausura operativa e de autopoiese, como são os sistemas/função
direito, política, economia, arte, ciência, religião, meios de comunicação de
massa etc. Cada sistema disponibiliza uma racionalidade diferente para as
decisões. Cada sistema estrutura formas de comunicação que produzem sentido de
modo diferente. E ao se transitar, como um observador externo, de um sistema de
referência para outro, os diversos sentidos são reconstruídos de modo
contingente, de modo policontextural.
No caso específico
do sistema/função do direito, essa estruturação da comunicação ocorre através
do código da diferença entre direito e não-direito. Assim, toda comunicação da
sociedade que faz referência a essa diferença entre direito e não-direito fica
atribuída ao sistema jurídico, quer dizer, ganha o sentido já estruturado
simbolicamente pelo sistema do direito. Um evento qualquer da sociedade pode
ser observado em termos de verdade e falsidade (código da ciência), como também
pode ser observado em termos de pagamento ou não-pagamento (código da economia)
e igualmente pode ser observado em termos de governo ou oposição ao governo
(código da política) ou entre informação nova e redundância (código dos meios
de comunicação de massa), entre outros inúmeros contextos de significação
possíveis. Mas se esse evento for observado em termos de direito ou
não-direito, então já se está fazendo referência ao sistema jurídico da
sociedade.
Uma decisão
jurídica, portanto, é toda decisão que faz referência à diferença entre direito
e não-direito. Nessa perspectiva da teoria dos sistemas, torna-se possível
observar a produção de decisões jurídicas em todos os contextos da sociedade e
não apenas nos tribunais. Qualquer decisão que utiliza o direito como sistema
de referência já é uma decisão jurídica, ainda que decidida no âmbito de
sistemas de organização que não fazem parte das instituições jurídicas
tradicionais, como o Estado ou mais especificamente os tribunais. Uma empresa
ou sujeito qualquer pode decidir entre o lucro e o prejuízo em uma determinada
situação, como também pode decidir entre a verdade e falsidade. Pode decidir
também por salvar sua alma evitando o pecado em um contexto de referência
religioso. Pode também julgar uma situação segundo um código moral de bondade
ou maldade. Mas sempre que usar, como sistema de referência para a sua decisão,
o código do direito, já se está decidindo segundo a estrutura sistêmica do direito.
O nível inusitado
de abstração dessa conceituação luhmanniana exige uma aproximação prévia.
Pode-ser partir, a título de ilustração, da explicação tradicional da doutrina
jurídica sobre como se decide uma questão jurídica. Com efeito, na doutrina jurídica
tradicional pode ser encontrada uma técnica de decisão que parte daquele
silogismo aristotélico entre premissa maior (a lei, geral e abstrata), premissa
menor (o caso, especial e concreto) e conclusão (o resultado, o comando de
eficácia da decisão).
Mas por trás dessa
operação nós podemos ver uma série de pressupostos que já estão previamente
decididos na estrutura do sistema jurídico mesmo: a escolha da premissa maior
já é uma decisão contingente, que precisaria ser decidida e justificada; a
definição do caso concreto também já é uma decisão por ressaltar algumas e não
outras características do fato; como também a conclusão é uma decisão que
recomenda uma ou algumas eficácias normativas que poderiam ser diferentes. E
alguém poderia então contestar: mas então uma decisão jurídica é impossível! E
é exatamente nessa impossibilidade que começa a idéia de decisão jurídica.
A decisão jurídica
é impossível de ser decidida e, paradoxalmente, exatamente por ser impossível,
é que ela exige uma decisão. Se não fosse impossível, não exigiria uma decisão,
exigiria apenas uma operação de reprodução de decisões anteriores, sem nenhum
conteúdo inovador, sem nenhuma exigência de argumentação da escolha decidida e
sem nenhuma produção de diferença no âmbito do sistema jurídico.
