Democracia e exclusão social em face da globalização
Friedrich Müller
Professor Catedrático Emérito em Direito Constitucional, Filosofia do Direito e do Estado e Teoria Geral do Direito na Universidade de Heidelberg "Democracia" é uma expressão bastante indeterminada, isto é, utilizada de vários modos, freqüentemente opostos. A história do termo oferece os significados de "governo" e "povo"; mas se isso resulta em algo como "governo do povo", é, justamente, a questão.
Ocorre que a referência ao povo é necessária às diferentes concepções
de democracia, pois elas precisam legitimar-se. O sistema deve poder
representar-se como se funcionasse com base na soberania popular, na
autodeterminação do povo, na igualdade de todos e no direito de decidir de
acordo com a vontade da maioria. Devem haver, também, chances iguais para os
partidos políticos chegaram ao poder e o direito à oposição legal. Só que a
teoria tradicional da democracia não deixa claro como o exercício do poder
estatal pode ser retroreferido "ao povo", concretamente.
Para definir um sistema democrático, pode-se começar verificando
empiricamente os modos lingüísticos de utilização da palavra "povo"
nos textos das normas do direito vigente, sobretudo nas constituições. Dessa
análise, resultam vários modos de utilização. O primeiro deles é, também, o
único que, até agora, foi usado na bibliografia da Ciência do Direito como
conceito jurídico de "povo": os titulares dos direitos eleitorais.
Denomino esse modo de utilização "povo ativo". Isso basta para o
Poder Legislativo, na medida em que se compreende, graças à idéia de
representação, que "o povo" é, indiretamente, a fonte da
legislação. Mas isso não funciona no caso das atividades dos Poderes
Executivo e Judiciário, que, afinal de contas, também devem ser
"demo"craticamente justificadas. O povo ativo decide diretamente ou
elege os seus representantes, os quais co-atuam, em princípio, nas
deliberações sobre textos de normas legais que, por sua vez, devem ser
implementadas pelo governo e controladas pelo Judiciário.
Na medida em que isso é feito corretamente em termos do Estado de Direito, aparece, no entanto, uma contradição no discurso da democracia: por um lado, faz sentido dizer que os governantes, os funcionários públicos e os juízes estariam democraticamente vinculados; mas não faz sentido dizer que, aqui, o povo ativo ainda estaria atuando "por intermédio" de seus representantes. Onde funcionários públicos e juízes não são eleitos pelo povo, a concretização de leis não basta para torná-los representantes deste mesmo povo. O ciclo da legitimação foi rompido, ainda que de forma democrática; mas ele foi rompido. Os vínculos são cortados de forma não-democrática quando a decisão executiva ou judicial for ilegal; aqui, o povo invocado pelo titular do respectivo cargo ("em nome do povo, profiro a seguinte sentença...") produz somente o efeito de um ícone, de um mero passepartout ideológico. No caso já mencionado, ou seja, na decisão defensável em termos do Estado de Direito, o papel do povo apresenta-se diferentemente: como instância de uma atribuição global de legitimidade. Tal papel transcende, na sua abrangência, o povo ativo; abrange todos os que pertencem à nação.
Além disso, as decisões dos órgãos que instituem, concretizam e
controlam as normas afetam a todos aqueles aos quais dizem respeito: o
"povo" enquanto população efetiva. Uma democracia legitima-se a
partir do modo pelo qual ela trata as pessoas que vivem no seu território -
não importa se elas são ou não cidadãs, ou titulares de direitos eleitorais.
Isso se aproxima, finalmente, da idéia central de democracia:
autocodificação, no direito positivo, ou seja, elaboração das leis por todos
os afetados pelo código normativo. O princípio "one man, one vote"
(pensado em outra acepção) também pode ser compreendido não com vistas a uma
camada social específica, mas com vistas à qualidade humana de cada pessoa
afetada, independentemente da cidadania. Desse povo-destinatário, ao qual se
destinam todos os bens e serviços providos pelo Estado Democrático de
Direito, fazem parte todas as pessoas, independentemente, também, de idade,
estado mental e status em termos de direitos civis.
Democracia é direito positivo de toda e qualquer pessoa, no âmbito da
sua "- cracia". Nesse contexto, aqueles que não consideram o
problema da exclusão social, usam a expressão "povo" de forma
meramente icônica; eles não são democratas, não participam do discurso
democrático.
