terça-feira, 19 de abril de 2016

"Brasil está acabando com sistema de freios e contrapesos dos poderes"




Por Giselle Souza


No dia 17 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência e passou a admitir a prisão de réus condenados em segunda instância. Uma semana depois um desembargador do Rio de Janeiro, ao manter a condenação de um réu, sugeriu: “Vamos pedir a expedição do mandado de prisão contra essa pessoa tendo em vista a decisão do Supremo”.

O episódio, no qual o magistrado tentou aplicar uma decisão que sequer era vinculante e mal tinha sido tomada pelo STF causou perplexidade a quem acompanhava a sessão, relata o advogado Rodrigo Brocchi — que presenciou a cena. Ele conta que outro julgador “mais iluminado” divergiu e o mandado acabou não sendo expedido.

Brocchi, que atua como advogado de defesa na operação “lava jato”, vê com preocupação as recentes mudanças no entendimento dos tribunais, feitas a pretexto de tornar mais efetivas as punições. Para o advogado, muitas mudanças representam um verdadeiro atropelo às garantias da Constituição.

Ele destaca como exemplo disso outra decisão do STF: a que permitiu órgãos da administração tributária pedir aos bancos informações sigilosas de contribuintes, sem a necessidade de autorização judicial.

“O procedimento é uma coisa muito importante no Estado Democrático de Direito. Sem ele, acabamos na história de que os fins justificam os meios, punindo-se da forma que quiser. É uma coisa maquiavélica”, alerta.

Leia a entrevista:

ConJur — O que o senhor achou da decisão do Supremo Tribunal Federal que autorizou a prisão a partir da decisão de segunda instância?
Rodrigo Brocchi — A Constituição não dá margem para interpretação: a presunção de inocência dura até o trânsito em julgado da decisão judicial. Se a execução de pena tem início antes do julgamento dos recursos nas cortes superiores, não houve o trânsito em julgado, então está a se violar uma norma constitucional.

ConJur — O senhor acha que o atual momento político e as denúncias da operação “lava jato” contribuíram para essa decisão?
Rodrigo Brocchi — Acho que não só a “lava jato”, mas a crise atual, com o suposto envolvimento de pessoas importantes da República, o que tem gerado o pleito da sociedade pela prisão daqueles, em tese, teriam praticado qualquer conduta criminosa. Acho que o Supremo vem refletindo esse apelo popular, o que é errado. Para fazer um paralelo, na decisão de 2009, que dizia que a execução da pena só podia ter início após o trânsito em julgado, o relator disse que “se começarmos a acabar com os direitos e garantias fundamentais com a justificativa de que temos que por fim a impunidade no país, devemos ir todos às ruas com porretes e fazer justiça com as próprias mãos”. Temos que aparelhar o Poder Judiciário e melhorar o trâmite dos processos para que se acabe com essa história de que a impunidade é culpa dos bons advogados, os recursos e da prescrição. É preciso melhorar o Judiciário e manter em pé os direitos e garantias fundamentais.

ConJur — Como diminuir a sensação de impunidade e cumprir à Constituição ao mesmo tempo?
Rodrigo Brocchi — Acho que a gente tem que aparelhar as instituições; ter mais juízes, mais serventuários e mais pessoas de administração no Judiciário para que o processo tenha um trâmite mais célere.

ConJur — Na sua avaliação, essa decisão vai aumentar o número de pessoas dispostas a fazer delações?
Rodrigo Brocchi — Acho que sim. E acho também que isso não vai se refletir apenas na operação [“lava jato”]. Um exemplo concreto disso vi aqui no [Tribunal de Justiça do] Rio de Janeiro, em que terminado o julgamento de uma apelação, o desembargador pediu a palavra e disse: “agora temos que pedir que seja expedido do mandado de prisão contra essa pessoa por causa da decisão do Supremo, da semana passada”. Houve um pavor generalizado. Um desembargador mais iluminado pediu a palavra e disse que “não dava para ser assim, que a decisão não tinha efeito vinculante”. Aquele desembargador ficou emudecido e outro que compunha o quorum acompanhou este que fez a intervenção.

ConJur — A repercussão foi imediata.
RodrigoBrocchi — Acho que sim. Esse dia mostrou que a tendência do Judiciário de, quando houver condenação em segunda instância, é determinar a prisão das pessoas.

ConJur — Diante da atual conjuntura, o senhor acha que o Brasil está caminhando para um estado de justiçamento?
Rodrigo Brocchi — Sim, e para um estado de justiçamento preocupante. Estava falando outro dia com a minha sócia [Maria Cláudia Napolitano], que o Brasil está em um momento em que acabou-se com o sistema de freios e contrapesos de Montesquieu. O Executivo está sem poder, o Legislativo também, e o Judiciário está se sobrepondo aos outros dois. Não há um equilíbrio entre eles e isso é preocupante.

ConJur — Como o senhor avalia a posição do Ministério Público nessa conjuntura?
Rodrigo Brocchi — Acho que o Ministério Público está exercendo a função dele, da maneira que acha mais adequada, na parte da relação processual que busca a punição de quem ele entende ser o culpado.

ConJur — Sobre a operação “lava jato”, o senhor acha que realmente tem havido vazamento seletivo?
Rodrigo Brocchi — Não consigo dizer em concreto, mas a sensação é de que há um vazamento seletivo, até por estratégia de atuação.

ConJur — E qual é o prejuízo disso pra quem ainda está sendo julgado?
Rodrigo Brocchi— Pré-julgamento. As pessoas são julgadas pela imprensa antes de terem um julgamento judicial.

ConJur — Recentemente, um advogado de Mato Grosso do Sul questionou o vazamento da delação feita pela cliente dele, por temer pela integridade física dela. Essa é uma preocupação real?
Rodrigo Brocchi — Sim. A lei, ao falar de delações, é expressa sobre a manutenção do sigilo e as medidas de proteção para a pessoa que faz a delação. Na própria “lava jato”, diversos interrogatórios são feitos sem a filmagem da pessoa, mas simplesmente com o áudio, justamente para que não haja exposição.

ConJur — Como o senhor avalia a alteração na Lei Anticorrupção, no ano passado, que permite que as empresas envolvidas em corrupção voltem a contratar com o poder público?
Rodrigo Brocchi — O espírito da Lei Anticorrupção é punir, mas não obrigatoriamente por fim às empresas. Acabar com as grandes empreiteiras vai gerar um problema social enorme, seja por causa do desemprego ou da execução de obras para o Estado. Então as modificações são boas. A lei é clara: você é obrigado a ressarcir qualquer dano causado ao erário. A primeira das empresas a firmar o acordo de leniência pode ser isentada do pagamento de multa, mas não do pagamento do prejuízo. Temos que punir e tentar fazer com que elas [as empresas] criem regulamentos internos e normas de compliance, mas mantendo-as em pé. Extingui-las, só em última análise. Impossibilitá-las de contratar com o poder público é quase que decretar a quebra dessas companhias.

ConJur — O acordo de leniência não suspende a investigação criminal. Mesmo assim vale a pena para as empresas?
Rodrigo Brocchi — Vale a pena. Quem parte para um acordo de leniência tem noção de que certamente vai ser envolvido em algum procedimento criminal. Então, pesa o que é melhor: esperar o procedimento criminal chegar ou se apresentar, fazer um acordo de leniência e conseguir salvar seus executivos. Sim, porque a Lei Anticorrupção prevê expressamente que os executivos envolvidos nos atos de corrupção serão inseridos nesse acordo.

ConJur — Como o senhor avalia o ambiente da advocacia criminal atualmente?
Rodrigo Brocchi — Difícil. Saiu na ConJur e na Folha de S.Paulo uma carta dos velhos advogados para os jovens, que dizia “o momento é duro, mas a gente precisa continuar a brigar; vocês não passaram por isso, mas nós passamos na ditadura, e a gente tem que brigar não só pelos nossos clientes, mas para retomar o Estado Democrático de Direito e as garantias que vem sendo tolhidas”. Acho que a mentalidade hoje é essa: a realidade é dura, mas vamos continuar a brigar.

ConJur — Os advogados têm sido alvo de ataques?
Rodrigo Brocchi — A opinião pública é sempre ruim com relação aos advogados criminais. Confundem os advogados com os réus. Acham que eles não têm direito à defesa e que por defendermos alguém que supostamente cometeu um delito, cometemos os delitos juntos. Isso tudo é um círculo vicioso do momento que a gente vive.

ConJur — Como o senhor avalia a carta publicada pelos advogados que atuam na “lava jato”?
Rodrigo Brocchi — Os advogados têm que se manifestar, a OAB tem que se manifestar.

ConJur — A OAB tem sido omissa?
Rodrigo Brocchi — Omissa é um termo muito forte, mas tinha que ser mais presente na defesa das prerrogativas. No Rio, a OAB é muito atuante, mas eu estou falando de ir em defesa das prerrogativas, até de um modo genérico, pelas coisas que vem acontecendo.