Existem portanto
decisões jurídicas que apenas reproduzem as operações anteriores do sistema,
sem produzir nenhuma diferença, produzindo apenas redundância, confirmação de
decisões pretéritas. Mas existem também decisões jurídicas que inovam as operações
anteriores, que produzem diferença, produzem variações. As decisões
reprodutoras são operações de comunicação jurídica, mas não são decisões no
sentido que queremos destacar a partir da teoria dos sistemas de Niklas
Luhmann. Já as decisões que introduzem uma diferença nas operações do sistema,
estas sim são decisões, porque não apenas decidiram entre esta ou aquela regra
ou princípio, esta ou aquela solução, este ou aquele argumento. E também não se
tratam de decisões que decidem apenas entre manter a tradição jurisprudencial
ou inová-la com um novo precedente diferente, inaugurando uma nova corrente
jurisprudencial. A decisão jurídica é mesmo aquela que era impossível de ser
decidida e, precisamente por ser impossível de ser decidida, teve que ser criada,
inventada, decidida. E como tal, também, justificada.
A decisão está,
portanto, na impossibilidade da decisão. Porque se a decisão fosse possível, já
não seria uma decisão, seria apenas uma operação de reprodução da diferença já
distinguida na história do sistema. Exatamente quando não é possível decidir,
quando não é possível a reprodução redundante de uma operação, é que temos
então a autêntica decisão jurídica: a introdução de uma diferença que produz
variação, que mexe com a redundância do sistema e que, por isso, pode – não
necessariamente – provocar transformações estruturais no sistema se essa
variação for tolerada (selecionada) pelas próprias estruturas e assimiladas
como re-estabilização[9]. Já se pode ver, portanto, que as próprias transformações
no sistema só ocorrem em níveis toleráveis pelo próprio sistema, como se fossem
pre-adaptative advances.
Por isso que, por
mais inovadora que seja uma decisão jurídica, ela só passa a constituir-se como
referência para novas operações jurídicas se o próprio sistema do direito a
tolerar dentro de suas estruturas. A decisão inovadora, portanto, sempre será
uma decisão já esperada pelo sistema, tolerada pelo sistema e estruturalmente
compatível com o estado imediatamente anterior da rede de operações do sistema.
Ela inova em relação às operações anteriores, mas não inova em relação às
potencialidades desde já sempre projetadas pelo sistema[10].
Com isso fica
claro que a decisão jurídica — gize-se: decisão realizada com base no código da
diferença entre direito e não-direito —, é uma operação do sistema jurídico. É
uma operação que faz parte do direito. É uma operação que se endereça, ela
mesma, ao sistema jurídico como sistema/função de referência. Por mais que se
possa ver, do ambiente do sistema jurídico, uma decisão jurídica como sorte,
como inspiração divina (religião), como bela (arte), como pagamento (economia),
como um ato de poder (política), como verdade (ciência) etc., ela continua a
possuir a identidade da decisão jurídica na medida em que decidida com base no
código “direito/não-direito”.
Nesse contexto da
teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, então, podemos compreender de um modo
diferente a pergunta pelo como os juízes decidem. A decisão jurídica decide
sempre em condições de incerteza e, ao mesmo tempo, pressionada pela regra do non
liquet. Isso faz com que a decisão jurídica tenha que decidir inclusive
quando não pode decidir. Como então a decisão torna possível a sua própria
impossibilidade? A resposta que Luhmann coloca a esse paradoxo é a metáfora do
décimo segundo camelo (LUHMANN, 2004), quer dizer, a introdução de uma
referência externa para completar a ausência da possibilidade da decisão. A
introdução de um valor lógico do ambiente do sistema para completar a
incompletude do teorema. Para isso servem os recursos argumentativos a valores
exteriores ao sistema de referência.
Junto com Jacques
Derrida, também podemos chamar esses recursos argumentativos externos ao
sistema jurídico de “suplementos” (11). Nós encontramos “suplementos” em todas
as decisões jurídicas que recorrem a valores lógicos exteriores ao sistema
jurídico para suplementar a ausência de um fundamento jurídico unívoco na
decisão, para tornar “presente” o fundamento “ausente”, para completar a falta
de justificação com um suplemento argumentativo. Esses suplementos, na prática
das decisões judiciais, podem ser observados quando a decisão recorre a
princípios morais, valores éticos ou religiosos etc. E também podem ser
observados quando a decisão recorre àquilo que se convencionou chamar de
“orientação às conseqüências”, isto é, o uso do recurso à previsão dos
prováveis efeitos colaterais ou impactos da decisão jurídica na economia, na
ciência, na política, na educação etc.