A exclusão desenvolve uma dinâmica fatal. Já em 1821, Hegel, ao
analisar a sociedade capitalista nos seus primórdios, estabeleceu, em Princípios
da Filosofia do Direito, que a pauperização econômica acarretaria enormes
desvantagens em termos de educação, formação profissionalizante, cultura,
grau de informação, sentimento de justiça e autoestima. Resta acrescentar que
um padrão de vida excessivamente baixo, o empobrecimento da família e o
estigma do bairro residencial errado; a comunicação, pela gerência do banco,
do encerramento da conta corrente; a exclusão crescente da vida social,
cultural e política; enfim, o enfraquecimento do sentimento de valor próprio,
a falta de "reconhecimento", têm como um de seus efeitos mais
perversos a paralisação, enquanto seres políticos, das pessoas afetadas. O
descenso econômico leva rapidamente à privação sócio-cultural e à apatia
política – o que, quase sempre, satisfaz aos desígnios das esferas dominantes
da sociedade. O "desfavorecimento, mesmo em apenas uma área parcial,
produz uma "reação em cadeia de exclusão" que resulta, não em
último lugar, na "pobreza política".
A dimensão mais perigosa desse escândalo estrutural está,
provavelmente, no fato de que as batalhas no terreno da economia política e
da política ainda têm que ser complementadas por batalhas no campo jurídico,
pois a injustiça econômica, social e política é acrescida da falta de
eqüidade jurídica. Assim, os indefesos, pobres e marginais não podem mais
contar com proteção jurídica; são, por assim dizer, liberados para a caça. O
resultado é a violência nas cidades (contra meninos de rua, favelados e
outros), no campo (contra posseiros, sem-terra, índios e outros) e, em toda
parte, contra grupos e minorias (por exemplo, crianças, adolescentes,
mulheres, homossexuais, população negra, comunidades indígenas, migrantes
nordestinos), como diagnóstico característico dos conflitos em torno dos
direitos humanos no Brasil.
Esse horror é efetivamente institucionalizado no direito penal pela
impunidade sistemática dos agentes estatais e empresariais; e, na política e
na burocracia, pela corrupção. As vítimas não são apenas as pessoas; com
elas, vitima-se também a democracia, o Estado de Direito, o Estado de
Bem-Estar Social e o direito de defesa contra o Estado, bem como os direitos
de participação e, sobretudo, a centralidade do princípio da "igualdade
perante a lei".
A exclusão, nesse sentido forte do termo, ultrapassa a não-filiação e
a não-integração, se se quiser entender por isso apenas a
"marginalização" ou a "heterogeneidade estrutural".
Sociedades modernas geram inclusão e exclusão como diferença funcional.
Existem, então, diferenças de classe ou entre camadas sociais no âmbito de
uma inclusão geral, ainda que mais ou menos desigual (paradigma do Estado de
Bem-Estar Social). Mas, com a exclusão no sentido forte do termo, aqui
analisada, a sociedade industrial se torna parcialmente disfuncional, entra
em grave regressão, deixando que a ordem social e jurídica seja fragmentada.
Grandes parcelas da população, por um lado, dependem dos sistemas funcionais
vitais, mas, simultaneamente, não têm, a priori (no caso da exclusão
primária), acesso às suas prestações materiais, ou deixam de tê-lo, como
ocorre no caso da exclusão secundária, do empobrecimento e do descenso social
maciço, tão nítido nos países do Grupo dos Sete.
O Brasil é estigmatizado amplamente pela exclusão primária. A práxis
estatal, para-estatal e econômica ab-roga aos excluídos a dignidade humana e
mesmo, na atuação do aparelho repressivo, a qualidade de seres humanos:
assim, verificam-se a negação das garantias jurídicas e processuais, a
perseguição física, as "execuções" sem processo e a impunidade dos
agentes da opressão e das chacinas.
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), dois
bilhões de pessoas estão desempregadas ou subempregadas, e mais de um bilhão
vivem na pobreza. O número de analfabetos chega a um bilhão, mais de 800
milhões experimentam fome aguda e o exército dos desabrigados aumenta
praticamente em todos os países. Quase quatro bilhões de pessoas vivem em
países com uma renda per capita anual inferior a mil e quinhentos dólares.
