sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Planos de saúde coletivos devem se submeter às regras sobre abusos do CDC






As operadoras de planos de saúde conseguiram aquilo que as instituições financeiras tentaram sem sucesso, que foi afastar a incidência do Código de Defesa do Consumidor aos seus contratos. Por incrível que possa parecer, decorre do disposto no art. 35-G da Lei 9.656/98 a aplicação subsidiária do Código apenas àqueles contratos estabelecidos “entre usuários e operadores de produtos”.

Como é notório, a imensa maioria das operadoras de planos de saúde só oferece no mercado planos de saúde coletivos, intermediados por entidades de classe, empresas empregadoras e por administradoras de benefícios. Essa intermediação descarta, segundo a lei, a aplicação mesmo subsidiária do Código de Defesa do Consumidor aos contratos coletivos de planos de saúde.

As operadoras aperceberam-se das brechas legais e da falta de proteção dos contratantes nos planos coletivos e passaram a não firmar mais contratos individuais ou familiares. Segundo números oficiais da ANS, os consumidores de planos coletivos empresariais cresceram de 6,1 milhões, em março de 2000, para 33,8 milhões, em março de 2015. Em contrapartida, os consumidores dos planos individuais ou familiares cresceram apenas de 4,7 milhões para 10 milhões no mesmo período, praticamente o mesmo crescimento experimentado no número de consumidores dos planos coletivos por adesão, de 3,0 milhões em março de 2000, para 6,7 milhões em março de 2015.

A tendência de crescimento dos planos coletivos empresariais superou o dobro do crescimento do número de contratantes de planos privados de assistência à saúde, no mesmo período. Muitos contratantes de planos individuais e familiares, sob a enganosa alegação de preços mais baratos, acabaram alterando seus contratos para coletivos. Contratos tipicamente familiares, que abarcam três a quatro vidas de uma mesma família, estão sendo disfarçados como coletivos empresariais.

De acordo com os números da ANS, em 2014 mais de quarenta milhões de usuários eram contratantes de planos coletivos enquanto que apenas dez milhões eram contratantes de planos individuais ou familiares. A proporção já era de um usuário de plano individual para quatro usuários de planos coletivos, com tendência de diminuição do primeiro grupo e de crescimento do segundo grupo.

A inoperância da ANS e as brechas propositalmente inseridas na lei pelos planos de saúde já deixam desprotegidos mais de quarenta milhões de consumidores brasileiros, que podem ter seus contratos rescindidos unilateralmente, sofrer reajustes abusivos porque não limitados pela ANS e diminuições da rede credenciada, a partir de simples negociação com a pessoa jurídica que intermediou os contratos coletivos firmados pelos consumidores.

O parágrafo único do artigo 13 da Lei 9.656/98 veda a recontagem de carências, a suspensão e a rescisão unilateral dos contratos de planos de saúde individuais ou familiares, deixando sujeitos a essas arbitrariedades por parte das operadoras de planos de saúde os contratantes dos planos coletivos.

O parágrafo único do artigo 16 da Lei 9.656/98 assegura a obtenção de cópia do contrato, do regulamento e das condições gerais apenas aos contratantes de planos individuais ou familiares. Vale dizer, os contratantes de planos de saúde coletivos não têm assegurado o direito básico à informação consagrado pelo artigo 6º, III do Código do Consumidor.

O artigo 35-E da Lei 9.656/98, no seu inciso III, veda a suspensão ou rescisão unilateral apenas dos contratos individuais ou familiares, sendo que o parágrafo 2º desse artigo sujeita à prévia aprovação da ANS apenas os reajustes dos planos individuais e familiares.

A falta de proteção dos contratantes de planos coletivos vem levando a inúmeras práticas abusivas, que acabam tendo que ser corrigidas no Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça já identificou a litigiosidade envolvendo planos de saúde como um problema, a ponto do TJ-SP criar uma câmara temática visando reduzir o número desses conflitos. A despeito da judicialização já ser insuportável, está sendo cogitada a liberação dos reajustes também dos planos de saúde individuais. Se isso acontecer, a exemplo do que já ocorre com os planos coletivos, muitos consumidores serão expulsos indiretamente pela impossibilidade do pagamento das mensalidades ou passarão a contratar planos mais baratos, com menor cobertura.

A diminuição do número de usuários de planos de saúde repercute diretamente nas políticas de saúde pública, porque quem não tem acesso à saúde privada acaba sendo atendido pelo SUS. Assim como uma quebradeira dos planos de saúde pode inviabilizar a saúde pública, reajustes abusivos também podem inchar o já combalido sistema público de saúde.

Não é demais lembrar que saúde é um dos pressupostos da dignidade da pessoa humana, eleita como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil pelo artigo 1º da Constituição Federal. Sem tratamento de saúde adequado não existe vida digna. Muitos, infelizmente, não têm acesso a tratamentos de saúde adequados e quem tem, em um futuro próximo, deixará de ter, em virtude de discriminações ilícitas entre usuários de planos de saúde individuais e coletivos criadas pela própria Lei 9.656/98.

Consumidor, nos termos do artigo 2º, “caput” da Lei 8.078/90 é quem adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Nesse sentido os contratantes de planos coletivos também ostentam claramente a condição de consumidores, porque utilizam diretamente os serviços prestados pelas operadoras. A relação é indireta apenas na forma de contratação e de pagamento, sendo direta em relação à utilização. Negar a condição de consumidores dos usuários de planos coletivos, portanto, é uma falácia que apenas aproveita aos contratantes mais fortes dessa relação, que são as operadoras de planos de saúde.