ConJur — A “lava jato” tem uma quantidade histórica de colaborações premiadas. A que isso se deve?
Rodrigo Brocchi — Falando em tese, o que pode acontecer é que novas coisas são descobertas e contrapostas com o que foi dito antes. Então, verifica-se que a verdade não foi dita por completo ou falsearam a verdade.

ConJur — O que você achou da decisão que declarou constitucional a lei que autoriza a quebra do sigilo bancário pela administração tributária?
Rodrigo Brocchi — Um absurdo, mais uma quebra de garantia fundamental. É inacreditável o que o Supremo vem praticando. Eu li o voto do ministro Celso de Mello e ele aborda de forma bem clara e explícita o absurdo de se quebrar essa garantia e o benefício que se está dando a um terceiro, no caso o fisco, para exercer alguma poder de execução contra nós, contribuintes.

ConJur — O senhor acha que isso pode se refletir em um aumento de denúncias de lavagem de dinheiro?
Rodrigo Brocchi — Pode ser que sim. A gente não sabe quais os limites disso, qual será a interpretação que eles vão dar a partir do momento em que tiverem acesso às nossas contas. É complicado, pois isso serve para qualquer um, ainda mais em um país igual ao nosso, em que há um crime para qualquer ato praticado. Certamente é reflexo dessa decisão do STF [que autorizou a prisão a partir da condenação na segunda instância].

ConJur — Qual é o risco da execução começar com a decisão da segunda instância?
Rodrigo Brocchi — Começar a executar a pena e antes do fim de trânsito em julgado, por si só, é uma injustiça. O procedimento é uma coisa muito importante no Estado Democrático de Direito. Sem ele, acabamos na história de que os fins justificam os meios, punindo-se da forma que quiser. É uma coisa maquiavélica.

ConJur — Essa tem sido a lógica adotada nas investigações no Brasil?
Rodrigo Brocchi — Não é a regra, mas em alguns isso acontece. O Supremo vinha anulando operações em que tinham isso, de que os fins justificavam os meios. Mas agora passou a ser preocupante a vulnerabilidade dos direitos e das garantias fundamentais em função do momento que vivemos.

ConJur — Os advogados têm sido muito criticados por só atacarem a nulidade e pouco o mérito das denúncias. É o momento de se repensar como as defesas são conduzidas?
Rodrigo Brocchi — Não. O exercício da defesa pelo advogado tem que passar tanto pelo mérito quanto pelo respeito ao procedimento. Para isso, temos que usar de todas as cartas que a legislação permite. Não dá para valorar se a defesa está ou não combatendo o mérito de forma direta, se está ou não sendo efetiva. Se há alguma nulidade a ser atacada, tem que ser mostrada.

*Texto alterado às 10h30 de 18/4.

Giselle Souza é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 17 de abril de 2016, 9h37

É possível uma responsabilidade civil sem dano? (I)




Por Bruno Leonardo Câmara Carrá


Dizia-se com absoluta tranquilidade até certo tempo atrás: sem um dano, ninguém é civilmente responsável. De fato, dano e responsabilidade civil sempre foram postos sob uma perspectiva lógica de causa e consequência. Por sinal, tomando de empréstimo a teoria das quatro causas de Aristóteles, pode-se perfeitamente afirmar que o dano é a própria causa material da responsabilidade civil. Alguém ousava discordar? Justamente na França, cujo famoso Code Civil de 1804 foi o primeiro a entabular essa verdadeira regula [1] para o direito moderno, houve quem começasse, sim, a fazê-lo. O mais interessante: a ideia ganhou força, avançando teórica e doutrinariamente em vários rincões da Europa e fora dela. De lá chegou até aqui sob a já conhecida expressão responsabilidade civil sem dano.

Tendo tratado desse assunto, pois a simples contradição de termos que o envolve o converte em desafio, dou inicio hoje às minhas contribuições à coluna Direito Civil Atual, coordenada pela Rede de Direito Civil Contemporâneo, com o objetivo de dividir as considerações que já tenho feito sobre o tema, agora, nesse seleto espaço. Agradeço, portanto, aos ministros Luís Felipe Salomão, Antonio Carlos Ferreira e Humberto Martins, que, ao lado dos professores Ignacio Poveda, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antonio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva, coordenam esta coluna eletrônica.

Vejamos, então, o que realmente propõe essa nova doutrina, que surge na forma de Shiva ao prometer, com seu fogo regenerador, a refundação das próprias bases teóricas da responsabilidade civil para o mundo contemporâneo. Antecipo, contudo, que minha posição é francamente contrária a qualquer forma de responsabilidade civil sem dano. Pretendo, assim, refutar e não defender o argumento.

Há, de todo modo, algo bastante positivo nessa pretendida revisão copernicana da responsabilidade civil: chamar a atenção para a hipertrofia dos danos na atualidade e, com isso, fornecer instrumentos jurídicos aptos a controlar sua expansão. É que a ideia de uma responsabilidade sem dano foi motivada fundamentalmente pelo exponencial crescimento deles nas últimas décadas. A isso deve ser somado o aumento também de sua potencialidade lesiva, tornando a vida humana, em suas várias dimensões, presa dos incontáveis riscos.

Não é de hoje, com efeito, que o alargamento dos danos costuma preocupar os teóricos da responsabilidade civil. A evolução do sistema subjetivo para o objetivo, que teve lugar entre o final do Século XIX e começo do XX, em última análise, decorreu também da percepção de sua ocorrência cada vez mais frequente. Expansão a que se associa ainda o problema dos danos ditos anônimos, ou seja, o fato de que as lesões, desde a Revolução Industrial, passaram a ser produzidas não tanto pelo homem e sim pelas máquinas. [2] Essa situação foi agravada com a Revolução Tecnológica que lhe seguiu. Temos, agora, danos ainda mais complexos e insidiosos, como aqueles inerentes às questões ambientais.[3]

Por sinal, foram eles, os danos contra a natureza, que chamaram a atenção para a debacle das estruturas tradicionais de gestão dos riscos. Diante da evidência de que excedem os níveis de interesse pessoal e local, atingindo na maioria das vezes o coletivo, o transfronteiriço e o intergeracional, logo observou-se que as estruturas jurídicas ditas tradicionais não mais conseguiriam impedir a ocorrência do dano ambiental. Essa perda de compasso com a realidade — mais uma evidência de que os fatos andam sempre à frente do Direito — foi descrita por Ulrich Beck. A sociedade de risco (Risikogesellschaft) teorizada pelo sociólogo alemão recentemente falecido colocava em evidência o fato de que os perigos produzidos pela civilização contemporânea não podiam mais ser definidos no espaço ou no tempo: o risco é inevitável, globalizado, umbilicalmente ligado ao nosso modo atual de vida. De consequência, seu gerenciamento, considerando o modelo atual de causa e efeito passou a ser visto como obsoleto.

Nesse cenário, dois instrumentos passaram a protagonizar a gestão dos “novos danos”, a saber, os já bem conhecidos princípios da prevenção e da precaução. Ambos estabelecem mecanismos voltados ao evitar e não ao reparar, mas a ideia de precaução é particularmente mais ampla. A precaução como princípio surge na Alemanha (Vorsorgeprinzip). Vorsorge vem a ser mais do que um simples “dever de cuidado” (sorgfaltspflicht). Ele estabeleceu, assim, um paradigma novo para dar uma proteção ex ante, a interesses de ordem coletiva ou futuros. Um “simples” perigo, ainda que sem provas científicas conclusivas, já estaria a autorizar a adoção de medidas jurídicas para impedir que o próprio dano deixe de acontecer.

Estavam postas, assim, as bases para a criação de um modelo de responsabilidade civil diferente (?). O inédito grau de lesividade, que nos faz vítimas quotidianas de incontáveis fatores de risco, estaria a impor uma radical mudança na noção mesma de responsabilidade (?). A responsabilidade civil não poderia mais ficar limitada à ideia de uma reprimenda a posteriori na forma de reparação civil (?). Sim, foi o que começaram a responder certos autores. Seria imperioso, disseram, que a responsabilidade passasse a disciplinar ex ante os próprios eventos danosos, de forma a preveni-los e não apenas ressarci-los.

Surgia então um modelo de responsabilidade civil diferente, no qual a ameaça de uma dano já permitiria a aplicação de sanções jurídicas que passariam a ser por ela abrangidos. A questão é que tal proposta viria a desconfigura-la, deixando-a irreconhecível. Além de inúmeros inconvenientes práticos, aceita-la significaria na prática refundar ontologicamente essa tradicional disciplina, fazendo incluir nela elementos que histórica e epistemologicamente sempre lhe foram excluídos de maneira reiterada. Uma colchas de retalhos, mais próxima do monstro de Mary Shelley que propriamente desse que é reconhecidamente um dos mais belos e ricos campos do conhecimento jurídico. Disso falaremos melhor na colunas que se seguirão.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFMG).


