quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Risco da evicção não atinge banco que apenas financiou a compra do bem


A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) eximiu o Banco Volkswagen da obrigação de ressarcir a empresa compradora de um carro financiado que foi apreendido pela Receita Federal por causa de problemas na importação. A empresa havia adquirido o veículo do primeiro comprador, que lhe transferiu o financiamento.

De acordo com o relator do caso, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, o dever de garantir os riscos da evicção é restrito ao alienante do veículo e não se estende à instituição que concedeu o financiamento sem ter vínculo com o importador.

Com esse entendimento, a Turma reconheceu a ilegitimidade passiva do banco e o excluiu do processo.

Apreensão

Inicialmente, um consumidor firmou contrato de alienação fiduciária com o banco para aquisição de um Porshe Carrera modelo 911. Depois, vendeu o veículo para uma empresa e repassou o financiamento com anuência da instituição financeira.

O automóvel, porém, foi apreendido pela Receita Federal devido a irregularidades na importação.

A empresa ajuizou ação contra o espólio do vendedor e o banco. Em primeira instância, o juízo declarou a nulidade do contrato, do termo de cessão, das notas promissórias e das demais garantias vinculadas ao financiamento, além de condenar os dois réus a ressarcir o valor pago pela compradora.

Ao julgar a apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) não reconheceu a ilegitimidade passiva da instituição financeira por entender que todos aqueles que participaram do negócio envolvendo a aquisição do veículo devem responder pelos prejuízos suportados por terceiro. Em recurso ao STJ, o banco insistiu na alegação de ilegitimidade.

Evicção

Em seu voto, Paulo de Tarso Sanseverino explicou que a evicção – tratada nos artigos 447 e seguintes do Código Civil – “consiste na perda total ou parcial da propriedade de bem adquirido em virtude de contrato oneroso por força de decisão judicial ou ato administrativo praticado por autoridade com poderes para apreensão da coisa”.

A responsabilidade pelos riscos da evicção, segundo o ministro, é do vendedor, e desde que não haja no contrato cláusula de exclusão dessa garantia, o adquirente que perdeu o bem poderá pleitear a restituição do que pagou.

No caso julgado, entretanto, o ministro concluiu que essa restituição não poderia ser exigida do banco.

Precedentes

Ele mencionou dois precedentes sobre responsabilidade da instituição financeira em relação a defeitos do produto financiado: no REsp 1.014.547, a Quarta Turma isentou o banco porque ele apenas forneceu o dinheiro para a compra; no REsp 1.379.839, a Terceira Turma reconheceu a responsabilidade do banco porque ele pertencia ao grupo da montadora de veículos e assim ficou patente sua participação na cadeia de consumo.

Nesse segundo julgamento, foi destacada a necessidade de distinguir a instituição financeira vinculada ao fabricante daquela que apenas concede financiamento ao negócio.

Embora o novo recurso tratasse de evicção, e não de produto defeituoso, o ministro aplicou o mesmo raciocínio: “Não há possibilidade de responsabilização da instituição financeira, que apenas concedeu o financiamento para a aquisição do veículo importado sem que se tenha evidenciado o seu vínculo com o importador.”Leia a íntegra do voto do relator.
Fonte: STJ

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Cuidados a serem tomados na contratação de serviços intelectuais sem vínculo





A legislação brasileira estabelece a obrigatoriedade de recolhimento da contribuição previdenciária sobre os pagamentos efetuados aos segurados empregados, os quais correspondem, segundo a Lei 8.212/91, “aqueles que prestam serviço de natureza urbana ou rural à empresa, em caráter não eventual, sob sua subordinação e mediante remuneração”.

A questão ganha grande relevância quando da análise da incidência da contribuição previdenciária sobre os pagamentos feitos a pessoas jurídicas pela prestação de serviços.

A regra geral, com algumas exceções específicas, é que nos casos de prestação de serviços por pessoa jurídica não haveria incidência da contribuição previdenciária, por não se verificar a figura do segurado empregado. Não obstante, tem sido comum a autuação de empresas sob a Receita Federal do Brasil questionar esse tipo de contratação para cobrar a contribuição previdenciária, sob a alegação de que se estaria diante de uma simulação ou fraude, no qual a personalidade jurídica da empresa serviria apenas para acobertar a relação empregatícia existente entre o contratante e o sócio da pessoa jurídica para reduzir a carga tributária, inclusive afastar o pagamento da contribuição previdenciária.

