sexta-feira, 26 de julho de 2013

A camponesa e o homo empoderadus de terrae brasilis

O Cego de Paris e as movimentações de ruaEmbora as ruas reivindiquem a publicação da segunda parte do Cego de Paris, o povo ainda terá de esperar mais alguns dias para esse evento.Mientras tanto, falo de outra Paris, de outra França. Já contei isso em palestras e em textos. Retomo, pois.
Há um filme sobre uma peça de teatro que pretende contar a Revolução Francesa. Na primeira cena, o rei e a rainha fogem da França e são recapturados na fronteira. Alguém reclama, dizendo que a revolução deve ser contada de outro modo. Na nova cena, aparece uma bacia com água quente, uma camponesa pronta para dar à luz e a parteira. Na sequência, entra um aristocrata, que voltava da caçada. Vendo aquela água límpida, lava suas botas sujas na bacia destinada ao parto. Desdém, deboche e desprezo. “Pronto”, alguém grita da plateia, “é assim que se conta a origem da Revolução. Assim se resgata a capacidade de indignação”.
Com efeito, vendo os movimentos de rua — com todos os problemas da falta de pautas específicas etc. — parece que alguns setores das autoridades brasileiras não entenderam o recado. Que somos pré-modernos, Raimundo Faoro já de há muito comprovara, mostrando como ainda somos governados por estamentos. Weberianamente, ele explicou as raízes do nosso amor ao nepotismo e ao patrimonialismo. Sei que, por outras matrizes teóricas, é possível explicar o estado da arte das atitudes patrimonialistas de outro modo. Penso, entretanto, que Faoro vai no cerne do problema.
Na verdade, somos bons nisso. De há muito perseguimos com êxito ladrões de galinha e de sabonetes, mas não somos tão bons para “pegar” sonegadores e lavadores de dinheiro. Por todos, lembremos do “grande filósofo contemporâneo” Marcos Valério, que, faz uns dois ou três anos, mesmo já condenado à prisão, pagou o valor sonegado e teve extinta sua punibilidade (a seu favor, as bondosas Leis 10.684/2003 e 11.941/2009, e uma generosa interpretação dada ao artigo 9º da primeira e ao 68 da segunda — quem quiser, vá ao site do STF e veja). Se não fosse trágico, seria engraçado, porque, ao mesmo tempo, milhares de ladrões (sic) continuam encarcerados (lembremos que temos mais de 300 mil presos no Brasil por crimes contra o patrimônio individual e pouquíssimos por crimes de sonegação ou evasão de divisas). Bom, disso falei na coluna passada. Os números estão lá.
Agora, no entremeio das reivindicações, o establishment quer transformar a corrupção, historicamente equiparada ao furto qualificado, em crime hediondo. Vou repetir: até o surgimento desse projeto, a dogmática jurídico-penal nunca se insurgiu contra essa descomunal incongruência da e na teoria do bem jurídico. Tanto é que a corrupção era “(des)valorada”, desde os anos 40 do século passado, do mesmíssimo modo que o furto por escalada. Não é de rolar de rir? E quem vocês acham que fizeram essas “valorações”? Os estamentos são velhos... antigos...
Mas o que quero dizer nesta curta coluna desta semana é que as viagens dos presidentes das duas casas do Congresso representam, simbolicamente, aquilo que o filme sobre a peça que conta a revolução francesa quer mostrar: uma certa aristocracia (estamento brasileiro) que usa a água limpa do parto para lavar as botas.
Vejam a simbologia do filme: a mulher grávida e o parto prestes a ser feito. A indiferença do aristocrata... Vejam os movimentos de rua — a gravidez de parcela do povo, reclamando doestablishment. E vejam as viagens em aviões para ver futebol e casamento. Nascimentos e mortes... Prato cheio para uma boa anamnese social.
Estamentalismo escondidinhoAo lado das atitudes estamentais ao estilo do aristocrata que lavou suas botas na água limpa do parto, terrae brasilis está impregnada de uma espécie de estamentalismo subreptício, algo como um prato de escondidinho. Não se vê o que está por baixo. Acho que o povo que foi às passeatas nem se dá conta de que ele mesmo está fazendo protestos inconscientes ou “protestos escondidinhos”. Se se der conta, sai debaixo... Por exemplo, a população se dá conta das coisas que poluem o imaginário social, como uma página inteira da Folha de S.Paulo falando da nova namorada de Aécio Neves (PSDB-MG)? (vejam: a questão não é o senador, mas o que isso tudo representa simbolicamente) Ali consta uma espécie de “biografia da noite” do senador mineiro-carioca. E fala dos révellions passados na casa de ARs (artistas ricos). A namorada dele tem 34 anos e tem as iniciais dele atrás da orelha ou algo assim. Uau. Isso é que é informação. Como foi possível que vivêssemos sem saber disso até hoje? Ela frequenta casas noturnas cujas contas às vezes chegam ou passam de R$ 80 mil. É bom saber. O jornalista Roberto Dávila às vezes janta com o casal. Hum. Também é bom saber. Luciano Huck e Angélica os recebem em Angra. E o casal Neves é amigo dos empresários Garnero e Calainho... Informações sem as quais a República sucumbe. Minha frase: “E eu com isso, cara pálida!”. Sugestão: vamos instituir subsídios para as colunas sociais da Folha de S.Paulo e para a Revista Caras. Incentivos fiscais para que a patuleia possa se deliciar com a vida do “andar de cima”. A rubrica nos impostos pode ser “estroinando com a malta”!
Pois é. Esse Luciano Huck é o cara mesmo. Em seu camarote, o presidente do Supremo Tribunal Federal assistiu ao jogo do Brasil dia desses. O que esse cara tem, além do camarote e da grande casa de praia em Angra, construída em área, segundo consta, de proteção ambiental, alvo de multas ambientais (clique aqui e aqui para ler), de Ação Civil Pública e que, segundo o jornal Estado de S. Paulo (clique aqui para ler), por coincidência, foi uma das contempladas por um decreto do governador do Rio que legalizou as construções na referida área? As coincidências não param por aí. A esposa do referido governador é sua advogada. Que prestígio o do Huck, não? Assim é a República dos Estamentos. Já não se trata de classes sociais, como dizia Faoro. Os laços são outros, esses que ligam os estamentos. Isso para dizer pouco. Há muitas coisas escondidinhas nesta sereníssima república (para lembrar do famoso conto de Machado de Assis).
A ministra aposentada do STF Ellen Gracie era, até poucos dias, do conselho de administração do grupo de Eike Batista. Ainda bem que saiu. Nada pessoal e, é claro, sem discutir os aspectos meritórios da ministra aposentada. Apenas quero referir que, no Brasil, altas autoridades sempre acabam em grandes cargos. Ex-presidentes de Banco Central são logo cooptados por grandes bancos. Isso é tão forte em terrae brasilis que foi instituída a quarentena para os detentores de cargos de relevância.
Aliás, esse Eike Batista... É o cara, também. Recebeu do BNDES R$ 10 bilhões. Era o menino dos olhos da República (de esquerda?). Basta ver as suas relações na República. Os elogios que as altas autoridades lhe davam. Vendeu ficções para o Brasil e o mundo. É o que se diz por aí. Quero ver como os empoderados vão lidar com o que disso resta(rá).
A cidadania “mais cidadã”: mais um produto Brasilis Estamentalis!No meu Hermenêutica Jurídica E(m) Crise, falo do binômio estamento-patrimonialismo, que pode ser detectado facilmente nos processos de privatização no Brasil. A partir deles, pode-se ver o modo como a res publica é vista pelos governantes e pelas elites. Em detalhado estudo feito por Sérgio Lazzarini é mostrado que entre 1996 e 2009 a rede do Estado e dos burocratas de caixas de pensão (Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Federal etc.) expandiu-se. Em 1996, num universo de 516 grandes empresas, o BNDES e os fundos Previ (Banco do Brasil), Petros (Petrobrás) e Funcef (Caixa Federal) participaram de 72 sociedades. Em 2003, numa amostra de 494 companhias, o Estado estava em 95. Em 2009, num universo de 624, o Estado tinha um pé em 199 empresas. O livro de Lazzarini leva o sugestivo nome de Capitalismo de Laços, mostrando a herança patrimonialista presente nas diversas camadas do establishment. Na obra, entre outras coisas, Lazzarini fala da investida do governo no fundo de pensão Previ e do empresário Eike Batista sobre os administradores da Vale do Rio Doce, empresa privatizada no governo Fernando Henrique Cardoso por um valor simbólico. Em tese, a Vale é uma empresa privada. Na prática, pelo “capitalismo de laços”, o governo é seu maior acionista e, na ocasião, Eike Batista era o melhor amigo.[1] Bom, sabemos bem o grande leque de amizades de Batista, pois não?
Sigo. Falando do óbvio. Mas o óbvio está no anonimato. Deve ser desvelado. O grande Darcy Ribeiro dizia que “Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recôndidas e sofisticadas, que ainda precisamos dessa classe de gente — os cientistas — para desvelar as obviedades do óbvio”. É o que busco fazer. E para dizer que a cidadania no Brasil é relacional. Tudo funciona por “laços”. Brasília é o lugar do “empoderamento”. Até o porteiro “se acha”. Lá, todos falam baixinho. Têm medo de grampeamento. Olham de soslaio. E tudo lá é caro. Custa uma fortuna. Sempre tem um fulano que conhece o outro fulano, amigo de beltrano... que tem “chegada” na autoridade. Há uma cadeia de “empoderamento”. Sinceramente, penso que a Corte do Rio de Janeiro era menos promíscua (no sentido das relações de poder). Saudades de Machado de Assis contando as coisas da Corte. Saudades de Esaú e Jacó, magnífico livro de Machado que fala da virada da Monarquia para a República...
Quando converso com o homo brasiliensis, mormente no que tange à área jurídica, fico pensando o que sobra para os pobres advogados, com seus pequenos escritórios pelo interior do Brasil, disputando causas quando do outro lado estão ABSs (advogados bem sucedidos)? Hein? E, vejam: quando falo do homo brasiliensis, estou fazendo uma metáfora. Ele não é stricto sensu o habitante de Brasília, é claro (até porque não teria sentido falar mal da gente stricto sensu que mora naquela bela terra). Falo de uma metáfora do homo empoderadus de terrae brasilis.
Quando vou a um restaurante em Brasília, fico em um constrangimento bárbaro. Como podem cobrar aqueles preços? Quem paga por tudo isso? Uma pessoa qualquer da patuleia não pode nem passar perto. Ela não imagina o que é isso.
Ou seja, quero dizer que eu também estou de saco cheio com essa estamentalização. Por que a patuleia tem de pagar o táxi utilizado pela secretária-assessora do senador Aécio, que na média dá R$ 1 mil por mês? Por que a choldra tem de pagar os alimentos dietéticos de outro senador, aliás, um dos mais ricos do país? Por que a rafanalha tem de pagar os shows e as peças de teatro dos grandes artistas e atores de teatro, beneficiados pela Lei Rouanet, nos quais ela não tem acesso porque não pode pagar? Depois vão todos para o programa do grande filósofo pós-contemporâneo Pedro Bial, chamado... Na Moral. Padrão Fifa. Pautas morais, éticas... O inferno sempre são os outros, é claro. Tudo vai mal por causa... dos outros, dos políticos etc. No privado, só “vício bom”. Os “vícios ruins” são todos da esfera pública. Ah, bom. Se isso é assim, por que, então, não querem, de um modo ou de outro, abrir mão de uma boa mamada nas tetas da gordatcha da Viúva?
Por falar em tetas... O que dizer do pessoal que vive nas tetas do BNDES? A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotres (Anfavea) nos “entope” de carros e não está nem aí para ajudar a achar soluções para o caos que ajudou a criar. E cada vez quer mais subsídios. Tirar dinheiro da Viúva. Qualquer montadora do mundo que não consegue vender carros em seu país ou em outros, vem para a terra de Vera e Santa Cruz, pois o lucro chega a ser o triplo do resto do mundo (cliqueaqui para ler). Somos o único país em que há uma espécie de Lei Rouanet para as montadoras. Enfim, o Brasil se transformou no estacionamento do mundo. E os artistas, além de receberem o benefício da Lei Rouanet, ainda ganham pesadas granas para nos vender nas propagandas os automóveis fabricados com subsídios e vendidos com juros subsidiados.
Mas o que me intriga e me torra é essa fusão de interesses estamentais. Fico pensando: e ainda queremos aprovar um Código Penal que inverta o paradigma liberal-individualista do século passado? Circule um dia em Brasília — porque é lá que as coisas acontecem — e constará o que digo. Sempre haverá alguém empoderado que, conhecendo fulano-que-conhece-beltrano-que-conhece-cicrano que, finalmente, mexerá os pauzinhos. E a malta saberá com quantos pauzinhos se faz uma canoa. E alguém acha que aprovaremos um Código de Processo que dê condições para o advogado lá do interior advogar? Quero rir, farfalhando. Só os grandes sobrevivem, meu caro. É darwiniano. Você, que está estudando Direito, se não conseguir se proteger na aba da Viúva (em uma de suas três versões, município, estado ou União), estará fadado a ser estagiário-tardio ou reles empregado. Não, não conseguirá abrir seu pequeno escritório. Inclusive, meu caro, seus clientes serão cooptados por instituições pagas pela Viúva, que agora fornece, ao invés de políticas públicas, substituição processual para todos. Registro importante: no site do Ministério da Saúde, tem um roteiro ensinando como entrar em juízo para conseguir remédios. Ou seja, a própria Viúva ensina e incentiva a judicialização. Bueno. E vamos lá construir mais TRFs. Pronto. Somos o único país em que, em vez de buscarmos eficiência na administração, construímos tribunais para “corrigir” aquilo que não foi bem feito lá no início da coisa. É preciso dizer mais? E a camponesa ali está... E já as botas do aristocrata estarão limpinhas... E o rebento já nasce lascado.