Essa miséria não cai do céu; e cada vez menos ela pode ser atribuída
ao chamado subdesenvolvimento. A desregulamentação em escala mundial,
designada de forma semanticamente inofensiva com o termo
"globalização", elimina, por exemplo, tarifas alfandegárias
destinadas a proteger produtores e mercados locais e regionais. Assim,
produtores de países pequenos submetem-se a uma concorrência internacional
que, muitas vezes, não conseguem enfrentar. Fica minada a possibilidade de os
governos nacionais protegerem sua economia e monitorarem com autonomia os
seus sistemas financeiros.
A tendência à ampliação do mercado de trabalho esvazia a influência
dos sindicatos e neutraliza o efeito de padrões normativos para a proteção ao
trabalhador. Os agricultores do chamado Terceiro Mundo são inseridos na
produção para o mercado mundial, enquanto seus próprios países passam a
depender de importações de gêneros alimentícios. A concorrência internacional
destrói o artesanato local; a quantidade de empregos eliminados supera a
quantidade dos empregos criados por investimentos estrangeiros. Os recursos
naturais são devastados em grau alarmante.
Muitas normas jurídicas dos países afetados surgiram em meio a longas
lutas do movimento operário e de outras formas de legítima defesa, para
limitar o abuso desenfreado por parte dos sistemas de exploração e
colonização dos séculos XIX e XX. Tais normas são enfraquecidas ou abolidas,
inclusive aquelas mais recentes sobre a proteção ao meio ambiente e aos
fundamentos elementares da vida de todas as pessoas (direitos sociais) - o
que equivale a uma nova transformação (proveniente dos Estados Unidos) dos
mercados financeiros e comerciais internacionais, que pode ser caracterizada
como uma nova forma de colonialismo acirrado. As crises de importantes
economias asiáticas, da economia mexicana e, depois, da sulafricana – e,
agora, da Argentina – mostram quão frágeis e vulneráveis se tornam economias
nacionais individuais. Indiretamente, também se enfraquece todo o conjunto de
economias, em decorrência da monetarização global, que leva à adequação
forçada dos países individuais a uma monocultura econômica ocidental,
motivada, exclusivamente, pela maximização do lucro.
A democracia tem instrumentos para superar tal crise, mas, atualmente,
os ataques ao potencial democrático de monitoramento das crises vêm de todos
os lados: a soberania dos parlamentos e governos nacionais se reduz e faltam
meios político-democráticos para estabilizar, em escala mundial, o frágil
sistema de uma economia de livre mercado. Esse sistema de capitalismo
"avançado" revela ser absolutamente destrutivo: a fome e a miséria
aumentam e a extensão do consumo de recursos e da destruição do meio ambiente
produz, cada vez mais, o colapso do planeta. Nas palavras de Niklas Luhmann,
com referência à Índia, à África e ao Brasil, mas também a partes dos Estados
Unidos, exclusão crescente significa a "produção" de milhões de
corpos humanos que sao expulsos de todas as redes de comunicação socialmente
necessárias: "Ao passo que na esfera da inclusão as pessoas contam
enquanto pessoas, na esfera da exclusão parece que somente os seus corpos têm
importância".
A miséria maciça cresce, também, nos países ricos, em forma de êxodos
maciços em escala mundial, terrorismo e reimportação, pela via dos ciclos
ecológicos, de lixo tóxico "exportado", bem como por meio de
catástrofes climáticas generalizadas; pela formação de guetos de miséria nas
áreas de alta densidade demográfica dos países industrializados; e pelo
crescimento da criminalidade organizada que, praticamente, não pode ser
combatida apenas com sanções penais. O capital que age legalmente "se
confunde" com o capital que age criminosamente.
Do ponto de vista econômico, a concentração da renda aumenta cada vez
mais. Em nenhuma região do mundo a distância entre os mais ricos e os mais
pobres se acetua tanto como nos países emergentes da América Latina: situa-se
entre seis vezes (Costa Rica) a quinze vezes (Brasil), o que quer dizer que
os 10% dos brasileiros mais ricos percebem uma renda quinze vezes superior à
dos 40% mais pobres. Pode-se constatar que essa desproporção é maior no
Brasil, em comparação com todos os países do mundo acerca dos quais dispomos
de dados estatísticos.
A seguir, apresento alguns outros pontos importantes para o tema desta conferência: o núcleo operativo da "globalização"; as especificidades da América Latina e, especialmente, do Brasil; o estatuto histórico da política globalizadora; o papel do Estado nessa política e os efeitos desta sobre a democracia.
