segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O mundo do Direito tem seus Aldrovandos Cantagalos de Monteiro Lobato



EMBARGOS CULTURAIS



Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy


Aldrovando Cantagalo é curioso exemplo da galeria de personagens de Monteiro Lobato. De um modo muito singular, Aldrovando é o mote literário com o qual o escritor paulista também criticou o formalismo e a mediocridade dourada daqueles que pouco ligam para o conteúdo e para as ideias, mas que insistem, com volúpia, na pureza das formas. São os amantes da crase certa, do hífen bem colocado, das mesóclises e das outras óclises. Aldrovando Cantagalo é o caricato gramático putativo do conto “O Colocador de Pronomes”.

Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, São Paulo, em 18 de abril de 1882. Por imposição do avô, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1900. O desinteresse de Monteiro Lobato pelo curso de Direito era total. Parece que Lobato admirou apenas um professor, Pedro Lessa, que lecionava Filosofia do Direito.

Literato até a medula, Lobato bacharelou-se pelas Arcadas, foi promotor, atuou como advogado. Em inúmeras passagens a desilusão de Monteiro Lobato para com o Direito, a Justiça, a profissão do homem de leis, é de todo evidente. Monteiro Lobato também simboliza o livro, foi dos maiores defensores do mercado editorial brasileiro. Escreveu, editou, traduziu. Sempre com um livro debaixo do braço, continuamente lendo, e escrevendo, Lobato nos conta que lia maquinalmente, delirantemente.

A rebeldia e o ceticismo marcaram firmemente suas oposições. Lobato tinha mesmo de ser contra o jurídico e contra todo o tipo de formalidades, afinal ele era mesmo um oposicionista de tudo que tem gosto oficial. Inclusive a ortodoxia dos gramáticos de muitas regras e poucas ideias não fora por ele poupada. É do que trato neste pequeno excerto.

No conto “O colocador de pronomes” essa posição é bem definida. É a estória de Aldrovando Cantagalo. Os pais de Aldrovando, inventou Lobato, se casaram por causa de um problema com o pronome “lhe”. Isto é, quando o pai de Aldrovando pediu ao avô do personagem uma das filhas em casamento, um uso equivocado do pronome fez com que o pai de Aldrovando se visse constrangido a se casar com a irmã que não queria. O problema estava na beleza, era uma questão de atração estética, ainda que sem a percepção moral e histórica de Jacó, entre Lia e Raquel, por quem por sete anos trabalhou para Labão, como se lê na passagem veterotestamentária.

Um problema estético e platônico que se resolveu negativamente nos planos da gramática, dos pronomes, retos, oblíquos (combinados ou não), reflexivos, de preposições justapostas, que não alcançam problemas de sintaxe e de estilo, e muito menos da órbita dos negócios práticos ou dos estímulos do amor. A mãe de Aldrovando caiu nos braços do pai, por um esbalho pronominal: o “lhe” no pedido de casamento teve como resultado a irmã mais próxima, em detrimento da irmã verdadeiramente desejada. Assim, pelo menos, foi o que decidiu o pai das moças. Nesse caso, não valeu a parêmia “Caesar non super grammaticos”, vale dizer, não se respeitou a suprema lei que nos dá conta de que mais vale a gramática do que a autoridade do chefe. O chefe aqui colocou os pronomes onde bem entendia. Acrescentou-se mais uma norma à regra fundamental das línguas, que é a lei do menor esforço.

Aldrovando viveu marcado com o problema do pronome, até porque um pronome mal colocado selou um casamento, e talvez por esse fato é que freudianamente passou a vida corrigindo erros de gramática, todas as horas, em todos os lugares, em relação a todas as placas e sinais de rua e de lojas, e quanto a tudo e a todos que ouvia. Antes de morrer pretendia deixar uma gramática definitiva, explicando todos os problemas da língua, com o que todos as questões sérias do idioma (e da vida) estariam enfrentadas e resolvidas. Aldrovando salvaria o mundo das impropriedades da língua escrita e falada. Cumpria uma missão. Dedicou sua vida à boa colocação dos pronomes e crases e acentos e desinências.

Já idoso, Aldrovando recebeu do editor os originais desse livro maravilhoso (e necessário) para corrigir; para seu desespero, verificou que todos os acentos estavam trocados, os pronomes equivocados e toda a ortografia não passava de um interminável engano, por descuido do corretor. O esforço todo resultara em nada. O susto e a desilusão apressaram seu fim.

A ironia de Lobato pode ser apreendida com a nota que ele acrescentou ao conto, na primeira edição. Apresentou o espólio do falecido Aldrovando, no qual havia numerosos originais, obras inéditas, de importância superlativa. Havia um estudo sobre o acento circunflexo, em três volumes. Aldrovando deixou um importantíssimo estudo sobre a vírgula no hebraico, que chegava a cinco volumes. Deixou também um valioso texto sobre a psicologia do til, em apenas dez volumes. Lobato registrou igualmente que Aldrovando deixou um estudo valioso sobre a crase, vazado em dez volumes. Muita cultura, muita erudição. Segundo Monteiro Lobato essa obra toda, importantíssima, pesava, “ por junto, 4 arrobas, que renderam, vendidos a 3 tostões o quilo, 18 mil réis. ”

Lobato recriminava o excesso de forma e o niilismo do conteúdo. Ao leitor, informou que não sabia do que Aldrovando morreu, e também não importava ao caso. Para Lobato, o que importava era proclamar aos “quatro ventos que com Aldrovando pereceu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes”, encomendando “paz à sua alma”.

O Aldrovando Cantagalo do Direito seria talvez o perseguidor de prescrições, o obcecado com decadências, o colecionador de naturezas jurídicas (inclusive o tópico problema da natureza jurídica do cadáver), o classificador incansável dos tipos de Constituições e de bens fungíveis e infungíveis que há, o farejador das dissemelhanças entre decisões constitutivas e declaratórias, entre normas de forma e de fundo, entre efeitos ex-tunc e ex-nunc, entre condições resolutivas, potestativas e suspensivas, erros substanciais, reais e obstativos, nulidades e anulabilidades, a par do relevantíssimo problema das exceções, especialmente de pré-executividade em matéria fiscal, no sentido de que seriam enfrentadas por recursos de apelação ou por agravos.

O Aldrovando Cantagalo do Direito viveria no nosso conturbado “imaginário dos juristas”, cujo cotidiano que vivemos é marcado por um paradoxo, substancialmente contraditório, no qual uma ideologia conservadora reafirmaria a harmonia no mundo, num contexto de contradições que seriam absolutamente periféricas, como alertado por Roberto de Aguiar, no mais lúcido texto de crítica de ideologia jurídica até hoje escrito[1].

O Aldrovando Cantagalo do Direito seria talvez o organizador de algumas questões de concurso, que ele mesmo corrigiria, cujos recursos julgaria e sobre cujas vidas decidiria, ou seria quem sabe algum causídico embalado no rubi, sempre contribuindo para a produção de tantos e quantos e muitos outros Aldrovandos Cantagalos que há, e que perambulam pelos fóruns, repartições e cátedras da vida, escolhendo quem vai para a cadeia, dando a cada um o que é seu, redigindo manifestos e pareceres e petições, ensinando os poucos autores estrangeiros que leu (e menos ainda os que compreendeu), dizendo que faculdades são boas ou não, e fazendo justiça, ainda que caia o mundo.



[1] Conferir, Roberto A. R. de Aguiar, O Imaginário dos Juristas, in Amilton B. de Carvalho (org.), Revista de Direito Alternativo, São Paulo: Acadêmica, 1993, pp. 18-27.


Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).



Revista Consultor Jurídico, 17 de janeiro de 2016, 8h00

"Supremo é muito sensível a argumentos que apontam risco para governabilidade"






O que é óbvio não é necessariamente dito. Para quem pensa no Direito, é cristalino que a condição humana dos advogados, promotores e juízes faz com que não seja uma ciência exata. O Supremo Tribunal Federal, com sua competência constitucional, é influenciado por, por exemplo, por questões políticas, econômicas e até pelo restante do Judiciário.

Pois foi para mostrar como esses fatores externos moldam as decisões do Supremo que a professoraPatrícia Perrone Campos Mello, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), desenvolveu sua tese, agora publicada sob a forma do livro Nos Bastidores do STF. “Isso é muito óbvio, mas não é dito. E aí se constrói no imaginário popular uma percepção equivocada do que é o processo de decisão do Supremo”, comenta.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Patrícia explica que há três formas com que os ministros do STF se comportam. O “comportamento legalista” é quando o ministro se pauta apenas pelo que dizem a Constituição Federal e os precedentes dos tribunais. O “comportamento ideológico” é quando ele se deixa levar por suas convicções políticas e suas concepções de mundo.