[1] Ver LAZZARINI, Sérgio Giovanetti. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de Janeiro: Elsevier,2011. Também GASPARI, Elio. O “Capitalismo de Laços” da privataria. In: Folha de S.Paulo, A-18, 28/11/2010.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.

Revista Consultor Jurídico, 11 de julho de 2013

Crimes hediondos: enquanto enforcavam, tungavam

Quando bater carteira dava pena de morte
Conta-se que o dia em que enforcaram os primeiros condenados à morte pelo crime de “bateção” de carteira em um país da Europa foi também o dia em que mais carteiras se furtou. Os curiosos foram à praça ver os enforcamentos e, bingo! A malta — lixando-se para a hediondez do crime (a metáfora é minha) — aproveitou para tungar mais ainda.

Veja-se: não estou dizendo que a pena não resolve. Tenho minhas diferenças com setores do Direito Penal brasileiro, principalmente com os iluministas tardios ou os libertaristas, que (quase) acham que é proibido proibir.[1] Menos. Um garantista da cepa como Ferrajoli não pensa assim, embora alguns leitores do mestre acreditem que ele seja um abolicionista.
De minha parte, acredito que a pena é necessária. A pena é castigo. É retribuição. E deve servir para prevenção geral. Mas só ela — a pena — não resolve. E, quanto maior e inexequível, mais caráter simbólico assume. E pode ser um tiro no pé. Já escrevi na coluna passada lembrando da transformação da falsificação de medicamentos em crime hediondo. Alguém recorda de alguma condenação? Fazendo uma alegoria em relação à lenda dos enforcamentos e da tunga das carteiras, no dia em que sancionaram a hediondez dos medicamentos foi o dia em que mais se falsificou uma ideia: a de crime hediondo como panaceia, como remédio (sem trocadilho) para todos os males.
A velha mania de legislar no calor da novidade 
Pois bem. Estamos diante de uma nova inclusão de crimes do rol dos hediondos. Desta vez são os crimes de corrupção e peculato. Isso, à evidência, merece uma discussão mais aprofundada. É o pano de fundo necessário para revolver o chão linguístico em que está assentada a tradição acerca do que seja bem jurídico e o poder-dever de punição em terrae brasilis.

Quem tem acompanhado as sucessivas manifestações e seus mais recentes desdobramentos pode observar que os poderes da República refizeram sua agenda de modo a dialogar com as tantas vozes que vêm das ruas clamando por mudanças. Claro, refiro-me aqui a quem o faz com olhos críticos. A massa recém desperta (?) ainda se alterna entre o deslumbramento e ação irrefletida.
Contudo, o momento é realmente muito bom para que pensemos sobre as questões estruturais dos problemas evidenciados nas manifestações, afinal, só assim se poderá reconhecer e refutar factoides, paliativos e demagogias, tanto os exigidos quanto os oferecidos e recebidos muitas vezes como soluções. Por isso, irei analisar a elevação do crime de corrupção (e outros) ao status de hediondo, cartaz levantado por inúmeros manifestantes, compromisso da presidente da República e projeto aprovado no Senado.
O Direito Penal e o dinheiro da viúva
Sinto-me a cavaleiro para falar sobre e do assunto. Afinal, fui citado na exposição de motivos do projeto da nova lei (ainda falta aprovar na Câmara). Antes de tudo, devo louvar o interesse e a dedicação do senador Pedro Taques (PDT-MT). Se o seu mandato encerrasse hoje, seu nome já estaria gravado no Senado como um dos mais combatentes parlamentares contra a impunidade. Veja-se a sua luta para a aprovação do novo Código Penal e suas discussões — fortes — com setores refratários a uma exasperação das penas dos crimes de cariz metaindividual. Taques tem muito claro que no Estado Democrático de Direito, o Direito Penal deve voltar as suas baterias em direção aos crimes que colocam em xeque os objetivos da República. Ou seja, penas menores para os crimes de cariz individual e penas mais duras para os crimes cometidos pelo andar de cima, em que se enquadra, sim, a corrupção, bem como a sonegação de tributos (o “sonegômetro” aponta para o valor de R$ 415,1 bilhões/ano — clique aqui para ler). Já, aqui, vai um pequeno registro: parcela considerável do Direito Penal de terrae brasilis não quer discutir essa questão da criminalização mais dura da sonegação de tributos... Por que será?