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a seu turno, quando analisa esse tipo de autuação tem proferido decisões recentes mantendo o entendimento das autoridades fiscais quando identificada a existência dos elementos típicos da relação de emprego.

Ou seja, se a autoridade administrativa concluir que a pessoa jurídica contratada presta serviços de forma habitual, com subordinação e mediante remuneração, estará caracterizado o vínculo que justificaria a desconsideração da personalidade jurídica e a cobrança da contribuição previdenciária.

No entanto, a legislação previu algumas exceções a esta regra, dentre as quais se destaca a prestação de serviços intelectuais — incluindo aqueles de natureza científica, artística ou cultural, — em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da PJ.

Para estes casos, o artigo 129 da Lei 11.196/2005 estabeleceu que, para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, deve se sujeitar tão somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas. Ou seja, nesse caso de serviços intelectuais, ainda que prestados de forma personalíssima, não se poderia desconsiderar a pessoa jurídica e tratar o prestador de serviço como um empregado para fins fiscais e previdenciários.

Não obstante, por conta da falta de uma definição clara do que seriam serviços intelectuais, alguns cuidados devem ser observados para fazer uso do que dispõe o artigo 129 da Lei 11.196/2005.

Nesse sentido, é importante destacar que o Carf tem mantido autuações previdenciárias ainda quando se alega a contratação de serviços intelectuais prestados por pessoas jurídicas, nos casos em que os serviços prestados não possuem caráter eventual ou os contratos possuem prazo de vigência indeterminados.

O Carf também tem mantido a tributação quando verifica que a empresa foi constituída exclusivamente com a finalidade de prestar o serviço, não possuindo outros clientes ou foi formada por ex-funcionários da empresa contratante.

Nesse mesmo sentido, o Carf já desconsiderou a prestação de serviços por pessoa Jurídica quando identificou que a empresa não possuía quaisquer funcionários, sendo formada apenas pelos sócios prestadores do serviço.

O que se tem observado, portanto, é que a mera prestação de serviços intelectuais não tem sido suficiente, por si só, para afastar a incidência de contribuições previdenciárias.

Assim, não basta a demonstração do enquadramento do serviço nas hipóteses previstas no artigo 129 da Lei 11.196/2005, sendo necessário, ainda, que se tome os cuidados necessários para que a pessoa jurídica prestadora do serviço não possa se enquadrar dentro de uma relação de emprego, servindo as decisões do Carf como um guia do que deve ser evitado para afastar esse enquadramento.


William Roberto Crestani é advogado-sênior da área previdenciária do Pinheiro Neto Advogados.

Bruno Toledo Checchia é associado da Área Previdenciária de Pinheiro Neto Advogados.



Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2015, 7h28

Fixação de preços abaixo dos custos fere a livre iniciativa, decide STF




Estabelecer preços tão baixos que não permitam arcar com o custo da produção é um obstáculo ao livre exercício da atividade econômica. Com esse entendimento, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal determinou, nesta terça-feira (3/2), que a União indenize uma usina de açúcar e álcool pelo tabelamento feito nas décadas de 1980 e 1990 pelo antigo Instituto do Açúcar e do Álcool.

Essa é uma das mais antigas — e custosas — brigas envolvendo a União. Uma série de usinas sucroalcooleiras e plantadores de cana reclama que os preços foram congelados naquele período abaixo do custo de produção. Isso porque, conforme a Lei 4.870/1965, cabia ao governo federal apurar os custos dos produtores.

Embora a Fundação Getulio Vargas tivesse sido contratada para calcular esses valores, o Ministério da Fazenda recusava sistematicamente os preços propostos, alegando que pressionariam a inflação. O setor passou a enfrentar dificuldades financeiras e a sofrer quebradeiras.

Para o relator do caso, ministro Dias Toffoli, verifica-se no caso responsabilidade objetiva da União. “Ao desprezar os preços indicados de forma arbitrária pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, [a União] traz prejuízos à empresa”, afirmou. Ele foi acompanhado por unanimidade. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.