Ademais disso, nada justifica sob o prisma constitucional a distinção de tratamento operada pela Lei 9.656/98 entre contratos de planos de saúde individuais e coletivos. O serviço se não é o mesmo é muito semelhante e a condição jurídica dos usuários é rigorosamente a mesma. Sem falar que o artigo 5º, XXXII da Constituição Federal coloca a defesa do consumidor como um direito fundamental, protegido por cláusula pétrea inclusive.

Qualquer lei que restrinja direitos de consumidores típicos é inconstitucional e assim deve ser reconhecida. Não há porquê diminuir os direitos dos contratantes dos planos coletivos em relação aos direitos dos contratantes dos planos individuais. A vulnerabilidade e a necessidade dos serviços é a mesma. Reajustes de planos coletivos sempre são “negociados” com as pessoas jurídicas que representam os consumidores sob a ameaça de rescisão unilateral dos contratos. Rescindido o contrato com a pessoa jurídica milhares e milhares de consumidores ficarão sem acesso à saúde privada, tendo que contratar novos planos de saúde, com recontagem de carências.

Está mais do que na hora dos operadores do direito refletirem sobre a questão dos planos coletivos no Brasil e passarem a enfrentar as práticas abusivas nos contratos coletivos de planos de saúde à luz do Código de Defesa do Consumidor, impedindo reajustes exagerados, rescisões unilaterais de contratos que deixam na rua consumidores doentes e diminuições das coberturas contratuais, que configuram também forma de aumento indireto dos planos de saúde, porque paga-se o mesmo por um serviço de qualidade bastante inferior. Não temos dúvida de que essas distinções operadas pela Lei 9.656/98 são inconstitucionais e assim devem ser reconhecidas, em sede de ADI no controle concentrado de constitucionalidade, ou incidentalmente nos processos no controle difuso de constitucionalidade.


Arthur Rollo é doutor pela PUC-SP e advogado.


Revista Consultor Jurídico, 13 de setembro de 2015, 7h30

Para desembargador, paternalismo não pode orientar ações de consumo





Para Werson Rego, especialista tem mais condições de tomar decisões impopulares
TJ-RJ

As câmaras especializadas em direito do consumidor do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro completaram dois anos de funcionamento no último dia 2 de setembro. Mas além da comemoração, a data foi também um convite à reflexão. O desembargador Werson Rego, que atua na 25ª Câmara Especializada, verifica uma tendência cada vez maior de decisões que afirmam direitos a consumidores mesmo quando há regra em sentido contrário. Na avaliação dele, isso indica uma tendência ao paternalismo exacerbado. 

Segundo o desembargador, das 27 câmaras cíveis existentes no TJ-RJ, apenas cinco são especializadas. Essas unidades chegam a receber 45% de todos os recursos que chegam ao tribunal e o volume de processos impressiona seus integrantes. Para driblar isso, a administração estipulou que todo desembargador recém-promovido tem que passar pelo juízo especializado. Assim, em muitos casos, as vagas são ocupadas por quem nunca teve contato com a matéria consumerista. 

“Um efeito disso é que, por não haver essa especialização, em um primeiro momento, pode-se achar que, por se tratar de câmara especializada em direito do consumidor, há que se proteger o consumidor indistintamente. E com isso corre-se o risco de transformar as câmaras especializadas em direito do consumidor em câmaras de proteção do consumidor”, acrescenta.

A fim de mudar esse cenário, entidades como a Harvard Law School Association of Brazil e Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio, em parceria com o tribunal, desenvolvem um projeto acadêmico-científico que prevê ações múltiplas, sendo a principal delas a formação dos integrantes dessas câmaras e dos servidores que os apoiam. Segundo Rego, que coordena a iniciativa, a finalidade é entender o alcance das decisões proferidas.

“O objetivo é estimular o julgador a entender que a decisão dele tem repercussão nas atividades econômicas e levando-o à reflexão sobre a importância dos julgamentos levarem segurança jurídica, estabilidade e paz aos mercados. As decisões têm que buscar, tanto o quanto possível, o melhor resultado coletivo e não apenas o interesse isolado de um demandante específico”, explica.

Um dos pontos altos do projeto ocorrerá no dia 9 de novembro, no TJ-RJ, com a promoção do evento Protagonismo Judicial, Segurança Jurídica e Paternalismo Pretoriano: Desafios em Tempos de Incerteza. “A ideia é mostrar que o ativismo [judicial] é importante, mas também que é preciso entendermos os limites desse protagonismo. O julgador tem que respeitar as atribuições constitucionais dos outros poderes”, afirma.

Leia a íntegra da entrevista.

ConJur — Qual é o objetivo do projeto ?
Werson Rego — Estimular o julgador a entender que a decisão dele tem repercussão nas atividades econômicas e levando-o à reflexão sobre a importância dos julgamentos levarem segurança jurídica, estabilidade e paz aos mercados. As decisões têm que buscar, tanto o quanto possível, o melhor resultado coletivo e não apenas o interesse isolado de um demandante específico. O julgador tem que saber como o mercado interpreta uma decisão judicial. Se julgarmos contra a regra, aumentamos os riscos nos mercados, que vão se proteger. E como? Embutindo o risco nos preços dos serviços e produtos. No final, quem pagará a fatura é o consumidor. Quando se pensa estar protegendo um consumidor ao dar a ele uma proteção jurídica sem um efetivo direito, esta conta será dividida com todos os consumidores daquele mercado. Então, surge a pergunta: será que os outros consumidores, sabendo disso, vão querer pagar esta conta ou vão preferir que o juiz seja rigoroso na análise de quem tem ou não razão?

