Segundo um dos mais populares teóricos da atualidade, “fomos treinados com sucesso a fechar os olhos e tapar os ouvidos” (Zygmunt Bauman, Medo líquido, Zahar, 2006, página 86). Não se trata apenas de conformismo, mas de um estado de indolência: vivemos como se não tivéssemos nada a ver com os problemas que saltam aos nossos olhos. Quando não corrigimos isso, descambamos para o cinismo. Nesse caso, não ignoramos o problema, mas argumentamos que é correto e justificável o modo como lidamos com ele. Seria algo como dizer que o que faço é errado, mas meu erro é legitimado por uma série de circunstâncias (minha história de vida, problemas sociais etc.). Por isso, o que faço não pode ser, ao fim e ao cabo, considerado algo censurável.
Tal é o que pode acontecer, creio, com aquilo que se convencionou chamar de jurisprudência defensiva. Acostumamo-nos com ela. Em nossos livros, escrevemos a respeito dos requisitos exigidos pela jurisprudência dos tribunais superiores, ainda que os mesmos não estejam amparados na Constituição, ou na lei. Em nosso dia a dia, na advocacia, já nos habituamos a ser surpreendidos por mudanças jurisprudenciais, novas orientações dos tribunais superiores que passam a exigir requisitos não previstos em regra jurídica alguma, e convivemos, sem questionamentos, com isso.
Com a finalidade de viabilizar o funcionamento do Superior Tribunal de Justiça, tornando-o “sustentável” (levando em conta o número de processos que poderia julgar), a jurisprudência passa a adotar postura não apenas mais rigorosa em relação aos requisitos recursais, mas vai além, impondo às partes a observância de exigências não previstas em qualquer norma jurídica.
Segundo afirmou o ministro Humberto Gomes de Barros, então presidente do Superior Tribunal de Justiça, a jurisprudência defensiva é “consistente na criação de entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos”. A medida deveria ser adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, disse então o ministro, “para fugir do ‘aviltante destino’ de transformar-se em terceira instância”.
Ficamos sensibilizados, pois. Afinal, ninguém entre nós deseja que os tribunais superiores fiquem inviabilizados ou sejam “aviltados”. Há pouco tempo, quando reclamei da jurisprudência defensiva em uma palestra, fui repreendido. Afinal, segundo meu interlocutor, eu falava como alguém que desconhecia a quantidade de processos que chegam aos tribunais superiores. Os cidadãos, afinal, seriam os grandes culpados, já que recorriam em demasia àqueles tribunais.
Falar contra a jurisprudência defensiva, assim, é quase um pecado, pois demonstraria que o autor da crítica é insensível aos problemas dos tribunais.
Penso que temos que lutar contra esse nosso conformismo diante da jurisprudência defensiva. A mudança deve começar por nós mesmos.
Devemos, também, afastar essa ideia de que a jurisprudência defensiva seria, de algum modo, justificável. A quantidade elevada de processos nos tribunais superiores, sem dúvida, é um grave problema. Mas tal problema não é resolvido com a criação de entraves, pretextos, desculpas ou algo que o valha, sem apoio legal, para que recursos não sejam admitidos. São vários os exemplos de exigências injustificáveis, até mesmo contrárias à Lei. Dentre outras, pode ser citada a orientação disposta na Súmula 115 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “na instância especial é inexistente recurso interposto sem procuração nos autos”, não se admitindo a juntada posterior de procuração, o que contraria os artigos 13 e 37 do Código de Processo Civil (assim, por exemplo, noAgRg no REsp 1370523/RJ, no STJ).
Há também o entendimento de que, sendo “ilegível o carimbo de protocolo” — circunstância que, evidentemente, escapa ao controle da parte —, o recurso não deve ser conhecido, sendo inadmissível “a juntada posterior de certidão que ateste sua tempestividade” (nesse sentido, dentre outros, o AgRg no AREsp 239.167/MG).
Pode-se recordar, igualmente, da orientação, ainda preponderante no Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que a parte deve comprovar a existência de feriado ou dias sem expediente forense na instância local, com a finalidade de afastar o risco de o tribunal, posteriormente, considerar o recurso intempestivo. O Superior Tribunal de Justiça ensaiou uma mudança de entendimento a respeito, mas depois voltou atrás. O Supremo Tribunal Federal, acertadamente, abandonou tal orientação.
Os tribunais superiores têm a grande função de apontar o rumo correto a ser seguido na interpretação e aplicação da Constituição e da lei federal. Devem, pois, ser tomados como exemplos do cuidado com que a norma jurídica deve ser interpretada e aplicada. A criação de requisitos recursais à margem da lei definitivamente não corresponde ao papel que deve ser desempenhado pelos tribunais. Esse, a meu ver, é o maior problema da jurisprudência defensiva. Os tribunais — e, no que respeita ao tema, especialmente os tribunais superiores — devem atuar com retidão, ao aplicar a lei. A criação de “entraves e pretextos” não previstos na norma jurídica “para impedir a chegada e o conhecimento de recursos” mancha a imagem daqueles tribunais que deveriam servir de guias na interpretação da própria lei.
