Neste Diário de Classe, no início do ano letivo, escrevi sobre o trote racista praticado pelos estudantes da Faculdade de Direito da UFMG e a banalidade do mal (clique aqui para ler). Ao final da coluna, provoquei a seguinte reflexão:
Muitos têm se questionado a partir do polêmico trote: estes serão os juristas de amanhã? Estes serão os juízes, promotores, advogados do futuro? Isto depende, inevitavelmente, de quem são os juristas de hoje e, sobretudo, de qual resposta seremos capazes de dar para este problema ou, se preferirem, para esta “brincadeirinha”.
Pois, bem. O que ocorreu desde então? Quais as providências tomadas pelos órgãos competentes para apurar eventuais abusos e ilegalidades? Quais medidas foram adotadas pela universidade a fim de evitar que incidentes deste naipe voltem a ocorrer nos próximos anos? Enfim, passados quatro meses, resta saber quais foram os desdobramentos administrativos e judiciais do polêmico trote que ocupou os principais noticiários do país?
Ab initio, diante das cobranças públicas por uma resposta institucional, a Direção da Faculdade designou uma comissão de sindicância para apurar as inúmeras denúncias de racismo, sexismo e violação aos direitos humanos, a fim de responsabilizar os alunos que, porventura, praticaram atos atentatórios à dignidade universitária.
Após dois meses, a comissão de sindicância concluiu que “não foi constatada [...] a prática e nem a intenção de cometer atitudes racistas, sexistas, nazistas, ou de qualquer outro modo discriminatórias durante o trote, que poderiam ser condutas incompatíveis com a dignidade universitária”.
Tal conclusão decorreu, por um lado, das versões apresentadas pelos investigados, que negaram qualquer intuito discriminatório nas “brincadeiras”, e dos depoimentos prestados por testemunhas que “abonaram” suas condutas, afirmando serem “pessoas de boa índole, religiosas e sem histórico de agressões”; por outro, do teor das declarações dos calouros, que informaram não ter se sentido constrangidos ou humilhados, além de não considerarem qualquer conotação racista e sexista no trote.
Com base no relatório da sindicância, a diretora da Faculdade de Direito, professora Amanda Flávio de Oliveira, editou a Portaria 59, instaurando processo administrativo disciplinar contra 198 alunos (clique aqui para ler).
Segundo a Portaria, 99 alunos do primeiro semestre responderão ao processo simplesmente porque teriam aderido ao trote que sofreram. Todos foram enquadrados, de maneira indistinta, no mesmo dispositivo — sob o argumento de que não é possível individualizar as condutas imputadas — e podem ser punidos com advertência.
Outros 67 alunos, estes do segundo semestre, responderão porque assumiram que teriam participado do trote aplicado aos calouros, sendo puníveis com a pena de suspensão por oito dias. Da mesma forma, as condutas foram imputadas sem que tenham sido individualizadas.
Por fim, a portaria também prevê o processamento de outros 32 alunos, todos membros da diretoria do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), passíveis de suspensão por oito dias, porque, na ocasião do trote, teriam distribuído gratuitamente e comercializado bebidas alcoólicas em descumprimento às normas e à autorização concedida pela direção da unidade para a “recepção dos calouros”.
Deixa eu ver se entendi bem:
1. os alunos que sofreram o trote poderão ser punidos com advertência, sob a alegação de que consentiram com a “brincadeira”? A culpa, agora, é das vítimas?
2. distribuir cerveja para a calourada tem o mesmo (des)valor que a prática de racismo e fazer apologia ao nazismo?
3. desde quando a responsabilização pela prática de atos discriminatórios e atentatórios aos direitos fundamentais depende da anuência dos ofendidos?
4. é possível imputar, genericamente, a mesma conduta a dezenas de alunos, como se tal responsabilidade fosse objetiva?
5. o processo administrativo disciplinar instaurado está dispensado de observar o devido processo legal? Quando abrimos mão da individualização das condutas?
6. a comissão designada para presidir o processo administrativo disciplinar é a mesma comissão que realizou a sindicância?
7. tal portaria foi editada pela direção de uma das faculdades de Direito mais prestigiadas do país?
Parece uma “pegadinha”, mas não é.
Na verdade, o processo administrativo instaurado pulverizou irrestritamente a responsabilidade e, assim, também a diluiu, de maneira que restaram inatingidos aqueles que notoriamente teriam incorrido nas condutas mais graves: racismo, sexismo e apologia ao nazismo.
Tudo indica, lamentavelmente, que se optou por punir mais de uma centena de alunos, indistintamente, apenas para dar exemplo. Moral da história: “pune-se quem não se deve para não punir quem se deve...”
Por que não processar administrativamente aqueles que incorreram em indignidade universitária? Por que, simplesmente, não punir os culpados de modo individualizado? Isto para não falar das responsabilidades — civil e penal — por violações aos direitos humanos... Aí tem coisa... Certamente, há outros interesses.
Tanto é assim que, perplexos com tamanha arbitrariedade, um grupo de quatro professores — dos departamentos de Psicologia, Ciência Política, Arquitetura, História — interpôs recurso hierárquico perante a Congregação da Faculdade de Direito, nos termos do Regimento Geral da UFMG, contra o processo administrativo disciplinar instaurado pela direção, requerendo a nulidade da Portaria e o imediato desaforamento do processo de sindicância para o Conselho Universitário. Ao recurso interposto aderiram professores da Faculdade de Direito — Marcelo Cattoni, Thomas Bustamante e Daniela Muradas — e de outras unidades, mediante aditamento.
Registre-se que os alunos que inicialmente também figuravam na condição de recorrentes recuaram no momento de assinar o documento diante da possibilidade de anulação da sindicância e da instauração de outra, desta vez pelo Conselho Universitário, com risco de sanções mais graves.
No que isto tudo vai dar? Penso, honestamente, que em nada. Isto porque, ainda vivemos entre acomplacência e o autoritarismo. Parece que estamos fadados a esta velha — e perversa — imbricação que atravessa a história deste país.
André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.
Revista Consultor Jurídico, 20 de julho de 2013
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