Um dos aspectos
mais interessantes dessa operação é que sobre esse uso de suplementos
argumentativos não há nenhum tipo de controle. Não há nenhuma regra ou
princípio positivo que permita controlar, nem mesmo há um procedimento que
permita monitorar o uso legítimo desses suplementos argumentativos na práxis das
decisões jurídicas.
Assim a decisão
passa a constituir-se, a si mesma, como fundamento do próprio sistema jurídico.
Não no sentido de Carl Schmitt (1984), mas no sentido de que a validade das
normas jurídicas encontra a sua referência de sentido na decisão, que por sua
vez encontra nas normas jurídicas a sua validade. Uma relação circular de
validação então acontece: a decisão baseia a sua validade nas normas jurídicas
que ela mesma afirma serem válidas. Ou em termos circulares: a decisão valida
as normas que validam a decisão.
A introdução de
uma referência externa então assimetriza esse paradoxo. Há princípios, há
valores, há conseqüências etc. Mas o paradoxo não se resolve, apenas se
desdobra para novas configurações: a referência aos princípios cria, ela mesma,
a projeção de conseqüências para serem usadas na fundamentação da decisão
judicial. Como também a referência às conseqüências da decisão cria, por si só,
a projeção de princípios e valores normativos. Claro que, no nível das
autodescrições do sistema jurídico, esses princípios e valores são
fundamentados com independência da positividade do direito e também com
autonomia em relação aos casos concretos. E é exatamente esse o ponto: um
fundamento externo para ser introduzido argumentativamente na decisão, um
“terceiro incluído”, um “suplemento”.
A partir de
Habermas, compreendemos que o Direito hoje deve ser concebido como um sistema
aberto de princípios, sendo insustentáveis quaisquer propostas positivistas ou
literalistas de aplicação do Direito. E por meio da teoria dos sistemas de
Luhmann, pode-se entender que a decisão jurídica sempre constitui um ato
criativo de desdobramento de paradoxos que, exatamente por esse motivo, exige
graus mais sofisticados de justificação.
Habermas e Luhmann
chamam a atenção para o caráter deontológico do Direito, que, como subsistema
social, se move por um código próprio (direito/não direito) — e não por códigos
graduais de valor, como propõe a teoria alexyana. A partir de Luhmann, vemos
que Direito e Política são subsistemas sociais autopoiéticos, cada um se
reproduzindo a partir de seus códigos próprios e que a Constituição se revela
como acoplamento estrutural (Luhmann) — ou, em Habermas, como “dobradiça” — que
permite que haja comunicação entre aqueles sistemas, de tal forma que ambos
podem prestar serviços mútuos um ao outro, sem, contudo, perderem suas
respectivas identidades.
No contexto dos ideais políticos
e normativos do Estado Democrático de Direito, temos que esperar, portanto, que
as decisões jurídicas levem à sério os valores e princípios constitucionais
atualmente importantes para a sociedade. Não que o direito possa efetivamente
substituir a política na concretização dos objetivos políticos do Estado
Democrático de Direito, mas que pelo menos as decisões jurídicas possam criar
diferenças no sentido desses ideais.
Referências
1. A expressão não é nova, como nos lembra Fix-Zamudio (1968, p. 11) já a Lei Fundamental de Bonn (1949) prescrevia que a República Federal alemã se constituía em um “Estado de derecho democrático de carácter social” (art. 20, I). Entretanto, o Estado que (res)surgia após a 2ª Guerra será marcadamente “Social” (Welfare State), como FIX-ZAMUDIO (idem) lembra, fazendo menção ao que afirmou Forsthoff, para quem, só como Estado Social um Estado de Direito se mantém. Sabemos, no entanto, que é da crise do Welfare State que surgirá um novo paradigma de Estado, o Estado Democrático de Direito, que possui como referenciais legais, as Constituições de Portugal – 1976 (Estado de direito democrático, art. 2º) e Espanha – 1978 (Estado social y democrático de Derecho, art. 1º, I). Sobre os paradigmas constitucionais da Modernidade e suas implicações sobre a interpretação do Direito, cf. BAHIA (2004).