ConJur — Como será possível fazer isso?
Werson Rego — Trabalhando em diversas frentes: a especialização do julgador, a qualificação da sua assessoria, a orientação adequada aos agentes econômicos e a formação de base teórica a dar suporte a todas essas ações, entre outras. A ideia é mostrar que a judicialização é um fenômeno social crescente e que o protagonismo judicial é importante. No entanto, o ativismo judicial deve respeitar certos limites. As câmaras do consumidor têm que atuar com o foco na segurança jurídica. É preciso levar paz, harmonia e equilíbrio para os mercados de consumo. E isso se faz dando razão a quem tem, reconhecendo direitos a quem tem, sem se preocupar muito se trata-se do fornecedor ou consumidor. Deve-se deixar de lado as rotulações a fim de evitar-se preconceitos que podem levar à adoção de uma postura de paternalismo exagerado. O consumidor tem que ser protegido, por ser vulnerável, mas não pode ser tratado como incapaz. 

ConJur — Mas essa postura dos juízes não é exigido pelo próprio CDC, que é uma legislação mais protecionista?
Werson Rego — Não existe problema em termos uma legislação paternalista. O problema está no excesso. O Código de Defesa de Consumidor é um exemplo de paternalismo jurídico, mas o vocábulo paternalismo tem que ser desmitificado. Não posso encarar o vocábulo como algo ruim. Paternalismo jurídico significa proteção jurídica do vulnerável. E é normal que existam leis que protejam o vulnerável. O CDC cumpre também essa finalidade. Neste sentido, temos um paternalismo jurídico positivo, por assimetria de informações, que visa a tutela do vulnerável. Ou seja, em que o Estado pode intervir para assegurar ao indivíduo a tomada da decisão mais adequada.

ConJur — De que maneira o consumidor é tratado como incapaz?
Werson Rego — Retirando dele a responsabilidade pelos atos que pratica. O consumidor que, devidamente informado e esclarecido, que teve o prazo de reflexão, fez a sua escolha e errou, deve assumir a responsabilidade. Se tudo o que se exigia do fornecedor foi satisfeito, não se pode retirar do consumidor a responsabilidade pelo ato de decidir. Não podemos apenas dizer “ele fez um mal negócio, vamos rescindir o contrato e devolver a ele tudo o que pagou”. Deve-se respeitar as escolhas que ele fez livremente. 

ConJur — Há muitas decisões nesse sentido?
Werson Rego — Sim. No entanto, devemos trabalhar para corrigir isso. Do contrário, incidiremos no que a doutrina refere como paternalismo pretoriano.

ConJur — Por que os juízes julgam assim?
Werson Rego — Pela conjugação de alguns fatores. O primeiro por um sentimento humano: há uma tendência do ser humano em tutelar e proteger o mais fraco, solidarizando-se com o mesmo. Segundo, como se tratam de mercados complexos e dinâmicos, com normatizações específicas, se o julgador não tiver uma formação acadêmica ampla e, ao mesmo tempo, conhecimento das particularidades desses mercados, a qualidade da decisão pode ficar comprometida. Há também a ausência de visão a longo prazo. Muitas vezes se foca apenas no processo específico, na situação pontual que foi levada ao julgamento, sem se preocupar com o impacto e a repercussão da decisão a médio e longo prazos nos mercados nos quais a discussão se estabeleceu. 

ConJur — Diante desse cenário, as decisões proferidas em direito de consumidor realmente cumprem a função pedagógica?
Werson Rego — Um dos objetivos desse esforço é conferir caráter pedagógico aos julgados das câmaras especializadas, que têm a missão não apenas de decidir os conflitos de interesse, mas também de orientar os mercados e pautar os agentes econômicos ao definir, com objetividade e clareza, o que é certo e o que é errado. Hoje não se tem a dimensão dessa função pedagógica; os julgados ainda são muito divergentes. As vezes há posições sobre uma mesma matéria conflitantes dentro da própria câmara. A segurança para decidir contramajoritariamente só o especialista tem. E para fazer isso, tem que ter o domínio da matéria e analisar o caso com muita profundidade para que se possa tomar uma decisão que contrarie o senso comum.

ConJur — Com as câmaras dos consumidores, uma nova demanda eclodiu no Órgão Especial, que são os conflitos de competência para avaliar se determinada matéria deve ser julgada pelas câmaras cíveis ou especializadas em direito do consumidor. Como o senhor avalia isso?
Werson Rego — É natural, primeiro pela novidade. Somos o único tribunal a ter câmaras especializadas em direito do consumidor. Ainda existe muitas incertezas. Temos uma especialização regimental, mas até chegar a uma especialização efetiva de julgamentos, ainda há um percurso. Daqui a um tempo, quando as câmaras já estiverem melhor estruturadas e houver certa uniformidade de entendimento em relação a questões que têm que ser julgadas, isso vai diminuir substancialmente. Para avançar precisamos estruturar melhor essas câmaras. O ideal também seria aumentar o número de câmaras do consumidor, até pela questão de volume de trabalho. Cinco câmaras respondem por 45% dos processos cíveis do TJ. E as outras 22 dividem os 55% que sobraram. Então, há muito o que fazer. 