Se podemos falar de "globalização", trata-se de uma
globalização sob a lei do capital; em outras palavras, a mundialização é uma
monetarização.
Na América Latina, o capitalismo tem raízes essencialmente mais tênues
do que nos países industrializados da Ásia; por isso, os habitantes dessa
região já se viram obrigados a acumular mais experiências com suas crises,
sobretudo no sentido do "entra e sai" dos investidores
internacionais. Até a ocorrência da crise mexicana e, em medida menor, também
depois dela, o subcontinente era considerado uma boa localização para
investimentos. No momento, o capital está novamente batendo em retirada – com
grandes turbulências, conforme se deve temer.
A democracia exige que processos econômicos sejam inseridos em
processos sociais. Contrariamente ao que afirma o ultraliberalismo, há fortes
razões para supor que pelo menos uma determinada classe de problemas –
aqueles relativos a políticas de redistribuição - necessita da intervenção do
Estado, tanto hoje, como no passado. Na situação atual, isso parece requerer
a ajuda de conjuntos de regras internacionais, na medida em que o
Estado-nação não pode mais, sozinho, produzir e impor suas regras. Assim, os
processos de mercado, livres do controle estatal, tendem a fazer com que a
soberania dos estados constitucionais, e até sua legitimidade democrática,
degenerem, paulatinamente, em farsa.
As chamadas "forças do mercado" não são nem leis da
natureza, nem leis históricas com dignidade superior, às quais a política
deveria sujeitar-se. A polêmica ultraliberal tenta fazer esquecer que a
corrupção e o nepotismo não são estranhos a grandes formações econômicas e
que amplas partes do setor privado, por sua vez, são superdimensionadas e
burocratizadas. Assim, "a conhecida crítica do Estado formulada pelos
ideólogos do mercado traduz o temor de que o Estado possa vir a representar o
interesse público de forma excessivamente eficiente".
Ao contrário do que apregoam os meios de comunicação controlados por
grandes grupos econômicos, a dominação dos mercados, cada vez mais
desenfreada, não leva a sociedades liberais - no sentido etimológico do
termo, já que liberalismo vem do vocábulo latino "líber" (livre) -
e comprometidas com a democracia e com os princípios do Estado de Direito. Na
verdade, só a duras penas um Estado constitucional se constitui e se afirma
política e juridicamente como Estado livre. De qualquer modo, um
Estado constitucional democrático deve regular e influenciar os
mercados tão amplamente que a sociedade possa continuar sendo razoavelmente livre
e justa.
Os modos pelos quais a monetarização global ameaça a democracia já
foram mencionados. Cumpre salientar que o ataque mais profundo nessa direção
provém da exclusão social, a qual se amplia e agrava graças à globalização,
como indicam as evidências empíricas. A exclusão se afirma inequivocamente às
expensas do Estado Democrático de Direito e do Estado de Bem-Estar Social;
ela deslegitima o governo, pois faz com que o povo ativo, o povo enquanto
instância de atribuição e o povo-destinatário degenerem em "povo"
como ícone.
Num grau mais acentuado, a exclusão chega até a
"desestatizar" o Estado constitucional exigente, que só pode ser
justificado como Estado universal e não como um Estado ao qual se sobrepõe
tiranicamente o metacódigo inclusão/exclusão. E no grau no qual os mercados
globais ditam a política e tornam inoperantes as chances de monitoramento por
parte dos governos, o conceito de democracia cai no vazio, como
freqüentemente tem ocorrido.
Especificamente, com vistas ao caso brasileiro, Celso Furtado, para
citar um exemplo, afirmou que a sujeição ao capital estrangeiro causaria um
"risco crescente de ingovernabilidade do país". Num mercado global
sem Estado(s), o capital móvel sobrepõe-se a parlamentos e governos eleitos,
minando, conseqüentemente, o comprometimento destes com o Estado de Direito e
o Estado de Bem-Estar Social, com a proteção ambiental e a distribuição
defensável e responsável de bens escassos. A concretização da ameaça de
"mudança de localização" depende somente do cálculo de benefícios
do respectivo grupo empresarial; mas ela solapa (eventuais) motivações e
compromissos dos governos destarte chantageados, com o bem-estar da
coletividade. E com isso se subtrai o fundamento, precisamente, àqueles
métodos democráticos pelos quais conquistas – como, por exemplo, os direitos
humanos - e objetivos políticos – como, por exemplo, a proteção ambiental -
deveriam ser tratados e assegurados.