É na terceira forma de comportamento que a professora encontra os resultados mais interessantes. Ela classifica como “comportamento estratégico” quando o ministro tem uma convicção política definida, mas percebe, pelo comportamento do colegiado, que, se defender determinada tese, vai ficar vencido. Portanto, ajusta o voto para uma posição entre o que ele acredita e o que ele calcula que será bem aceito pelos colegas, de maneira a levar o tribunal em determinada direção.

Foi algo parecido com o que o ministro Luís Roberto Barroso fez durante o julgamento da constitucionalidade de se considerar crime a posse de drogas para consumo próprio. Apesar de o pedido falar de drogas, genericamente, o voto do ministro foi para que o Supremo legalizasse apenas a posse de maconha.

“Não sei bem qual é a posição do tribunal. Temos um estilo de deliberação em que as pessoas não conversam internamente. Achei que uma posição um pouco menos avançada teria mais chance de conquistar a maioria”, disseBarroso, à época.

O episódio não está no livro de Patrícia — até porque ela não comentou casos recentes. Mas ela é assessora do ministro Barroso, que foi o orientador tanto do mestrado quanto do doutorado da agora doutora pela Uerj.

E foi o próprio ministro quem a encorajou a levar tal pesquisa adiante. Quando começou a desenvolver a tese, Patrícia ainda não trabalhava no gabinete do ministro, mas já tinha nele sua referência acadêmica. Foi consultá-lo e disse: “Vou escrever para dizer o óbvio...” Ao que ele respondeu: “Pois é, mas é um óbvio que ninguém diz e que precisa ser dito”.

Leia a entrevista:

ConJur — Não é um tanto óbvia a conclusão de que outros fatores além do jurídico influenciam nas decisões do Supremo?
Patrícia Perrone Campos Mello — É muito óbvio! Mas isso não é dito, e aí se constrói no imaginário popular uma percepção equivocada do que é o processo de decisão do Supremo Tribunal Federal. Primeiro de tudo: não está tudo escrito. As soluções não estão todas previstas e outros elementos interferem. É muito importante que o leigo compreenda isso. Segundo: a opinião pública é capaz de interferir. Mobilize-se! E não estou nem dizendo que isso é positivo sempre, porque pode não ser. Os julgamentos precisam ser imparciais. Se todos os ministros se sentem extremamente constrangidos por uma opinião pública que quer ver sangue, isso não é bom. Mas se não tem como um julgamento não ser político, a opinião pública e os outros poderes também podem exercer constrangimento sobre o Supremo Tribunal Federal. Isso é tão óbvio para o jornalismo, mas na academia não se enfrenta a questão.

ConJur — Isso não é dito por um defeito da academia?
Patrícia Perrone Mello — Ninguém diz que “o juiz decidiu assim porque o momento político era ruim”. Existe uma figura que se chama Juiz Hércules, definida pelo Robert Alexy, um pensador genial. Seria o juiz que analisaria sempre todas as questões e todos os conflitos e seria capaz de lutar contra tudo e contra todos para fazer uma decisão absolutamente neutra. A academia trabalha com essas categorias como se o juiz fosse um ser abstrato que está fora da confusão e vai decidir sempre de maneira neutra. Quer dizer, determinadas decisões não poderiam ser tomadas sem antes se fazer um diagnóstico completo. Então, a gente está discutindo como as decisões deveriam ser tomadas sem discutir como elas são tomadas, entende? O Supremo é livre para contrariar o Congresso? Até a página cinco. Contraria e depois não consegue o reajuste dos servidores. Essa é a lógica da separação dos poderes.

ConJur — Como surgiu o livro?
Patrícia Perrone Mello — Muito por conta da minha experiência de procuradora do estado do Rio de Janeiro. Litigando pelo estado, eu fui percebendo que nem sempre aqueles argumentos jurídicos que a gente considerava irretorquíveis eram acolhidos em juízo. Às vezes o texto da lei era muito claro, e mesmo assim o entendimento que saía vencedor não era a interpretação mais óbvia do texto. Portanto, claramente existiam outros elementos que influenciavam a decisão dos juízes, sobretudo no caso de alteração de jurisprudência, ou de jurisprudência vacilante. O desafio da minha tese de doutorado era responder a esta pergunta: quais são os elementos que efetivamente influenciam as decisões judiciais?

ConJur — Foi possível mapeá-los?
Patrícia Perrone Mello — Fiz uma pesquisa e descobri que tinha muita coisa na literatura norte-americana e alguma na europeia sobre esse assunto, e que de um modo geral se falava em três grandes modelos de comportamento judicial: o comportamento legalista, o ideológico e o estratégico. O que eles chamam legalista, que nem é um termo muito bom para comportamento judicial em matéria constitucional, porque Constituição não é lei, é para tentar antecipar como uma corte vai decidir um caso com base nos precedentes, no texto da norma ou com base na interpretação. Eu já antecipava que esse seria o modelo predominante na minoria dos casos, mas para a minha surpresa não foi assim.

ConJur — E tem alguma explicação?
Patrícia Perrone Mello — Quando o Supremo Tribunal Federal implementou a repercussão geral e a súmula vinculante, teve uma redução no volume de recursos que ele recebe na ordem de 63%. Fez-se uma conta que o Supremo tinha um número de repercussões gerais e essas repercussões versavam sobre tantas matérias. Portanto, a cada decisão, o Supremo decidia 210 casos, na verdade. Ou seja, mesmo que um precedente sobre um tema fosse decidido com base em qualquer outro critério que não o jurídico, mesmo que fosse decidido politicamente, a reiteração nos outros 209 casos era uma decisão com base no critério legalista, de reiteração de jurisprudência. Mas quando o Direito não é plenamente determinado, quando é possível usar argumentos constitucionais para se justificar decisões tanto num sentido quanto no outro, claramente você não vai conseguir antecipar uma decisão com base no comportamento legalista, porque ele não existe. 

ConJur — E aí entram os outros modelos de comportamento judicial?
Patrícia Perrone Mello — Entram outros dois modelos de comportamento judicial que são estudados pela literatura: o ideológico e o estratégico. O modelo ideológico é quando os juízes decidem com base nas suas convicções políticas. Os casos que são relativamente indeterminados são julgados pelos juízes com base nas convicções políticas deles. O estudo sobre esse modelo deu muito certo nos Estados Unidos, um ambiente ideológico muito bem definido que se divide entre os democratas, que são os progressistas, e os republicanos, que são os conservadores. Aqui no Brasil é impossível fazer isso, porque a gente é ideologicamente muito mal definido. Nossos partidos são pouco definidos, nosso ambiente político é pouco definido. E mesmo nos pontos em que o ambiente é definido, são pontos que não têm projeção em matéria constitucional. 

ConJur — Mas o livro fala desse comportamento ideológico no Brasil?
Patrícia Perrone Mello — De alguma maneira, a visão de mundo dos ministros interfere no julgamento desses casos sensíveis em que o direito é muito pouco pré-determinado, e eles mesmos reconhecem isso abertamente. Eu fiz, então, um estudo do que eu chamei de background dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Não fiz para todos, fiz para três que para mim eram bem claros: o ministro Ayres Britto, o ministro Joaquim Barbosa e o ministro Gilmar Mendes. Aí fiz um estudo das entrevistas deles, dos principais casos paradigmáticos de que eles participaram e da vida pregressa, como passagem pelo Ministério Público e pela Advocacia-Geral da União, o que isso poderia interferir na visão de mundo desse ministro etc. Nas entrevistas do ministro Joaquim Barbosa quando ele veio para o Supremo, ele declarava que queria levar ao tribunal a visão de mundo dele, de uma pessoa que vinha de uma classe social mais baixa e que enfrentou preconceito para chegar onde tinha chegado, falava também de simplificar a linguagem para tornar o tribunal mais acessível.

ConJur — Qual a conclusão sobre os ministros Britto e Gilmar?
Patrícia Perrone Mello — O ministro Ayres Britto era claramente progressista. Foi relator de células-tronco embrionárias, das uniões homoafetivas, da ADPF sobre a Lei de Imprensa. Já o ministro Gilmar Mendes escreveu muito sobre o controle da constitucionalidade, tem toda aquela vivência da Alemanha, da Corte Constitucional da Alemanha, que é muito presente nas decisões dele. E ele é responsável por algumas decisões defendendo a utilização de instrumentos em matéria de controle de constitucionalidade que foram importantes para organizar essa matéria no STF, como a súmula vinculante.