AI 631.016

Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2015, 21h23

Alienação sem anuência de companheiro é válida se não há publicidade da união estável

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento ao recurso especial interposto por uma mulher que buscava anular a alienação feita pelo ex-companheiro, sem o seu conhecimento, de um imóvel adquirido durante o período em que o casal vivia em regime de união estável. A decisão foi unânime.

O casal conviveu entre abril de 1999 e dezembro de 2005. O apartamento, adquirido em 2003, serviu de residência à família até a separação. Após, foi alugado para complementação de renda. Tempos depois, ao tentar tomar posse do imóvel, a mulher foi informada pelo ex-companheiro de que o bem havia sido transferido a terceiros como pagamento de dívidas.

No recurso especial, foi alegada ofensa ao artigo 1.725 do Código Civil e aos artigos 2º e 5º da Lei 9.278/96. Os dispositivos disciplinam, essencialmente, a aplicação do regime da comunhão parcial de bens às relações patrimoniais decorrentes de união estável e a administração comum do patrimônio.

Terceiros de boa-fé

O relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, reconheceu que nenhum dos companheiros poderia dispor do imóvel sem autorização do outro, mas chamou a atenção do colegiado para a proteção jurídica ao terceiro adquirente de boa-fé.

“Não se pode descurar, naturalmente, o resguardo dos interesses de terceiros de boa-fé, já que o reconhecimento da necessidade de consentimento não pode perder de vista as peculiaridades da formação da união estável, que não requer formalidades especiais para sua constituição”, disse o relator.

A solução apontada pelo relator para evitar problemas como o do caso em julgamento é dar publicidade à união estável, assim como ocorre no casamento. “Tenho que os efeitos da inobservância da autorização conjugal em sede de união estável dependerão, para eventual anulação da alienação do imóvel que integra o patrimônio comum, da existência de uma prévia e ampla notoriedade dessa união estável”, disse Sanseverino.

“Mediante averbação, no registro de imóveis em que cadastrados os bens comuns, do contrato de convivência ou da decisão declaratória de existência de união estável, não se poderá considerar o terceiro adquirente do bem como de boa-fé, assim como não seria considerado caso se estivesse diante da venda de bem imóvel no curso do casamento”, explicou.

No caso apreciado, diante da inexistência de qualquer registro de copropriedade, nem mesmo da união estável, o relator entendeu pela impossibilidade da invalidação do negócio, mas destacou que a autora poderá discutir em ação própria os prejuízos sofridos com a alienação do bem.Leia a íntegra do voto do relator.
Fonte: STJ

Gol indenizará passageiro por atraso após acidente com avião da TAM em 2007



Em decisão unânime, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou a Gol a pagar indenização de R$ 10 mil a um passageiro por atraso em voo, ocasionado por acidente com aeronave de outra empresa três dias antes. O relator é o ministro Villas Bôas Cueva.

A decisão reformou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que havia negado o pedido ao fundamento de que a deficiência no cumprimento do contrato se deu em razão de caso fortuito, por medidas restritivas adotadas pelas autoridades aeronáuticas no período subsequente ao acidente do voo 3054 da TAM, em 17 de julho de 2007.

A situação que deu ensejo à ação de indenização aconteceu três dias após a tragédia. De acordo com o passageiro, ele passou a noite em claro no aeroporto de Brasília, sem nenhuma informação a respeito do voo que o levaria a Palmas. Disse que foi obrigado a desmarcar compromissos importantes e que também houve atraso em seu retorno, superior a quatro horas além do pactuado.

A sentença, mantida pelo TJSP, julgou o pedido improcedente. Segundo a decisão, a empresa “não tinha poderes para autorizar a decolagem de sua aeronave, assim como não poderia fazê-lo, sob pena de pôr em risco seus passageiros, tripulantes, pessoas em terra e o próprio equipamento”.

Fatos distintos

Nas razões do recurso especial, o passageiro alegou, além de divergência jurisprudencial, negativa de vigência dos artigos 20 do Código de Defesa do Consumidor e 230 e 231 do Código Brasileiro Aeronáutico. Para ele, o acidente aéreo não serviria como justificativa para o descaso e o tratamento inadequado da empresa com o cliente.