2. Vale lembrar que é a Modernidade que cria o conceito de indivíduo, ao mesmo tempo em que lhe atribui uma razão inata capaz de conhecer todas as coisas. Daí afirmar Manfredo de Oliveira (1989, p. 29) que na tradição racionalista da filosofia da consciência “a subjetividade emerge como a fonte de todo sentido”, logo, a partir do “eu” se constrói um “outro”, que se objetualiza — “o processo de subjetivação coincide com o processo de objetivação universal” (idem). Daí a perfeita formulação de uma ciência assentada no tripé: “sujeito, objeto e método”. São justamente essas verdades cartesianas, baluartes da Modernidade que sofrerão duros golpes no século XX.
3. Sobre isso ver SALCEDO REPOLÊS (2003, p. 49-50) e BAHIA (2006a).
4. “A cada novo impulso de modernização abrem-se os mundos da vida divididos de modo intersubjetivo para se reorganizarem e novamente fecharem” (HABERMAS, 2001, p. 105).
5. Na verdade, além do Direito, há dois outros sistemas de integração social: Mercado e Poder Administrativo. Entretanto, apenas o Direito se move por ações comunicativas (cf. HABERMAS, 1998, p. 89; 2001, p. 194 e 1987, p. 112).
6. Sobre a diferença que Habermas estabelece entre Ação Comunicativa e Estratégica, cf. HABERMAS (1990, p. 75)
7. Este Estado de Direito passou por variadas (re)leituras, desde o advento da Modernidade, no movimento de mudanças de paradigmas do constitucionalismo, ou seja, a forma como “liberdade e igualdade” foram compreendidas ao longo do tempo. Sobre o tema ver BAHIA; NUNES, 2009.
8. Percebe-se tal fato quando juízes, a partir do princípio da proporcionalidade, passam a “julgar as opções do legislador” não tendo em vista sua constitucionalidade e sim a “razoabilidade” da lei. O que se tem aí é uma perda dos limites do Judiciário (perda, inclusive, dos limites à crítica, já que a decisão, teoricamente, se funda em argumentos racionais de custo-benefício sobre o que é “melhor” para a sociedade). Cf. BAHIA (2006b e 2005).
9. A teoria da evolução de Luhmann explica como ocorre esse processo de variação, seleção e re-estabilização sistêmica, para a qual remetemos o leitor (LUHMANN, 2003 e 2007b). E no caso específico do Direito, ver-se Luhmann (2005).
10. Talvez seja necessário destacar, contra uma grande quantidade de críticas inadequadas a essa perspectiva sistêmica, que essas potencialidades já projetadas pela estrutura do sistema não tem nada a ver com a idéia da quadratura do direito de Hans Kelsen. Dizer que o sistema projeta para o futuro potenciais de sentido que podem se confirmar /condensar ou não nas operações jurídicas não significa dizer que há uma discricionariedade na interpretação de normas. Até porque entender o direito como um sistema é vê-lo como uma estrutura social muito mais complexa do que apenas um conjunto sistemático de normas.
11. Para Derrida (2004, p. 178), “acrescentando-se ou substituindo-se, o suplemento é exterior, fora da positividade à qual se ajunta, estranho ao que, para ser por ele substituído, deve ser distinto dele. Diferentemente do complemento, afirmam os dicionários, o suplemento é uma ‘adição exterior’”. Observa-se também esta passagem de Derrida (2007, p. 109-110): “sem estar aí imediatamente presente, ela [a violência] aí está substituída (vertreten), representada pelo suplemento de um substituto. O esquecimento da violência originária se produz, se abriga e se estende nessa différance, no movimento que substitui a presença (a presença imediata da violência identificável como tal, em seus traços e em seu espírito), nessa representatividade différantielle.”
1. A expressão não é nova, como nos lembra Fix-Zamudio (1968, p. 11) já a Lei Fundamental de Bonn (1949) prescrevia que a República Federal alemã se constituía em um “Estado de derecho democrático de carácter social” (art. 20, I). Entretanto, o Estado que (res)surgia após a 2ª Guerra será marcadamente “Social” (Welfare State), como FIX-ZAMUDIO (idem) lembra, fazendo menção ao que afirmou Forsthoff, para quem, só como Estado Social um Estado de Direito se mantém. Sabemos, no entanto, que é da crise do Welfare State que surgirá um novo paradigma de Estado, o Estado Democrático de Direito, que possui como referenciais legais, as Constituições de Portugal – 1976 (Estado de direito democrático, art. 2º) e Espanha – 1978 (Estado social y democrático de Derecho, art. 1º, I). Sobre os paradigmas constitucionais da Modernidade e suas implicações sobre a interpretação do Direito, cf. BAHIA (2004).