1 A expressão regula, aqui, é empregada em seu sentido romanista, porém, claro, mais de modo provocativo do que em sentido estrito. Regula, sabemos, era um princípio cardial enunciado nas fontes por meio de uma fórmula curta, mas com força vinculativa inclusive. No conhecido fragmento que Paulo atribui a Sabino (D.50.17.1): “Regula est, quae rem quae est breviter enarrat. Non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est regula fiat.” O que quero dizer, sempre de modo provocativo, repito, foi que os arts. 1382 e 1383 do Código francês veicularam esse princípio cardial da responsabilidade civil e que, por lá, costuma-se anunciar, geralmente, em termos de san dommage subi par la victime, il n’y a pas de responsabilité.


2 O sarcasmo de Lawrence Friedman é invencível no ponto: “A Revolução Industrial adicionou um aumento apavorante nessa dimensão. As novas máquinas tinham uma maravilhosa e sem precedente capacidade para esmagar o corpo humano. As fábricas manufaturavam lesões e logo mortes tanto quanto seus produtos ordinários. Os negócios estavam rendendo lucros; isso era um tentador e lógico fundo por meio do qual os mortos e os lesionados, e suas familias, poderiam ser compensados.” (FRIEDMAN, Lawrence M. Simon. A history of american law. New York: Simon & Schuster, 2005, p. 350).


3 Anderson et alli v. Pacific Gas & Eletric demonstrou como podem ser lentas e ao mesmo tempo fatais as consequências da exposição a agentes químicos produzidos como refugo ou como insumo para a indústria. No caso específico, a contaminação pelo cromo hexavalente demoraria vinte anos para ser descoberta e ensejar a demanda indenizatória, já havendo muitas das vítimas sucumbido aos seus efeitos. O caso ficou famoso mundialmente após virar filme.



Bruno Leonardo Câmara Carrá é juiz federal em Recife (PE), doutor em Direito pela USP com estágio pós-doutoral na Scuola di Giurisprudenza da Universidade de Bolonha. Professor de Direito na Faculdade 7 de Setembro.

Revista Consultor Jurídico, 18 de abril de 2016, 8h00

Presidencialismo potencializa conflitos entre poderes, diz professor da USP



Por Sérgio Rodas


O sistema presidencialista potencializa os bloqueios institucionais, que ocorrem quando um conflito entre os poderes acaba por paralisar o país. Dessa forma, as soluções para contornar essa barreira acabam tendo constitucionalidade discutível, como aquelas baseadas em um estado de necessidade, ou representam uma quebra com as regras da Carta Magna, como golpes ou revoluções.

Essa é a visão do professor emérito de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, manifestada no IV Seminário Luso-Brasileiro de Direito, que ocorreu no fim de março em Lisboa.

Segundo o jurista, o problema é inerente à separação dos poderes e já havia sido previsto por pensadores como Montesquieu e Benjamin Constant. E isso é ainda mais ampliado no moderno Estado de Bem-Estar Social, que tem obrigação de prover, por exemplo, saúde, educação e segurança aos cidadãos.

Quem deve assegurar tais direitos em garantia é o Executivo. Contudo, suas ações devem respeitar as leis, o que confere ao Judiciário e, em maior grau, ao Legislativo, o poder de bloquear a atuação governamental, apontou Ferreira Filho. A situação se complica ainda mais no presidencialismo, pelo fato de o Executivo ter que obter e cativar maioria parlamentar, afirmou o professor, notando que um país parlamentarista resolve o bloqueio com a dissolução do governo e a convocação de novas eleições.

Conforme explicou o professor emérito da USP, o bloqueio institucional pode ocorrer em situações de emergência (que ameaçam o funcionamento do Estado, como guerras ou invasões) ou em crises econômicas. No primeiro caso, as constituições modernas preveem saídas como os estados de emergência e de sítio.

Porém, a segunda hipótese, que é consideravelmente mais frequente, não possui respostas constitucionais satisfatórias, destacou Ferreira Filho. Por isso, diversos países apelaram a soluções de legalidade duvidosa no século XX, como o New Deal de Franklin Roosevelt, que ajudou a tirar os EUA da Grande Depressão, mas foi declarado inconstitucional oito vezes entre 1934 e 1935.

Na opinião do constitucionalista, a dificuldade de lidar com crises econômicas acaba trazendo à tona uma visão distorcida e idealizada de regimes ditatoriais: “Em casos mais agudos, elas [crises econômicas] descambam em crises sociais. E, somadas a esta, geram perda de legitimidade do governo e, o que é pior, a descrença na democracia. Ensejam a admiração pelo autoritarismo eficiente. São ocasião senão causa de desordens, insurreições, golpes de Estado e revoluções”.

Porém, as soluções para superar essas crises no presidencialismo frequentemente violam a Constituição, ressalta o professor. A saída mais comum no Brasil é o impeachment, que é, a seu ver, um processo político que deve respeitar o devido processo legal.

O impeachment, entretanto, não é ágil o suficiente para solucionar tais momentos de instabilidade de forma eficaz. Por isso, Manoel Gonçalves Ferreira Filho defende a reforma do sistema político-eleitoral para inserir mecanismos mais aptos a resolver esses problemas, como o referendo revogatório ou a possibilidade de serem convocadas novas eleições.



Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 18 de abril de 2016, 19h13

segunda-feira, 11 de abril de 2016

ADI Questiona Dispositivos do Novo Código de Processo Civil




O governador do Rio de Janeiro ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5492, com pedido de medida liminar, contra dispositivos da Lei Federal 13.105/2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil. Para o estado, as inconstitucionalidades apontadas agridem valores fundamentais albergados pela Constituição da República. Alega que foram "claramente transgredidos os limites em que cabia ao legislador ordinário atuar".

Na ADI, o governo sustenta que nos artigos 15; 46, parágrafo 5º; 52; 242, parágrafo 3º; 535, parágrafo 3º, inciso II; 840, inciso I, e 1.035, parágrafo 3º, inciso III, do novo CPC, "o legislador federal incorreu em violação a componentes essenciais do pacto federativo, retratados nas competências legislativas dos estados-membros, em seus poderes de auto-organização e autoadministração ou mesmo na vedação à criação de preferências federativas".

Já nos demais artigos questionados (artigos 9º, parágrafo único, inciso II; 311, parágrafo único; 985, parágrafo 2º, e 1.040, inciso IV, e também no artigo 52, parágrafo único), o autor declara que foram desrespeitadas as garantias fundamentais do processo que balizam o devido processo legal, em especial a garantia do contraditório participativo.

Pacto federativo e devido processo legal

O governo estadual questiona a aplicação do CPC aos processos administrativos estaduais (artigo 15). Afirma na ADI que a imposição, por lei federal, de fonte normativa para o processo administrativo dos demais entes políticos ofende a autonomia federativa. Pede que seja dada interpretação conforme a Constituição à expressão "processos administrativos" do artigo, "para restringir sua incidência à órbita federal".

Quanto à opção de foro de domicílio do autor quando o Estado é réu (artigo 52, parágrafo único), a ADI sustenta que submeter os estados-membros e o Distrito Federal ao foro de domicílio do autor da demanda jurídica, pela mera vontade deste, "compromete a efetividade da garantia do contraditório, esvazia a Justiça estadual como componente da auto-organização federativa e dá margem ao abuso de direito no processo". Nesse ponto, o estado requer a declaração de inconstitucionalidade da expressão "domicílio do autor".

Para o governador, o foro de domicílio do réu na execução fiscal (artigo 46, parágrafo 5º) potencializa a guerra fiscal, além de minar a sustentabilidade financeira federativa e esvaziar a auto-organização dos estados-membros.

A respeito do enunciado no parágrafo 3º do artigo 242, ao estabelecer que a Administração estadual será citada sempre perante o órgão de Advocacia Pública responsável por sua representação judicial, o legislador, segundo a ADI, interfere diretamente na capacidade de autoadministração dos entes federativos. "Uma lei federal somente é apta a dispor sobre a organização da Administração Pública da União", afirma ao requerer a declaração de inconstitucionalidade da expressão "dos Estados, do DF, dos Municípios".

O governador pede também a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos que versam sobre a concessão liminar de tutela da evidência fundada em precedente vinculante (artigos 9º, parágrafo único, inciso II, e 311, parágrafo único). Em respeito ao contraditório, para o governador, somente a urgência justifica a postergação da oitiva do réu para decisão que causa agravo à sua esfera de interesses. Salientou ainda que não cabe à lei federal restringir a autonomia dos estados-membros na definição da instituição financeira responsável pelo recebimento e a administração dos depósitos judiciais pertinentes à Justiça Estadual (artigos 535, parágrafo 3º, inciso II, e 840, inciso I).

A submissão da Administração Pública à tese resultante de julgamentos de casos repetitivos, com o dever de fiscalizar a efetiva aplicação no campo dos serviços públicos (artigos 985, parágrafo 2º, e 1.040, inciso IV) ofende, de acordo com a ADI, a garantia do contraditório e o devido processo legal. Para o governo fluminense, deve-se atribuir ao enunciado interpretação conforme a Constituição no sentido de retirar qualquer grau de imperatividade e vinculação da Administração Pública para a "efetiva aplicação" da tese quando não tenha figurado como parte no procedimento de formação do precedente.

