segunda-feira, 11 de abril de 2016

Codificação do Direito Civil no século XXI: de volta para o futuro? (parte II)




Por Rodrigo Xavier Leonardo


Em nosso último escrito publicado no Direito Civil Atual, coluna da Rede de Pesquisas de Direito Civil Contemporâneo na ConJur, propusemos uma reflexão acerca da atualidade da profecia da “era da descodificação”, desafiada pelo advento, na América Latina e na Europa, de novos códigos de Direito Civil.

Ao final, deixamos a promessa de tecer algumas linhas acerca do Code Napoleón, recentemente alterado pela Ordonnance 2016-131, aprovada na recentíssima data de 10 de fevereiro de 2016, que encaminhou uma ampla reforma nas matérias do Direito dos Contratos, do regime geral e da prova das obrigações.

Naquela oportunidade, para facilitar a compreensão da magnitude da transformação no Code, reportamos que a Ordonnance 2016-131, entre renumerações, abrogações, modificações e a criação de novos artigos de lei, promoverá aproximadamente 512 alterações no seio daquele que, desde o século XIX, foi o código mais influente na Europa e na América Latina.

Essas reformas do Código Civil, por sua vez, projetaram mudanças em pelo menos 85 outras leis francesas (em especial no Código Comercial e no Código do Consumo).

Tudo isso ocorreu no Code, que ostenta um simbolismo que não se pode menosprezar, afinal de contas, trata-se do código que melhor preenche de significado a “ideia código”, fruto do esforço, centrado no príncipe, de ruptura com o ancién regime para a criação de um novo Direito no amanhecer da modernidade jurídica.

Foi no Code Civil que se verificou “a presunção do primeiro autêntico codificador da história jurídica europeia — de romper com o passado por aquilo que o passado representava sob o aspecto da visão do ‘jurídico’ e da posição do ‘jurídico’ no ‘social’ e no ‘político’. Sob esse perfil, o ‘código’ expressa a forte mentalidade forjada no grande laboratório iluminista e se encontra – enquanto tal — em áspera polêmica com o passado”[1].

Após mais de 200 anos de vigência, o Direito Civil francês já não era propriamente uma projeção do texto do Code, em especial em matéria de obrigações e contratos.

Alguns autores, como Larroumet, chegaram a escrever que as alterações feitas pelos tribunais ao longo desses dois séculos foram tão severas que, de fato, não seria mais possível compreender o Direito das Obrigações e dos Contratos pela leitura dos artigos do Code: a jurisprudência francesa já teria se tornado, nessas disciplinas, a fonte principal[2].

Outros países europeus já haviam modificado codificações mais recentes que a francesa, e os esforços teóricos e políticos para uma reflexão acerca de um Direito europeu dos contratos impulsionavam mudanças.

O que fazer? Pulverizar a legislação em microssistemas? Seccionar o Direito das Obrigações e dos Contratos do Code? A opção francesa foi a de reafirmação do Code, mediante uma ampla reforma.

Esse é o contexto do advento da Ordonnance 2016-131, que entrará em vigor a partir de 1º de outubro de 2016.

Em uma rápida passagem pelas alterações em tema de Direito dos Contratos, pedimos permissão para sublinhar ao leitor algumas das novidades: a) regras específicas a respeito dos contratos concluídos por via eletrônica (artigos 1.125 a 1.127-6 e 1.174 a 1.177); b) alterações no regime de invalidades (artigo 1.178 a 1.185); c) disposições acerca de circunstâncias imprevisíveis supervenientes (artigo 1.195); d) modificações a respeito da denúncia e da resilição nos contratos (artigos 1.210 a 1.215); e) ampla revisão na disciplina da inexecução dos contratos (artigos 1.219 a 1.231-7), entre outros.

Os lindes deste escrito naturalmente são estreitos para uma análise minudente dessa reforma do Code Napoleón. No bojo de tantas sensíveis alterações, pedimos permissão para sublinhar a modificação dos quatros artigos que, originalmente, inseriram no Code a “causa” como um requisito de validade das convenções.

Fizemos essa escolha por diversas razões, dentre elas o fato da “teoria da causa”, nas obrigações e contratos, espelhar muito da cultura francesa, do moralismo no Direito das Obrigações e dos Contratos. Uma revisão da teoria da causa, portanto, além do aspecto técnico, ostenta uma relevância ideológica.

Eis o texto dos artigos 1.108, 1.131, 1.132 e 1.133 do Código Napoleão, adiante reproduzidos em vernáculo, em sua redação original:

“Art. 1.108. Quatro condições são essenciais para a validade de uma convenção: o consentimento da parte que se obriga; a sua capacidade de contratar; um objeto certo que forma a matéria do compromisso; uma causa lícita na obrigação”.

“Art. 1.131. A obrigação sem causa, ou com uma falsa causa, ou com uma causa ilícita, não pode ter qualquer efeito”.

“Art. 1.132. A convenção não deixa de ser válida embora a causa não seja expressa”.