Sigo. A demanda por reprimenda efetiva para as condutas que lesam o patrimônio público (obviamente) não é nova. Não que seja levada em conta quando elegemos nossos representantes. A Ficha Limpa é um belo exemplo disso: uma lei que impede que elejamos novamente pessoas que macularam seu histórico — sozinhos não somos capazes de deixar de votar nessa gente, mas é uma bandeira balançada por setores da direita e da esquerda de forma indistinta. Ou seja: somos “tão bons”, saímos para protestar, mas precisamos de uma lei para “nos proteger” (de nós mesmos) para que não elejamos “fichas sujas”.
A corrupção e a hediondez
Como referido, o Senado aprovou no dia 26 de junho o PLS 204/11 que inclui no rol dos crimes hediondos os tipos penais descritos nos artigos 316, 317 e 333 do CP.[2] Elevou ainda as penas mínimas de todos para quatro anos. Tal fato se deu no dia imediatamente posterior à presidente se dirigir à nação e afirmar ser prioridade a elevação do crime de “corrupção dolosa” (sic).

Pois bem. Foi feito. E agora? “corruptos” passarão a ser vistos frequentando o sistema carcerário? Não é bem assim...
Já denuncio de há muito (e nessa esteira uma série de orientandos meus) que o Direito Penal emterrae brasilis não passou por uma filtragem constitucional em 1988 e segue sendo remendado sem a observância dos requisitos impostos pela nova ordem paradigmática e consoante com o avanço da teoria do delito. Aproveito para refutar aqui a tola (e tão comum no imaginário jurídico) ilusão de que se pode separar teoria e prática, como se por trás desta última não houvesse qualquer fundamento teórico, de modo a realizar-se por si mesma.
Há quase 20 anos, venho denunciando a seletividade penal e a consequente disparidade de tratamento dado às penas previstas para os delitos individuais, em especial nos crimes contra o patrimônio cometidos sem violência à pessoa, e os metaindividuais cometidos por agentes econômica ou politicamente poderosos, como nos casos da sonegação fiscal, da apropriação indébita previdenciária e dos crimes contra o sistema financeiro em geral. E tenho sido criticado duramente por isso.
Denuncio, com veemência, que o Código Penal de 1940 foi escrito sob a lógica liberal individualista, o que fez com que a propriedade privada tenha ocupado o centro das atenções e recebido uma tutela amplamente superior se comparada à dos bens jurídicos coletivos. Por justiça, diga-se: é um código de seu tempo.
E a velha concussão “ficou” hedionda
O problema é que esse velho código — de perfil liberal-individualista — atravessou o século XX e ingressou no século XXI. Nele está o crime de concussão (artigo 316 — Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida), que — pasmem — possui pena idêntica ao do furto qualificado pelo rompimento de obstáculo (artigo 155, parágrafo 4º), qual seja a de dois a oito anos de reclusão. Quais são os livros de Direito Penal que denunciaram isso (no devido tempo) no plano daquilo que denomino de “paradigmas do direito”? Cartas para a coluna.

Esse mesmo código foi (mal) “recepcionado” pela Constituição de 1988. As distorções contidas no código ancião podem ser constatadas em toda a legislação penal, v.g., os que tratam do meio ambiente, do consumidor, da infância, dos idosos... e também das finanças publicas, cuja tutela se dá por uma série de tipos penais, não somente por aqueles eleitos para reforma. Que dizer, então, da comparação com o crime de tortura (Lei 9.455/97), equiparado a hediondo, cuja pena é a mesma do furto qualificado (e sem multa!)? Aliás, como é que em crimes contra o patrimônio, cujo autor é, em 99% é pobre, aplicam-se multas? Pergunte a qualquer juiz quantos condenados por crimes contra o patrimônio ele já viu algum pagando a multa. Isso é a demonstração de que nosso Código Penal se descolou da realidade. No jargão psicanalítico isso se chama esquizofrenia.
Os leitores se deram conta de que, no entremeio disso tudo, nada se falou da praga contemporânea chamada fraude a licitações, ainda tida como “crime de menor potencial ofensivo”? Querem que repita?
Ou a maioria dos crimes de responsabilidade de prefeitos, cuja pena mínima é de três meses? Esta funda-se em uma inadequada e, indubitavelmente ultrapassada, teoria da discricionariedade administrativa (importada de forma completamente indiscriminada e extremamente conveniente para as elites de terrae brasilis), que permite ao administrador “de plantão” impor sua vontade com a capa de sentido da legitimidade teórica que esta “janela” (aquela enraizada no capítulo oitavo da TPD de Kelsen) de liberdade lhe oferece. Configura-se uma verdadeira erosão de legalidade e traição do Estado Democrático de Direito, promovendo uma retroalimentação da desigualdade, que passa a ser cada vez mais patrocinada pelo próprio Estado!
E por que não se falou sobre a forma como se tratam as sonegações tributárias, especialmente no tocante à famosa Portaria 75/2012 do Ministério da Fazenda que diz que a União só deve perseguir créditos tributários superiores a R$ 20 mil e cuja consequência é a extinção da punibilidade dos crimes de sonegação, descaminho etc. nos casos em que o valor seja menor do que esses R$ 20 mil? Hein? Alô, Senado da República! Alô, meu amigo Pedro Taques! Alô, presidente da República! Essa portaria serve para tungar os cofres públicos!
163 ações penais, um mandado de prisão
Já no ano de 1988 escrevia sobre as distorções do Direito Penal brasileiro. De lá para cá a coisa só piorou. Alias, um breve passar d’olhos sobre a lei penal brasileira é suficiente para revelar a escancarada a preferência do legislador quanto ao bem jurídico a ser protegido com maior esmero, (eis que a pena deve guardar congruência com a necessidade de tutela) quando se tem como parâmetro de comparação as sanções cominadas aos crimes de redução a condição análoga à de escravo (pena de dois a oito anos de reclusão) e o crime de extorsão mediante sequestro com duração de mais de 24 horas (pena de 12 a 20 anos de reclusão).

Repita-se que o crime de supressão ou alteração de marcas de animais (artigo 162) é apenado com seis meses a três anos de detenção e multa, pena máxima superior à cominada aos crimes de subtração de incapazes (artigo 249 ), violência doméstica nas hipóteses do parágrafo 10° (artigo 129), maus-tratos (artigo 136), violação de domicílio — quando praticada durante a noite ou em lugar ermo, ou com emprego de violência ou de arma, ou, ainda, por duas ou mais pessoas (artigo 150, parágrafo 1°) e assédio sexual (artigo 216-A, pena máxima de dois anos). O apenamento máximo excede, ainda, as penas originalmente previstas a crimes contra a ordem tributária (destaque para o artigo 2° da Lei 8.137/1990), alguns crimes ambientais (artsigos 32; 45; 50 da Lei 9.605/1998), a sérios crimes cometidos contra criança e adolescente (artigos 228; 229; 230; 231; 232; 234; 235; 236; 244 da Lei 8.069/1990) e a crimes ocorridos em licitações (arts. 93; 97; 98 da Lei 9.666/1993).
Não causa surpresa que dados extraídos do Infopen[3] revelem de forma cristalina a manutenção da clientela “hospedada” nas penitenciárias, cadeias públicas e demais estabelecimentos prisionais brasileiros. Num universo de 471.254 internos, 216.870 não completaram o ensino fundamental, 52.970 não concluíram o ensino médio e 26.343 sequer foram alfabetizados.
Tampouco surpreende a constatação de que 240.642 cumprem pena por crimes contra a propriedade e somente 1.144 por crimes contra a administração pública (peculato, concussão e excesso de exação e corrupção passiva). 125.744 cumprem pena por tráfico de entorpecentes, ao passo que 156 o fazem por crimes ambientais. Por tudo isso, não é sem motivo que não constam registros de internos condenados por fraude à licitação, gestão fraudulenta (ou qualquer outro crime contra o sistema financeiro).
O legislador tem liberdade de conformação?
Aliás, seria o legislador “livre” para fazer essas opções, escolhendo como apenar ou como escusar de sanção a ofensa a bens jurídicos? Num Estado Democrático de Direito essa resposta só pode ser um sonoro não.

