terça-feira, 9 de setembro de 2014

CÓPIA SIMPLES DE PROCURAÇÃO PROVA QUE ADVOGADO REPRESENTA EMPRESA


Cópia simples de procuração prova que advogado representa empresa



A legislação brasileira não exige que o advogado de empresa apresente a chamada procuração ad negotia (por meio da qual se outorga poderes para a administração de negócios) para comprovar sua regular representação processual e atuar em juízo. Com esse entendimento, a 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a Companhia Brasileira de Distribuição, que inclui o Grupo Pão de Açúcar, tem direito de ter um processo analisado.

A empresa questionava decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) que havia negado seguimento de um recurso porque o advogado do grupo apresentara procuração simples. Mesmo sem provocação da parte contrária, o TRT-2 avaliou que o documento não apresentava validade jurídica. Já a companhia alegou que a exigência de cópia autenticada do instrumento público de mandato sem determinação legal nem impugnação da parte contrária viola o princípio da legalidade.

O relator do caso no TST, ministro Renato de Lacerda Paiva, disse que a cobrança do documento configura rigor excessivo e viola o princípio da ampla defesa. Segundo ele, a procuração geral para o foro, em instrumento assinado pela parte, já habilita o advogado a praticar os atos processuais, nos termos do artigo 38 do Código do Processo Civil.

Ainda de acordo com o ministro, a Orientação Jurisprudencial 373 da SDI-1 não exige, para a validade de mandato de pessoa jurídica, a apresentação de procuração ad negotia, bastando a identificação da empresa e de seu subscritor. A decisão foi unânime. Com informações da Assessoria de Imprensa do TST.

Clique aqui para ler o acórdão.

Processo: RR-1468-36.2011.5.02.0065

Fonte: TST

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

"DIREITO À FELICIDADE ELEVA OS PROPÓSITOS DO STF, NÃO OS DEPRECIA"


"Direito à felicidade eleva os propósitos do STF, não os deprecia"




A ideia de que o Produto Interno Bruto não é o melhor número para se avaliar o bem-estar de uma nação já foi defendida por prêmios Nobel como Joseph Stiglitz e Amartya Sen. O Índice de Desenvolvimento Humano já faz parte dessa avaliação desde meados de 1993 graças à Organização das Nações Unidas, e inclui padrões mínimos de vida e de sustentabilidade. Um olhar mais atento, no entanto, começa a perceber uma nova mudança, que já chega à Justiça. Em todo o mundo, diversos precedentes já usam o conceito de "direito à felicidade". Longe de ser um critério subjetivo ou de inaugurar um princípio, a novidade tem aplicações práticas e já foi usada até mesmo pelo Supremo Tribunal Federal, ao decidir que casais homoafetivos têm direito à união estável. 

O advogado Saul Tourinho Leal monitorou esses julgados durante quatro anos — em três continentes. Agora, o constitucionalista, que dá aulas no Instituto Brasiliense de Direito Público, lança a obra Direito à Felicidade, fruto de sua tese de doutorado a respeito. 

Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP e atua no Supremo pelo escritório Pinheiro Neto Advogados. Foi pesquisador visitante na Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, e esteve no Quênia para falar de ativismo judicial a convite da Comissão de Implementação da Constituição do país. 

Embora trate do mesmo tema, a tese nada tem a ver com a chamada PEC da Felicidade, proposta em 2010 — que não andou, segundo Leal, devido ao preconceito contra seu suposto subjetivismo. "O direito à felicidade já está positivado na Constituição, quando menciona o 'bem-estar' da população", garante. 

Participação popular, busca da felicidade e direito aos meios para essa busca são os três pilares que sustentam uma gama de centenas de outros, com um alicerce importante. "Diante o desafio de tomar uma decisão pública dentre várias opções possíveis, deve-se primar por aquela que amplie a felicidade de todos no longo prazo", explica. 

O "cartão de visitas" da tese é o voto do ministro Celso de Mello, do STF, no julgamento do direito de casais homoafetivos formalizarem união perante o Estado — clique aqui para ler. Para o ministro, o direito dos homossexuais está baseado, entre outras previsões constitucionais, no "direito à busca da felicidade". O voto citou artigo de Tourinho Leal a respeito. 

Envolvido na pesquisa, o advogado viveu outra experiência que também virou livro. Na África do Sul, acompanhou o funeral do líder Nelson Mandela e a comoção nacional causada pela partida do responsável pela unificação de um país reconstruído graças ao respeito à história das vítimas da violência do apartheid, sem ceder à tentação do revanchismo. Para Leal, diferentemente dos sul-africanos, o Brasil está longe de fechar suas feridas justamente porque insiste em manter o ódio contra algozes da ditadura militar. Publicada este ano, a obra A Construção dos Direitos Fundamentais e a Esperança: Da África do Sul ao Brasil compara as diferenças e avalia os novos movimentos populares brasileiros sob o enfoque do que diz ter sido o combustível das manifestações de junho de 2013: a esperança. 