“Art. 1.133. A causa é ilícita quando for proibida por Lei, quando for contrária aos bons costumes ou à ordem pública”.

Esses trechos do Código Napoleão, desde as suas origens, foram objeto de acirradas polêmicas.

Em rápida síntese (e, por isso, perigosa), destacamos a teorização predecessora ao código, encontrada em Domat e Pothier, passando pelas explicações subjetivas do texto legislado (por vezes confundindo a causa com os motivos), encontrando graves obstáculos no movimento anticausalista (sobretudo em M. Planiol), até a estabilização encontrada na ideia de “propósito específico”, de Henri Capitant, para, no ano de 2006, que está tão próximo a nós, alcançarmos a seminal tese de J. Ghestin[3].

A recente obra de Ghestin, inclusive, procurou influenciar diretamente os projetos de reforma do Code Napoleón para rever a teoria da causa no Direito Civil francês contemporâneo[4].

O Direito Civil brasileiro, em sua história, não ficou imune a esse intenso movimento teórico, sobretudo em virtude de autores que, animados pela literatura francesa, procuraram transpor as teorias francesas para o solo nacional.

A esse respeito, Pontes de Miranda, com olhos no Código Civil brasileiro de 1916, advertiu que “os livros franceses que expõem o artigo 1.131 do Código Civil francês, sem o criticar, são perigosos para quem lhes busca elementos para a interpretação do Direito brasileiro, ou de outro sistema jurídico que não tenha sido cópia do francês. Não no temos; nem fomos vítima do grave equívoco histórico que foi, para o Direito francês, o artigo 1.131. O que se chama teoria da causa não é a afirmação de que existe causa, ou de que existem negócios jurídicos causais, e sim que se teceu, com os artigos 1.031, 1.108 e 1.133 do Código Civil francês, uma das mais absurdas teorias de que jamais o Direito sofreu as consequências”[5].

Clóvis Beviláqua, autor do anteprojeto do Código Civil brasileiro de 1916, foi além. Mais que sustentar o equívoco do legislador francês, chegou a sustentar que uma das origens do imbróglio, que os brasileiros deveriam se distanciar, estaria em um atropelo terminológico entre chose (coisa) e causae (causa): “A causa dos contratos, não declarada como razão ou condição deles, deixou de ser considerada pelo Código Civil. A doutrina já fez justiça a esse requisito, que parece ter entrado no Código Civil francês por um equívoco (...) Aludi ao que se refere Huc, em seu Commentaire, sobre a expressão sans cose de Beaumanoir, que supuseram equivaler a sans cause, quando o velho jurista pretendia apenas dizer sans chose, sem objeto. E apreciei o apoio que Domat, o criador da teoria da causa, pretendeu encontrar no Direito Romano. Certamente nas fontes romanas se fala em causa (...) Mas o ponto de vista dos romanos era muito diferente. Desses mesmos textos se vê que os romanos concebiam obrigações sem causa: qui promist sine causa... qui sine causa obligantur. O pensamento, que nesses fragmentos sobressai é o do enriquecimento ilegítimo. Neles não se cogita da formação do contrato. Como bem diz Planiol, a noção de causa é perfeitamente inútil para a teoria dos atos jurídicos”[6].

Pois bem. A partir de 1º de outubro de 2016, nenhum desses artigos do Código dos Franceses — objeto das severas restrições de Beviláqua e Pontes de Miranda —, permanecerá em vigor. A causa, como requisito de validade das convenções, foi extirpada do Code[7].

O legislador francês, ao abandonar o original regramento acerca da causa, buscou reforçar os vínculos contratuais e a segurança jurídica nas operações econômicas.

Com isso, estaria findo o problema da causa nos contratos? Provavelmente, não.

A questão da causa, antes de uma opção de técnica legislativa, é um problema filosófico. Em Teoria do Direito, conforme explicava o professor Antônio Junqueira de Azevedo, o termo enseja pelo menos cinco significados diferentes, com maior ou menor impacto, no plano da validade ou no plano da eficácia. Esses impactos evidentemente serão diferentes diante de um regramento explícito no Código Civil[8]. O silêncio dos códigos, todavia, não afasta o problema da causa.

A opção de Beviláqua de negar à causa a qualidade de requisito explícito de validade dos contratos no Código Civil de 1916, reafirmada e sofisticada no Código Civil de 2002 (por exemplo, pelo artigo 166, III, em substituição ao artigo 90 do Código revogado), nunca afastou o problema da causa do Direito Civil brasileiro.

Basta memorar que alguns dos principais civilistas do século XX dedicaram estudos específicos acerca do tema. Sublinhamos, sem prejuízo de outros, Torquato Castro (da causa no contrato)[9], Couto e Silva (Teoria da Causa no Direito Privado)[10], além das já citadas obras de Junqueira de Azevedo[11] (que, por sua vez, no século XXI, deram frutos em duas teses de doutorado por ele orientadas que, hoje, em Direito nacional, correspondem aos dois livros contemporâneos mais importantes acerca do tema. Em ordem cronológica, citamos a reciprocidade e contrato, de Luiz Renato Ferreira da Silva[12], e a doação com encargo e causa contratual, de autoria de Luciano de Camargo Penteado[13].