Por fim, destaca que o CPC estabelece, no artigo 1.035, parágrafo 3º, inciso III, a repercussão geral presumida quando declarada inconstitucional apenas lei federal. "A facilitação do acesso ao STF apenas quando em pauta atos normativos federais, excluindo da mesma proteção os estaduais, configura preferência federativa indevida, abuso de poder legislativo e quebra do dever de lealdade federativa", disse.

O governo pede a concessão de liminar a fim de suspender imediatamente os dispositivos impugnados e, no mérito, a procedência da ADI. "A entrada em vigor do novo código denota o quão irreparáveis e graves serão os danos que advirão da produção dos efeitos dos dispositivos impugnados", afirmou.

A ADI está sob a relatoria ministro Dias Toffoli.


Fonte: Supremo Tribunal Federal

Codificação do Direito Civil no século XXI: de volta para o futuro? (parte II)




Por Rodrigo Xavier Leonardo


Em nosso último escrito publicado no Direito Civil Atual, coluna da Rede de Pesquisas de Direito Civil Contemporâneo na ConJur, propusemos uma reflexão acerca da atualidade da profecia da “era da descodificação”, desafiada pelo advento, na América Latina e na Europa, de novos códigos de Direito Civil.

Ao final, deixamos a promessa de tecer algumas linhas acerca do Code Napoleón, recentemente alterado pela Ordonnance 2016-131, aprovada na recentíssima data de 10 de fevereiro de 2016, que encaminhou uma ampla reforma nas matérias do Direito dos Contratos, do regime geral e da prova das obrigações.

Naquela oportunidade, para facilitar a compreensão da magnitude da transformação no Code, reportamos que a Ordonnance 2016-131, entre renumerações, abrogações, modificações e a criação de novos artigos de lei, promoverá aproximadamente 512 alterações no seio daquele que, desde o século XIX, foi o código mais influente na Europa e na América Latina.

Essas reformas do Código Civil, por sua vez, projetaram mudanças em pelo menos 85 outras leis francesas (em especial no Código Comercial e no Código do Consumo).

Tudo isso ocorreu no Code, que ostenta um simbolismo que não se pode menosprezar, afinal de contas, trata-se do código que melhor preenche de significado a “ideia código”, fruto do esforço, centrado no príncipe, de ruptura com o ancién regime para a criação de um novo Direito no amanhecer da modernidade jurídica.

Foi no Code Civil que se verificou “a presunção do primeiro autêntico codificador da história jurídica europeia — de romper com o passado por aquilo que o passado representava sob o aspecto da visão do ‘jurídico’ e da posição do ‘jurídico’ no ‘social’ e no ‘político’. Sob esse perfil, o ‘código’ expressa a forte mentalidade forjada no grande laboratório iluminista e se encontra – enquanto tal — em áspera polêmica com o passado”[1].

Após mais de 200 anos de vigência, o Direito Civil francês já não era propriamente uma projeção do texto do Code, em especial em matéria de obrigações e contratos.

Alguns autores, como Larroumet, chegaram a escrever que as alterações feitas pelos tribunais ao longo desses dois séculos foram tão severas que, de fato, não seria mais possível compreender o Direito das Obrigações e dos Contratos pela leitura dos artigos do Code: a jurisprudência francesa já teria se tornado, nessas disciplinas, a fonte principal[2].

Outros países europeus já haviam modificado codificações mais recentes que a francesa, e os esforços teóricos e políticos para uma reflexão acerca de um Direito europeu dos contratos impulsionavam mudanças.

O que fazer? Pulverizar a legislação em microssistemas? Seccionar o Direito das Obrigações e dos Contratos do Code? A opção francesa foi a de reafirmação do Code, mediante uma ampla reforma.

Esse é o contexto do advento da Ordonnance 2016-131, que entrará em vigor a partir de 1º de outubro de 2016.

Em uma rápida passagem pelas alterações em tema de Direito dos Contratos, pedimos permissão para sublinhar ao leitor algumas das novidades: a) regras específicas a respeito dos contratos concluídos por via eletrônica (artigos 1.125 a 1.127-6 e 1.174 a 1.177); b) alterações no regime de invalidades (artigo 1.178 a 1.185); c) disposições acerca de circunstâncias imprevisíveis supervenientes (artigo 1.195); d) modificações a respeito da denúncia e da resilição nos contratos (artigos 1.210 a 1.215); e) ampla revisão na disciplina da inexecução dos contratos (artigos 1.219 a 1.231-7), entre outros.

Os lindes deste escrito naturalmente são estreitos para uma análise minudente dessa reforma do Code Napoleón. No bojo de tantas sensíveis alterações, pedimos permissão para sublinhar a modificação dos quatros artigos que, originalmente, inseriram no Code a “causa” como um requisito de validade das convenções.

Fizemos essa escolha por diversas razões, dentre elas o fato da “teoria da causa”, nas obrigações e contratos, espelhar muito da cultura francesa, do moralismo no Direito das Obrigações e dos Contratos. Uma revisão da teoria da causa, portanto, além do aspecto técnico, ostenta uma relevância ideológica.

Eis o texto dos artigos 1.108, 1.131, 1.132 e 1.133 do Código Napoleão, adiante reproduzidos em vernáculo, em sua redação original:

“Art. 1.108. Quatro condições são essenciais para a validade de uma convenção: o consentimento da parte que se obriga; a sua capacidade de contratar; um objeto certo que forma a matéria do compromisso; uma causa lícita na obrigação”.

“Art. 1.131. A obrigação sem causa, ou com uma falsa causa, ou com uma causa ilícita, não pode ter qualquer efeito”.

“Art. 1.132. A convenção não deixa de ser válida embora a causa não seja expressa”.

“Art. 1.133. A causa é ilícita quando for proibida por Lei, quando for contrária aos bons costumes ou à ordem pública”.

Esses trechos do Código Napoleão, desde as suas origens, foram objeto de acirradas polêmicas.

Em rápida síntese (e, por isso, perigosa), destacamos a teorização predecessora ao código, encontrada em Domat e Pothier, passando pelas explicações subjetivas do texto legislado (por vezes confundindo a causa com os motivos), encontrando graves obstáculos no movimento anticausalista (sobretudo em M. Planiol), até a estabilização encontrada na ideia de “propósito específico”, de Henri Capitant, para, no ano de 2006, que está tão próximo a nós, alcançarmos a seminal tese de J. Ghestin[3].

A recente obra de Ghestin, inclusive, procurou influenciar diretamente os projetos de reforma do Code Napoleón para rever a teoria da causa no Direito Civil francês contemporâneo[4].

O Direito Civil brasileiro, em sua história, não ficou imune a esse intenso movimento teórico, sobretudo em virtude de autores que, animados pela literatura francesa, procuraram transpor as teorias francesas para o solo nacional.

A esse respeito, Pontes de Miranda, com olhos no Código Civil brasileiro de 1916, advertiu que “os livros franceses que expõem o artigo 1.131 do Código Civil francês, sem o criticar, são perigosos para quem lhes busca elementos para a interpretação do Direito brasileiro, ou de outro sistema jurídico que não tenha sido cópia do francês. Não no temos; nem fomos vítima do grave equívoco histórico que foi, para o Direito francês, o artigo 1.131. O que se chama teoria da causa não é a afirmação de que existe causa, ou de que existem negócios jurídicos causais, e sim que se teceu, com os artigos 1.031, 1.108 e 1.133 do Código Civil francês, uma das mais absurdas teorias de que jamais o Direito sofreu as consequências”[5].

Clóvis Beviláqua, autor do anteprojeto do Código Civil brasileiro de 1916, foi além. Mais que sustentar o equívoco do legislador francês, chegou a sustentar que uma das origens do imbróglio, que os brasileiros deveriam se distanciar, estaria em um atropelo terminológico entre chose (coisa) e causae (causa): “A causa dos contratos, não declarada como razão ou condição deles, deixou de ser considerada pelo Código Civil. A doutrina já fez justiça a esse requisito, que parece ter entrado no Código Civil francês por um equívoco (...) Aludi ao que se refere Huc, em seu Commentaire, sobre a expressão sans cose de Beaumanoir, que supuseram equivaler a sans cause, quando o velho jurista pretendia apenas dizer sans chose, sem objeto. E apreciei o apoio que Domat, o criador da teoria da causa, pretendeu encontrar no Direito Romano. Certamente nas fontes romanas se fala em causa (...) Mas o ponto de vista dos romanos era muito diferente. Desses mesmos textos se vê que os romanos concebiam obrigações sem causa: qui promist sine causa... qui sine causa obligantur. O pensamento, que nesses fragmentos sobressai é o do enriquecimento ilegítimo. Neles não se cogita da formação do contrato. Como bem diz Planiol, a noção de causa é perfeitamente inútil para a teoria dos atos jurídicos”[6].

Pois bem. A partir de 1º de outubro de 2016, nenhum desses artigos do Código dos Franceses — objeto das severas restrições de Beviláqua e Pontes de Miranda —, permanecerá em vigor. A causa, como requisito de validade das convenções, foi extirpada do Code[7].