O ministro Villas Bôas Cueva acolheu os argumentos. Para ele, “os fatos são distintos, e o acidente fatídico não teria jamais o condão de afastar a responsabilidade da empresa por abusos ocorridos posteriormente à fatalidade. Se assim fosse, o caos se instalaria por ocasião de qualquer fatalidade, o que é de todo inadmissível”.

O relator reconheceu os problemas aeroportuários em virtude do fechamento de pistas no aeroporto de Congonhas e das condições climáticas desfavoráveis, mas, segundo ele, “a conjugação de todos esses fatores não libera a companhia aérea do dever de informação, que, ao contrário do que fez, deveria ter, no mínimo, atenuado o caos causado pelo infortúnio, que jamais poderia ter sido repassado ou imputado ao consumidor”.

Destacou, ainda, que a empresa sabia do atraso do voo antes que este ocorresse e poderia ter adotado providências para minimizar o desconforto do passageiro. Para ele, a situação é análoga àquela em que o consumidor é vítima de danos morais em decorrência de cancelamento de voo em virtude de greve deflagrada por companhia aérea.

Concluiu sustentando que o STJ já havia assentado que “na relação de consumo, existindo caso fortuito interno, ocorrido no momento da realização do serviço, como na hipótese em apreço, permanece a responsabilidade do fornecedor, pois, tendo o fato relação com os próprios riscos da atividade, não ocorre o rompimento do nexo causal”.

Leia a íntegra do voto do relator.

Fonte: STJ

Jurisprudência: portadores de câncer e a isenção do Imposto de Renda



Receber o diagnóstico de um câncer já não é nada fácil. Para muitos pacientes, entretanto, o desafio vai além da maratona de exames e tratamentos. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), não são poucos os processos movidos por portadores de neoplasias malignas que buscam garantir o direito à isenção do Imposto de Renda.

Na semana em que se comemora o Dia Mundial da Luta Contra o Câncer (4 de fevereiro), a Secretaria de Jurisprudência do STJ traz como destaque na página de Pesquisa Pronta o temaIsenção do Imposto de Renda aos portadores de doenças graves. Clicando no link relacionado ao tema, é possível ter acesso a uma seleção dos principais acórdãos do tribunal.

O artigo 6º, inciso XIV, da Lei 7.713/88 garante o benefício da isenção sobre os proventos de aposentadoria ou reforma dos portadores de neoplasia maligna. O que frequentemente chega ao STJ são recursos questionando a revogação do benefício na ausência dos sintomas da doença ou diante de aparente cura.

No julgamento do REsp 1.202.820, o ministro Mauro Campbell Marques, relator, destacou que o fato de a junta médica constatar ausência de sintomas não justifica a revogação da isenção, pois “a finalidade desse benefício é diminuir os sacrifícios dos aposentados, aliviando-os dos encargos financeiros”.

Novos temas

A Pesquisa Pronta é uma ferramenta criada para facilitar o trabalho dos advogados e de todos os interessados em conhecer a jurisprudência pacificada no âmbito do STJ. Novos temas serão lançados a cada semana, salvo a do Carnaval. Para este mês de fevereiro, foram preparadas as seguintes pesquisas:

- Demarcação de terras indígenas (já publicada).

- Dano moral decorrente de abuso de poder ou autoridade (já publicada).

- Decadência para constituição do crédito tributário de tributos sujeitos a lançamento por homologação – Repetitivo (9 de fevereiro).

- Dano moral decorrente de erro médico (9 de fevereiro).

- Análise conjunta das circunstâncias judiciais comuns aos corréus (23 de fevereiro).

- Periculum in mora presumido para decretação de medida cautelar de indisponibilidade de bens em ações de improbidade administrativa – Repetitivo (23 de fevereiro).

- Limite de idade para o cumprimento de medida socioeducativa (23 de fevereiro).

- Necessidade ou não de laudo toxicológico para a comprovação da materialidade do crime de tráfico ilícito de entorpecentes (23 de fevereiro).

- Princípios da instrumentalidade das formas e da fungibilidade recursal: atribuição de efeitos infringentes aos embargos de declaração (23 de fevereiro).

- Suspensão condicional do processo ou transação penal em caso de concurso formal, concurso material ou continuidade delitiva (23 de fevereiro).O serviço está disponível a partir da página inicial do STJ (Jurisprudência > Pesquisa Pronta, no menu à esquerda, oulink no quadro de Acesso Rápido). Para ir diretamente à página de Pesquisa Pronta, clique aqui.