ConJur — E o modelo estratégico?
Patrícia Perrone Mello — Esse é o mais interessante. É o seguinte: realmente o juiz decide com base em critérios ideológicos e políticos, só que nem sempre ele produz a decisão que considera ideal, que gostaria de dar se fosse uma decisão monocrática. Como ministro, para ele decidir e fazer o Direito andar em uma determinada direção, ele depende dos colegas de corte. Ele pode chegar à conclusão de que se votar puramente de acordo com as convicções dele, ficará vencido, e aí não contribui para o Direito avançar. Então ele vai procurar aquela decisão mais próxima das convicções dele, mas que em alguma medida tenha chances de ser aprovada pela maioria. Ou seja, ele vai votar moderadamente de maneira ideológica para não ficar vencido e para fazer com que o Direito caminhe na direção que ele considera a melhor.

ConJur — Isso explica muito do funcionamento de um colegiado.
Patrícia Perrone Mello — Isso pode acontecer tanto internamente no Supremo (onde o ministro depende do voto dos outros ministros para criar uma maioria em um determinado sentido) quanto pode acontecer com o Supremo como instituição na relação com os outros poderes, com a opinião pública e com a imprensa.

ConJur — Como é essa influência dos outros poderes?
Patrícia Perrone Mello — O Executivo detém o monopólio da força, então, ou o Executivo adere a uma decisão do Supremo, estando convencido pelos argumentos de que aquilo não é um impedimento meramente autoritário, ou ele resiste ao cumprimento. O Supremo precisa do Executivo para fazer valer uma decisão dele, seja em face do próprio Executivo seja em face de outros poderes. O Legislativo, em alguma medida, pode interferir no Supremo. O Senado aprova as indicações de ministros, aprova o orçamento do Judiciário, aprova um aumento de remuneração, o Congresso Nacional aprova a criação de novos cargos, por exemplo. O Legislativo é capaz de medidas de represália, e no limite pode descumprir as decisões ou simplesmente superá-las através de emenda constitucional. Então, o Supremo, ao interagir com cada um dos poderes, precisa antecipar se aquela decisão vai ser cumprida ou não, e se vale a pena o ônus.

ConJur — No caso do Executivo, é sempre o argumento do erário, não é?
Patrícia Perrone Mello — O Supremo é de fato muito sensível aos argumentos de perigo para a governabilidade e de perigo econômico. Esses argumentos freiam o Supremo, efetivamente. Primeiro por cautela, porque realmente tem alguns juízos de prognose e consequências que talvez os representantes eleitos estejam mais aparelhados para fazer. Segundo porque, se no fim do dia a decisão conduzir o país à bancarrota, talvez ela vá ser descumprida e não tenha valido a pena o desgaste.

ConJur — E com o Legislativo?
Patrícia Perrone Mello — Não é a mesma relação. Havia uma percepção do Supremo até bem pouco tempo, de que o Legislativo tinha se omitido na regulamentação de alguns direitos previstos na Constituição, e de que o Congresso é relutante em corrigir algumas falhas do processo eleitoral que resultaram em disfunções. E aí o Supremo talvez se permita avançar mais, por entender que o Legislativo não está disposto a fazer determinadas mudanças, e assume os riscos de ter as suas decisões descumpridas — e tem várias descumpridas. Por exemplo, a decisão em que o o STF reconheceu a inconstitucionalidade da criação de municípios foi superada por emenda constitucional. A que tentou limitar o número de vereadores por município também foi superada por emenda constitucional. Diversas questões tributárias foram superadas por emenda constitucional.

ConJur — Como funciona o Supremo com a opinião pública?
Patrícia Perrone Mello — A opinião pública preocupa muito o Supremo Tribunal Federal, e é um elemento fortemente impactante. Os ministros são selecionados por um processo que também é político. São pessoas de notório saber, mas selecionadas pela presidente e aprovadas pelo Senado. São pessoas que circulam bem nessa fronteira, e por isso são sensíveis a questões políticas. Depois, os ministros estão sujeitos às mesmas influências que a população em geral. Eles têm uma preocupação com a legitimidade e com a credibilidade do Supremo, e tem matérias que são muito delicadas, como quando se discute a impunidade. A imprensa deve ter percebido isso no julgamento do mensalão, por exemplo.

ConJur — A imprensa, então, deve ser o fator que mais influencia.
Patrícia Perrone Mello — A imprensa é o principal intermediário entre os ministros e todos os grupos caros a eles. Tem ministros mais sensíveis ao que pensa a academia, outros ao que pensa a opinião pública como um todo, como o ministro Joaquim Barbosa. Mas entre todos esses grupos e os ministros tem a imprensa no meio. A fotografia que existe dos ministros não é o que eles são realmente, é o que é relatado pela imprensa. Por isso ela é um grupo muito sensível e estratégico para os ministros. Ela constrói a percepção que todos esses grupos vão ter sobre a atuação dos ministros. Portanto, a atuação dos deles, mesmo quando é política, é limitada não apenas pelo texto escrito, mas pela capacidade de interação dos demais poderes com o Supremo e pela reação que se espera vir da opinião pública. Isso é interessante porque a gente conclui que nos casos mais divididos as decisões são políticas, e não puramente jurídicas, mas também porque a gente vê que não há tanta liberdade assim.

ConJur — Como assim?
Patrícia Perrone Mello — Os ministros são limitados, sim, pela reação que eles acreditam que virá da opinião pública e pela reação que eles acreditam que virá da imprensa. Eles têm uma preocupação com as consequências das decisões deles sobre o cenário econômico, sobre a governabilidade, e isso entra em questão quando eles produzem uma decisão. Eles não estão em um mundo ideal, em que são simplesmente livres para decidir só porque é uma questão de princípios constitucionais, que são cláusulas abertas, e que não tem um comando prévio expresso sobre o que soluciona aquele conflito de interesse.

ConJur — É sempre um jogo de equilíbrio.
Patrícia Perrone Mello — Basta lembrar, por exemplo, quando se discutiu a competência do Conselho Nacional de Justiça para processar disciplinarmente os magistrados, se seria concorrente ou subsidiária. Havia, aparentemente, uma tendência pela competência subsidiária, foi até deferida uma liminar. E a opinião pública estava em cima, a Ordem dos Advogados do Brasil organizou manifestação defendendo a competência concorrente, na qual estava presente a Associação Brasileira de Imprensa, e não por acidente voltou-se atrás na liminar e ela não foi referendada pelo Plenário. Era a presidência do ministro Cezar Peluso e ele até falou desse caso como tendo havido uma interferência da opinião pública sobre o julgamento, o que ele considerou condenável.

ConJur — Do ponto de vista da segurança jurídica, isso não é ruim? Se há o precedente, o que deveria prevalecer não é a jurisprudência em vez de a opinião pública ou a ideologia de cada um?
Patrícia Perrone Mello — Vamos falar, então, do novo Código de Processo Civil. Foi feita uma opção radical em favor dos precedentes vinculantes em casos repetitivos. Se você vai ter precedentes vinculantes, não pode mudar de opinião o tempo inteiro, senão é o caos instaurado. É pior do que não ter precedente vinculante, porque uma hora vincula para um lado, outra hora para o outro. E quando muda de entendimento, como é que faz? Por isso é muito importante para o Supremo como instituição, para a credibilidade do Judiciário, para funcionar o novo Código do Processo Civil, para a sociedade e para todo mundo que se ache um meio termo. Um caminho que costure a inevitabilidade de o momento e de a visão de mundo influenciarem os julgamentos com o respeito aos precedentes. Essa é a reflexão pela qual o Supremo vai precisar passar, porque tem um grande desafio pela frente, que é aprender a reverenciar os seus próprios precedentes.

ConJur — Isso é interessante não só do ponto de vista acadêmico. Para o advogado é também importante saber o que chama atenção ou não dos ministros, não é?
Patrícia Perrone Mello — No meu trabalho não faço juízo de valor. O meu objetivo não é dizer se é bom ou ruim julgar dessa ou daquela forma. O meu objetivo é fazer um diagnóstico do que interfere. Eu como advogada tenho que saber o que influencia um juiz, para saber por onde argumento. Se eu entrar no Judiciário partindo do pressuposto de que é só o Direito, eu não vou chamar atenção para os aspectos econômicos, por exemplo, que são fundamentais para as consequências daquela decisão. Por isso tenho que entrar na Justiça sabendo quais são os fatores que interferem. Eu, parte que preciso litigar, também preciso saber quais são os riscos que tenho ao entrar com uma ação judicial.