Num Estado Democrático de Direito não há (mais) oposição entre Estado e sociedade. A defesa do Estado (isto é, de um Estado que passa da condição de “inimigo” para a de “amigo dos direitos fundamentais”, bem entendido) é a defesa da cidadania. E, no interior dessa “reviravolta”, é evidente que as baterias do Direito Penal deve(ria)m ser voltadas para aquelas condutas que se coloquem como entrave à concretização do projeto constitucional, aquele traduzido em linhas gerais no artigo 3º da Constituição.
Nesse contexto, surge (desvela-se, em sentido hermenêutico) uma nova criminalidade a ser combatida, aquela que atinge bens jurídicos supra ou metaindividuais, que afetam toda a coletividade. Fala-se no enfrentamento de crimes como a sonegação de tributos e a lavagem de dinheiro (todos esses com lesividade metaindividual). Atenção, Senadores e Deputados: quem sabe os senhores revogam os dispositivos da Lei 10.684/2003 (artigo 9º.) e da Lei 11.941/2009 (artigo 69) que dizem que o pagamento do tributo extingue a punibilidade. Ou, então, apliquemos a isonomia: permitamos também que nos crimes cometidos pela patuleia (furtos, estelionatos) a ausência de prejuízo e ou a devolução do valor obtenha também esse favor legis. Afinal, a República é só para os maganos do andar de cima?
Nesse sentido, vale lembrar que Constituição (que não é uma mera “carta de intenções”) efetivamente determina ao Legislativo e ao Judiciário que orientem o seu agir para esta direção, dando proteção suficiente aos bens jurídicos que foram catalogados em destaque (não só a ordem econômico-financeira, mas também o meio também o meio ambiente e a infância e juventude, por exemplo). E, afinal, se o Direito Penal é a ultima ratio, a mais grave das redes sancionatórias do aparato estatal, o mínimo que se espera (e aí Dworkin tem razão, quando cobra coerência e integridade do Direito) é que trate desigualmente os crimes desiguais. Exemplificando para ficar mais claro: se o patrimônio individual é algo a ser protegido (e segue sendo a propriedade um direito fundamental, algo que se lembra para evitar mal-entendidos – artigo 5º, inciso XXII da Constituição), inclusive via Direito Penal, então não pode haver dúvida de que o tratamento deve ser ainda mais rigoroso quando a lesividade atinge o patrimônio da coletividade.
O que não implica, como se viu, em acreditar que a majoração do apenamento operará uma espécie de “mágica moralizadora” na sociedade brasileira. Ela tem um papel a cumprir, mas o combate à rapinagem institucional não se dá somente pela falta de instrumentos. Manca, também, vontade política e compromisso republicano. Todo parlamentar apresenta a declaração de bens ao TRE/TSE. As evoluções patrimoniais ao longo dos mandatos chegam a ser absurdas em alguns casos (e por tantas vezes são desconsideradas). O Ministério Público e os Tribunais de Contas têm acesso aos procedimentos licitatórios (são públicos). A Lei da Transparência abriu os gastos públicos para o controle social... Nunca foi tão fácil detectar e comprovar improbidades e mau uso do dinheiro da viúva. O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) atua bem e em compasso com grupos da Polícia e do Ministério Público. Falta trabalhar! Bingo!
Outra medida efetiva seria por fim ao foro por prerrogativa de função, vergonhosamente conhecido como foro privilegiado. E os números apontam para a veracidade do apelido. Há, hoje, somente no Supremo Tribunal Federal, 163 ações penais originárias, sem falar nos 483 inquéritos.[4] Tendo em vista isso e o histórico de apenas um mandado de prisão desde 1988 (25 anos!), expedido, por sinal, semana passada, dá-se pra entender que a prática tem sido de impunidade. E só recentemente houve a primeira condenação e aplicação de pena.
Portanto, o problema não está em se converter em hediondo — se isso não passar de apenas discurso. Um mandado de prisão em 25 anos é muito pouco para um tribunal que julga questões tão graves do andar de cima. O mero incremento das penas sem a persecução penal efetiva é um engodo.
Tudo isso sem contar que o discurso da hediondez desvia o foco, é o bode expiatório para que as massas possam dormir à noite e sonharem com a diminuição da impunidade e com a falácia da isonomia. Enquanto isso, meio milhão de desdentados superlotam celas infectas e a centenária impunidade do andar de cima será, por um tempo, esquecida. Veja-se: não se trata de uma frase de efeito: o número está correto e eles, na sua imensa maioria, são destituídos de uma adequada dentição.
Muito mais efetivo, portanto, é o fim do foro privilegiado. Mas a isonomia, aqui, não é um princípio que pega bem. Sempre há pessoas “mais iguais” que outras, principalmente quando legislam em causa própria... ou quando desviam o foco por meio de um discurso demagógico e embromador.
Por que quatro anos?
De se notar que o que se aumentou nos tipos penais analisados foi a pena mínima (de dois anos para o dobro). Mas esse número não foi produto de cabalas ou eleito ao acaso. Lembremos que pela nossa legislação atual, quando a pena aplicada não for superior a quatro anos (eis o número não cabalístico), permite-se a substituição da privativa de liberdade (cadeia) por uma pena restritiva de direito (as populares “penas alternativas”).  Taí o busílis. Logo, o que dá com uma mão, tira-se com a outra.

Já um crime como roubo em concurso de pessoas não permite essa substituição. Mas tráfico de entorpecentes, sim.  Assim, resta paradoxal e incoerente taxar de “hediondo” um certo crime e, ao mesmo tempo, possibilitar a aplicação de penas restritivas de direitos em seu tipo básico. A hediondez deveria ser reservada para um tipo de criminalidade, desculpem-se a obviedade, “hedionda”, como o estupro, o latrocínio, genocídio... Não deveríamos banalizar esse epíteto. Se tudo é, nada é. Se consideramos correta a inclusão da corrupção e do peculato no rol dos hediondos, o que justifica a exclusão do crime de lavagem de dinheiro e sonegação de tributos? Atenção: não estou nem de longe propondo isso. Quero apenas fazer uma caricatura, para denunciar a falta de isonomia, coerência e integridade da legislação e do próprio Poder Judiciário, que não aplica a isonomia.
A aplicação da Übermassverbot (proibição de excesso)
Resultado: a pretexto de punição, corre-se sério risco de favorecer a impunidade. Não é assim que se faz. Todos sabem da minha predileção pelo legislador. Pela defesa que dele faço. E todos sabem da defesa que faço da necessidade de o Estado combater com vigor os delitos que colocam em xeque os objetivos da República previstos na Constituição. Mas, há limites. E estes são os limites constitucionais. A teoria do bem jurídico não pode ser banalizada a este ponto. Assim como, por exemplo, o legislador não poderia descriminalizar o estupro ou o homicídio (para dizer o mais), também não pode punir sem qualquer critério que respeite alguns elementos cunhados pela tradição do Direito Penal do Estado Democrático de Direito. No primeiro caso, seria possível trabalhar a hipótese de aplicar a cláusula (ou princípio) da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot), porque patente, em tais hipóteses, a proteção insuficiente ou deficiente dos bens jurídicos em tela. No segundo caso — e aqui se aplica a “hediondez” da corrupção e do peculato — parece visível o excesso de punição, podendo-se dizer que o legislador violou a cláusula da proibição de excesso (Übermassverbot).

Claro que tais princípios não são fáceis de explicar e/ou aplicar. Nesse sentido entra a importância da doutrina, que deve traçar esses limites, até para evitar que o judiciário decida de forma voluntarista (para “cima” ou para “baixo”). Além disso, dever-se-ia exigir do legislador a necessária prognose. Afinal, quais os elementos objetivos que apontam para o fato de que, transformando a corrupção em crime hediondo, haverá um arrefecimento nos atos de proxenetismo do dinheiro das Viúvas (municipal, estadual e federal)? Banalizar é sempre ruim. Banalizar o bem, banalizar o mal, banalizar a punição ou o desejo de punição... Tudo pode acabar em frustração.
Numa palavra
Como se pode ver, toda essa discussão de aumento de penas em tais tipos é inócua se os Órgãos encarregados da investigação continuam sem a infraestrutura necessária para o enfretamento da questão. Polícia aqui não foi feita para o andar de cima. Que dizer do resto? Estado de Direito para o andar de cima e Estado Polícia para o debaixo.