O legislador francês, ao abandonar o original regramento acerca da causa, buscou reforçar os vínculos contratuais e a segurança jurídica nas operações econômicas.

Com isso, estaria findo o problema da causa nos contratos? Provavelmente, não.

A questão da causa, antes de uma opção de técnica legislativa, é um problema filosófico. Em Teoria do Direito, conforme explicava o professor Antônio Junqueira de Azevedo, o termo enseja pelo menos cinco significados diferentes, com maior ou menor impacto, no plano da validade ou no plano da eficácia. Esses impactos evidentemente serão diferentes diante de um regramento explícito no Código Civil[8]. O silêncio dos códigos, todavia, não afasta o problema da causa.

A opção de Beviláqua de negar à causa a qualidade de requisito explícito de validade dos contratos no Código Civil de 1916, reafirmada e sofisticada no Código Civil de 2002 (por exemplo, pelo artigo 166, III, em substituição ao artigo 90 do Código revogado), nunca afastou o problema da causa do Direito Civil brasileiro.

Basta memorar que alguns dos principais civilistas do século XX dedicaram estudos específicos acerca do tema. Sublinhamos, sem prejuízo de outros, Torquato Castro (da causa no contrato)[9], Couto e Silva (Teoria da Causa no Direito Privado)[10], além das já citadas obras de Junqueira de Azevedo[11] (que, por sua vez, no século XXI, deram frutos em duas teses de doutorado por ele orientadas que, hoje, em Direito nacional, correspondem aos dois livros contemporâneos mais importantes acerca do tema. Em ordem cronológica, citamos a reciprocidade e contrato, de Luiz Renato Ferreira da Silva[12], e a doação com encargo e causa contratual, de autoria de Luciano de Camargo Penteado[13].

A reforma do Código Civil dos franceses faz com que os privatistas novamente voltem os seus olhos para aquela nação europeia que, mais uma vez, presenteia a cultura jurídica mundial com o resultado de um labor sofisticado. Nada de reformas de afogadilho. Certamente, a partir de 1º de outubro de 2016, o Code será menos Napoléon. Mais de dois séculos se passaram... Continuará a ser o código do cidadão francês, agora no século XXI.

Muito dessa reforma no Code se deve a uma atualização a partir da relevante criação jurisprudencial em tema de obrigações e contratos.

Em tema de “teoria da causa”, todavia, podemos encontrar algo além.

No ano de 2012, Denis Mazeaud, ao prefaciar uma nova edição do clássico francês De la cause des obligations, de autoria de Henri Capitant, forneceu algumas pistas para melhor compreender o significado de uma alteração legislativa no tema da causa no Direito dos Contratos e das Obrigações[14].

Segundo Mazeaud — que atualmente preside a Association Henri Capitant des amis de la culture juridique française —, na reforma do Code Civil, duas vertentes decidiriam o futuro da “teoria da causa” na França contemporânea.

De um lado, as correntes adeptas do liberalismo contratual, que sustentavam a suficiência da teoria dos defeitos no consentimento para a proteção dos interesses privados dos contratantes. Para os casos envolvendo vulneráveis, outros meios reconhecidos pela Corte de Cassação seriam mais eficazes. O mesmo poder-se-ia dizer a respeito dos contratos com disposições contrárias à ordem pública e aos bons costumes, nos quais a “causa”, como requisito de validade, seria supérflua.

Por outro lado, as correntes que defendiam a tradição do Direito francês e, também, uma concepção moralista do contrato, continuaram a defender a manutenção da teoria da causa no regramento das obrigações e contratos, ainda que com modificações em relação à redação original no Code.

No que diz respeito à teoria da causa, no embate entre as duas correntes retratadas por Mazoud, percebe-se que a vertente liberal prevaleceu. Retornamos à questão: estaria o problema da causa superado em França? Provavelmente não. A Justiça e a moralidade nos contratos, que a teoria da causa francesa pretendia enfrentar, não desaparecem com a supressão de uma palavra. O problema é reformulado.

Pede-se permissão ao leitor, por fim, para fazer uma singela homenagem. O autor gostaria de dedicar este escrito ao professor Luciano de Camargo Penteado, dileto amigo que guardou uma significativa parte de sua vida ao estudo da Teoria da Causa e nos deixou, ainda muito jovem, no ano de 2015.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT)..



[1] GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis : Boiteux, 2004, p. 106-107.
[2] LARROUMET, Christian. Droit Civil: Les obligations, le contrat. Paris : Economica, 2007, p. 14.
[3] GHESTIN, Jacques. Cause de l`engagement et validité du contrat. Paris: L.G.F.J, 2006.
[4] Mencionamos, neste sentido, as propostas de alterações legislativas apresentadas por GHESTIN, Jacques. Cause de l'engagement et validité du contrat. Paris : L.G.F.J, 2006, p. 903 e seguintes.
[5] PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t.3. Atualizado por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt. São Paulo: RT, 2012, p. 141.
[6] BEVILÁQUA, Clóvis. Comentários ao Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro : Francisco Alves , 1959, p.271.
[7] Corresponderá ao artigo 1.108, o artigo 1.128: “Sont nécessaires à la validité d'un contrat: 1° Le consentement des parties; 2° Leur capacité de contracter; 3° Un contenu licite et certain”. O sentido dos artigos 1.131, 1.132 e 1.133 foi completamente alterado e, na mesma posição, encontram-se regras a respeito dos vícios de consentimento, sem qualquer menção à causa.
[8] JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio jurídico e declaração negocial, 1986, p. 121 e seguintes e JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 2002, p.152.
[9] CASTRO, Torquato. Da causa no contrato. Recife: Imprensa Universitária, 1966.
[10] COUTO E SILVA, Clóvis. Teoria da causa no Direito Privado. In: FRADERA, Véra. O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 57.
[11] JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio jurídico e declaração negocial, 1986, p. 121 e seguintes e JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 152.
[12] FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. Reciprocidade e contrato. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
[13] PENTEADO, Luciano de Camargo. Doação com encargo e causa contratual. 2ª ed. São Paulo: RT, 2012.
[14] MAZEAUD, Denis. Avant-propos. In: CAPITANT, Henri. De la cause des obligations. Paris : Éditions La Mémoire du Droit, 2012, p.II-III.


Rodrigo Xavier Leonardo é advogado e árbitro, doutor em Direito pela USP, professor de Direito Civil nos cursos de graduação e pós-graduação na UFPR e superintende regional (PR) do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem – Conima.

Revista Consultor Jurídico, 11 de abril de 2016, 8h00

Direito das Sucessões e tutela de evidência no novo CPC






Por Rodrigo da Cunha Pereira


A sucessão hereditária é um natural complemento do Direito de Propriedade que se projeta post mortem, ou seja, é também uma das formas de transmissão de propriedade, um consectário lógico do conceito de propriedade privada no sistema capitalista. O conjunto de bens e direitos deixados por uma pessoa que morreu denomina-se herança e engloba todo o patrimônio do de cujus, ativos e passivos. A sucessão hereditária pode ser legítima (em virtude da lei) ou testamentária. Seja como for, a maneira de se transmiti-la é sempre pela via de inventário, judicial ou extrajudicial. As regras sobre sucessões encontram-se no Código Civil, mas as regras sobre a forma de sua transmissão, isto é, como se faz inventário e partilha estão no Código de Processo Civil. O processo de inventário é também um importante ritual de passagem, que além de resolver questões práticas ajuda na elaboração do luto (cf. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de Direito de Família e Sucessões – Ilustrado. Ed. Saraiva, p. 415 e 626).

O CPC-2015 tratou de inventário e partilha nos capítulos VI, VII, VIII e IX, que vão dos artigos 610 a 692. Estabeleceu regras para o cumprimento do testamento e codicilos (artigos 735 a 732), dos bens de ausentes e das coisas vagas (artigos 744 a 746). Ou seja, são quase cem artigos, muito semelhantes ao CPC-1973, que foram muito tímidos em relação aos procedimentos da sucessão hereditária, que precisava de regras mais eficazes para ajudar a encurtar o longo prazo dos processos judiciais dessa natureza.

Os inventários e as partilhas, com ou sem testamento, com muitos ou poucos bens, continuam sendo um problema para os herdeiros e também para os advogados, pois sempre somos responsabilizados pela sua morosidade. Mesmo consensual e simples, duram em média um ano. Se litigioso, de dez a 20 anos. Uma eternidade! Certamente o CPC-2015, mesmo que quisesse, não traria uma fórmula mágica para esse inadmissível imbróglio processual. No entanto, perdeu uma boa oportunidade de melhorar em vários aspectos. Por exemplo, ao incorporar em seu texto a Lei 11.441/2007, que já autorizava inventários extrajudiciais, poderia ter ampliado o seu leque para permitir que, mesmo com testamento, o inventário poderia ser feito em cartório, se as partes fossem todas capazes e estiverem de acordo. Teria sido um pequeno avanço, mas ajudaria a desafogar o Judiciário. Há esperança de que isso aconteça se o Conselho Nacional de Justiça tiver a coragem de estabelecer atos normativos que viabilizem tal prática, como já requerido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e entidades representativas de cartórios. Simplificaria bastante se o testamento, uma vez aprovado pelo Judiciário, pudesse ser feito em cartório.