ConJur — A pesquisa chegou a captar o que interfere mais ou menos entre os ministros? Por exemplo, se o fator econômico interfere mais, ou se são questões sociais.
Patrícia Perrone Mello — Isso é individual, mas existem momentos políticos mais delicados para a politica ou para a economia. Por exemplo, quando o país passou pelo Plano Collor. Claramente aquelas medidas que bloqueavam os recursos das pessoas violavam o direito de propriedade. Mas o Supremo não deferiu a liminar para a afastar as medidas do plano econômico e depois o Pleno manteve a decisão. Ali tinham várias particularidades: era o primeiro presidente eleito pelo voto popular depois de anos de ditadura, o país passava por um momento de caos econômico e havia uma grande apreensão de qual seria a consequência de, naquele momento, interferir no jogo político. E o tribunal não interferiu. Do ponto de vista estritamente jurídico, havia todos os elementos para uma interferência, mas a corte exerceu a autocontenção.

ConJur — Pode falar de mais alguns exemplos descritos no livro?
Patrícia Perrone Mello — Teve alguns casos em que a economia influenciou, como o Plano Collor, ou a privatização da Vale do Rio Doce. Nada mais polêmico e o Supremo não interferiu. Crédito presumido de IPI, em que o Supremo tinha um entendimento fixado por nove a dois, e depois virou para um entendimento antagônico. Essa virada veio logo depois de algumas publicações da imprensa. Lembro bem de um artigo contundente da Miriam Leitão dizendo “será que o Supremo ainda não entendeu que o país vai quebrar?”, alguma coisa assim. Teve também o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, previsto na Constituição, mas nunca regulamentado. Quando o STF disse que ia regulamentar, o Congresso aprovou uma lei. Na Lei de Imprensa e em todos esses casos de liberdade de expressão, a opinião pública tem um poder de fogo enorme, e a corte é bastante defensora da liberdade de expressão por conta a liberdade de imprensa.


Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.



Revista Consultor Jurídico, 17 de janeiro de 2016, 6h21

Turma declara de ofício prescrição de ação proposta mais de 2 anos após a extinção do contrato de trabalho


Se o trabalhador ajuizar reclamação trabalhista depois do prazo previsto em lei, o magistrado poderá declarar a prescrição da ação, mesmo sem manifestação da parte contrária? Essa questão foi discutida em um processo analisado pela 9ª Turma do TRT mineiro. Na avaliação do relator do processo, desembargador Ricardo Antônio Mohallem, a resposta é positiva, pois, conforme frisou em seu voto, é dever do magistrado declarar a prescrição da ação ajuizada após o prazo máximo de dois anos depois da extinção do contrato de trabalho, ainda que a parte contrária não tenha formulado expressamente esse pedido.

No caso, o contrato de trabalho do reclamante foi extinto em 06/04/2012, considerando-se a projeção do aviso prévio de 51 dias, conforme comunicação de dispensa e termo de rescisão do contrato de trabalho (TRCT). O desembargador verificou que a ação ajuizada pelo reclamante foi distribuída em 05/06/2014, ou seja, dois anos e dois meses após o encerramento do contrato de trabalho. Em outras palavras, o reclamante perdeu o prazo para reivindicar na JT os créditos trabalhistas que entende lhe serem devidos.

Conforme destacou o desembargador, nos termos dos artigos 7º, XXIX, da CF/88 e 11, I, da CLT, o prazo prescricional é de 5 anos durante a vigência do contrato de trabalho e de 2 anos a contar da cessação do contrato, podendo ser postulados os últimos 5 anos a contar da propositura da ação, o que deve se dar dentro do prazo de 2 anos após a rescisão contratual. O relator observou que a juíza sentenciante havia pronunciado a prescrição das pretensões anteriores a 05/06/2009, tendo julgado parcialmente procedentes os pedidos iniciais para condenar a reclamada a pagar ao reclamante diferenças salariais com reflexos, uma hora extra diária (intervalo intrajornada) e feriados trabalhados em dobro. Entretanto, salientou o desembargador que a sentença não declarou a prescrição total, questão que sequer foi mencionada no recurso da empresa. Assim, diante dessa omissão, ele entendeu que cabe declarar a prescrição de ofício (independentemente de provocação pela parte contrária).

"A lei processual conferiu natureza pública à prescrição, tal como ocorre, por exemplo, com a decadência, as condições da ação e os pressupostos processuais, cabendo ao magistrado aferir a fluência do prazo prescricional e declará-la de ofício, em qualquer momento ou grau de jurisdição", finalizou o desembargador ao declarar de ofício a prescrição total da ação, extinguindo-a com julgamento da questão central e absolvendo a reclamada da condenação que lhe foi imposta. Nesse contexto, o julgador entendeu que ficou prejudicada a análise dos recursos das partes.

Por maioria de votos, a Turma julgadora acompanhou esse posicionamento.( 0000919-44.2014.5.03.0016 RO )
Fonte: TRT3

Cirurgião plástico deve garantir êxito do procedimento estético



O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendimento de que a relação entre o profissional médico e seus clientes gera um contrato de “obrigação de resultado”. Conforme decisões do tribunal, o cirurgião plástico, ao oferecer seus serviços, compromete-se a alcançar o resultado estético pretendido. Caso ocorram falhas nos procedimentos ou os resultados não sejam obtidos, o cliente pode acionar a Justiça para reparar eventuais danos morais e materiais.


“De acordo com vasta jurisprudência, a cirurgia plástica estética é obrigação de resultado, uma vez que o objetivo do paciente é justamente melhorar sua aparência, comprometendo-se o cirurgião a proporcionar-lhe o resultado pretendido”, decidiu o tribunal ao analisar o AREsp 328110. 


“O que importa considerar é que o profissional na área de cirurgia plástica, nos dias atuais, promete um determinado resultado (aliás, essa é a sua atividade-fim), prevendo, inclusive, com detalhes, esse novo resultado estético procurado. Alguns se utilizam mesmo de programas de computador que projetam a simulação da nova imagem (nariz, boca, olhos, seios, nádegas etc.), através de montagem, escolhida na tela do computador ou na impressora, para que o cliente decida. Estabelece-se, sem dúvida, entre médico e paciente relação contratual de resultado que deve ser honrada”, define a doutrina. 


O Brasil apresenta, ao lado dos EUA, o maior número de procedimentos desse tipo: a cada ano são realizadas no país mais de um milhão de procedimentos estéticos, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). Entre as mais comuns estão a cirurgia para remoção de gordura localizada (lipoaspiração), o implante de silicone para aumento dos seios (mamoplastia) e a cirurgia para levantar o nariz (rinoplastia).


As decisões da corte sobre esse assunto estão disponibilizadas pela Pesquisa Pronta, na página eletrônica do STJ, sob o tema Responsabilidade Civil do profissional por erro médico. A ferramenta oferece consultas prontamente disponíveis a temas jurídicos relevantes, bem como a acórdãos de julgamento de casos notórios.


Inversão do ônus da prova


A jurisprudência do STJ mantém entendimento de que nas obrigações de resultado, como nos casos de cirurgia plástica de embelezamento, cabe ao profissional demonstrar que eventuais insucessos ou efeitos danosos (tanto na parte estética como em relação a implicações para a saúde) relacionados à cirurgia decorreram de fatores alheios a sua atuação. Essa comprovação é feita por meio de laudos técnicos e perícia.


No julgamento do REsp 985888, o tribunal decidiu que “em procedimento cirúrgico para fins estéticos, conquanto a obrigação seja de resultado, não se vislumbra responsabilidade objetiva pelo insucesso da cirurgia, mas mera presunção de culpa médica, o que importa a inversão do ônus da prova, cabendo ao profissional elidi-la (eliminá-la) de modo a exonerar-se da responsabilidade contratual pelos danos causados ao paciente, em razão do ato cirúrgico”.


“Não se priva, assim, o médico da possibilidade de demonstrar, pelos meios de prova admissíveis, que o evento danoso tenha decorrido, por exemplo, de motivo de força maior, caso fortuito ou mesmo de culpa exclusiva da vítima (paciente)”, decidiu o tribunal no REsp 236708.


Casos


Um cirurgião plástico do interior de São Paulo foi condenado ao pagamento de nova cirurgia, além de indenizar em 100 salários mínimos uma cliente que se submeteu a procedimento estético para redução de mamas. O Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu na atuação do médico “a lesão de caráter estético no resultado da intervenção nas mamas da paciente, pelas cicatrizes deixadas, além da irregularidade no tamanho e no contorno. Doutro turno, não ter alcançado a aspiração estética trouxe à autora sofrimento que é intuitivo, não precisa ser comprovado”. Ao analisar o recurso (REsp 985888), o tribunal manteve a condenação do médico. “Não houve advertência à paciente quanto aos riscos da cirurgia, e o profissional também não provou a ocorrência de caso fortuito”.