É claro que esse roteiro passa sempre pela impunidade. Até parece que esse filme é uma comédia. Mas não. Em um Estado com tanta malversação dos recursos públicos e com um estamento que trata a coisa pública como própria, desconhece (ou deliberadamente desrespeita) a moralidade e desvia o que deveria ir para os mais carentes, que mata e oprime por meio de uma violência simbólica colossal em sua dimensão e pelo tempo que perdura, só podemos concluir que estamos assistindo, na verdade, a uma tragédia. Por isso, os projetos salvacionistas como a hediondez da corrupção. É mais ou menos como transformar, no século XVIII, o crime de furto em enforcamento.
Vem de novo a questão do papel da doutrina. Devemos construir uma tradição acerca do que é e pode ser hediondo. E devemos construir uma teoria do bem jurídico-constitucional. Ninguém mais acredita na consciência profana do injusto ou na ontologia do bem jurídico (bem ao gosto do finalismo). Os tempos são outros. Vamos arregaçar as mangas. Vamos “constranger epistemologicamente” os legisladores (assim como devemos constranger epistemologicamente os julgadores – e não o fazemos). Ou seja, a doutrina deve se dar o respeito. Deve parar de lamber os sapatos dos outros (me entendam no que quero dizer...). Já estou até vendo os futuros lançamentos de compêndios e manuais: “como se interpreta a nova lei da corrupção” ou algo similar. E começará tudo de novo. E eu, provavelmente, procurarei sobreviver com a comida que estou estocando. Ah, e não esqueçamos de Thomas More (1478-1535), que escreve na Utopia (1516): “Você primeiro faz os ladrões, depois os castiga.”

[1] Refiro-me, nesse sentido, a algumas decisões que se enquadram nessa linha do exagero da falta de limites semânticos e de um libertarismo fora do tempo. Por exemplo, a decisão da 5ª Câmara Criminal do RS (ler aqui), que considera crime impossível a tentativa de uma mulher levar drogas, introduzidas na vagina, para o interior do presídio. Trata-se de uma espécie de hermenêutica de exceção, com a suspensão da legislação por argumentos de política e não de princípio.
[2] Durante os debates, foram incluídos, no Projeto original, também como hediondos os crimes de homicídio simples, excesso de exação e peculato (estes últimos com pena mínima aumentada para 4 anos).
[3] Dados extraídos do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – Infopen. Disponível nestelink. Acesso em 25 de maio de  2012.
[4] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Acervo processual. Disponível neste link. Acesso em 28 de junho de 2013.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.

Revista Consultor Jurídico, 4 de julho de 2013

sábado, 20 de julho de 2013

Trote da UFMG: crônica da impunidade anunciada

Neste Diário de Classe, no início do ano letivo, escrevi sobre o trote racista praticado pelos estudantes da Faculdade de Direito da UFMG e a banalidade do mal (clique aqui para ler). Ao final da coluna, provoquei a seguinte reflexão:

Muitos têm se questionado a partir do polêmico trote: estes serão os juristas de amanhã? Estes serão os juízes, promotores, advogados do futuro? Isto depende, inevitavelmente, de quem são os juristas de hoje e, sobretudo, de qual resposta seremos capazes de dar para este problema ou, se preferirem, para esta “brincadeirinha”.
Pois, bem. O que ocorreu desde então? Quais as providências tomadas pelos órgãos competentes para apurar eventuais abusos e ilegalidades? Quais medidas foram adotadas pela universidade a fim de evitar que incidentes deste naipe voltem a ocorrer nos próximos anos? Enfim, passados quatro meses, resta saber quais foram os desdobramentos administrativos e judiciais do polêmico trote que ocupou os principais noticiários do país?
Ab initio, diante das cobranças públicas por uma resposta institucional, a Direção da Faculdade designou uma comissão de sindicância para apurar as inúmeras denúncias de racismo, sexismo e violação aos direitos humanos, a fim de responsabilizar os alunos que, porventura, praticaram atos atentatórios à dignidade universitária.
Após dois meses, a comissão de sindicância concluiu que “não foi constatada [...] a prática e nem a intenção de cometer atitudes racistas, sexistas, nazistas, ou de qualquer outro modo discriminatórias durante o trote, que poderiam ser condutas incompatíveis com a dignidade universitária”.
Tal conclusão decorreu, por um lado, das versões apresentadas pelos investigados, que negaram qualquer intuito discriminatório nas “brincadeiras”, e dos depoimentos prestados por testemunhas que “abonaram” suas condutas, afirmando serem “pessoas de boa índole, religiosas e sem histórico de agressões”; por outro, do teor das declarações dos calouros, que informaram não ter se sentido constrangidos ou humilhados, além de não considerarem qualquer conotação racista e sexista no trote.
Com base no relatório da sindicância, a diretora da Faculdade de Direito, professora Amanda Flávio de Oliveira, editou a Portaria 59, instaurando processo administrativo disciplinar contra 198 alunos (clique aqui para ler).
Segundo a Portaria, 99 alunos do primeiro semestre responderão ao processo simplesmente porque teriam aderido ao trote que sofreram. Todos foram enquadrados, de maneira indistinta, no mesmo dispositivo — sob o argumento de que não é possível individualizar as condutas imputadas — e podem ser punidos com advertência.
Outros 67 alunos, estes do segundo semestre, responderão porque assumiram que teriam participado do trote aplicado aos calouros, sendo puníveis com a pena de suspensão por oito dias. Da mesma forma, as condutas foram imputadas sem que tenham sido individualizadas.
Por fim, a portaria também prevê o processamento de outros 32 alunos, todos membros da diretoria do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), passíveis de suspensão por oito dias, porque, na ocasião do trote, teriam distribuído gratuitamente e comercializado bebidas alcoólicas em descumprimento às normas e à autorização concedida pela direção da unidade para a “recepção dos calouros”.
Deixa eu ver se entendi bem:
1. os alunos que sofreram o trote poderão ser punidos com advertência, sob a alegação de que consentiram com a “brincadeira”? A culpa, agora, é das vítimas?
2. distribuir cerveja para a calourada tem o mesmo (des)valor que a prática de racismo e fazer apologia ao nazismo?
3. desde quando a responsabilização pela prática de atos discriminatórios e atentatórios aos direitos fundamentais depende da anuência dos ofendidos?
4. é possível imputar, genericamente, a mesma conduta a dezenas de alunos, como se tal responsabilidade fosse objetiva?
5. o processo administrativo disciplinar instaurado está dispensado de observar o devido processo legal? Quando abrimos mão da individualização das condutas?
6. a comissão designada para presidir o processo administrativo disciplinar é a mesma comissão que realizou a sindicância?
7. tal portaria foi editada pela direção de uma das faculdades de Direito mais prestigiadas do país?
Parece uma “pegadinha”, mas não é.
Na verdade, o processo administrativo instaurado pulverizou irrestritamente a responsabilidade e, assim, também a diluiu, de maneira que restaram inatingidos aqueles que notoriamente teriam incorrido nas condutas mais graves: racismo, sexismo e apologia ao nazismo.
Tudo indica, lamentavelmente, que se optou por punir mais de uma centena de alunos, indistintamente, apenas para dar exemplo. Moral da história: “pune-se quem não se deve para não punir quem se deve...”
Por que não processar administrativamente aqueles que incorreram em indignidade universitária? Por que, simplesmente, não punir os culpados de modo individualizado? Isto para não falar das responsabilidades — civil e penal — por violações aos direitos humanos... Aí tem coisa... Certamente, há outros interesses.
Tanto é assim que, perplexos com tamanha arbitrariedade, um grupo de quatro professores — dos departamentos de Psicologia, Ciência Política, Arquitetura, História — interpôs recurso hierárquico perante a Congregação da Faculdade de Direito, nos termos do Regimento Geral da UFMG, contra o processo administrativo disciplinar instaurado pela direção, requerendo a nulidade da Portaria e o imediato desaforamento do processo de sindicância para o Conselho Universitário. Ao recurso interposto aderiram professores da Faculdade de Direito — Marcelo Cattoni, Thomas Bustamante e Daniela Muradas — e de outras unidades, mediante aditamento.
Registre-se que os alunos que inicialmente também figuravam na condição de recorrentes recuaram no momento de assinar o documento diante da possibilidade de anulação da sindicância e da instauração de outra, desta vez pelo Conselho Universitário, com risco de sanções mais graves.
No que isto tudo vai dar? Penso, honestamente, que em nada. Isto porque, ainda vivemos entre acomplacência e o autoritarismo. Parece que estamos fadados a esta velha — e perversa — imbricação que atravessa a história deste país.
André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.