*Texto atualizado às 14h35 desta segunda-feira (14/9). 



Giselle Souza é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.



Revista Consultor Jurídico, 14 de setembro de 2015, 8h37

‘‘Empurrar’’ assinatura de jornal de forma ardilosa causa dano moral, decide TJ-RS








Cobrar por uma assinatura que o consumidor não fez, utilizando-se de suas informações bancárias de forma engenhosa, para enganá-lo, é conduta ilícita que configura o dever de indenizar. O entendimento levou a 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a negar apelação do jornal Pioneiro, de Caxias do Sul, condenado a reparar moralmente uma consumidora, ludibriada ao ‘‘aceitar’’ a promoção de assinantes ‘‘para experimentar’’. Após o fim da experiência, sem ser consultada, ela continuou recebendo o diário — com valor debitado em sua conta.

No primeiro grau, a juíza Romani Dalcin, da 2ª Vara Cível da Comarca de Bento Gonçalves, se convenceu que a parte autora não solicitou qualquer serviço. A conduta se revelou abusiva conforme o artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, que proíbe o envio de qualquer produto ao consumidor sem sua autorização.

Além disso, discorreu na sentença, o jornal não tem o direito de implementar contrato de prestação de serviços, inclusive com débito de valores em conta, após o fim do prazo de promoção. A seu ver, atribuir ao consumidor a responsabilidade pelo cancelamento de serviço — em caso de desinteresse pelo jornal — demonstra manobra ardilosa e abusiva, contrária a boa-fé negocial. Nesse ponto, a julgadora citou o artigo 37 do CDC que, em seu parágrafo 1º, deixa claro que é enganosa qualquer modalidade de informação capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.

Na percepção da juíza, embora a autora tenha autorizado o recebimento gratuito de exemplares por determinado período, acabou ludibriada em relação à conclusão da promoção. ‘‘Aqui, houve o incitamento da autora para que fornecesse seus dados bancários somente para fins de cobrança do custo do envio, restando ainda salientado pela atendente que não havia outra forma de pagamento, como boleto ou cartão. Ou seja, a ré utilizou o artifício de cobrança do custo de transporte dos exemplares durante a promoção no intuito de colhimento de dados de conta bancária da autora, que futuramente serviram para a efetivação de débito automático das mensalidades do jornal’’, elucidou.

Na corte, o desembargador-relator Marcelo Cezar Müller também viu má-fé, pois o réu ofereceu um produto e cobrou por outro não solicitado, aproveitando-se do fato de ter, em seu poder, os dados bancários da autora. Ele manteve a restituição dos valores pagos a mais e confirmou o quantumindenizatório por danos morais — fixado em R$ 2 mil. O acórdão foi lavrado, com entendimento unânime, na sessão do dia 30 de julho.

Ação indenizatória
Em 24 de julho de 2012, a autora foi contatada por telefone pelo setor de vendas de assinaturas do jornal Pioneiro, que circula em Caxias do Sul e nos demais municípios da Serra gaúcha. Foi-lhe oferecida uma promoção para recebimento dos exemplares de forma gratuita, durante o período de dois meses, para ‘‘experiência’’.

Durante o diálogo que manteve com a atendente, ela deixou claro que não tinha interesse na assinatura do jornal, principalmente pelo fato de não tratar de matérias e notícias relacionadas à região de sua residência, pois reside em Bento Gonçalves. Na mesma ligação, questionou expressamente a atendente sobre o período posterior à remessa de exemplares gratuitos.

A resposta, segundo áudio anexado aos autos, é a seguinte: "A gente vai entregar para a senhora por 37 dias, de segunda a sábado (…) Caso a senhora queira entrar em contato para autorizar a gente ancontinuar mandado o jornal, a gente continua. Caso a senhora não autorize, a gente não pode mandar nada, por que a senhora está constando conosco uma experiência. Não é fechado o contrato com a senhora, por isso que o valor é diferente". A atendente se comprometeu a contatá-la após os 37 dias, para saber de seu interesse, mas não o fez.

Findo o prazo, mesmo sem autorização, ela continuou a receber diariamente o jornal em sua residência. Percebeu que, mensalmente, era debitado na sua conta o valor de R$ 41,90 sob a rubrica “débito automático Pioneiro”. Resolveu, então, contatar o jornal, a fim de suspender a cobrança — o que conseguiu, depois de muito insistir. Não recebeu, entretanto, os valores cobrados indevidamente.

Em face do ocorrido, a autora ajuizou Ação Declaratória de Inexistência de Débito cumulada com Indenização por Danos Morais e Materiais contra a empresa jornalística, protocolada na 2ª Vara Cível da Comarca de Bento Gonçalves.

A empresa apresentou contestação. Argumentou que a autora aceitou os termos da proposta, feita por telefone, ou seja, teria concordado em receber o diário pelo período de 37 dias, pagando o valor de R$ 0,97 o exemplar. Sustentou que o diálogo registrado no sistema de telemarketing revela autorização da consumidora, incluindo os dados bancários, para débito automático.

No diálogo, segundo a defesa da empresa, foi salientado que a regra da promoção obrigava a autora a entrar em contato com o jornal após o período de 37 dias. Assim, se não houvesse o cancelamento do jornal, o valor normal do custo do exemplar passaria a ser debitado em conta, mantendo-se o contrato por tempo indeterminado. Como procedeu ao pedido de cancelamento quando contatada pela consumidora, não se poderia falar em abusividade de conduta a dar margem a reparações.

Clique aqui para ler o acórdão.


Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.



Revista Consultor Jurídico, 7 de setembro de 2015, 11h16

Relação entre investidor e bolsa de valores é regida por lei especial, não pelo CDC




As relações donos de ações e bolsas de valores são especiais e não podem ser reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor. De acordo com decisão da 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, são a Lei 6.385/1976 e as instruções normativas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão regulador do setor, que tratam das relações entre investidores e bolsas.

Por isso, o tribunal deu provimento recurso da BM&F Bovespa contra decisão que a condenou a indenizar um grupo de investidores por perdas em investimentos.

O relator do Agravo de Instrumento, desembargador Paulo Sérgio Scarparo, escreveu no acórdão que o CDC, pelo seu caráter paternalista, tende a equilibrar as relações de consumo diante da enorme disparidade entre fornecedor e consumidor. Este último, como a parte vulnerável, não detém o conhecimento técnico-científico da outra.

Entretanto, advertiu o desembargador, no caso das relações comuns nas bolsas de valores, não há vulnerabilidade. Segundo Scarparo, citando a doutrina do ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal Federal, o CDC se presta a proteger a parte mais fraca contra formas assimétricas de mercado. Sem assimetria, não cabe a sua aplicação.

"Por mais que haja a prestação de um serviço, no caso, não pode o investidor ser qualificado como destinatário final do bem econômico transacionado, tampouco ser identificado como vulnerável, hipossuficiente na relação, face ao inequívoco conhecimento dos riscos inerentes a ele. Não bastasse isso, não restou demonstrada pela parte autora a caracterização de hipossuficiência a justificar a incidência do diploma consumerista", justificou. O acórdão foi lavrado na sessão de 27 de agosto.

Clique aqui para ler o acórdão.


Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.



Revista Consultor Jurídico, 17 de setembro de 2015, 12h23

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Consumidores recebem R$ 15 mil de Oi e Tim por quedas de telefone e internet






O serviço de telecomunicações é considerado essencial, conforme o artigo 11, inciso VII, da Resolução 414/2010 da Agência Nacional de Energia Elétrica. Dessa forma, a frequente interrupção dos sinais de telefone e internet gera transtornos aos consumidores, configurando dano moral. Com esse entendimento, a 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná condenou as operadoras Oi e Tim a pagar indenização de R$ 15 mil a clientes que sofrem com quedas nos serviços a cada duas semanas.

Os casos ocorreram na cidade de Palmas, no interior do estado. Os consumidores entraram na Justiça reclamando de terem que ficar sem telefone e internet duas vezes por mês, por períodos entre 12 e 24 horas. Segundo eles, essa falha estaria prejudicando suas vidas. Por isso, pediram indenizações por danos morais. As ações foram movidas por Eduardo Tobera Filho, do Tobera Advogados Associados.

O juízo de primeira instância julgou parcialmente procedentes as ações, reconhecendo o vício nos serviços, mas dividindo as custas processuais e os honorários de sucumbência entre as partes. Diante dessa decisão, os consumidores interpuseram apelação reafirmando os danos causados pela injustificada e frequente suspensão de telefone e internet. As operadoras, por sua vez, alegaram que a conduta não foi antijurídica e que a atividade de telecomunicações possui uma margem de queda nas ligações reconhecida pela Aneel.

Ao analisar as apelações, a relatora dos casos, desembargadora Lenice Bodstein, comprovou as falhas nos serviços da Tim e da Oi em Palmas e reconheceu a ocorrência de danos morais, devido ao caráter essencial dos serviços de telecomunicações: “Os danos morais, portanto, derivam da prática abusiva por parte da empresa requerida, que deixou de adimplir com as obrigações contratadas, somada ao transtorno, abalo, angústia, desgaste e prejuízos causados ao consumidor decorrente de tal fato”.

Lenice também desconsiderou o argumento da Tim e da Oi de que não eram culpadas pelas quedas por elas não terem sido intencionais, com base na teoria da responsabilidade objetiva do fornecedor: “Como a atividade em questão está sujeita à disciplina consumerista e ao risco do empreendimento, não pode a empresa se eximir da responsabilidade de indenizar por eventual dano causado, ainda que de forma involuntária”.

Com isso, a desembargadora fixou as indenizações por danos morais em R$ 15 mil. Além disso, ela determinou que a Tim e Oi arquem com todas as custas processuais e com os honorários de sucumbência. Os demais integrantes da 11ª Câmara Cível do TJ-PR seguiram o entendimento da relatora.

Clique aqui e aqui para ler as íntegras das decisões.
Apelações 1382393-9 e 1383785-1


Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.



Revista Consultor Jurídico, 14 de setembro de 2015, 13h46

Pet shop terá de indenizar dona de cadela que morreu atropelada



A perda de animal de estimação atinge seu dono, que merece ser compensado, ainda mais quando houve falha de serviço profissional de fornecedor. As considerações são da 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao condenar um pet shop a indenizar em R$ 5 mil a dona de uma cadela que morreu por descuido dos funcionários do estabelecimento.

Segundo a dona do animal, ele foi deixado no estabelecimento para fazer higienização. Após duas horas, a mulher foi buscar a poodle de estimação, conforme o combinado, sendo recebida de forma evasiva pela veterinária. Ficou sabendo, então, que a cadela havia fugido em direção a um parque e que funcionários teriam ido procurá-la. Contou que, ao sair do estabelecimento para ajudar na busca, foi informada por telefone de que o animal tinha morrido ao ser atropelado.

No processo, a dona afirmou que era muito apegada ao bicho e que ele fazia parte da convivência familiar havia sete anos. A empresa alegou não ter sido informada de que a cadela era arisca e de difícil trato. Afirmou que os encarregados deram a atenção necessária e que a fuga aconteceu devido ao ingresso de terceira pessoa na loja.

Disse ainda que os veterinários foram prontamente procurar o animal, mas, ao encontrá-lo, o acidente já havia acontecido. O estabelecimento declarou ainda ter proporcionado a cremação e que tentou diminuir a dor oferecendo outro animal com as mesmas características.

Na 8ª Vara Cível de Porto Alegre, o juiz Paulo Cesar Filippon fixou o pagamento da indenização em R$ 5.068. As duas partes apelaram ao TJ-RS: a empresa requerendo a improcedência da ação, e a cliente, maior valor da indenização.

Mesmos termos
De acordo com o relator do caso, desembargador Marcelo Cezar Müller, a responsabilidade é da demandada, uma vez que acolheu o animal em seu estabelecimento. Deve, portanto, ficar com a obrigação de devolvê-lo à cliente. Afirmou que não é justificada a culpa exclusiva de terceiros, pois faltou o dever de vigilância sobre o animal. Concluiu ainda que a fuga de um bicho é fato previsível e por isso o prestador de serviço deve ter o devido cuidado para evitar o acidente.

O valor da indenização foi estipulado levando em conta reprovabilidade da conduta ilícita, intensidade do sofrimento causado, condições sociais, capacidade econômica, compensação à vítima, punição ao ofensor e coibição da prática de novos atos.

Processo 70065451809


Revista Consultor Jurídico, 15 de setembro de 2015, 12h54

Não é rigor comparar leis com ovos, mas, sim, com caixas de ovos!






A frase do título vem de Bobbio, um positivista de cepa. Não um positivista exegético, mas já um da tradição que vem para superar o positivismo primevo. Mas ainda um positivista, de outro tipo, o normativista. Como Ferrajoli, que de há muito faz uma guerra contra o paleojuspositivismo. Sou antipositivista. Nenhuma forma dele é aceitável. Isto porque todos eles apostam em algo não democrático: o discricionarismo, em suas variadas formas. Já escrevi muito sobre isso. EmLições de Crítica Hermenêutica do Direito (saiu a segunda edição), Hermenêutica e(m) Crise eVerdade e Consenso deixo isso bem claro. Não vou explicar aqui os detalhes, é claro. Só quero dizer que, mesmo vindo de um positivista, a advertência de Bobbio é oportuníssima para um país em que o voluntarismo judicial é a regra. Como diz Bobbio: o mesmo tipo de caixa pode ser enchido com flores e com explosivos... e o ofício de fazer caixas é diferente do ofício de enchê-las. Ele queria criticar o formalismo e o jusnaturalismo. E eu quero criticar o voluntarismo, que abarca algo como neoconstitucionalismos, pamprincipiologismos, realismos jurídicos, etc. Por isso, acrescento à frase de Bobbio o seguinte: na democracia, devemos encher a caixa... com ovos. E não com qualquer coisa. Afinal, é uma caixa... de ovos. Podem ser ovos de vários tipos. Mas são ovos. Bingo. Saindo do contexto do tempo de Bobbio, penso que isso é muito útil e oportuno para o nosso direito. Ainda que não se especifique o que deve ser posto na caixa, mesmo assim os objetos não estarão sob a livre escolha. Esse será o papel da tradição, da reconstrução da história institucional do fenômeno “caixa”, enfim, tudo o que a hermenêutica pode contribuir para a busca de respostas adequadas. Afinal, o conceito de caixa sempre estará referido a algo. Nunca será “qualquer coisa”. E sobre essa coisa não se poderá dizer qualquer coisa. E tampouco colocar qualquer coisa... E assim por diante. E não esqueçamos que, no exemplo de Bobbio, a caixa é de... ovos. O que facilita a discussão.

Nessa linha, oportuno também foi o artigo do presidente da Suprema Corte brasileira, ministro Ricardo Lewandowski. Oportuno e claro, o ministro colocou alguns pingos nos “is” que estavam perdidos no entremeio do imaginário dos juízes. Muitos “is” andavam sem o ponto por aí. Cada chapéu, portanto, deve achar a sua cabeça. Ou vice-versa.

Entre outras coisas, disse o ministro-presidente: “Por mais poder que detenham, os juízes não constituem agentes políticos, porquanto carecem do sopro legitimador do sufrágio popular”. Mas a frase mais importante foi:

"Tampouco é permitido que proponham alterações legislativas, sugiram medidas administrativas ou alvitrem mudanças nos costumes, salvo se o fizerem em sede estritamente acadêmica ou como integrantes de comissões técnicas".

Pois bem. Leio a exposição de motivos do Projeto de Lei 2.913/15, assinado pelo desconhecido deputado Victor Mendes (PV-MA), que pretende estender o prazo de vacatio do novo CPC para três anos. Sim. É isso. O deputado, ao apagar das luzes do prazo em vigor, quer dar o drible da vaca e espichar o prazo para mais dois anos. E, quem sabe, com outro projeto a ser proposto em setembro de 2018, para mais cinco anos. Poderia o deputado assistir ao filme Os Deuses Devem estar Loucos (ler aqui a coluna...). Pois ele parece ser o personagem Zi, escalado para levar para fora da aldeia o objeto que causa tanto desconforto aos nativos. Bingo. O deputado Victor é o Zi do filme.

Mas, o que diz a aludida exposição de motivos? O projeto é inspirado naquilo que entende a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB). Também os corregedores-gerais de justiça aprovaram tese nesse sentido e são mencionados na exposição de motivos. Vejamos: o “Deputado Zi” do PV-MA tem uma epifania e resolve propor o projeto de lei que estende a vacatiodo novo CPC. Só que essa “epifania de Zi” advém de uma fonte que deveria cumprir a lei aprovada no Parlamento. Sim. Existe um dispositivo no CPC (artigo 1046) que trata do prazo da vacatio. Ou seja: já iniciamos desobedecendo.

É incrível como o novo CPC causa desconfortos e protestos no seio de parcela significativa do Poder Judiciário. Com razão, Guilherme Rizzo do Amaral chama a isso de “neofobia”. Qual seria a razão dessa neofobia? Bom, basta ver os pedidos de veto formulados pelas associações de classe dos magistrados junto à presidente da República. Em várias notas técnicas, pediram vetos justamente aos dispositivos que podem vir a trazer aquilo que mais falta hoje na justiça: previsibilidade nos julgamentos, que somente advém da exigência de uma fundamentação que, por sinal, já existe na Constituição desde a sua promulgação (artigo 93, inciso IX). O alvo principal, como se sabe, é o artigo 489 do CPC.

Portanto, não me parece adequado à democracia que setores da magistratura sejam protagonistas (mesmo que indiretamente) de projeto de lei que pretende estender a vacatio do primeiro Código aprovado no regime democrático. O Código tem problemas? Claro que sim. Imaginemos o Código de 1973. Até hoje não estão solucionados. Mas todas as codificações do mundo apresentam problemas. As leis não são perfeitas. Nenhuma lei possui as respostas antes das perguntas. Estas só surgem da concretude, da sangria do cotidiano. Se uma lei contivesse todas as hipóteses de aplicação seria uma lei perfeita. Se fosse uma lei perfeita, não precisaria de nós, os juristas. Simples assim.

O caminho se faz caminhando. Passo a passo. Transferir o problema para daqui a dois anos e três meses somente dará azo a uma confusão política, porque não faltarão emendas para alterar o CPC antes deste ser experimentado. Na verdade, a vacatio estendida para três anos fará com que relaxemos. E como os juristas tem memória curta, corremos o risco de arquivar o novo CPC.

Como já alertei aqui tantas vezes, vivemos um paradoxo: estamos no século XXI e pensamos (e temos saudades) do direito do século XIX. Sim, naquele século se buscava respostas antes das perguntas. O direito feito pelo legislador, na França; o direito feito por professores, na Alemanha; o direito feito por precedentes (tão duros e herméticos como a lei no exegetismo e aspandectas na jurisprudência dos conceitos), na Inglaterra. Com todos os avanços paradigmáticos, os juristas adoram, ainda hoje, fazer enunciados. O que são enunciados? Conceitos sem coisas. Enfim, nada mais, nada menos do que a tentativa metafísica de encontrar respostas antes das perguntas. Ora, essa questão é tão complexa que aqui recomendo a leitura da obra de Regina Ogorek (Richterkönig oder Subsuntionsautomat? Zur Justizlehre im 19. Jahrhundert), em que a autora demonstra que os positivistas de então já estavam conscientes da impossibilidade de controlar a interpretação desde a generalidade da lei. Tratava-se de uma questão política. Bingo. Mas o mais importante é que se pode dizer que a maioria dos pandectistas não defendeu um papel mera ou puramente mecânico. O que eles não aceitavam é que fosse usada uma valoração vinda de fora do direito, como critérios pessoais dos juízes, etc. Penso, pois, que um pandectista como Windscheid faria uma boa crítica aos enunciados da Enfam. Não somente a estes... Há tantos outros enunciados por aí...

Sigo. A lo largo disso, parece que, neste momento, setores da magistratura não se contentam com enunciados, muitos deles feitos na contramão do novo CPC; agora, o ataque é frontal. O alvo? Em um primeiro momento, a extensão do prazo da vacatio; em um segundo momento, a extinção do próprio Código. Ele é ruim, dizem. Vai trazer o caos, dizem outros. Vamos salvá-lo com a feitura de enunciados. Milhares deles darão a nova conformação. O que tem sido dito em Congressos sobre o novo CPC é algo impublicável. Cobras e lagartos. Não me admira, portanto, o projeto ZI; e não me admirarei se, depois de aprovado o projeto ZI, a aprovação de um novo projeto: a da não entrada em vigor do novo CPC. Que, assim, ficará no limbo. Para as calendas.