Em outra decisão (REsp 1442438), ministros do STJ negaram pedido de indenização de uma moradora de Santa Catarina, submetida a cirurgia para implante de silicone. Ela manifestou frustração com o procedimento e apontou o surgimento de cicatrizes. O STJ decidiu que a atuação do médico não foi causadora de lesões. “A despeito do reconhecimento de que a cirurgia plástica caracteriza-se como obrigação de resultado, observa-se que, no caso, foi afastado o alegado dano. As instâncias ordinárias, mediante análise de prova pericial, consideraram que o resultado foi alcançado e que eventual descontentamento do resultado idealizado decorreu de complicações inerentes à própria condição pessoal da paciente, tais como condições da pele e do tecido mamário”.


OrientaçãoO cliente deve ser informado previamente pelo profissional de todos os possíveis riscos do procedimento, alertam os órgãos de defesa do consumidor. A SBCP recomenda aos interessados nesse tipo de procedimento que fiquem atentos à escolha do profissional e ao local onde se realizará a cirurgia. A entidade orienta a buscar informações sobre a devida habilitação do profissional e também se certificar das condições do estabelecimento, conferindo a existência de licença e alvará de funcionamento.




Fonte: STJ

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Defensor público pode ser proibido de sustentar alguma tese?






Imagine que você, na condição de defensor público, se depare com um assistido acusado de praticar o crime de lesão corporal contra um homossexual, dizendo que somente agrediu a vítima porque ela passou por ele com “trajes inadequados” e insinuou um flerte, razão pela qual teria agido em defesa da própria honra. Se o exemplo lhe parece um pouco distante, imagine uma situação frequente na Defensoria Pública: o assistido, pronunciado e submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri por ter matado a sua mulher, alega que praticou o crime para defender a própria honra, pois teria encontrado a vítima lhe traindo com um vizinho.

O defensor público, diante desses casos hipotéticos apresentados, poderia sustentar em favor do assistido a tese da legítima defesa da honra? Se a resposta for positiva, questiona-se: ao proceder dessa forma, não estará o defensor público assumindo a esquizofrênica[1] postura de promover os direitos humanos sustentando teses que reproduzem e aprofundam violações a direitos humanos? Se a resposta àquela pergunta for negativa, questiona-se: é possível estabelecer um “controle ético ou ideológico do argumento”? Sendo mais claro: o defensor público pode ser proibido de sustentar alguma tese? Vejamos.

Antes de prosseguir, tenhamos em conta que o assunto não é apenas polêmico na prática, mas também complicado no plano teórico, envolvendo, inclusive, um confronto entre objetivos da Defensoria Pública: de um lado, a primazia da dignidade da pessoa humana e a prevalência e efetividade dos direitos humanos (artigo 3º-A, I e III[2]), que certamente exigem da Defensoria uma atuação comprometida com os direitos humanos; e de outro, a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (artigo 3º-A, IV), que reclamam uma atuação comprometida com os interesses do assistido. O mesmo confronto se verifica entre funções institucionais da Defensoria, havendo, de um lado, a função de promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico (artigo 4º, III) e, de outro, a função de promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados (artigo 4º, X).

Não simpatizo com a ideia de censurar ou de proibir que o defensor público sustente determinada tese em favor de seu assistido. A liberdade de argumento é indissociável de uma defesa criminal efetiva. Assim, qualquer espécie de controle ético ou ideológico sobre a atuação do defensor público deve ficar no plano da recomendação, e não no da proibição, e isso porque, embora existam algumas teses que reproduzam concepções contrárias aos direitos humanos, a possibilidade de limitar o discurso defensivo — em questões de gênero, por exemplo — pode encontrar terreno fértil no Brasil e ser ampliada para outros temas menos sensíveis, numa tentativa de convergir a defesa criminal com valores comunitários morais ou éticos.

Se o controle ético ou ideológico da defesa criminal não pode impedir a sustentação de determinado argumento, tal conclusão não veicula, porém, uma obrigação de o defensor público necessariamente encampar a fala do acusado, já que nem sempre haverá uma vinculação entre as defesas técnica e pessoal no processo penal, sendo o defensor e o acusado, conforme adverte Claus Roxin, reciprocamente autônomos[3]. Por isso, deparando-se o defensor público com o requerimento de algum assistido para que sustente determinada tese contrária aos direitos humanos (a legítima defesa da honra em casos de feminicídio, por exemplo), entendo que o defensor poderá se valer de sua prerrogativa de deixar de patrocinar a ação (no que se insere também a defesa) por considerá-la manifestamente incabível ou inconveniente aos interesses da parte (artigos 44, XII, 89, XII, e 128, XII, da LC 80/94).

A Constituição Federal incumbiu à Defensoria Pública a promoção dos direitos humanos (artigo 134, caput), de modo que é possível extrair dessa função, segundo a lição de Renata Tavares da Costa, “uma obrigação positiva, ou seja, de assegurar o efetivo acesso de gozo de tais direitos, bem como uma posição negativa, qual seja, de abster-se de determinadas atitudes que aprofundem a violação destes direitos”[4]. Pode ser que, em algumas ocasiões, a efetividade da defesa criminal esteja condicionada justamente a um discurso contemporâneo e inteligente que conduza, por exemplo, um caso de violência de gênero a partir da diminuição da culpabilidade do acusado diante de sua formação moral num ambiente discriminatório, e não a partir de uma sugestionada culpa da vítima[5].

A Defensoria é responsável pela construção de sua história e, mais do que isso, pela consolidação de sua identidade. Pode ser apenas (mais) uma instituição no cenário jurídico do país, e assim contribuir para a manutenção do status quo, mas pode, também, representar o novo, abrir o armário das ideias eticamente comprometidas com os direitos humanos e colocar na gaveta tudo aquilo que produziu e que ainda produz discriminação, dor e sofrimento.



[1] A expressão é de Renata Tavares da Costa: “Isso, em hipótese alguma, pode significar uma limitação de atuação no campo da defesa, que deve ser amplo, mas efetivamente no reconhecimento de que esta defesa deve ser ética e feita dentro dos parâmetros institucionais previstos na Constituição. Ou seja, o defensor não pode ter a esquizofrênica posição de promover os direitos humanos e, ao mesmo tempo, sustentar teses que sustentem tais violações de direitos” (Os direitos humanos como limite ético na defesa dos acusados de feminicídio no Tribunal do Júri. In: XII Congresso Nacional de Defensores Públicos. Livro de teses e práticas exitosas. Curitiba, 2015, p. 207).
[2] Esse e os demais dispositivos citados no parágrafo são da LC 80/94.
[3] ROXIN, Claus. Pasado, presente y futuro del Derecho Procesal Penal. Sante Fé: Rubinzal-Culzoni, 2007, p. 58. No mesmo sentido, afirma Fernandes que “(...) o defensor é independente não só do tribunal e do Ministério Público, mas também do seu próprio cliente” (FERNANDES, Fernando. O Processo Penal como Instrumento de Política Criminal. Coimbra: Almedina, 2001, p. 368).
[4] Os direitos humanos como limite ético na defesa dos acusados de feminicídio no Tribunal do Júri. In: XII Congresso Nacional de Defensores Públicos. Livro de teses e práticas exitosas. Curitiba, 2015, p. 207.
[5] Mais uma vez cito o instigante trabalho de Renata Tavares da Costa, apresentado com muito entusiasmo no XII Congresso Nacional de Defensores Públicos, em que ela desenvolve a tese do homem como “vítima cultural”: “E aqui reside o grande argumento para os Defensores que no júri estão para a defesa daqueles que perpetraram a violência extrema contra a mulher: se essa violência é resultado de séculos de discriminação, é justo ou proporcional imputá-la somente ao sujeito que está sentado no banco dos réus? (...) Neste sentido é que o argumento da legítima defesa da honra nos casos do feminicídio no Tribunal de Júri deve ser substituído pelo argumento da cultura de discriminação produzida numa série de omissões estatais que fazem o agressor uma espécie de vítima cultural” (Os direitos humanos como limite ético na defesa dos acusados de feminicídio no Tribunal do Júri. In: XII Congresso Nacional de Defensores Públicos. Livro de teses e práticas exitosas. Curitiba, 2015, p. 207).


Caio Paiva é defensor público federal, especialista em ciências criminais, professor e coordenador do Curso CEI. É autor do livro “Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro” e coautor de “Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos”.
adv


Revista Consultor Jurídico, 5 de janeiro de 2016, 8h05

"Não é função da arbitragem impedir as pessoas de procurarem o Judiciário"








A máxima popular de que momentos de crise também é oportunidade nunca pareceu fazer tanto sentido como no caso da arbitragem. Em vigor há apenas seis meses, a Lei 13.129, que regula o procedimento, tem sido cada vez mais utilizada para resolver conflitos decorrentes da má fase pela qual passa a economia brasileira, avalia o advogado José Antonio Fichtner, que participou da comissão de juristas responsável pela elaboração da norma.