Embora o CPC não seja o instrumento mais adequado para fazer alterações e evoluções das disposições de última vontade, poderia ter simplificado o procedimento de aprovação de testamentos. O CPC-2015 tratou em três artigos de testamentos (735,736 e 737), praticamente repetindo o que dizia o CPC-1973. Aliás, o testamento público não deveria precisar de aprovação do Judiciário, já que é lavrado em Cartório de Notas, que tem fé pública. Deveriam ser levados ao Judiciário apenas os testamentos públicos ou particulares, se fosse levantada alguma dúvida ou questionamento sobre eles. Ou seja, deveriam ser considerados válidos até que se prove o contrário. Porém, em termos de testamento, temos ainda muito a avançar. Tudo seria muito mais simples se a tecnologia fosse mais utilizada. Se as principais dúvidas que surgem sobre o testamento giram em torno de seu conteúdo, e se ele realmente traduz a última vontade do testador, deveriam ser ampliadas suas formas para ser possível o videotestamento. Nada melhor, mais autêntico e verdadeiro para traduzir a vontade de alguém do que expressá-la em áudio e vídeo. Afinal, a tecnologia está aí para isso, e o CPC-2015 poderia tê-la melhor absorvido.

Inventário é o procedimento obrigatório para atribuição legal aos sucessores do falecido, que se conclui com a respectiva partilha dos bens hereditários. O CPC-2015 manteve o prazo de dois meses (artigo 611) para sua instauração e finalização em 12 meses. Na prática, dificilmente isso acontece. Qualquer questionamento em um processo de inventário o faz durar muitos e muitos anos. E o prazo para o seu início não tem uma sanção, a não serem os tributos que aumentam significativamente na medida em que o tempo passa, de acordo com as normas de cada estado da federação. Não há mais menção a abertura do inventário de ofício, ou seja, pelo próprio juiz, como era previsto no CPC-1973 (artigo 989); o leque de inventariantes ampliou e pode ser inclusive o herdeiro menor, por seu representante legal (artigo 617).

E agora, o inventariante pode ser removido de ofício, e não apenas a requerimento da parte interessada como era antes (artigo 622). O rito procedimental continua sendo o comum (artigo 611 e seguintes) e a única novidade está no parágrafo 2° do artigo 620, que facilitou um pouco a forma de prestar as primeiras declarações ao estabelecer que elas “podem ser prestadas mediante petição, firmada por procurador com poderes especiais, à qual o termo se reportará”. Manteve-se também o rito sumário, isto é, o arrolamento sumário (artigo 659 e seguintes) para bens de valor até mil salários mínimos (artigo 664), quando todos os herdeiros são capazes e estão de acordo. Deveria incluir-se nessa regra os incapazes, pois esses, muito mais do que herdeiros capazes, precisam de celeridade, e a jurisprudência já vinha autorizando o rito do arrolamento sumário com a presença de incapazes. A cumulação de inventários teve uma pequena modificação ao estabelecer no parágrafo único do artigo 672 a discricionariedade do juiz para ampliar o leque dos casos de cumulação de inventários, além dos expressamente previstos, ou seja, heranças deixadas pelos dois cônjuges ou companheiros (artigo 672, I e II).

Inventário e partilha é um dos procedimentos mais simples e ao mesmo tempo um dos mais engessados. Avaliações, pagamento de impostos, perícias, divergências entre herdeiros, inclusive sobre qual quinhão ficará para quem, faz levar anos e às vezes décadas de litígio. E o CPC-2015 não trouxe solução para isso, e nem poderia, até porque as questões que envolvem os inventários não são apenas da ordem da objetividade. A maior dificuldade está na subjetividade que permeia aquela relação de amor e ódio. No entanto, trouxe uma inovação importante ao estabelecer em seu artigo 647 a possibilidade de o juiz deferir antecipadamente a qualquer herdeiro o exercício dos direitos de usufruir de determinado bem, com a condição de que, ao término do inventário, tal bem integre a cota desse herdeiro. Trata-se, portanto, de uma tutela de evidência (artigo 294), que é uma novidade em matéria de processo de inventário. É uma tutela antecipada, que não está atrelada ao periculum in mora, mas diante de um direito material que se mostra evidente. Essa é a principal inovação processual para inventários e partilhas. Pode ser uma esperança de desatar alguns nós nesses eternos e inexplicáveis processos litigiosos em que, naturalmente, a parte menos favorecida é sempre a mais prejudicada.

É esperança também para a diminuição do tempo do litígio, se os advogados atentarem para a regra geral do CPC-2015 que criou “os negócios jurídicos processuais” (artigo 190 e 191), possibilitando aos sujeitos processuais flexibilizarem o procedimento, com diminuição de prazos, fazendo modificação na forma e no conteúdo do ato processual anterior, estabelecerem regras particulares para aquele processo. Além disso, se as partes tiverem o bom senso e permitirem que o espírito da mediação e conciliação pairem sobre elas, a esperança da solução do litígio ficará ainda maior.



Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.

Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2016, 8h00

"Possibilidade de juiz ponderar normas consagra o irracionalismo no novo CPC"




Por Sérgio Rodas


A ciência processual brasileira precisa libertar-se da influência excessiva do Direito italiano e abrir-se mais às influências jurídicas de outros países. Somente assim as leis evoluirão e o processo passará a funcionar bem no Brasil.

Essa é a opinião do juiz federal Eduardo José da Fonseca Costa e um dos objetivos da recém-fundada Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro), presidida por ele. A instituição foi fundada para renovar as formas de abordagem do Direito Processual, em todos os seus ramos. Dessa maneira, seus membros estudam novas abordagens da matéria, que incluem enfoques filosóficos, psicológicos, sociológicos e linguísticos, muitas vezes baseados em experiências internacionais.

Alguns desses estudos visam descobrir quais aspectos fazem com que o juiz, inconscientemente, perca a imparcialidade. Já foi descoberto, por exemplo, que o juiz que conduz a instrução é influenciado por ela, e acaba julgando o caso com base nessa experiência. Para mitigar essa influência na formação de convicção do magistrado, Costa defende que julgadores diferentes cuidem da instrução, do julgamento de liminar e da apreciação do mérito.

Infelizmente, o novo Código de Processo Civil não levou essas descobertas em conta, avalia o presidente da ABDPro. Ele afirma que a norma tem pontos positivos, como a obrigação de os juízes fundamentarem suas decisões, mas já entra em vigor “natimorto” em vários pontos, como o sistema recursal, o qual afirma ser pior do que o código anterior.

“Eles extinguiram os embargos infringentes, é verdade, mas transformaram-nos em um modelo oficioso, ou seja, qualquer decisão não unânime em órgão colegiado obrigatoriamente leva à convocação de outros julgadores. E houve um aumento do leque de aplicação dos recursos pré-existentes. O sistema recursal brasileiro no CPC de 2015 não difere muito do que vigia em Portugal medieval. Todos os recursos do novo CPC têm origem na baixa Idade Média do Direito Lusitano. Nós não evoluímos em matéria recursal”, analisa.

O juiz federal também critica a possibilidade de o magistrado ponderar normas, e não só princípios, o que garante ser “uma das coisas mais assustadoras que eu já vi na história legislativa brasileira”. “Ou nós interpretamos normas de uma maneira metonímica, tomando o gênero pela sua espécie, que é o princípio, ou nós vamos consagrar de uma vez por todas o voluntarismo, o decisionismo, o irracionalismo, e algumas animalidades ancestrais que nós achávamos que a civilização liberal já havia enterrado”.

Essas falhas do novo CPC, a seu ver, se explicam pela perda do protagonismo dos profissionais do Direito na elaboração de leis — uma vez que a norma foi, basicamente, uma autorregulação. Segundo Costa, os trabalhadores da área viraram as costas para a sociedade e passaram a se concentrar em minudências formais. Com isso, eles deixaram de lado as abordagens de outras ciências que poderiam promover um aprimoramento legislativo.

Em entrevista à ConJur, Eduardo José da Fonseca Costa também discutiu as propostas de implementação no Brasil de um processo penal no modelo norte-americano e apontou que o surgimento de regras procedimentais específicas para campos como Direito Constitucional e Direito Tributário demonstra que o CPC deixou de atender às necessidades dessas áreas.