A reforma do Código Civil dos franceses faz com que os privatistas novamente voltem os seus olhos para aquela nação europeia que, mais uma vez, presenteia a cultura jurídica mundial com o resultado de um labor sofisticado. Nada de reformas de afogadilho. Certamente, a partir de 1º de outubro de 2016, o Code será menos Napoléon. Mais de dois séculos se passaram... Continuará a ser o código do cidadão francês, agora no século XXI.

Muito dessa reforma no Code se deve a uma atualização a partir da relevante criação jurisprudencial em tema de obrigações e contratos.

Em tema de “teoria da causa”, todavia, podemos encontrar algo além.

No ano de 2012, Denis Mazeaud, ao prefaciar uma nova edição do clássico francês De la cause des obligations, de autoria de Henri Capitant, forneceu algumas pistas para melhor compreender o significado de uma alteração legislativa no tema da causa no Direito dos Contratos e das Obrigações[14].

Segundo Mazeaud — que atualmente preside a Association Henri Capitant des amis de la culture juridique française —, na reforma do Code Civil, duas vertentes decidiriam o futuro da “teoria da causa” na França contemporânea.

De um lado, as correntes adeptas do liberalismo contratual, que sustentavam a suficiência da teoria dos defeitos no consentimento para a proteção dos interesses privados dos contratantes. Para os casos envolvendo vulneráveis, outros meios reconhecidos pela Corte de Cassação seriam mais eficazes. O mesmo poder-se-ia dizer a respeito dos contratos com disposições contrárias à ordem pública e aos bons costumes, nos quais a “causa”, como requisito de validade, seria supérflua.

Por outro lado, as correntes que defendiam a tradição do Direito francês e, também, uma concepção moralista do contrato, continuaram a defender a manutenção da teoria da causa no regramento das obrigações e contratos, ainda que com modificações em relação à redação original no Code.

No que diz respeito à teoria da causa, no embate entre as duas correntes retratadas por Mazoud, percebe-se que a vertente liberal prevaleceu. Retornamos à questão: estaria o problema da causa superado em França? Provavelmente não. A Justiça e a moralidade nos contratos, que a teoria da causa francesa pretendia enfrentar, não desaparecem com a supressão de uma palavra. O problema é reformulado.

Pede-se permissão ao leitor, por fim, para fazer uma singela homenagem. O autor gostaria de dedicar este escrito ao professor Luciano de Camargo Penteado, dileto amigo que guardou uma significativa parte de sua vida ao estudo da Teoria da Causa e nos deixou, ainda muito jovem, no ano de 2015.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT)..



[1] GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis : Boiteux, 2004, p. 106-107.
[2] LARROUMET, Christian. Droit Civil: Les obligations, le contrat. Paris : Economica, 2007, p. 14.
[3] GHESTIN, Jacques. Cause de l`engagement et validité du contrat. Paris: L.G.F.J, 2006.
[4] Mencionamos, neste sentido, as propostas de alterações legislativas apresentadas por GHESTIN, Jacques. Cause de l'engagement et validité du contrat. Paris : L.G.F.J, 2006, p. 903 e seguintes.
[5] PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. t.3. Atualizado por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt. São Paulo: RT, 2012, p. 141.
[6] BEVILÁQUA, Clóvis. Comentários ao Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro : Francisco Alves , 1959, p.271.
[7] Corresponderá ao artigo 1.108, o artigo 1.128: “Sont nécessaires à la validité d'un contrat: 1° Le consentement des parties; 2° Leur capacité de contracter; 3° Un contenu licite et certain”. O sentido dos artigos 1.131, 1.132 e 1.133 foi completamente alterado e, na mesma posição, encontram-se regras a respeito dos vícios de consentimento, sem qualquer menção à causa.
[8] JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio jurídico e declaração negocial, 1986, p. 121 e seguintes e JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 2002, p.152.
[9] CASTRO, Torquato. Da causa no contrato. Recife: Imprensa Universitária, 1966.
[10] COUTO E SILVA, Clóvis. Teoria da causa no Direito Privado. In: FRADERA, Véra. O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 57.
[11] JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio jurídico e declaração negocial, 1986, p. 121 e seguintes e JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 152.
[12] FERREIRA DA SILVA, Luis Renato. Reciprocidade e contrato. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
[13] PENTEADO, Luciano de Camargo. Doação com encargo e causa contratual. 2ª ed. São Paulo: RT, 2012.
[14] MAZEAUD, Denis. Avant-propos. In: CAPITANT, Henri. De la cause des obligations. Paris : Éditions La Mémoire du Droit, 2012, p.II-III.


Rodrigo Xavier Leonardo é advogado e árbitro, doutor em Direito pela USP, professor de Direito Civil nos cursos de graduação e pós-graduação na UFPR e superintende regional (PR) do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem – Conima.

Revista Consultor Jurídico, 11 de abril de 2016, 8h00

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