“Não é uma questão de achar, é um fato. O número de arbitragens tem crescido tanto nas instituições locais quanto nas instituições sediadas no exterior. O Brasil hoje é o terceiro país do mundo em número de arbitragens na ICC [International Chamber of Commerce]”, respondeu o especialista à revista Consultor Jurídico, quando questionado se a crise poderia fomentar o instituto.

A nova Lei de Arbitragem, que reformou a legislação acerca do procedimento, forma, ao lado da Lei de Mediação e do Código de Processo Civil, a tríade de normas jurídicas sancionadas em 2015 com a promessa de agilizar a solução de conflitos no Brasil. A Lei de Mediação entrou em vigor em dezembro, já o novo CPC passa a valer a partir de março deste ano. 

Segundo Fichtner, a lei avançou em diversas frentes ao regular o uso da arbitragem na área societária, definir prazos para um eventual pedido de anulação da decisão arbitral, autorizar os árbitros a modificar liminares concedidas por juízes em medidas cautelares e permitir à Administração Pública utilizar o instrumento. 

A Lei de Arbitragem foi aprovada quase que da mesma forma que fora proposta pela comissão de juristas. Os vetos foram dois: com relação ao procedimento para resolver problemas de consumo e conflitos trabalhistas. Mas isso não frustrou os elaboradores do anteprojeto de lei, disse o advogado.

“O propósito da comissão era proteger algumas espécies de trabalhadores, mas o veto veio e temos que trabalhar com a lei que existe e não com a lei que queríamos. Quanto ao outro veto, não houve grande alteração porque a interpretação que se faz da lei hoje, baseada em um precedente do Superior Tribunal de Justiça, é que o consumidor, querendo, pode instituir a arbitragem”, afirmou.

Para o advogado, a via arbitragem também não tem a missão de impedir que o cidadão procure o Judiciário. Essa alternativa, defende, “tem que ser vista como um remédio para questões complexas, para contratos que exigem uma solução rápida de um expert na matéria e que contenha um grau de pacificação entre as partes considerável.” Gera resposta mais rápida, em média 14 meses depois. E geralmente é confidencial, embora o segredo não precise ser regra. 

Leia a íntegra da entrevista:

ConJur — O projeto de lei sugerido pela comissão foi aprovado praticamente na íntegra, mas houve dois vetos: um com relação à arbitragem nas ações de consumo e outro para as relações trabalhistas. Isso frustrou a comissão?
José Antonio Fichtner — A perspectiva era melhorar a vida de algumas classes de trabalhadores. No anteprojeto, havia um dispositivo que tinha por finalidade permitir que determinados empregados, como os que têm função de gerência ou de diretoria, pudessem utilizar a arbitragem como forma de solução para os litígios contra seus ex-empregadores. Em alguns segmentos da economia, se você entrar na Justiça contra o seu empregador, não consegue mais emprego em área nenhuma. A arbitragem tem como característica o sigilo e a privacidade, o que permitiria resolver as questões sem macular a vida do trabalhador. Então, o propósito da comissão era proteger algumas espécies de trabalhadores, mas o veto veio e temos que trabalhar com a lei que existe e não com a lei que queríamos.

Quanto ao outro veto, não houve grande alteração porque a interpretação que se faz da lei hoje, baseada em um precedente do Superior Tribunal de Justiça, é que o consumidor, querendo, pode instituir a arbitragem. Esse é o entendimento do STJ. O que fizemos foi simplesmente transpor para uma regra legal e positiva aquilo que o STJ já estabelecia como sendo a interpretação correta do Código de Defesa do Consumidor. Então, quanto a esse ponto, não houve grande prejuízo.

ConJur — A arbitragem será possível nos casos de consumo por causa do entendimento jurisprudencial?
José Antonio Fichtner — Exato. O entendimento atual do STJ diz que isso [a arbitragem] é possível se for por iniciativa do consumidor. Imagine uma empresa que comprou um avião, por exemplo, e que esse avião apresentou um defeito. Ela pode resolver isso tranquilamente através de arbitragem, que talvez seja o meio mais adequado para a solução dessa controvérsia, e não por meio do sistema judicial, que é muito mais demorado, ineficiente e, muitas vezes, sem pessoas preparadas para o tipo de litígio complexo que está sendo colocando.

ConJur — O senhor diz que a arbitragem na área de consumo e do trabalho se destinava ao consumidor de alto padrão ou trabalhador mais especializado. Essa restrição estava clara nos dispositivos vetados?
José Antonio Fichtner — No caso do trabalhador era restrita a essas situações excepcionais. E veja: sempre como uma faculdade do empregado resolver o seu conflito através de arbitragem. Já no caso das relações de consumo não porque é uma decisão puramente econômica: a pessoa decide se quer ou não aquele caminho. Já que é só o consumidor que pode escolher, então ele vai fazer os cálculos dele e vai definir quando é bom a arbitragem e quando é melhor a via judicial.

ConJur — Uma das críticas à arbitragem nos conflitos de consumo é que ela ameaçava as ações coletivas. O senhor concorda?
José Antonio Fichtner — Acho que cada instrumento tem a sua área de atuação. Houve uma certa reação das pessoas ligadas à área de consumo, que pretendiam que se mantivesse o sistema do Código de Defesa do Consumidor, mas a nossa ideia foi apenas de colocar mais um instrumento para o consumidor.

ConJur — Na sua avaliação, o veto à arbitragem na área trabalhista pode desestimular investimentos nesse momento de crise?
José Antonio Fichtner — O dispositivo do anteprojeto de lei se referia a um grupo muito restrito de empregados e não acho que isso vá interferir na decisão do investidor em colocar ou não o seu recurso no Brasil. Agora, se você me perguntar se uma mudança na legislação trabalhista brasileira mais profunda e mais liberalizante traria mais investimentos para o Brasil, não tenho dúvida que sim. Não acho que esse caso específico seja relevante, mas acho que pensar em liberalizar um pouco a matéria trabalhista, assim como organizar o sistema fiscal, daria ao Brasil um porto muito interessante para investimentos estrangeiros — investimentos esses que não temos capacidade de fazer atualmente por razões já conhecidas.

ConJur — Na sua avaliação, quais foram os principais avanços da lei?
José Antonio Fichtner — Em primeiro lugar, uma abrangência maior com relação ao uso da arbitragem na área societária, com a possibilidade de inseri-la nos estatutos das sociedades anônimas e de usá-la para resolver pendências entre os sócios ou entre a sociedade e os sócios. Esse é um passo importante dentro do sistema brasileiro, um dos grandes avanços que a lei trouxe. A lei também trouxe avanços técnicos em relação à questão de como se conta o prazo para anulação das decisões arbitrais, assim como a possibilidade de se proferir sentenças parciais. Imagine que dentro de um litígio haja uma parcela que não há conflito. Então o árbitro, assim como o juiz, vai poder, a partir de março, com o novo Código de Processo Civil, proferir uma sentença para resolver uma parcela do litígio.

ConJur — Como assim?
José Antonio Fichtner — Imagine que uma pessoa está cobrando R$ 100 em uma determinada disputa e vem a outra parte e diz que estava, na verdade, devendo R$ 40. O que o árbitro pode fazer, assim como o juiz também vai poder: condenar a parte a pagar os R$ 40, para o qual não há conflito, e continuar com a disputa em relação aos R$ 60 remanescentes. Isso faz com que as pessoas se concentrem na área do conflito em que de fato há uma disputa, uma resistência entre as partes. A doutrina já falava sobre isso e agora isso ficou esclarecido na lei. Tratamos também da necessidade da confirmação das liminares dadas em juízo pelos árbitros nos casos em que houver uma medida cautelar no Judiciário previamente à instauração da arbitragem. E outro fator fundamental também foi a possibilidade ampla da Administração Pública fazer arbitragem. A média de duração de um processo arbitral hoje, no Brasil, é de cerca de 14 meses. Boa parte do que se paga às vezes em disputas de grande envergadura, no valor final, são os juros e correção monetária. Então, entendemos que essa é uma forma de termos decisões mais rápidas, menos custosas e talvez mais eficientes nesse tipo de disputa.

ConJur — A Lei da Arbitragem deu poder coercitivo para o árbitro ao permitir que ele conceda liminares?
José Antonio Fichtner — Na verdade isso já existia. O que a lei veio foi só clarear essa situação. Esse era um poder que o árbitro já tinha, mas como havia uma discussão sobre se os árbitros podiam modificar liminares dadas previamente por magistrados em medidas cautelares, a lei veio deixar claro que podem. Mas boa parte da doutrina já entendia assim. Foi só para tirar uma dúvida do plano doutrinário e jurisprudencial. 