Leia a entrevista:

ConJur — O Brasil possui uma tradição processual própria ou ela é apenas importada de outros países?
Eduardo José da Fonseca Costa — É uma tradição bastante colonizada, e uma colonização parcial, porque nós não temos um copismo da doutrina estrangeira e muito menos um copismo da doutrina da Europa Ocidental, nós temos um copismo, grosso modo, da doutrina italiana. Isso por contingências históricas da chamada Escola Paulista de Direito, que recebeu a influência de grandes autores, especialmente o Enrico Tulio Liebman. Tudo isso foi gerando certa aversão da Escola Paulista de Direito a autores brasileiros que mais afeitos às tradições norte-americana e austro-alemã, como foi o caso do Pontes de Miranda. Nós vivemos num mundo de globalização doutrinária do processo, e de globalização também das soluções legislativas, não sem razão o Brasil hoje adota um sistema de precedentes obrigatórios, isso é um fenômeno mundial. E nós estamos abrindo um pouco mais os olhos para a tradição dos países anglo-saxões, mas não só isso que é interessante, nós não só estamos mais permeáveis a soluções legislativas nesses países, nós estamos cada vez mais recebendo a forma como esses países também fazem a chamada ciência processual. A associação quer contribuir com o avanço da ciência processual e quebrar esse círculo de fé no italianismo processual, que tanto vem atravancando o bom desenvolvimento da ciência processual no Brasil.

ConJur— Como o senhor avalia o novo CPC?
Eduardo José da Fonseca Costa — O novo CPC tem muitos avanços, mas ele já é natimorto em vários aspectos. De bom, ele traz à atividade jurisdicional algumas injeções de democracia e republicanismo, especialmente em matéria de motivação de sentenças. Essa é, talvez, uma das regras mais polêmicas do novo CPC, que obriga os juízes a enfrentarem todos os argumentos e fundamentos trazidos pelas partes. Infelizmente, o Judiciário foi referendando entendimentos autodefensivos com o objetivo de gerar economia de trabalho, mas nós sabemos que o princípio da motivação das decisões foi sendo sabotado paulatinamente no Brasil. Então, a bem da verdade, o que o novo código faz é simplesmente colocar as coisas nos seus devidos lugares.

Outro ponto positivo é a contagem dos prazos por dias úteis, uma conquista justa da classe dos advogados, o advogado tem que ter fim de semana.

O que me preocupa no novo CPC é um certo agigantamento dos poderes do juiz. Os poderes de flexibilização procedimental, por exemplo, me parecem um pouco perigosos. Outro ponto perigoso é esse poder indiscriminado de iniciativas probatórias do juiz, que, não raro, acaba descambando para quebras de imparcialidade. Acho que o novo CPC poderia ser um pouco mais sintonizado com as novas conquistas em psicologia comportamental cognitiva, que demonstram, por exemplo, que o juiz que concede uma tutela provisória não pode ser o que vai proferir a sentença, porque ele tende a confirmar a liminar. Da mesma forma, o juiz que tem contato com a produção da prova oral não pode ser o da sentença, porque ele sentencia contagiado pela prova oral que colheu.

Existem várias descobertas da chamada análise econômico-comportamental do Direito que detectam e conseguem desenvolver técnicas para neutralizar essas quebras inconscientes de imparcialidade. Portanto, são descobertas que acabam referendando um modelo mais adversarial de processo. Nós estamos indo no sentido oposto, o código reforça um sistema mais inquisitorial, aumentando os fatores de quebra de imparcialidade do juiz por enviesamento mental. Isso mostra que os nossos legisladores não estavam sintonizados com o que há de mais recente no estudo de Processo Civil, Penal e Administrativo nos países anglo-saxões e em Israel, por exemplo. Outro atraso foi o sistema recursal, que é pior e mais amplo do que o de 1973. Eles extinguiram os embargos infringentes, é verdade, mas transformaram-nos em um modelo oficioso, ou seja, hoje qualquer decisão não unânime em órgão colegiado, obrigatoriamente, por impulso oficial do presidente da sessão, leva à convocação de outros julgadores. Existem os embargos infringentes de ofício. E houve um aumento do leque de aplicação dos recursos pré-existentes, hoje há o agravo interno, que é o agravo regimental com âmbito de aplicação ampliado, amplificado. O sistema recursal brasileiro no CPC de 2015 não difere muito do sistema recursal que vigeu na Portugal medieval. Todos os recursos do novo CPC têm origem na baixa Idade Média do Direito Lusitano. Nós não evoluímos em matéria recursal.

ConJur— Juristas, como Lenio Streck, criticaram a ponderação de normas, prevista no parágrafo 2º do artigo 489. Segundo eles, esse dispositivo dá margem a arbitrariedades por parte dos juízes. O que o senhor pensa disso?
Eduardo José da Fonseca Costa — O dispositivo dá mais poderes ao juiz do que Hitler tinha. E é uma das coisas mais assustadoras que eu já vi na história legislativa brasileira. A tradição da metodologia jurídica moderna acabou cunhando uma forma objetiva de formulação de juízos de ponderação, o chamado postulado da proporcionalidade. A proporcionalidade, grosso modo, é uma técnica que resolve colisões entre princípios, não entre regras ou entre regras e princípios. Isso porque princípios são normas de caráter finalístico que prescrevem estados desejáveis de coisas, embora num plano mais abstrato os princípios pareçam harmônicos entre si, no plano prático eles acabam mostrando-se muitas vezes não harmônicos, gerando as colisões. E aí se desenvolveu uma técnica para a ponderação, que é exame de proporcionalidade, pela qual procura-se conformar as duas finalidades sem que qualquer uma delas seja totalmente suprimida, geralmente preponderando-se um princípio sobre o outro. Esse dispositivo vai além disso, porque ele fala em normas, e norma é gênero, de que são espécies a regra e o princípio.

Ele permite ao intérprete mais afoito e desavisado fazer ponderação entre toda e qualquer norma, inclusive entre duas regras. As regras seguem uma outra lógica, elas obedecem uma lógica de tudo ou nada, ou a norma incide porque é válida ou se não incide, embora o seu suporte fático esteja concretizado, é porque ela é inválida. Então, não cabe num conflito entre regras juízo de ponderação, porque uma delas simplesmente é inválida, e precisa ter a sua invalidade decretada, num controle de constitucionalidade. Tudo é possível de ser feito se essa regra for inadvertidamente aplicada na sua letra fria. Ou nós interpretamos normas de uma maneira metonímica, tomando o gênero pelo seu princípio, pela sua espécie, que é o princípio, ou nós vamos consagrar de uma vez por todas o voluntarismo, o decisionismo, o irracionalismo, e algumas animalidades ancestrais que nós achávamos que a civilização liberal já havia enterrado.

ConJur— Um dos principais objetivos do novo CPC foi o de combater a morosidade judicial. O novo código vai ser bem-sucedido nesse aspecto?
Eduardo José da Fonseca Costa — Não. Eventualmente, num ponto aqui, outro ali, ele pode trazer alguma injeção de republicanismo e democracia. Mas, se há uma coisa que o Código não propiciará é celerização de processos, por várias razões. Em primeiro lugar, nenhum prazo do CPC de 73 foi diminuído — ou foram mantidos no tempo que estão ou foram ampliados. Por exemplo, os prazos recursais são todos de 15 dias, enquanto no CPC anterior eram de dez, à exceção dos embargos de declaração. Segundo fator, hoje os prazos se contam por dias úteis. Em terceiro lugar, porque o Código exige uma motivação mais detalhada, e isso é muito bom, mas também atenta contra a celeridade. Mas, veja, a gente precisa ter em mente que nem sempre o mais rápido é o melhor. Se justiça tardia é injustiça qualificada, justiça muito afoita é justiça desqualificada, porque o juiz precisa plasmar recursos cognitivos para decidir de maneira adequada, e quando você impinge ao juiz metas de produção, em tempos recordes, quando os juízes são avaliados por merecimento a partir da sua produção, isso tudo começa a pressionar os juízes a julgarem de uma maneira pior. O código dá uma refreada nesse ponto. Portanto, esse não é o código da celeridade processual. Talvez seja o código da duração razoável do processo, uma coisa distinta. Certamente, é um código que tenta primar por um cuidado maior com o tempo ótimo que o juiz tem que levar para sentenciar, e que vai obrigar os juízes a terem mais atenção e comedimento, que, ao fim e ao cabo, é uma virtude que todo o juiz deve ter.

ConJur — O novo CPC dá um grande peso para os precedentes dos tribunais superiores. Mas há especialistas, como o professor Nelson Nery, que avaliam que esse peso dado aos precedentes é inconstitucional, porque os tribunais não têm competência para criar instrumentos com peso de lei. O senhor concorda com essa crítica?
Eduardo José da Fonseca Costa — Eu concordo com essa crítica em parte. Existem duas correntes radicais nessa matéria, alguns que dizem que o sistema de precedentes obrigatórios é inconstitucional, porque permite ao Poder Judiciário produzir uma norma geral e abstrata, com o mesmo quilate de lei, e, portanto, seria necessária a edição de uma emenda constitucional para autorizar isso. Essa é a posição do professor Nelson Nery Júnior. Existe uma outra corrente, que diz que o sistema de precedentes obrigatórios no Direito brasileiro permite ao Poder Judiciário produzir essas normas gerais e abstratas de conduta, de modo que os precedentes que serão aplicados serão obrigatórios não só para os juízes e tribunais, como também para a própria Administração Pública. E isto seria plenamente constitucional, porque estaria sintonizado com princípios como a segurança jurídica, a efetividade da jurisdição e a coerência do ordenamento jurídico. Na minha visão, não é nem uma posição e nem a outra. A letra fria do novo Código afirma que os precedentes que ele arrola são obrigatórios apenas para juízes e tribunais. O que isso significa? Que esses precedentes são normas não de conduta, mas são normas para os juízes sobre a produção de outras normas, individuais e concretas. Nesse sentido, e só nele, o sistema é constitucional. Se o Poder Judiciário produzisse normas gerais e abstratas, ou oponíveis à Administração Pública, fora das hipóteses de súmula vinculante, e decisões em controle abstrato, o novo CPC seria inconstitucional, porque estaria violando a separação de Poderes.