Nos países pouco desenvolvidos e nos países emergentes, cresce a
consciência de que um crescimento econômico global, contabilizado em termos
meramente monetários e estatísticos e destituído de padrões condizentes com o
Estado de Direito, quer dizer, sem "good governance", longe de
contribuir para pacificar essas sociedades, agrava seu potencial conflitivo e
contribui para a desestabilização política.
Com vistas aos EUA, o decano da economia liberal de esquerda, John
Kenneth Galbraith, prognostica a ruptura da sociedade, caso o mercado sem
freios possa continuar cindindo o país em três partes: os ricos, a camada
média em via de desaparecimento e os excluídos, cujo número cresce dia a dia.
Autores como William Lewis e Lester Thurow percebem que nos EUA e nos países
industrializados restantes a estrutura social está se rompendo em pedaços, no
prazo mais longo: "O capitalismo pode conviver com isso, mas a
democracia, não", escreve o professor do Massachussetts Institute of
Technology.
Um tema especial, que nos limites desta conferência pode apenas ser
sugerido, consiste nos efeitos da exclusão sobre a democratização,
especialmente em casos mais complexos de transições políticas para sistemas
que, a priori, poderiam ser definidos como "democráticos".
O Brasil teve de distanciar-se de um regime militar precedente e a
elaboração e promulgação de sua constituição, como se sabe, ocorreram no
contexto de uma transição pactuada, e não revolucionária. O peso quase
opressivo do seu regime presidencialista conduz, em uma sociedade civil ainda
insuficientemente organizada e mobilizada, ao que se chama, nas pesquisas
sobre os processos de transição, democracia "defeituosa", uma vez
que a exeqüibilidade de uma política democrática fica prejudicada pela falta
de estruturas próprias ao Estado de Direito. Infelizmente, o País já
experimentou formas intermediárias entre a democracia e a dominação mais ou
menos autoritária; felizmente, os brasileiros não carecem de reflexão acerca
dessas experiências, como indicam termos como ditabranda ou democradura.
Uma base ainda forte dessas formas híbridas é a estrutura política, em grande
parte arcaica: ela é constituída por uma casta de régulos estaduais,
"caciques" que agem de forma clientelista nos Estados-Membros; por
"representantes do povo", cujo comportamento político nestes
Estados, e também no plano da federação é, praticamente, não-controlável e
que, por sua vez, conformam-se ao clientelismo regional e presidencialista.
Para fazer frente a esse quadro, é importante que na esfera das
"massas" mais ou menos organizadas, ou organizáveis, existam um
interesse e um empenho reais pela democratização exitosa, ao menos com vistas
ao longo prazo. Sem comunicação e cooperação com esse fator, nenhuma elite
consegue manter-se no poder, indefinidamente. A democratização, que se
constrói com mais chances de êxito «de baixo » do que « de cima »,
processa-se precisamente a partir de uma multiplicidade de iniciativas de
auto-ajuda, de auto-proteção, de afirmação dos direitos civis e de outras
formas de resistência. Mas, justamente aqui a exclusão social é gravemente
impeditiva e deve ser combatida com todas as forças, com vistas à realidade
(futura) de um sistema democrático.
A questão colocada pelo tema deste texto não deve ser respondida
apenas em termos éticos; daí que tenha sido necessário operacionalizar melhor
conceitos centrais, de modo a possibilitar enunciados quantitativos. Nessa
perspectiva, a miséria maciça, primordialmente econômica, diz respeito ao
povo-destinatário; a miséria sócio-cultural, que acarreta a apatia política,
diz respeito ao povo ativo; e a exclusão jurídica em acepção mais estrita
(violência ilegal, desigualdade inconstitucional, negação da proteção
jurídica, impunidade dos responsáveis pela opressão) consiste em violações do
status do povo como instância de atribuição.
No campo das causas, os sistemas democráticos não podem tolerar um
"mais" da forma até agora existente da monetarização mundialmente
desregulamentada nem, por princípio, seu grau atingido até o presente. Os
processos de democratização em países pouco desenvolvidos e em países
emergentes podem, com isso, sofrer danos – talvez irreparáveis. Nos países
centrais, a democracia, por sua vez, já está em vias de sofrer danos
visíveis.