De lege ferenda, duas considerações devem ser feitas, a respeito do tema.
Tem-se, de um lado, o projeto do novo Código de Processo Civil, que contém uma série de disposições tendentes a simplificar procedimentos hoje excessivamente burocráticos. Alguns exemplos:
Contra a exigência de ratificação do Recurso Extraordinário e/ou Especial interposto antes da oposição de Embargos de Declaração pela outra parte (Súmula 418 do Superior Tribunal de Justiça), estabelece o projeto que “se os embargos de declaração forem rejeitados ou não alterarem a conclusão do julgamento anterior, o recurso interposto pela outra parte, antes da publicação do julgamento dos embargos de declaração, será processado e julgado independentemente de ratificação” (artigo 1.039, parágrafo 2º, na versão da Câmara dos Deputados, correspondente ao artigo 980, parágrafo 3º, da versão do Senado).
Em direção contrária à orientação segundo a qual é intempestivo o ato praticado antes da publicação da intimação, prevê o projeto que “será considerado tempestivo o ato praticado antes do termo inicial do prazo” (artigo 218, parágrafo 4º, na versão da Câmara, correspondente ao artigo 186, parágrafo 1º, na versão do Senado).
Para os casos em que os tribunais superiores controvertem quanto a tratar-se de constitucional ou federal a questão de direito suscitada na decisão recorrida, o projeto prevê a possibilidade de conversão do Recurso Extraordinário em Recurso Especial, ou vice-versa. Na versão do projeto aprovado no Senado, estabelecem os artigos 986 e 987: “Se o relator, no Superior Tribunal de Justiça, entender que o recurso especial versa sobre questão constitucional, deverá conceder prazo de quinze dias para que o recorrente deduza as razões que revelem e existência de repercussão geral, remetendo, em seguida, os autos ao Supremo Tribunal Federal, que procederá à sua admissibilidade, ou o devolverá ao Superior Tribunal de Justiça, por decisão irrecorrível”; “Se o relator, no Supremo Tribunal Federal, entender que o recurso extraordinário versa sobre questão legal, sendo indireta a ofensa à Constituição da República, os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento, por decisão irrecorrível”. Tais disposições correspondem aos artigos 1.045 e 1.046, na versão do projeto em trâmite na Câmara dos Deputados.
Quanto à caracterização do prequestionamento, é conhecida a divergência entre as orientações adotadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, aquele admitindo, este rejeitando o denominado “prequestionamento ficto”. O projeto opta por caminho menos formalista, ao dispor que “consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante pleiteou, para fins de prequestionamento, ainda que os embargos de declaração não sejam admitidos, caso o tribunal superior considere existentes omissão, contradição ou obscuridade” (artigo 979 na versão do Senado; correspondente ao artigo 1.038 na versão da Câmara dos Deputados).
Por fim, caso se esteja diante de requisito cuja ausência não seja suprida em razão de uma das soluções acima referidas, prevê o projeto que “quando o recurso tempestivo contiver defeito formal que não se repute grave, o Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal poderão desconsiderar o vício, ou mandar saná-lo, julgando o mérito” (artigo 983, artigo 2º, na versão do Senado, correspondente ao artigo 1.042, parágrafo 3º, na versão da Câmara dos Deputados).
Tais soluções, somadas a outras previstas no projeto de novo CPC, tendem a permitir que se concretizem as garantias mínimas do Processo Civil moderno. Esse propósito, creio, não é utópico, no sentido de algo irrealizável. Penso que temos condições de trabalhar para que o sistema jurídico e as instituições que o operam melhorem, e, definitivamente, a estratégia imposta pela jurisprudência defensiva, além de não se sustentar no sistema jurídico, não torna melhores aqueles que a operam. Tratando do termo “sustentabilidade”, Mitchell Joachim disse que a expressão não seria evocativa o suficiente. E exemplificou: “Você não quer que seu casamento seja ‘sustentável’. Você quer estar evoluindo, inspirando, aprendendo”. Embora dirigida à temática do meio ambiente, a crítica chama a atenção para um modo de pensar que é bastante difundido, entre nós. Criar “entraves e pretextos” para que processos não cheguem à Justiça não torna nossa Justiça melhor, nem evita sua piora qualitativa: apenas torna-a uma Justiça com menos processos. Uma Justiça sustentada apenas em números não é, ipso facto, uma boa Justiça.
Há, também de lege ferenda, outro aspecto que desejo analisar, mas que ficará para uma das próximas colunas. Trata-se da Proposta de Emenda Constitucional, ora em trâmite no Congresso Nacional, que cria o requisito da relevância da questão federal para o Recurso Especial. Tal requisito, segundo penso, não é condizente com a missão constitucional do Superior Tribunal de Justiça.
Doravante, aqui na ConJur, na coluna Processo Novo, passaremos a examinar os aspectos que consideramos mais relevantes e que maior repercussão devem ter no dia a dia daqueles que atuam no foro. Dúvidas e sugestões a respeito de temas poderão ser enviadas por e-mail.
Até a próxima semana!
José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o noTwitter, no Facebook e em seu blog.
Revista Consultor Jurídico, 29 de julho de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário