Por Bruno Leonardo Câmara Carrá
Dizia-se com absoluta tranquilidade até certo tempo atrás: sem um dano, ninguém é civilmente responsável. De fato, dano e responsabilidade civil sempre foram postos sob uma perspectiva lógica de causa e consequência. Por sinal, tomando de empréstimo a teoria das quatro causas de Aristóteles, pode-se perfeitamente afirmar que o dano é a própria causa material da responsabilidade civil. Alguém ousava discordar? Justamente na França, cujo famoso Code Civil de 1804 foi o primeiro a entabular essa verdadeira regula [1] para o direito moderno, houve quem começasse, sim, a fazê-lo. O mais interessante: a ideia ganhou força, avançando teórica e doutrinariamente em vários rincões da Europa e fora dela. De lá chegou até aqui sob a já conhecida expressão responsabilidade civil sem dano.
Tendo tratado desse assunto, pois a simples contradição de termos que o envolve o converte em desafio, dou inicio hoje às minhas contribuições à coluna Direito Civil Atual, coordenada pela Rede de Direito Civil Contemporâneo, com o objetivo de dividir as considerações que já tenho feito sobre o tema, agora, nesse seleto espaço. Agradeço, portanto, aos ministros Luís Felipe Salomão, Antonio Carlos Ferreira e Humberto Martins, que, ao lado dos professores Ignacio Poveda, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antonio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva, coordenam esta coluna eletrônica.
Vejamos, então, o que realmente propõe essa nova doutrina, que surge na forma de Shiva ao prometer, com seu fogo regenerador, a refundação das próprias bases teóricas da responsabilidade civil para o mundo contemporâneo. Antecipo, contudo, que minha posição é francamente contrária a qualquer forma de responsabilidade civil sem dano. Pretendo, assim, refutar e não defender o argumento.
Há, de todo modo, algo bastante positivo nessa pretendida revisão copernicana da responsabilidade civil: chamar a atenção para a hipertrofia dos danos na atualidade e, com isso, fornecer instrumentos jurídicos aptos a controlar sua expansão. É que a ideia de uma responsabilidade sem dano foi motivada fundamentalmente pelo exponencial crescimento deles nas últimas décadas. A isso deve ser somado o aumento também de sua potencialidade lesiva, tornando a vida humana, em suas várias dimensões, presa dos incontáveis riscos.
Não é de hoje, com efeito, que o alargamento dos danos costuma preocupar os teóricos da responsabilidade civil. A evolução do sistema subjetivo para o objetivo, que teve lugar entre o final do Século XIX e começo do XX, em última análise, decorreu também da percepção de sua ocorrência cada vez mais frequente. Expansão a que se associa ainda o problema dos danos ditos anônimos, ou seja, o fato de que as lesões, desde a Revolução Industrial, passaram a ser produzidas não tanto pelo homem e sim pelas máquinas. [2] Essa situação foi agravada com a Revolução Tecnológica que lhe seguiu. Temos, agora, danos ainda mais complexos e insidiosos, como aqueles inerentes às questões ambientais.[3]
Por sinal, foram eles, os danos contra a natureza, que chamaram a atenção para a debacle das estruturas tradicionais de gestão dos riscos. Diante da evidência de que excedem os níveis de interesse pessoal e local, atingindo na maioria das vezes o coletivo, o transfronteiriço e o intergeracional, logo observou-se que as estruturas jurídicas ditas tradicionais não mais conseguiriam impedir a ocorrência do dano ambiental. Essa perda de compasso com a realidade — mais uma evidência de que os fatos andam sempre à frente do Direito — foi descrita por Ulrich Beck. A sociedade de risco (Risikogesellschaft) teorizada pelo sociólogo alemão recentemente falecido colocava em evidência o fato de que os perigos produzidos pela civilização contemporânea não podiam mais ser definidos no espaço ou no tempo: o risco é inevitável, globalizado, umbilicalmente ligado ao nosso modo atual de vida. De consequência, seu gerenciamento, considerando o modelo atual de causa e efeito passou a ser visto como obsoleto.