ConJur — Na sua opinião, o reconhecimento da decisão arbitral estrangeira é burocrático no Brasil? 
José Antonio Fichtner — A Constituição brasileira dá a mesma proteção para a sentença judicial estrangeira e a sentença arbitral estrangeira. E o STJ tem sido extremamente eficiente e tem proferido decisões muito importantes no sentido de reconhecer decisões estrangeiras, principalmente entendendo que as condições de anulação devem ser observadas no país onde a decisão foi proferida, de modo que aqui, para homologar, o STJ faz apenas uma análise formal da decisão. Toda vez que se tem tentado recentemente no Brasil resistir à homologação com base em uma questão de mérito, o STJ tem dito que isso é matéria para o país onde a decisão original foi proferida. Então, há um princípio de colaboração, de reciprocidade importante e de respeito às condições do país onde a arbitragem se desenvolveu.

ConJur — E com relação ao tempo para se analisar? É moroso?
José Antonio Fichtner — A média é em torno de 12 a 14 meses. Dentro da prática internacional, isso não é considerado absurdo.

ConJur — Nos EUA tornou-se uma tendência os contratos com cláusulas prevendo a arbitragem individual como único meio de solucionar conflitos. O senhor acha que o Brasil também pode seguir por esse caminho?
José Antonio Fichtner — Se não me engano, foi uma decisão muito apertada da Suprema Corte Americana que provocou uma reação ao impedir que, em determinadas categorias e situações de consumo, as ações coletivas pudessem ser utilizadas e que os contratos indicariam a solução de arbitragem individual para cada uma das pessoas envolvidas nas situações de consumo tipificadas. Sinceramente acho que essa não é uma decisão definitiva da Suprema Corte Americana. Não pode ser assim e acho que não será assim. Acho que da próxima vez que a matéria for levada àquela corte, em um futuro próximo, é possível que tenhamos uma decisão diferente. Mas estou falando com uma distância bastante considerável. Não me parece função da arbitragem impedir que pessoas venham individualmente buscar a solução dos seus problemas na via judiciária. A arbitragem tem que ser vista como um remédio para questões complexas, para contratos que exigem uma solução rápida de um expert na matéria e que contenha um grau de pacificação entre as partes considerável.

ConJur — O ministro Luís Felipe Salomão, que presidiu a comissão de juristas, defende que as questões muito técnicas sejam resolvidas pela arbitragem.... 
José Antonio Fichtner — Não tenho a menor dúvida de que contratos complexos na área de construção e societária, que envolvam relações de longo prazo e que sejam afetados de alguma forma pela variação da moeda ou regras regulatórias, são os mais adequados para uma solução arbitral. No entanto, temos uma quantidade grande de alternativas que podem substituir a decisão judicial com um custo menor e com uma capacidade de solução bastante considerável.

ConJur — Por que essas questões teriam uma solução mais adequada na arbitragem: por causa do tempo ou porque é mais provável encontrar um julgador especializado na matéria do conflito?
José Antonio Fichtner — Não posso reclamar. Na minha história profissional, as questões complicadas nas quais o Judiciário interveio, o fez de maneira absolutamente satisfatória. Fui responsável pela maior briga societária da história do Brasil, em uma época em que pouca gente sabia o que era execução específica de obrigações, e tivemos um sucesso muito grande. Estou me referindo à disputa dos fundos de pensão contra o Daniel Dantas, há uma década e meia atrás. A capacidade de solução, inclusive em tempo bastante razoável do Judiciário foi enorme. Mas hoje temos como realidade 102 milhões de processos em curso. Essa é uma situação que o Judiciário está tentando enfrentar, mas não é simples. Então, a mediação vem aí como uma tentativa para desafogar esse volume de processos. A arbitragem trata apenas de um percentual muito pequeno desse universo, mas tira da mão dos juízes, por escolha das partes, processos que tomariam muito tempo de solução de cada magistrado. Então, é um veículo que também é bastante importante na hora de administrar o tempo daqueles que distribuem justiça no Brasil.

ConJur — O senhor acha que a arbitragem pode ganhar fôlego com a crise que a gente vive? 
José Antonio Fichtner — Essa não é uma questão de achar, é um fato. O número de arbitragens tem crescido tanto nas instituições locais quanto nas instituições sediadas no exterior. O Brasil hoje é o terceiro país do mundo em número de arbitragens na ICC [International Chamber of Commerce], é considerado hoje um caso de destaque no mundo internacional da arbitragem. O modo como a lei se fez prevalecer no Brasil, nesse pouco espaço de tempo, com esses resultados de aceitação, utilização e reconhecimento pelos tribunais... Isso tudo tem feito do Brasil um caso a ser estudado.

ConJur — O que a lei diz sobre a fiscalização das câmaras arbitrais, para fiscalizar eventuais fraudes?
José Antonio Fichtner — Estamos falando de uma coisa eminentemente privada, em que duas partes escolhem uma instituição arbitral ou apenas os árbitros, que decidem e aquilo vira coisa julgada. Se alguém utilizar esse instrumento para fins ilícitos, para cometer fraude, é uma questão que está à margem da arbitragem. Está mais para as delegacias, para o Direito Penal, do que propriamente para o direito que estamos tratando. A lei não intervém.

ConJur — Como fica a arbitragem com a entrada em vigor do novo CPC?
José Antonio Fichtner — São normas complementares. Se tivéssemos que classificar, dar um adjetivo, esse CPC é o do precedente. Aquele que procura criar nos tribunais superiores uma fórmula de solução para demandas idênticas, que se espraie por todo o Judiciário cadeia abaixo, impedindo a renovação de demandas idênticas. Acho que isso é muito importante, e o novo CPC prestigia a arbitragem tratando a sentença arbitral como se fosse a própria sentença judicial. Também reconheceu que a arbitragem tem um foco de atuação bastante restrito. Por isso, elegeu a mediação como grande instrumento para resolver os conflitos na acepção de quantidade. Vamos ver se a mediação vai se apresentar como um instrumento eficaz para isso.

ConJur — Quais são as hipóteses de nulidade na arbitragem?
José Antonio Fichtner — A nova lei e o CPC também não alteraram as hipóteses de anulação. Elas continuam as mesmas do artigo 32 da Lei 9.307 [Lei de Arbitragem]: é nula a sentença arbitral se for nulo o compromisso e se o acordo para fazer a arbitragem, de alguma maneira, for nulo; se emanou de quem não poderia ser árbitro — a lei tem hipóteses que definem que algumas pessoas não podem ser árbitras em determinadas situações; não contiver os requisitos do artigo 26 — que é o relatório, a fundamentação, a data e o local em que foi proferida; não decidir todo o litígio; tiver sido proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva; tiver sido proferida fora do prazo ou em desrespeito aos princípios que tratam o artigo 21, parágrafo 2º, que são os princípios processuais do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e do nível de convencimento. 

Conjur — Uma das críticas à arbitragem é a possibilidade de uma das partes, quando insatisfeita, ir ao Judiciário. A Lei de Arbitragem ou o novo CPC preveem algo contra isso?
José Antonio Fichtner — Não há propriamente um recurso. A medida que a parte tem, uma vez proferida a decisão arbitral, é propor uma ação, mas que tem um conteúdo muito limitado. Não houve praticamente alteração com relação a isso e a possibilidade de a parte fazer exceção de arbitragem se mantém presente. O que está se discutindo ainda é qual o melhor instrumento para isso. Existia no projeto do novo CPC a exceção de arbitragem. A parte, então, teria a oportunidade de entrar com uma exceção de arbitragem e dizer “isso não é para ser discutido pelo Poder Judiciário”. E o juiz poderia extinguir.

ConJur — Mas isso no meio do processo judicial?
José Antonio Fichtner – Isso. Imagine que você tenha contratado comigo a arbitragem. Aí, um dia, resolve que vai entrar na Justiça. Então você diz que há exceção de arbitragem, que estava prevista no projeto do CPC....

ConJur — Como uma exceção de competência?
José Antonio Fichtner — Exatamente. Você entraria com a exceção e o juiz falaria que não era competência dele, que a arbitragem havia sido escolhida e extinguiria o processo. Só que no final do processo legislativo, o Congresso eliminou essa possibilidade da exceção e resolveu que essa defesa teria que ser feita na contestação.

ConJur — E isso é ruim?
José Antonio Fichtner — É que no sistema que vai entrar em vigor, você entra com a ação, depois tem uma audiência de mediação. Não obtida a mediação, depois de um prazo, você oferece a sua contestação. Então, pelo que está proposto, você vai exigir que o juiz tenha, no conjunto de audiências de mediações que está fazendo, algo que não é da competência dele. E isso até ele verificar que de fato aquilo é para ser resolvido através de arbitragem e não pela via judicial. Por isso, sugiro que se estabelecesse a possibilidade dessa exceção de conhecimento para que o juiz possa resolver aquilo. Não faz sentido nenhum esperar seis meses para eliminar o que nunca deveria estar na frente do juiz.