Fonte: STJ

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Revisão judicial dos contratos e seus problemas contemporâneos







Aos leitores da coluna Direito Comparado e aos que começarão a acompanhar às segundas-feiras o Direito Civil Atual, dou-lhes as boas-vindas. Os membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo darão o melhor de si para que este espaço possa servir de um fórum aberto para as mais importantes questões do Direito Privado no Brasil.

E nada melhor do que iniciar com o tema mais importante do Direito Contratual contemporâneo: a revisão judicial dos contratos. Note-se que essa relevância manifesta-se não apenas no Brasil. De fato, conforme a pesquisa de Aristide Chiotellis realizada nos anos 1980, inventariou-se, somente em língua alemã, 56 teorias diferentes para fundamentar a chamada alteração da base do negócio jurídico.[1] No Superior Tribunal de Justiça, em levantamento de dados que fiz em 2012, compreensivo do período de 2008-2011, identifiquei nada menos que 638 acórdãos sobre o tema, excluídas repetições.[2]

Se a revisão judicial dos contratos é um tópico central do Direito Civil contemporâneo, sua maior ou menor evidência está na razão direta das tormentas da civilização. Tanto maior a decadência, a perda de referências morais ou a crise econômica ou política, mais presente se fará o problema da revisão dos contratos.

É também notável que a revisão dos contratos, em termos históricos, atravessa fases de aceitação e de repúdio. Tal se torna visível quando os institutos ou as teorias que lhe dão fundamento ora são asilados dos códigos e das leis, ora são restituídos à plenitude no ordenamento jurídico.

Algo tão antigo e tão contemporâneo criou para o Direito Civil um grande inconveniente: muito se escreveu sobre a revisão contratual e há diversas afirmações sobre suas teorias que se repetem exaustivamente em decisões ou obras doutrinárias, sem que se proceda a um exame mais crítico dessas posições. Desse modo, perpetuam-se equívocos teóricos, aumenta-se a litigiosidade e cria-se um desnecessário fosso entre a academia e os tribunais. A tal respeito, o ministro Antonio Carlos Ferreira, em seu artigo “Revisão judicial de contratos: diálogo entre a doutrina e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça”, publicado no primeiro volume da Revista de Direito Civil Contemporâneo, demonstrou cabalmente que esse debate “se tem demonstrado tão necessário quanto rarefeito nos dias atuais”. 

Na coluna de hoje, portanto, examinar-se-ão alguns pontos polêmicos da revisão dos contratos. 

A cláusula rebus sic stantibus ainda é fundamento de revisão?
É muito comum encontrar em livros e em acórdãos a referência à cláusularebus sic stantibus como sinônimo de “teoria da imprevisão” ou como fundamento para a revisão dos contratos. Essa expressão latina, em sua forma completa, quer dizer “os contratos que têm trato sucessivo ou a termo ficam subordinados, a todo tempo, ao mesmo estado de subsistência das coisas” e sua origem está em fragmentos romanos, mas sua formulação teórica só apareceu na Idade Média.[3]

Muito bem, salvo como reminiscência histórica ou como uma licença poética, em termos técnicos rigorosos não é mais adequado se referir à cláusula rebus sic stantibus como sinônimo da revisão contratual prevista no Código Civil de 2002. De modo bem elementar, pode-se dizer que a antigarebus sic stantibus era uma condictio (no sentido romano) que, uma vez verificada, liberava as partes da execução de suas obrigações sem que respondessem por seu inadimplemento.

Mas isso não ocorre quando se está diante de um caso fortuito? Precisamente. ´Dá-se que as hipóteses da rebus sic stantibus eram diferentes das relativas ao fortuito ou à força maior. Um exemplo (que está nos autores da Antiguidade): se deixei uma arma em depósito com um amigo e, vencido o prazo para restituição da coisa, ele me procurou e viu que eu estava louco, deve o amigo cumprir a obrigação? Evidentemente que não. Mas se a inadimplir será depositário infiel e não será protegido pela excludente de fortuito ou de força maior. Muito bem, nesse caso a rebus sic stantibuspermitiria a liberação extraordinária do devedor, sem os efeitos da culpa.