Nesse cenário, dois instrumentos passaram a protagonizar a gestão dos “novos danos”, a saber, os já bem conhecidos princípios da prevenção e da precaução. Ambos estabelecem mecanismos voltados ao evitar e não ao reparar, mas a ideia de precaução é particularmente mais ampla. A precaução como princípio surge na Alemanha (Vorsorgeprinzip). Vorsorge vem a ser mais do que um simples “dever de cuidado” (sorgfaltspflicht). Ele estabeleceu, assim, um paradigma novo para dar uma proteção ex ante, a interesses de ordem coletiva ou futuros. Um “simples” perigo, ainda que sem provas científicas conclusivas, já estaria a autorizar a adoção de medidas jurídicas para impedir que o próprio dano deixe de acontecer.
Estavam postas, assim, as bases para a criação de um modelo de responsabilidade civil diferente (?). O inédito grau de lesividade, que nos faz vítimas quotidianas de incontáveis fatores de risco, estaria a impor uma radical mudança na noção mesma de responsabilidade (?). A responsabilidade civil não poderia mais ficar limitada à ideia de uma reprimenda a posteriori na forma de reparação civil (?). Sim, foi o que começaram a responder certos autores. Seria imperioso, disseram, que a responsabilidade passasse a disciplinar ex ante os próprios eventos danosos, de forma a preveni-los e não apenas ressarci-los.
Surgia então um modelo de responsabilidade civil diferente, no qual a ameaça de uma dano já permitiria a aplicação de sanções jurídicas que passariam a ser por ela abrangidos. A questão é que tal proposta viria a desconfigura-la, deixando-a irreconhecível. Além de inúmeros inconvenientes práticos, aceita-la significaria na prática refundar ontologicamente essa tradicional disciplina, fazendo incluir nela elementos que histórica e epistemologicamente sempre lhe foram excluídos de maneira reiterada. Uma colchas de retalhos, mais próxima do monstro de Mary Shelley que propriamente desse que é reconhecidamente um dos mais belos e ricos campos do conhecimento jurídico. Disso falaremos melhor na colunas que se seguirão.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFMG).
1 A expressão regula, aqui, é empregada em seu sentido romanista, porém, claro, mais de modo provocativo do que em sentido estrito. Regula, sabemos, era um princípio cardial enunciado nas fontes por meio de uma fórmula curta, mas com força vinculativa inclusive. No conhecido fragmento que Paulo atribui a Sabino (D.50.17.1): “Regula est, quae rem quae est breviter enarrat. Non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est regula fiat.” O que quero dizer, sempre de modo provocativo, repito, foi que os arts. 1382 e 1383 do Código francês veicularam esse princípio cardial da responsabilidade civil e que, por lá, costuma-se anunciar, geralmente, em termos de san dommage subi par la victime, il n’y a pas de responsabilité.
2 O sarcasmo de Lawrence Friedman é invencível no ponto: “A Revolução Industrial adicionou um aumento apavorante nessa dimensão. As novas máquinas tinham uma maravilhosa e sem precedente capacidade para esmagar o corpo humano. As fábricas manufaturavam lesões e logo mortes tanto quanto seus produtos ordinários. Os negócios estavam rendendo lucros; isso era um tentador e lógico fundo por meio do qual os mortos e os lesionados, e suas familias, poderiam ser compensados.” (FRIEDMAN, Lawrence M. Simon. A history of american law. New York: Simon & Schuster, 2005, p. 350).
3 Anderson et alli v. Pacific Gas & Eletric demonstrou como podem ser lentas e ao mesmo tempo fatais as consequências da exposição a agentes químicos produzidos como refugo ou como insumo para a indústria. No caso específico, a contaminação pelo cromo hexavalente demoraria vinte anos para ser descoberta e ensejar a demanda indenizatória, já havendo muitas das vítimas sucumbido aos seus efeitos. O caso ficou famoso mundialmente após virar filme.
Bruno Leonardo Câmara Carrá é juiz federal em Recife (PE), doutor em Direito pela USP com estágio pós-doutoral na Scuola di Giurisprudenza da Universidade de Bolonha. Professor de Direito na Faculdade 7 de Setembro.
Revista Consultor Jurídico, 18 de abril de 2016, 8h00
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