Vejam: não sou eu que estou de implicância. Sei que é antipático fazer críticas seguidas à magistratura. Em Pindorama, país notoriamente patrimonialista, sempre se dirá que “é ruim criticar os juízes, porque eles têm a caneta na mão”. Pode ser. Mas temos de colocar o sino no pescoço do gato. Como diz o comentarista da ConJur Marcos Alves Pintar, há pelo menos dois anos que os principais temas inovadores do CPC já vinham (e vem sendo) alvo de artigos e amplas discussões. Ninguém foi pego de surpresa. Os comentários à matéria escrita por Tadeu Rover no ConJur, com raríssimas exceções, todos são no sentido de que o projeto de lei do deputado Zi é uma desmoralização do direito e da democracia. Aliás, Marcos Pintar diz uma frase que reflete a angústia dos advogados pindoramenses: a de que o advogado é detentor de direitos. Bingo! Sérgio Niemeyer também demonstra a sua contrariedade. Quando surgiu a notícia de que a Enfam tinha aprovado 62 enunciados, escreveu de forma contundente comentário à matéria. Os advogados Carlos, Marcos, Ramiro, Ademilson, Kelsen e outros — que igualmente comentaram a matéria — mostram a indignação da sofrida classe dos advogados.

Como disse, estou bem acompanhado. É só ler o que disse, na mesma matéria, o presidente da OAB, Marcus Vinícius e os juristas Bruno Dantas, Dierle Nunes, Lúcio Delfino e Alexandre Nasser Lopes.

Enfim, parece que o lema é: Para quê mudar? Sempre foi assim. Bom, o “sempre foi assim” é, na verdade, uma falácia realista, filosoficamente falando. Por isso, a feitura de enunciados tem uma relação direta com tudo isso que está acontecendo. No fundo, é uma concepção que mistura, indevida e equivocadamente, os paradigmas pré-moderno e moderno. Ao mesmo tempo, querem fazer conceitos que antecipam as respostas e, paradoxalmente, tais conceitos advém de uma concepção solipsista. Alhos e bugalhos, pois. Se ao menos se dessem conta que, para buscar a repristinação de um conceptualismo, não se podem construir tais conceitos a partir de uma livre apreciação. Misturar objetivismo como subjetivismo dá nisso.

Vamos ver no que vai dar o tal projeto. Enquanto isso, vale a pena reler o artigo do ministro Lewandowski. E reler Norberto Bobbio.

Ainda numa palavra: aceitaria de bom grado — e penso que a comunidade jurídica também — uma extensão da vacatio legis se a magistratura tivesse mostrado, desde o início, seu comprometimento na aplicação integral do novo CPC. O problema é que a extensão da vacatio se mostra como um plusem relação à desobediência civil em relação aos pontos principais do Código. E isso é inaceitável. Como disse, não estou sozinho nesse protesto em relação ao projeto capitaneado pelo deputado Zi-do-PV-do-Ma. Somos centenas de milhares de advogados e outros miles pertencentes às carreiras jurídicas. Mandem fonogramas (acho que o deputado Zi ainda usa fonograma) e e-mails para o endereço dep.victormendes@camara.leg.br (ou ligue (61) 3215-5580 — Fax: 3215-2580. Protestem. Não à extensão da vacatio. Sim à implementação do CPC no prazo legal.

Lembremos: leis não são ovos; se tivermos que compará-las, comparemo-las com caixas-de-ovos; mas que devem ser enchidas com ovos... de vários tipos. Vamos ter grandes discussões sobre que tipo de aves ou se os ovos são só de ovíparos ou também de vivíparos. Mas sempre ovos. Por exemplo, os ovos de cobras, neste caso, representam os casos trágicos; e ovos de peixes? Bom, neste caso, penso que ovos de peixes serão inconstitucionais, se me permitem brincar um pouco com essa complexidade que é o direito. Mas graças a essa complexidade, teremos trabalho e emprego pelas próximas décadas. Por isso, paremos de dizer que as caixas de colocar ovos não são importantes, se me permitem, agora, uma ironia epistêmica (ou um sarcasmo hermenêutico).

Post scriptum:
De todo modo, se efetivamente o prazo for estendido, que ao menos façamos uma profunda discussão acerca do tema que parece ser o mais preocupante: o dos recursos cujos juízos de admissibilidade agora não serão mais feitos na origem. Assim como é urgente que o Superior Tribunal de Justiça crie uma ou duas Turmas encarregadas de julgar habeas corpus — porque a liberdade é, junto à vida, o bem supremo — e também monte uma estrutura para o exame da nova forma de admissibilidade e julgamento dos recursos prevista pelo CPC. Isso demanda, evidentemente, um aumento significativo (quem sabe, o dobro) do número de ministros do STJ (circunstância que se estende ao STF). Sei que ninguém gosta de repartir poder. Mas parece que é desejo dos advogados e dos próprios magistrados que os tribunais tenham mais membros. Um país da dimensão do Brasil não pode conviver com um tribunal encarregado de dizer o direito ordinário com apenas 33 membros; tampouco uma Suprema Corte com apenas 11 componentes. Recurso quer dizer: só tenho mais uma chance. Só que não adianta estendermos as possibilidades de interpor recursos e não termos estrutura para implementar a inovação. Portanto, a parte de sermos contra ou a favor da extensão da vacatio legis, pensemos no futuro do país.



Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.



Revista Consultor Jurídico, 17 de setembro de 2015, 8h30

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