ConJur— O juízo de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário havia sido transferido para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal. Porém, essa alteração gerou muitos protestos, e a regra anterior foi restabelecida. Qual dos modelos é melhor?
Eduardo José da Fonseca Costa — Eu concordo com a gritaria. Nós temos que entender aqui duas coisas: há um problema da lógica dos tribunais de superposição, e há um problema de praticabilidade. O segundo problema nos mostra que se o novo CPC fosse implantado com a nova regra, isso inviabilizaria o Supremo e o STJ. Não haveria servidores e estrutura suficiente para dar conta desse juízo único de admissibilidade, que faz um bom filtro e reduz em mais da metade a subida dos recursos excepcionais. Em segundo lugar, é da lógica desses tribunais que nem tudo que a eles é posto seja por eles julgado. Os tribunais superiores não são uma segunda corte de apelação.

É preciso cuidado no fio das questões para que só aquelas de maior repercussão social sejam enfrentadas e impostas de cima para baixo, porque o desejável, a regra, é que a uniformização de jurisprudência seja feita de forma amadora, lenta. E isso os leigos, às vezes, não entendem, porque se os tribunais uniformizam de maneira muito rápida o entendimento, eles podem deixar de apreciar argumentos e fundamentos que ainda não estão amadurecidos. Isso acontece muito no STJ, que às vezes, de maneira afoita, leva uma questão à sessão e a pacífica. Só que ainda estão surgindo casos na primeira instância com argumentos mais robustos e fundamentos mais bem estruturados, talvez por advogados mais astuciosos, que ainda não foram levados a conhecimento das instâncias superiores. Passam-se alguns anos, aquelas causas sobem a esses tribunais, e eles são surpreendidos por argumentos que até então eles não tinham enfrentado, e aí surgem os chamados overrulings, as superações de jurisprudência.

ConJur— O Congresso discute a reforma do Código de Processo Penal. O que precisaria ter no novo Código?
Eduardo José da Fonseca Costa — Para se ter um novo Código do Processo Penal é preciso um consenso maior. Nós temos aí um verdadeiro braço de ferro entre os que querem um sistema mais inquisitorial e os que desejam um sistema mais acusatório, e daí não se chega a consenso nenhum. E isso é uma pena, porque o CPP atual vigente é de 1941, o design legislativo obedece a uma ideologia fascista vigente naqueles anos e, portanto, é um código que não foi positivamente contagiado pelos valores da república e da democracia. Por outro lado, os tribunais superiores não fizeram uma releitura republicana e democrática do CPP à luz dos valores plasmados no texto constitucional de 1988. Em um novo CPP, seria preciso levar em conta estudos de psicologia cognitiva que vêm mostrando uma série de fatores de quebra inconsciente de imparcialidade de juízes criminais e de jurados. De acordo com essas pesquisas, o juiz que instrui o feito, mormente o feito criminal, e tem contato direto no interrogatório com o acusado, e com as testemunhas, não tem condições psíquico-cognitivas de proferir a sentença. E, desgraçadamente, no Brasil, nós estamos caminhando no caminho oposto.

Hoje nós hipervalorizamos o princípio da oralidade no processo penal, o princípio da imediatidade e o princípio da identidade física do juiz. Um juiz federal no Brasil hoje é um juiz de garantias no inquérito policial, ele faz o controle da constitucionalidade, da legalidade, desses atentados à direitos fundamentais por meio de quebra de sigilos bancários, fiscal, interceptações telefônicas e telemáticas. Esse mesmo juiz é quem recebe a denúncia, esse mesmo juiz é quem instrui, esse mesmo juiz é quem sentencia e não raro ele será o juiz da execução criminal. Ele já está contagiado, praticamente é praticamente um delegado fantasiado com toga, ele não tem mais isenção para julgar o que quer que seja. Nós deveríamos ter um juiz para cada uma dessas etapas do processo penal.

ConJur— O sucesso da delação premiada na operação “lava jato” fez com que muitas pessoas passassem a defender que o Brasil adotasse um modelo processual penal mais parecido com o americano. Esse sistema daria maior ênfase às negociações penais e conferiria mais poderes para o Ministério Público. O que o senhor pensa disso dessa ideia?
Eduardo José da Fonseca Costa — Esse é um dos temas mais difíceis do processo penal. Isso porque essa lógica eficienticista do processo penal americano, que institui o plea bargain, as colaborações premiadas das quais a delação é só um exemplo, funciona muito bem. São sistemas que se mostram altamente eficazes no desbaratamento da macrocriminalidade. O sucesso da delação premiada se explica pela teoria dos jogos, por uma razão muito simples: os lances são finitos e quem dá os primeiros lances tende a se beneficiar mais do que quem fica para o fim. Os últimos delatores tendem a pegar as penas maiores, por isso que ele funciona tão bem. Então, quando se atua dentro de um sistema processual penal eficienticista, fundado em delações, em colaborações e em consensualidade, transitamos em um limite tênue entre a eficácia e a quebra das garantias. Em que medida os arguidos e investigados na operação “lava jato” estão sendo obliquamente coagidos a colaborarem? Será que essa lógica da teoria dos jogos não cria de maneira velada uma espécie de pressão irresistível aos acusados? Esse é um debate difícil e que precisaria ser aprofundado antes de uma mudança radical como essa.

ConJur— Existem propostas para criar regras processuais específicas para ramos do Direito que seguem as normas do processo civil. Dessa forma, há projetos para a criação do Código Processual Constitucional e do Código de Processo Trabalhista. O que o senhor pensa dessa maior especificação dos processos?
Eduardo José da Fonseca Costa — Isso é absolutamente inevitável, porque nós sempre precisamos conformar o instrumento às suas finalidades. Não sem razão circula no Processo Civil o princípio da tutela jurisdicional adequada, porque os formatos processual e procedimental têm que estar sintonizados com as especificidades do caso concreto, com a natureza da relação de direito material controvertida. Existem situações litigiosas que exigem uma solução mais rápida do que outras. Por exemplo, um litígio envolvendo pensão alimentícia é emergencial em si próprio, então precisa de um procedimento mais sumarizado. Da mesma forma, quando demora-se muito para resolver um conflito possessório, tende-se a tornar mais agudo o conflito social, por isso que existem liminares singulares. Então, cada situação, cada relação de direito material pede um tempo específico, uma sequência procedimental específica, uma estrutura de fases própria. Então, não é sem razão que se fala hoje em sub-ramos do direito processual não criminal, como processo civil societário, processo tributário, processo trabalhista, processo civil econômico. Há também ideias de um Direito Processual Público. Então, a gente vive um movimento centrípeto e um movimento centrífugo no Brasil, a pretensa necessidade de um CPC para regular a generalidade dos processos, e subsistemas processuais para atender a demandas específicas de ramos específicos do direito material. De qualquer forma, tanto um movimento como o outro mostram que nós dependemos de subsistemas processuais, e que os sistemas processuais mais gerais se tornam obsoletos muito rapidamente.

O novo CPC vai virar uma colcha de retalhos em menos de cinco anos, ele já está sendo retalhado na vacatio legis. Isso é um fenômeno mundial. Eu sou daqueles que prefere soluções mais lentas pela mão da doutrina da jurisprudência a soluções rápidas e abruptas do legislador. Isso porque quando você lida com Direito Processual, você interfere na estrutura do Poder Judiciário. Por exemplo, as varas estão precisando parar de trabalhar para readequarem todos os seus modelos de despacho, decisão, e sentença ao novo código, e são milhares de resoluções, de minutas, de modelos. Isso toma um tempo absurdo dos juízes, e das secretarias e dos cartórios. Os juízes vão ter que reaprender o código, a citar os artigos de cabeça, a entender suas bases. Uma coisa interessante que existe na Europa são leis processuais civis temporárias experimentais. Assim, é editada uma lei de vigência temporária e técnicos coletam dados estatísticos para ver se ela funcionou bem ou não. Se funcionou bem, vira lei definitiva. Se funcionou mal, não se renova o prazo de vigência. Se tem dúvida, se renova por mais um período idêntico, e com isso se faz uma espécie de legislação mais científica, testada laboratorialmente na vida social. Muito do que está no novo Código poderia ser feito por esse meio, como o incidente de resolução de demandas repetitivas, como os precedentes obrigatórios, que são megaequipamentos processuais sofisticados, de difícil e polêmica manipulação que poderiam ser antes testados por leis extravagantes de vigência temporária. Então, esse fenômeno dos subsistemas processuais só mostra a inadequação de um novo código editado a toque de caixa.



Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2016, 7h20

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