ConJur — Em que momento o senhor defende a propositura dessa exceção?
José Antonio Fichtner — Estou falando especificamente de uma ação em substituição à arbitragem.

ConJur — Ou seja, quando as partes desistem da arbitragem no meio do caminho e entram com a ação.
José Antonio Fichtner — É. Por exemplo: surgiu uma possibilidade de conflito e a parte, ao invés de ingressar com a arbitragem, entra em juízo. Aí vem a outra [parte] e diz que a exceção de arbitragem seria a solução prevista. Mas eliminaram isso e colocaram como parte da contestação, o que não me parece adequado.

ConJur — Quanto tempo leva até uma resposta?
José Antonio Fichtner — Vai levar uns seis meses. Isso não faz sentido nenhum, é um contrassenso ao próprio código, que se propõe à celeridade e às soluções rápidas. 

ConJur — Tem algum projeto de lei em vista para mudar isso?
José Antonio Fichtner — A gente está sugerindo a construção jurisprudencial, como existia em relação à exceção de pré-executividade para os casos em que alguém entra com uma execução contra você, mas não é você quem deve, é outro. Ao invés de garantir em juízo com um bem e depois entrar com embargos para dizer que a parte é ilegítima, a pessoa dizia “não sou eu”, então o juiz extinguia e redirecionava. Estamos usando esse precedente como algo a ser manuseado nessa hipótese. Vamos ver se vai funcionar.

ConJur — O senhor é a favor da divulgação da jurisprudência arbitral? Como isso seria possível com as cláusulas de confidencialidade?
José Antonio Fichtner — Estamos falando de um mercado privado. Então, temos que combinar com o cliente. Ele que escolhe a arbitragem, o advogado, o árbitro. Não adianta a gente querer criar um sistema de divulgação em que o dono do problema não compartilha da mesma decisão. É óbvio que é bom ter um sistema jurisprudencial que sirva de referência, mas isso tem que ser dividido com os donos dos casos, eles têm que autorizar a publicação dessas referências jurisprudenciais. Algumas instituições arbitrais preveem isso. A facilidade dessa situação é que, uma vez que as partes escolham aquela instituição arbitral, elas já estariam concordando com a divulgação dos casos, mas isso não é a regra. Sou partidário, filosófica e teoricamente, da posição de que a confidencialidade não é uma qualidade intrínseca da arbitragem, ela tem que ser contratada. A arbitragem não é por natureza confidencial. As partes podem estabelecer, no procedimento arbitral, o princípio da confidencialidade. Então, não tenho problema nenhum quanto à divulgação, só acho que tem que combinar com o dono do problema.

ConJur — A divulgação de uma jurisprudência arbitral vincularia os árbitros a segui-la, como ocorre no Judiciário?
José Antonio Fichtner — Acho que não. O árbitro tem liberdade para decidir. Uma questão mais complexa é se os árbitros estão vinculados às súmulas do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo. Isso é algo que se debate no plano doutrinário e que tem implicações filosóficas profundas porque implicaria, dependendo da resposta, dois sistemas jurídicos distintos. 

ConJur — Qual é sua expectativa com relação à arbitragem na Administração Pública?
José Antonio Fichtner — Acho que toda situação nova provoca uma reação. No âmbito do Direito Administrativo e da área pública, a arbitragem já vinha sendo prevista em algumas legislações específicas, como a lei das PPPs [Parcerias Público-Privadas] e na Lei dos Portos. O que faltava era uma regra geral que admitisse a utilização da arbitragem como meio de solução das questões envolvendo a administração pública. A aprovação, pelo Congresso, de uma norma autorizando a utilização da arbitragem em caráter amplo e geral no âmbito da Administração Pública mudou o cenário legislativo e as pessoas estão agora se acomodando: as procuradorias dos estados e a Advocacia-Geral da União estão adaptando a sua estrutura e regras internas para fazer os procedimentos arbitrais. Acho que isso vai ser bom para o futuro do Brasil. Temos agora que estar vigilantes para que essas arbitragens sejam feitas no mais alto padrão e para que o instituto seja tratado na via pública como vem sendo tratado na via privada: com a maior correção e com excelentes resultados.

ConJur — A legislação dá tratamento diferenciado ao poder público na arbitragem, a exemplo do prazo em dobro e da remessa necessária existentes no processo judicial?
José Antonio Fichtner — Não. Na arbitragem, isso é contratado. As partes, ao organizarem os termos de referência de uma arbitragem específica vão definir os prazos para cada uma delas e as peculiaridades da administração serão obviamente preservadas.

ConJur — O procurador terá liberdade para deliberar sobre os termos da arbitragem?
José Antonio Fichtner — Se não houver uma regra interna da administração estabelecendo o contrário, sim. Mas os árbitros serão as pessoas mais preocupadas em garantir prazos adequados para o poder público.

ConJur — Como fica a questão da confidencialidade nessa situação?
José Antonio Fichtner — A nova Lei de Arbitragem teve o cuidado de dizer que as arbitragens serão públicas quando a Administração Pública estiver envolvida. Ou seja, nada há de inconstitucional. Foi proposital que assim se fizesse, porque a luz é o melhor tipo de remédio para evitar que um instrumento bom seja utilizado para maus propósitos. 

ConJur — Em um momento de crise e denúncias crescentes de corrupção nas organizações públicas, a resolução de um conflito pela via não estatal, que seria o Judiciário, é bem visto pela sociedade?
José Antonio Fichtner — Acho que a arbitragem vale pela qualidade dos seus atos e pela postura que as partes tomam no curso do procedimento. Acho que as pessoas têm que ter o cuidado de escolher árbitros que possam proferir as melhores decisões possíveis em cada caso concreto. E acho que a imprensa especializada tem que acompanhar o que vai ser feito, discutir os resultados e avaliar isso. Mas é difícil a opinião pública como um todo poder aferir a qualidade desse instrumento. Acho que se nós tivermos o apoio da imprensa especializada, acompanhando de perto os resultados, estaremos entregando para a nação um instrumento mais eficaz do que vínhamos com relação à solução de demandas complexas envolvendo a Administração Pública.


Giselle Souza é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.



Revista Consultor Jurídico, 3 de janeiro de 2016, 8h30

Decisão do Supremo tira Minas Gerais da lista de inadimplentes da União






O estado de Minas Gerais foi retirado do Serviço Auxiliar de Informações para Transferências Voluntárias (Cauc) e dos demais cadastros federais de inadimplentes, após decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, em deferimento a medida cautelar na Ação Civil Originária 2421. O ente federado busca garantir a efetivação de convênios no valor de R$ 180 milhões.

No pedido cautelar, a Procuradoria mineira alega que o estado está sem o certificado de Regularidade Previdenciária por causa de sua inclusão no Cauc, em razão da exigência de apresentação dos Demonstrativos de Aplicação e Investimentos de Recursos.

A situação gerou irregularidade junto ao Sistema de Informações dos Regimes Públicos de Previdência Social (CadPrev), o que tem inviabilizado a concretização de convênios para diversas finalidades, como a recuperação de aéreas de preservação permanente e introdução de práticas voltadas para a produção de água na bacia do Ribeirão Serra Azul, aquisição de veículos e equipamentos em apoio ao desenvolvimento sustentável dos territórios rurais e fortalecimento da agricultura familiar no norte de Minas por meio da apicultura.

Em sua decisão, o presidente do STF lembrou que a jurisprudência da corte tem reconhecido a necessidade de observância do princípio do devido processo legal para a inscrição de entes federados nos cadastrados federais de inadimplência, tendo em vista as sérias consequências de sua efetivação. Além disso, frisou que a adoção de medidas coercitivas para impelir a administração pública ao cumprimento de seus deveres não pode inviabilizar a prestação, pelo estado-membro, de serviços públicos essenciais, principalmente quando o estado é dependente de recursos da União.

“Não se afiguraria razoável, em princípio, obstar ao estado autor o acesso aos recursos relativos aos convênios já pactuados ou impedir que sejam celebrados novos convênios, acordos de cooperação e operações de crédito com a União e organismos internacionais, com potencial nocivo a importantes políticas públicas implementadas e aos serviços públicos essenciais prestados à coletividade”, concluiu Lewandowski.

O ministro explicou que a medida cautelar perdurará até que relatora da ação, ministra Cármen Lúcia, possa confirmá-la em referendo colegiado ou cassá-la monocraticamente. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.



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