Revista Consultor Jurídico, 20 de julho de 2013

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Racionalidade do novo CPC trará mais celeridade

O projeto do novo Código de Processo Civil (PL 8.046/2010) foi aprovado esta semana pela comissão especial da Câmara dos Deputados criada para analisar a proposta. Elaborado em 2009 por uma comissão de juristas presidida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux, o novo CPC tem como objetivo dar mais celeridade à tramitação das ações cíveis. O projeto ainda precisa ser aprovado pelo plenário da Câmara e do Senado.
O advogado Mario Gelli, do Barbosa, Müssnich e Aragão (BM&A), diz que o novo CPC busca a simplificação dos procedimentos e a racionalização dos recursos. De acordo com ele, o projeto estimula a utilização dos meios de autocomposição do litígio, como a conciliação e a mediação. “Em regra, o réu passará a ser citado não para oferecer sua defesa, mas sim para comparecer a uma audiência prévia de conciliação/mediação. Apenas na hipótese de o conflito não ser resolvido amigavelmente é que se iniciaria o prazo para defesa”, explica.
O estímulo às negociações amigáveis é elogiada também pelo advogado José Carlos Puoli, do escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados. Para ele, esta medida pode propiciar resultados mais rápidos e uma diminuição de processos, porém, ressalta que para que haja esta redução é necessário alterar hábitos.
“As alterações do atual CPC (que foram realizadas, notadamente, desde 1993) foram relevantes para melhorar a fluidez de nosso sistema processual, mas também demonstraram que nenhuma alteração da lei, por si só, é suficiente para reduzir o número de litígios. Para que isto ocorra é necessária uma mudança de cultura”, diz.
Paulo Henrique dos Santos Lucon, vice-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), diz que o projeto foi muito debatido e só não avançou mais por falta de preparo técnico de muitos congressistas. Apesar de considerar o projeto positivo, ele faz uma crítica e diz que a proposta poderia ter disciplinado a mediação antes do processo. “O Novo CPC poderia ter disciplinado uma fase de mediação pré-processual, ou seja, antes de o autor distribuir sua petição inicial, porque, a partir daí, o conflito já está instaurado”, diz.
Um das novidades que para tentar acelerar a tramitação dos processos é o julgamento em ordem cronológica. De acordo com o texto, os juízes deverão proferir sentença e os tribunais deverão decidir os recursos obedecendo à ordem cronológica de conclusão. A lista de processos aptos a julgamento deverá ser disponibilizada em cartório, para consulta pública.
”Para as preferências estabelecidas em lei, como para os idosos, por exemplo, também deve ser criada uma lista própria, o que ajudará na organização e dará mais transparência à atividade do julgador. Caso o juiz retarde injustificadamente o andamento do processo ou deixe de adotar providência necessária, poderá responder por perdas e danos, para indenizar a parte prejudicada”, explica Ana Carolina Ferreira de Melo Brito, do Trigueiro Fontes Advogados.
Conquistas da avocacia 
Para os advogados, o projeto contempla uma série de conquistas diz o advogado Ulisses César Martins de Sousa, sócio do Ulisses Sousa Advogados Associados e Secretario Geral Adjunto da OAB-MA. Entre os destaques ele enumera o reconhecimento da natureza alimentar dos honorários advocatícios; a possibilidade dos honorários serem recebidos diretamente pelas sociedades de advogados; o estabelecimento de critérios claros para a fixação de honorários nos casos em que a Fazenda Pública for vencida; e a contagem dos prazos processuais apenas em dias úteis.

O advogado Mario Gelli explica que o projeto cria uma tabela de percentuais para os casos em que o Poder Público for condenado. “A lógica da tabela é a de que o percentual a pautar a fixação dos honorários é inversamente proporcional ao valor da condenação sofrida pelo Poder Público”, conta. Também destaca que o projeto estabelece que serão devidos honorários advocatícios sucumbenciais não só no processo principal, mas também, cumulativamente, na reconvenção, no cumprimento de sentença, na execução e nos recursos.
Além disso, o novo CPC garante as férias dos advogados entre 20 de dezembro e 20 de janeiro. As conquistas foram comemoradas pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcus Vinícius Furtado Coêlho. “O fortalecimento do exercício da advocacia é fundamental para a garantia da plena defesa dos direitos do cidadão contra injustiças e arbitrariedades”. 
Sistema de recursos
Outra inovação destacada por advogados é a alteração na sistemática dos recursos. O projeto do novo CPC extingue os embargos infringentes e o agravo retido. Além disso, restringe as hipóteses de interposição do agravo de instrumento, que passará a se chamar apenas agravo, conta Mario Gelli.

Para a advogada Ana Carolina Ferreira de Melo Brito outra medida que pode encolher o tempo de tramitação dos processos é a atribuição de sucumbência na fase recursal. “Isso fará a parte que ‘perdeu a ação’ ponderar sobre esse risco antes de decidir recorrer por uma causa na qual sabe que não terá êxito ao final. Serão devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, de forma cumulativa”, afirma.
O efeito suspensivo também será alterado com o novo CPC. “A apelação deixará de ter efeito suspensivo como regra geral, ampliando-se as hipóteses de imediata execução da sentença”, observa o advogado Mario Gelli.
A medida, considerada benéfica para uns, é criticada por Ulisses César Martins de Sousa. “Se a intenção do projeto é estabelecer um procedimento mais célere, não faz o menor sentido permitir-se que sentença possa ser cumprida (executada) antes do julgamento do recurso de apelação”, diz.
Outro ponto que Ulisses Sousa conisdera incompreensível, com o advento do processo eletrônico, é que seja mantida a previsão de que o agravo de instrumento deverá ser instruído com cópias de peças do processo. “Se o processo eletrônico estará inteiramente disponível no site do tribunal, qual a razão de exigir-se que o recurso seja acompanhado de cópias? Tal exigência é, no mínimo, incompatível com a realidade do processo eletrônico”.
Demandas repetitivas
“Com certeza vai acelerar a tramitação e finalização de processos, com a redução de recursos, diminuição de formalidades e criação de uma ferramenta específica para tratar das ações repetitivas que, certamente, coibirá o ajuizamento em massa de demandas idênticas”, afirma a advogada Ana Carolina Remígio de Oliveira, sócia do Marcelo Tostes Advogados.

O incidente de resolução de demandas repetitivas é uma das principais inovações do projeto. Esta medida permitirá que juízes de primeira instância, ao identificar muitos processos sobre a mesma questão de Direito, possam provocar o tribunal de segunda instância (Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal) para que ele decida a controvérsia. Sendo seu resultado aplicado a todas as ações.
“Se houver sucesso no processamento do incidente de resolução de demandas repetitivas, haverá enorme economia de recursos (pessoais e materiais) do Judiciário, de maneira que com um único julgamento inúmeras demandas semelhantes poderão ser resolvidas”,complementa José Carlos Puoli.
A advogada Ana Carolina Melo Brito também acredita que esta medida deve ajudar na redução de processos. “Além disso, os litigantes com grande número de processos semelhantes, isto é, Poder Público, concessionárias de serviços públicos e grandes fornecedores de bens de consumo, terão uma maior previsibilidade quanto às decisões que serão proferidas, possibilitando-lhes gerenciar melhor os processos e decidir sobre a continuidade ou não do litígio, nos casos cabíveis”, complementa.
Morosidade da Justiça
Apesar de acelerar a tramitação dos processos, os advogados alertam que a nova lei não irá acabar com a lentidão da Justiça. "A demora na solução de processos judiciais é fenômeno complexo que decorre de vários fatores. A falta de investimento na gestão da estrutura Judiciária é um destes fatores e de importância muito mais relevante do que o nosso atual CPC, cujo texto já vem sendo aperfeiçoado ao longo do tempo", explica o advogado José Carlos Puoli.

Para advogada Ana Carolina Ferreira de Melo Brito vários fatores que podem contribuir para a morosidade na tramitação dos processos, tais como o número reduzido de funcionários, baixa capacitação de pessoal ou inadequada gestão administrativa, inclusive de recursos financeiros. “No entanto, o CPC cumprirá em boa medida seu papel no combate a um desses fatores de lentidão, ao dar condições ao juiz e às partes de resolverem o litígio de forma mais ágil”, diz.
Já Ana Carolina Remígio de Oliveira destaca que diversos fatores como a modernização dos tribunais, a implantação de processos eletrônicos, contribuem para agilizar a tramitação dos processos, mas é necessário também adequar as leis à realidade do país.
Clique aqui para ler a íntegra do novo CPC aprovado pela comissão
*Notícia alterada às 9h13 do dia 19/7 para acréscimo de informações
Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 18 de julho de 2013

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Norma permite decidir milhares de ações de uma só vez