Nos dias atuais, essa situação é muito rara e o efeito da rebus sic stantibus é bastante limitado, pois, na maior parte dos casos, existe um fundamento econômico para não se cumprir o contrato e o que se deseja é rever e não se extinguir o vínculo. Neste cenário, a cláusula só sobreviveria para hipóteses não-econômicas e com fins muito restritos. E, é claro, como uma expressão poética para se aludir aos fenômenos englobados pelos arts.478-480 do Código Civil.

Qual a teoria utilizada pelo Código Civil para fundamentar a revisão contratual?
Eis um tópico que gera enormes controvérsias e é extremamente importante, para além de meras questões teóricas. Quando se discute qual teoria é aplicável, está a se resolver um problema extremamente sério: quais requisitos para se rever um contrato. E isso não é pouca coisa.

De modo bem objetivo, é possível identificar as seguintes correntes de pensamento sobre o tema: a) defensores da combinação da teoria italiana da onerosidade excessiva e da teoria francesa da imprevisão: José de Oliveira Ascensão, Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias, Paulo Roque Khouri, Wanderley Fernandes, Silvio de Salvo Venosa, Otavio Luiz Rodrigues Junior e outros); b) defensores da aplicação exclusiva da teoria da onerosidade excessiva.

Qual a diferença prática? Combinar as duas teorias (onerosidade excessiva e imprevisão) significa colocar filtros na revisão dos contratos no Direito Civil, tornando-a mais difícil. E essa opção é mais coerente com o texto do Código Civil, em seu art.478, que expressamente exige os requisitos daexcessiva onerosidade da prestação com a ocorrência de acontecimentos imprevisíveis. O legislador não usa expressões inúteis.

A despeito da polêmica na doutrina, o Superior Tribunal de Justiça, conforme apontado pelo ministro Antonio Carlos Ferreira, faz essa diferenciação ao dispensar o requisito da imprevisão nas revisões de contrato de consumo e ao exigi-la nos contratos cíveis. Essa orientação é notória no célebre grupo de casos dos contratos de arrendamento mercantil indexados pelo dólar: o STJ primeiro qualificou os contratos como de consumo e depois afastou o requisito da imprevisão.[4]

Em outro grupo de casos já famoso, o relativo à compra de safra futura de soja, o STJ aplicou simultaneamente a onerosidade excessiva e a teoria da imprevisão, impedindo a revisão dos contratos, por entender que variações na cotação do projeto são fatos previsíveis.[5]

Há autores que discordam dessa aplicação simultânea e a mitigação dos filtros para a revisão de contratos submetidos ao Direito Civil. Um dos mais populares argumentos dessa respeitável corrente teórica está no art. 317 do Código Civil, localizado na seção do objeto do pagamento e sua prova, assim redigido: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.

Esse dispositivo foi originalmente elaborado para permitir a correção do valor das obrigações, em um tempo em que não havia o reconhecimento legal da correção monetária no Poder Judiciário. Essa função primitiva perdeu completamente o sentido após a inserção de vários artigos no Código Civil que tornam obrigatória a chamada “atualização monetária” (arts. 389, 404, 418, 772, 884, 1.395, parágrafo único e outros). Restaria ao art.317 uma função supletiva aos arts. 478-480, mas, ainda assim, não se pode ignorar a presença dos “motivos imprevisíveis” na abertura do texto legal.[6]

Outro argumento em favor da aplicação simultânea da onerosidade-imprevisão está no reconhecimento de que as relações cíveis são, em sua maioria, paritéticas. Não se podem eliminar esses filtros à revisão contratual quando os que se obrigam são sujeitos que suportam riscos simétricos e possuem um elevado nível de discernimento para se autovincular.

O que é essa tal de “imprevisão”?
A teoria da imprevisão é um constructo do Direito francês, nascida no Direito Administrativo para resolver problemas relativos a concessões de serviços públicos, com acórdãos célebres do Conselho de Estado. Posteriormente, ela foi transposta para o Direito Civil, de modo excepcional, pela Lei Failliot, de 21 de novembro de 1918, cuja íntegra pode ser lida nas páginas 29 e 30 de nosso livro Revisão judicial dos contratos, já citado. Na França, porém, ao menos até meados dos anos 1990, a imprevisão praticamente não teve incidência em negócios cíveis. Agora, com a incorporação das diretivas europeias e com os projetos de reforma do Código Civil de 1804, é que os franceses resolverão a que marco teórico se vincularão nesse campo do Direito Contratual.