2. Vale lembrar que é a Modernidade que cria o conceito de indivíduo, ao mesmo tempo em que lhe atribui uma razão inata capaz de conhecer todas as coisas. Daí afirmar Manfredo de Oliveira (1989, p. 29) que na tradição racionalista da filosofia da consciência “a subjetividade emerge como a fonte de todo sentido”, logo, a partir do “eu” se constrói um “outro”, que se objetualiza — “o processo de subjetivação coincide com o processo de objetivação universal” (idem). Daí a perfeita formulação de uma ciência assentada no tripé: “sujeito, objeto e método”. São justamente essas verdades cartesianas, baluartes da Modernidade que sofrerão duros golpes no século XX.
3. Sobre isso ver SALCEDO REPOLÊS (2003, p. 49-50) e BAHIA (2006a).
4. “A cada novo impulso de modernização abrem-se os mundos da vida divididos de modo intersubjetivo para se reorganizarem e novamente fecharem” (HABERMAS, 2001, p. 105).
5. Na verdade, além do Direito, há dois outros sistemas de integração social: Mercado e Poder Administrativo. Entretanto, apenas o Direito se move por ações comunicativas (cf. HABERMAS, 1998, p. 89; 2001, p. 194 e 1987, p. 112).
6. Sobre a diferença que Habermas estabelece entre Ação Comunicativa e Estratégica, cf. HABERMAS (1990, p. 75)
7. Este Estado de Direito passou por variadas (re)leituras, desde o advento da Modernidade, no movimento de mudanças de paradigmas do constitucionalismo, ou seja, a forma como “liberdade e igualdade” foram compreendidas ao longo do tempo. Sobre o tema ver BAHIA; NUNES, 2009.
8. Percebe-se tal fato quando juízes, a partir do princípio da proporcionalidade, passam a “julgar as opções do legislador” não tendo em vista sua constitucionalidade e sim a “razoabilidade” da lei. O que se tem aí é uma perda dos limites do Judiciário (perda, inclusive, dos limites à crítica, já que a decisão, teoricamente, se funda em argumentos racionais de custo-benefício sobre o que é “melhor” para a sociedade). Cf. BAHIA (2006b e 2005).
9. A teoria da evolução de Luhmann explica como ocorre esse processo de variação, seleção e re-estabilização sistêmica, para a qual remetemos o leitor (LUHMANN, 2003 e 2007b). E no caso específico do Direito, ver-se Luhmann (2005).
10. Talvez seja necessário destacar, contra uma grande quantidade de críticas inadequadas a essa perspectiva sistêmica, que essas potencialidades já projetadas pela estrutura do sistema não tem nada a ver com a idéia da quadratura do direito de Hans Kelsen. Dizer que o sistema projeta para o futuro potenciais de sentido que podem se confirmar /condensar ou não nas operações jurídicas não significa dizer que há uma discricionariedade na interpretação de normas. Até porque entender o direito como um sistema é vê-lo como uma estrutura social muito mais complexa do que apenas um conjunto sistemático de normas.
11. Para Derrida (2004, p. 178), “acrescentando-se ou substituindo-se, o suplemento é exterior, fora da positividade à qual se ajunta, estranho ao que, para ser por ele substituído, deve ser distinto dele. Diferentemente do complemento, afirmam os dicionários, o suplemento é uma ‘adição exterior’”. Observa-se também esta passagem de Derrida (2007, p. 109-110): “sem estar aí imediatamente presente, ela [a violência] aí está substituída (vertreten), representada pelo suplemento de um substituto. O esquecimento da violência originária se produz, se abriga e se estende nessa différance, no movimento que substitui a presença (a presença imediata da violência identificável como tal, em seus traços e em seu espírito), nessa representatividade différantielle.”
Referências
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Alexandre
Gustavo Melo Franco Bahia é advogado em Minas Gerais e mestre e
doutor em Direito Constitucional (UFMG), professor universitário na Faculdade
de Direito do Sul de Minas (FDSM) e Faculdade Batista de Minas Gerais
Rafael
Lazzarotto Simioni é doutor em Direito Público, mestre em Direito,
professor e pesquisador da Faculdade de Direito do Sul de Minas.
Revista Consultor Jurídico,
12 de maio de 2010
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