Por Rodrigo Haidar
O texto do Novo Código de Processo Civil aprovado nesta quarta-feira (17/7) por uma comissão especial da Câmara dos Deputados traz uma novidade que, se usada na medida correta, pode revolucionar o tratamento de ações sobre o mesmo assunto que chegam aos milhares no Judiciário brasileiro. A novidade responde pelo nome de incidente de resolução de demandas repetitivas.
Em termos mais simples, trata de permitir que processos idênticos tenham resultados iguais, independentemente do juiz que irá julgar o caso. A medida pode acabar com o caráter muitas vezes lotérico da Justiça, que permite que um cidadão vença determinada demanda e seu vizinho, com um processo exatamente igual, perca a ação.
A ideia não é nova e já funciona com sucesso no Superior Tribunal de Justiça, por exemplo. Mas agora as questões poderão ser uniformizadas antes de levar anos até chegar aos milhares ao tribunal superior. O novo CPC permite que quando juízes de primeira instância identifiquem enxurradas de processos sobre a mesma questão de Direito, possam provocar o tribunal de segunda instância (Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal) para que ele decida a controvérsia. Seu resultado seria aplicado, então, a milhares de ações idênticas que tramitam nas varas do país.
De acordo com Bruno Dantas, membro do Conselho Nacional de Justiça e um dos autores do novo código, já que integrou a Comissão de Juristas do Senado que elaborou o texto agora aprovado pela comissão da Câmara, a ideia foi trazer racionalidade e celeridade para o sistema e impedir injustiças com decisões diferentes para casos idênticos. “O incidente é uma boa alternativa ao processo coletivo, que ainda não funciona bem no Brasil, e prestigia os princípios constitucionais da segurança jurídica e da isonomia”, sustenta Dantas.
O advogado José Miguel Garcia Medina, autor de um Código de Processo Civil Comentado usado como referencial no meio jurídico, compartilha da mesma opinião: “Esse projeto tem como uma de suas mais importantes características a de estar alinhado com garantias constitucionais. O incidente de demandas repetitivas, se bem aplicado, realizará em plenitude o princípio da isonomia”.
Pelas regras do projeto, não apenas o juiz, mas também o membro do Ministério Público, o defensor público ou até uma das partes pode provocar o presidente do tribunal de segunda instância sobre a existência de múltiplos processos que discutem a mesma tese jurídica. O presidente do tribunal, então, distribui a causa para um dos desembargadores.
O desembargador faz o chamado juízo de admissibilidade. Verifica se a questão de direito é a mesma e se repete em múltiplos processos. Avalia, então, se já é o momento conveniente para se adotar uma solução que sirva de paradigma para todos os casos idênticos. “É importante permitir esse juízo político porque o tribunal pode avaliar que a questão ainda não está madura para ser decidida de maneira uniforme”, afirma Bruno Dantas.
Se a questão é admitida, automaticamente todas as ações que tratem do mesmo tema têm o andamento suspenso até a decisão do tribunal. O prazo para que o tribunal decida a questão é de 180 dias. Depois de decidida a ação, seu resultado produz efeito vinculante para todos os demais processos que versem sobre a mesma controvérsia: ou seja, o juiz é obrigado a aplicar automaticamente o resultado em todas as ações idênticas sob sua guarda. Se o julgamento não é concluído no prazo, os processos voltam a tramitar.
Para que a uniformização da matéria ganhe caráter nacional, o texto do projeto prevê que as partes também podem acionar o Superior Tribunal de Justiça, nos mesmos moldes. No caso de o Tribunal de Justiça da Bahia já ter fixado tese sobre uma controvérsia que ainda está em aberto no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o STJ pode ser provocado para pacificar o tema em todo o país.
As regras, no caso, são as mesmas. Todos os processos são suspensos por 180 dias em território nacional e os ministros têm esse prazo para decidir a ação escolhida como paradigma. Em caso de discussão de matéria constitucional, o procedimento é o mesmo, mas foro é o Supremo Tribunal Federal. Decidida a questão, os juízes aplicam seu resultado aos processos. Em caso de desobediência, cabe Reclamação direta ao tribunal que pacificou a matéria.
Exemplo internacional
A resolução de demandas repetitivas é um exemplo que já deu certo em países como Alemanha e Inglaterra. Os alemães se depararam com a necessidade de discutir esse modelo de enfrentamento de processos em 2001, como lembra Bruno Dantas. Na época, a empresa Deutsche Telecom foi alvo de 18 mil ações individuais sob acusação de maquiar seu balanço e causar prejuízos financeiros aos acionistas.

Para os padrões alemães, 18 mil processos sobre o mesmo tema era algo inimaginável. A Justiça não conseguia dar resposta à demanda. Depois de quatro anos sem que sequer as primeiras audiências dos processos fossem realizadas, um grupo de advogados reclamou à Suprema Corte do país alegando que havia, no caso, negação de justiça.
A Suprema Corte determinou as medidas necessárias para fazer os processos andarem. E o Parlamento se reuniu para discutir o problema. Foi criado, então o incidente de julgamento de causa modelo. Lá se permite julgar pelo sistema, inclusive, questões de fato. Por exemplo, a prova produzida em uma ação pode ser usada para todas as outras idênticas. Pelo texto do novo código brasileiro, apenas questões de direito cabem no sistema de julgamentos de massa.
A experiência também é usada com sucesso na Inglaterra, garante Bruno Dantas. Guardadas as especificidades de cada sistema, o que está para ser criado no Brasil se assemelha às chamadasTest Claims: uma ação é escolhida, julgada e sua decisão é aplicada de forma vinculante a todos os processos idênticos.
No Brasil, se encaixariam perfeitamente na regra, para citar apenas dois exemplos, casos como os dos milhares de ações que contestavam a cobrança de assinatura básica de telefones fixos ou dos processos que tratam das diferenças monetárias do índice de correção da poupança por conta de planos econômicos dos governos de Fernando Collor e José Sarney.
Para José Garcia Medina, a possibilidade de aplicar o julgamento de demandas repetitivas em segunda instância evita injustiças. Isso porque muitos casos — a maioria, na verdade — não chegam aos tribunais superiores. As pessoas sequer recorrem à segunda instância depois de perder as ações. Assim, os beneficiados são sempre aqueles que têm mais recursos financeiros ou conseguem se organizar melhor por meio de associações.
“Sabemos bem que a esmagadora maioria das ações não chega aos tribunais superiores. Ao permitir que um tribunal de segunda instância resolva a questão antes de esperar anos para chegar aos tribunais superiores o Código prestigia o princípio da isonomia. Situações idênticas se resolvem do mesmo modo”, sustenta Medina.
Segundo ele, a experiência revela que muitas vezes questões polêmicas de Direito Bancário, do Consumidor ou referentes a telefonia são resolvidas de maneira diferente ao longo dos anos. “Só muito tempo depois o entendimento sobre a questão é uniformizado. Antes de gastar tanto tempo e dinheiro, melhor uniformizar a orientação jurisprudencial sobre a questão logo que possível”, defende. Mas, como todo remédio, o incidente deve ser usado na dose certa: “Não se pode usar o mecanismo para questões semelhantes. Têm de ser para casos idênticos”.
Direito claro
Bruno Dantas destaca outros pontos que considera relevantes no texto do novo CPC. Ele oficializa a suspensão dos prazos processuais de 20 de dezembro a 20 de janeiro e, com isso, garante férias para advogados que trabalham sozinhos. Muda a contagem dos prazos recursais. Hoje, o prazo é corrido. Pelo texto aprovado na Câmara, passa a contar apenas nos dias úteis.

Outro ponto importante, segundo o conselheiro do CNJ, é o dispositivo que obriga os juízes a fundamentar adequadamente as suas decisões. E estabelece parâmetros para isso. Não é fundamentada, por exemplo, a decisão que se limita a fazer a paráfrase de um dispositivo de lei. Ou que poderia dar suporte a qualquer outra decisão. Como os despachos que trazem o seguinte: “Presentes os pressupostos legais, concedo o pedido”.
O texto também muda as regras para as decisões de antecipação de tutela. Hoje, juízes só podem conceder liminar em casos de urgência. Nos casos em que o direito da parte é claro, mas a questão não é urgente, é necessário esperar o trâmite completo da ação. Mas quando a parte que reclama tem diversos precedentes em favor de sua tese ou uma súmula do Supremo que abrace sua causa, é justo esperar o desfecho de toda ação?
A redação do novo CPC muda a situação e permite que, nestes casos, o juiz conceda a antecipação de tutela para garantir o direito da parte. Nas palavras de Bruno Dantas, a regra inverte uma lógica perversa: “Hoje, temos um processo civil do réu. Procuramos criar o processo civil da parte que tem razão”.
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 17 de julho de 2013