Por mais um curioso fenômeno de recepção tardia de uma doutrina estrangeira no Brasil, a teoria da imprevisão ganhou enorme prestígio entre os civilistas nacionais desde a clássica obra de Arnoldo Medeiros da Fonseca, intitulada Caso fortuito e teoria da imprevisão, publicada pela primeira vez em 1932, no Rio de Janeiro, com o selo editorial da Tipografia do Jornal do Comércio.

A jurisprudência do século XX também se apropriou da teoria francesa da imprevisão, dando-lhe contornos tipicamente brasileiros. Em pesquisa que realizei em 2001, concluí que em todos os julgados publicados na Revista Forense e na Revista dos Tribunais, desde seus respectivos primeiros números, a maior parte dos acórdãos impedia a revisão contratual, ao contrário do que se imagina em face do número de ações em curso com esse fundamento.[7]

A razão disso está em que a palavra imprevisão significa a incapacidade de se prever o futuro. A palavra imprevisão é, sob tal aspecto, vazia de sentido. No entanto, ele foi preenchido por quase um século de construções jurisprudenciais que dizem o que não é imprevisão: mudança de moeda; inflação; variação cambial; maxidesvalorização; crise econômica; aumento do déficit público; majoração de alíquotas, enfim, toda sorte de eventos macroeconômicos tão comuns em países instáveis e que conviveram com crises periódicas.

A imprevisão constitui-se, por assim dizer, em um filtro jurídico-político, que foi burilado pelos tribunais desde o início do século passado, para impedir que houvesse uma generalizada revisão de contratos cíveis. Em Grande sertão: Veredas, João Guimarães Rosa, pela boca de sua personagem, tornou famosa a frase: “Viver é negócio muito perigoso...”. No Brasil, pode-se ir além e parafrasear o romancista: “Contratar é negócio muito perigoso...”. 

Conclusão
É muito comum os estudantes ouvirem hoje que não se pode “colocar o Direito em caixinhas”. Há algum tempo, os excessos do formalismo geraram a reação, hoje vitoriosa, em favor de uma maior flexibilidade conceitual. Nos dias atuais, parece que se deve lutar pelo rigor e pela assunção dos custos argumentativos. Esse é o caminho democrático de nosso tempo e é este um dos objetivos desta coluna.

Há muitos aspectos polêmicos da revisão contratual que podem ser explorados. E não faltará oportunidade para o fazer nas próximas colunas do Direito Civil Atual. Aos leitores, deixa-se o convite para que acompanhem este novo projeto da Rede de Direito Civil Contemporâneo, cuja produção jurídica pode ser também encontrada na Revista de Direito Civil Contemporâneo – RDCC. 

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF e UFC).



[1] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Um “modelo de revisão contratual por etapas” e a jurisprudência contemporânea do Superior Tribunal de Justiça. In. ANCONA LOPEZ, Teresa; LEMOS, Patrícia Iglecias Faga; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Sociedade de risco e direito privado: Desafios normativos, consumeristas e ambientais. São Paulo: Atlas, 2013. p. 427, com base em Antonio Menezes Cordeiro.


[2] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. Cit. p. 474.


[3] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contrato: Autonomia da vontade e teoria da imprevisão.. 2 ed.. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. p.36-37


[4]STJ. REsp 472.594/SP, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Rel. p/ Acórdão Ministro Aldir Passarinho Junior, Segunda Seção, julgado em 12/02/2003, DJ 04/08/2003, p. 217.


[5] “A venda de safra futura, a preço certo, em curto espaço de tempo, há de ser cumprida pelas partes contratantes. Alterações previsíveis na cotação do produto (soja) não rendem ensejo à modificação da avença ou à sua resolução” (STJ. REsp 809.464/GO, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 10/06/2008, DJe 23/06/2008- RT v. 876, p. 161)


[6] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão...p.171.


[7] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão...p. 128-134.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.



Revista Consultor Jurídico, 2 de fevereiro de 2015, 8h22

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...