Com relação aos efeitos estáticos, isto é, dificilmente elimináveis da
exclusão nos países individuais, em relação aos seus sintomas cotidianos, se
somarmos todos os indicadores no âmbito da « cadeia » descrita, inclusive a
apatia política, que se expressa também no comportamento eleitoral, o limite
do que ainda se pode tolerar é a maioria qualificada para a alteração da
constituição do respectivo sistema político. Se ela for atingida ou
ultrapassada, a democracia desse país, temporária ou permanentemente,
existirá apenas no papel; então, o sistema democrático será apenas « law in
the books », não mais « law in action ». Esta é uma situaçao que nenhum
democrata pode tolerar.
Tal evolução não pode coexistir com uma democracia dotada de
vitalidade. A democracia justifica-se a partir do povo, deve servir ao povo
ativo, ao povo enquanto instância de atribuição e ao povo-destinatário, quer dizer,
aos titulares dos direitos eleitorais, acrescidos de todos os cidadãos,
acrescidos de todas as pessoas no âmbito do seu ordenamento constitucional. A
democracia é a forma estatal da inclusão.
A democracia é um direito positivo de todo e qualquer ser humano. Mais
globalização da espécie que conhecemos até o momento seria letal para a
democracia; o grau atingido já è altamente perigoso. Como podemos sair
novamente desse abismo?
Muitas medidas são discutidas. Quero mencionar aqui algumas poucas,
atinentes às políticas jurídica e social : objetivos mais claros de uma
compensação nos termos de Estado de Bem-Estar Social ; finalmente, uma
reforma agrária eficaz ; créditos fiscais sistemáticos para os working
poor, investimentos dramaticamente mais elevados na educação, na formação
escolar e adacêmica e na formação profissionalizante, não apenas por parte do
Estado, mas - mediante ordens juridicamente formuladas – também por parte das
empresas ; levar a sério e implementar coerentemente o direito vigente ( not
last, os direitos humanos, o Direito Trabalhista e Previdenciário, a
tutela jurídica processual em todas as áreas ).
Outras medidas jurídico-institucionais da maior urgência são um
combate enérgico em favor da igualdade de todas as pessoas perante a lei, a
ser realizado concretamente em prol da equiparação das mulheres, dos grupos
excluídos da população, do status jurídico de crianças e adolescentes,
em prol do desenvolvimento de regiões negligenciadas. É também de central
importância eliminar a impunidade na aplicação do Direito Penal e tornar
eficazes as garantias processuais e outras garantias procedimentais para cada
pessoa afetada, independentemente da sua camada social.
E tudo isso necessita de uma reforma enérgica do aparelho judiciário.
O Judiciário deve tornar-se inteiramente independente do Poder Executivo,
deve poder aparecer, no pleno sentido desse termo, como "Terceiro
Poder". O Estado deve ser arrancado finalmente da sua
privacidade, estruturalmente ainda feudal, deve tornar-se público no sentido
moderno do termo, deve, para dizê-lo em termos jurídicos, ser tratado
como ente de Direito Público. E essa qualidade fundamental de uma república
com uma efetiva divisão dos poderes e um efetivo controle dos poderes deve
ser fiscalizada por uma práxis independente dos tribunais, cuidadosamente e
em estrita fidelidade à constituição.
A partir da nova situação política no Brasil, com um novo exercício da
Presidência, vivemos talvez – a mais longo prazo - um novo começo histórico,
ainda a se denominar: esperançoso e, mais que isso, com uma oportunidade real
de mudança democrática pacífica, ou seja, uma mudança de uma sociedade que
até o momento se caracterizava pela desigualdade, pela injustiça e, em parte,
detentora de conformação pré-democrática. As expectativas que emanam do
Brasil, vão muito além do País, alcançando mesmo o cenário internacional.
Contra a globalização do capital oligopolista, há que globalizar a
democracia – em formas estruturadas democraticamente em si mesmas,
enquanto auto-organização móvel, com um "povo" global a ser criado,
paulatinamente, por meio da resistência, enquanto ator e veículo da
comunicação na esfera pública mundial, da crítica e da formulação de opcões
melhores: com vistas a uma sociedade mundial futura, na qual a economia
exista novamente em função das pessoas, e onde a estas seja possível decidir
democraticamente seus destinos na condição de membros iguais de uma sociedade
não excludente.
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segunda-feira, 18 de junho de 2012
DEMOCRACIA E EXCLUSÃO SOCIAL EM FACE DA GLOBALIZAÇÃO
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