Joaquim Barbosa suspende criação de TRFs

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, concedeu na noite desta quarta-feira (17/7) liminar para suspender a Emenda Constitucional 73, que cria quatro tribunais regionais federais. A decisão foi concedida na Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada na tarde desta quarta pela Associação Nacional de Procuradores Federais (Anpaf) contra a criação dos TRFs. Com isso, a criação dos tribunais fica suspensa até que seja julgado o mérito da ADI.
Na ação, entre outros argumentos, a Anpaf reclama que a EC 73/2013 padece de vício de iniciativa, pois foi proposta ao Congresso pelo próprio Legislativo. O que os procuradores alegam é que, em seu artigo 96, inciso II, alíneas “a” e “b”, a Constituição Federal estabelece que projetos de lei, ou de emendas constitucionais, que tratam da criação ou extinção de tribunais, bem como da administração da Justiça, devem ser propostas ao Congresso pelo Supremo ou por tribunais superiores.
E foi justamente esse o ponto abordado pelo ministro Joaquim Barbosa em sua liminar. Ele afirma que há indícios que dão respaldo ao argumento do vício de iniciativa, e por isso a questão, eminentemente constitucional, deve ser analisada pelo Plenário do Supremo. O relator da ADI é o ministro Luiz Fux, mas, como havia pedido de liminar e o Supremo está em recesso, a análise cabe ao presidente do tribunal.
O presidente da Anpaf, Rogerio Filomeno Machado, comemorou a decisão desta noite. Disse que “agora é que aparece a oportunidade de apreciar se há a necessidade de novos TRFs ou não”. “Nossa reclamação é que os outros ministros do STF não foram ouvidos na questão, e aí o problema do vício de iniciativa. Agora vamos ter tempo de esperar o retorno dos ministros e apreciar a questão com calma, de maneira mais aprofundada”, afirmou o procurador à revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 17 de julho de 2013

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - RIDB nº 9 - 2013



 
 
Nº 9 (2013)

CAPA, ÍNDICE - PDF

Pedro de Albuquerque, "O Direito ao Cumprimento de Prestação de Facto, o Dever de a Cumprir e o PrincípioNemo ad Factum Cogi Potest. Providência Cautelar, Sanção Pecuniária Compulsória e Caução" - 8981

Gilmara Maria de Oliveira Barbosa, "Anomia, Direito e Pós-Modernidade" - 9043

Ana Silvia Marcatto Begalli, "Biodireito e Bioética: Entre o Poder e o Dever de Conter os Avanços da Ciência" -9083

Patricia Bianchi, "A Responsabilidade Socioambiental das Empresas" - 9103

Luciana Briedis, "Aplicação dos Procedimentos Investigatórios Previstos na Lei n. 9.034/95: Enfoque a Partir das Novas Técnicas de Apuração da Criminalidade Econômica" - 9133

Bruno Leonardo Câmara Carrá, "A Essencia Revolucionária do Direito Ambiental e a Filosofia da Precaução" -9163

Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho, "A Hermenêutica Constitucional entre a Estabilidade e a Dinâmica: Elementos para uma Compreensão do Conceito de Mutação Constitucional" - 9187

Eliza Cerutti & Marcos Catalan, "Alimentos, Irrepetibilidade e Enriquecimento Sem Causa: Uma Proposta de Convergência de Figuras Aparentemente Excludentes" - 9221

Daphne Constantinopolos, "Âmbito de Proteção da Patente: A Doutrina dos Equivalentes" - 9255

Leonardo Carneiro da Cunha, "O Processo Civil no Estado Constitucional e os Fundamentos do Projeto do Novo Código de Processo Civil Brasileiro" - 9293

Cibele Fernandes Dias, "A Interpretação Evolutiva da Constituição: Mutação Constitucional" - 9329

Talden Farias, "Regulação Jurídica dos Biocombustíveis no Brasil: O Caso do Álcool Combustível e do Biodiesel" - 9343

Tânia Luísa F. e Faria, "Medidas Antidumping e Cartéis de Exportação - Uma Missão para o Direito da Concorrência" - 9373

Phillip Gil França, "Objetivos Fundamentais da República Federativa do Brasil e Escolhas Públicas: Perspectivas de Caminhos Constitucionais de Concretização do Desenvolvimento Intersubjetivo" - 9407

Paola Coelho Gersztein, "O Direito Fundamental de Acesso à Justiça na Perspectiva Luso-Brasileira" - 9421

Melissa Zani Gimenez, "Uma Questão de Cidadania: Reflexões acerca da Inclusão do ECA nos Currículos Escolares como Possibilidade de Prevenção de Atos Infracionais junto à Escola" - 9497

Rafael Glatzl, "A Inconstitucionalidade da Dispensa de Licitação nos Contratos de Gestão Celebrados entre Administração Pública e Organizações Sociais" - 9521

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, "Agências Reguladoras: Origens, Fundamentos, Direito Comparado, Poder de Regulação e Futuro" - 9541

Luciana Helena Gonçalves, "O Ultrapassar as Fronteiras entre Quatro Paredes" - 9561

Cláudia Maria Resende Neves Guimarães, "A Justa Causa Prevista no Art. 1.848 do Código Civil Brasileiro para Clausulação da Legítima" - 9583

Lucas Cilli Horta, "O Homem e o Direito à Licença-Maternidade. Análise Principiológica e Teleológica da Constituição Federal do Brasil, da Diretiva 96/34 da União Europeia e do Código do Trabalho de Portugal" -9627

Regma Janebro, "Os Deveres de Conduta Prévia dos Provedores de Internet" - 9661

Martiane Jaques La Flor, "Extensão da Imunidade de Livros, Jornais e Periódicos. Interpretação da Expressão “Papel”. O Livro Eletrônico" - 9741

Ricardo Alves de Lima, "A Aquisição do Vínculo de Filiação pela Adoção: Comparações entre os Institutos Brasileiro e Português" - 9791

José Francisco Dias da Costa Lyra, "O que Protege o Direito Penal? Bens Jurídicos ou Vigência da Norma?" -9825

Emanuelle Mendes, "Adoção Homoafetiva: Os Desafios de uma Nova Expressão Familiar" - 9881

Luana Casagrande Calomeno Moro & Frederico E. Z. Glitz, "Apontamentos sobre as Joint Ventures Societárias Constituídas sob Regime das Sociedades Limitadas" - 9907

Damião Alexandre Tavares Oliveira, "Contributos (E Perigos) da Rotulagem Ambiental para o Desenvolvimento Sustentável no Brasil (Parte I)" - 9937

Pedro Accioly de Sá Peixoto Neto, "Superação do Positivismo Tradicional Ante os Direitos Fundamentais no Pós-Positivismo: Uma Nova Interpretação Jurídica" - 9981

Gleydson Gleber Bento Alves de Lima Pinheiro, "O Dever Fundamental de Proteção do Meio Ambiente e a Proibição da Proteção Deficiente à Luz da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Brasileiro" - 10029

Oriana Piske, "Reflexões Sobre o Sistema Eleitoral no Brasil e na Argentina" - 10087

Daniela Portugal, "O Estado Democrático de Direito e a Moderna Legislação Penal: O Princípio da Taxatividade e a Eficácia na Tutela de Novos Bens Jurídicos" - 10115

Adir Ubaldo Rech, "Direito Urbanístico e Políticas Públicas de Ocupação Socioambientalmente Sustentáveis do Planeta" - 10151

Lidiane Maurício dos Reis & Thiago Alves Miranda, "A Formação do Processo de Execução sob o Prisma Constitucional" - 10169

Mauricio Martins Reis, "A Ontologia Deflacionária no Direito: A Decisão Pode Ser Múltipla para o Mesmo Caso Concreto?" - 10195

Carlos Eduardo D’Elia Salvatori, "Contrato de Doação: Análise da Cláusula de Reversão e Considerações sobre a Doação Conjuntiva a Cônjuges e a Companheiros" - 10209

Rafael da Silva Santiago, "O Conflito Real entre Regras e Princípios e a Reserva do Possível no Regime Jurídico-Administrativo: Uma Reinterpretação do Caso Concreto" - 10239

Rodrigo Victor dos Santos, "Cláusula do Não Obstante: Uma Alternativa ao Modelo Institucional Vigente" -10285

Ana Paula da Silva, "Aplicação do Ponto por Exceção a Luz da Lei de Ponto Eletrônico" - 10315

Carlos Sérgio Gurgel da Silva, "Federalismo Cooperativo Ambiental no Brasil: Breves Notas Sobre a Lei Complementar 140/2011" - 10329

José Fernando Simão, "Natureza Jurídica do Dízimo e da Doação: Aparente Semelhança, mas Grandes e Insuperáveis Diferenças" - 10357

Sônia Barroso Brandão Soares, "Poder de Polícia, Regularização Fundiária e o Princípio Constitucional do Direito à Moradia" - 10387

Vanessa Ribeiro Corrêa Sampaio Souza, "A Aplicação Direta das Normas Constitucionais e a Liberdade Associativa no Direito Civil Brasileiro" - 10431

Maurício Dalri Timm do Valle, "O Princípio da Seletividade do IPI" - 10475

Marco Anthony Steveson Villas Boas, "Fragilidades do Sistema Difuso de Controle de Constitucionalidade na Justiça Eleitoral" - 10501

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...