Leia a entrevista:

ConJur — Como surgiu a ideia de uma tese sobre o Direito à Felicidade?
Saul Tourinho Leal — Tem coisas que a gente não consegue explicar. Em 2008, eu estava na sessão do Supremo Tribunal Federal acompanhando os julgamentos. Estavam decidindo se o estado de Pernambuco deveria indenizar um garoto que ficou tetraplégico após ser alvejado num assalto em Recife. De repente, o ministro Celso de Mello se opôs ao voto da relatora e concedeu o pedido. Dentre os argumentos, citou o "direito à busca da felicidade". Fiquei arrepiado. Eu era aluno do mestrado no Instituto Brasiliense de Direito Público e passei a estudar o assunto. Escrevi um artigo e publiquei no site do IDP. Anos depois, novamente no STF, vejo o ministro Celso de Mello mudar o tom de voz para se manifestar sobre o caso das uniões homoafetivas. A corte era pura emoção. O ministro menciona o meu artigo e usa-o como parte dos seus argumentos, permitindo a união homoafetiva no Brasil. Eu não acreditei. Como assim? Ali eu percebi que havia um propósito maior.

ConJur — Como esse conceito pode mudar as decisões políticas e judiciais?
Saul Tourinho Leal — Ele abraça duas premissas: na primeira, devemos considerar as consequências das decisões públicas. Depois, a meta de boa parte delas deve ser a ampliação da felicidade ao maior número de pessoas. “Boa parte” porque pode ser que, em alguns casos, esse raciocínio colida com os direitos das minorias. Nessa hipótese, o escudo da dignidade da pessoa humana é mais forte e o raciocínio não pode ser aplicado. Quanto às políticas públicas, vamos a um exemplo: ter um carro, uma moto, é sinônimo de liberdade, de autonomia, dois bens valiosos para a teoria da felicidade. Contudo, devemos pensar sempre no longo prazo. Quais os efeitos da explosão do número de veículos? Os engarrafamentos, os atrasos, o estresse, as batidas, a ampliação do valor das franquias de seguro... Isso é bom para a felicidade? Claro que não. Devemos expulsar as pessoas das cidades? Também não, elas são felizes morando ali. Então como decidir? Primeiro, sabendo o que é importante para as pessoas e o quanto isso afeta sua sensação de felicidade. Pedágio, rodízio ou transporte público? Podemos reposicionar a política e investir naquilo que, no longo prazo, faça as pessoas mais felizes.

ConJur — De que direitos estamos falando exatamente?
Saul Tourinho Leal — Primeiramente, o direito à felicidade pública, que é a participação popular. Recente estudo que comparou a felicidade dos cidadãos de diferentes cantões suíços concluiu que há variações quanto ao nível de felicidade de acordo com a extensão da democracia direta — como iniciativas populares, referendos, plebiscitos. Quanto mais direta é a democracia, maior é a felicidade. É uma pesquisa de Bruno Frey. Se compararmos os cantões em que esses direitos são mais amplos com os em que são menos, a diferença na felicidade é tão grande quanto se a renda tivesse duplicado. Depois, temos o direito à busca da felicidade, que é o direito de perseguir um projeto de satisfação de aspirações legítimas, desde que não haja violações a direitos de terceiros. Na sequência, o direito aos meios à busca da felicidade, que consiste, segundo Adam Smith, em assegurar às pessoas um pouco de segurança, os direitos sociais. Tudo em sintonia com a dignidade da pessoa humana, ou seja, o direito à felicidade não abraça prazeres perversos. Por fim, a ponderação: diante o desafio de tomar uma decisão pública dentre várias opções possíveis, deve-se primar por aquela que amplie a felicidade de todos no longo prazo.

ConJur — Quanto essa ideia é inovadora no Brasil?
Saul Tourinho Leal — Em 1822, quando D.Pedro I decidiu desobedecer às ordens de Lisboa e permanecer no Brasil, foi saudado com gritos de “Viva a Constituição” e “Viva El Rei Constitucional”. A frase dele foi: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, diga ao povo que fico!” Era o nascimento do constitucionalismo brasileiro. Debates do STF sobre células-tronco embrionárias ou uniões homoafetivas invocam o direito à felicidade. Decisões sobre a Marcha da Maconha e as políticas de cotas, apesar de não usarem a palavra “felicidade”, se valem da escola utilitarista, cuja meta é ampliar a felicidade dos povos.

ConJur — Quais as previsões desse direito no mundo?
Saul Tourinho Leal — A felicidade é um direito na Declaração de Independência dos Estados Unidos, nas Constituições do Japão, Coreia do Sul, da República Francesa de 1958, Butão, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, até chegar à ONU, que aprovou uma resolução indicando que os governos devem elaborar suas políticas visando à felicidade. É algo relevante. A Grã-Bretanha, com David Cameron, criou um órgão para mensurar o impacto das políticas públicas na felicidade das pessoas. A França fez o mesmo, com o suporte de dois Prêmios Nobel, Amartya Sen e Joseph Stiglitz. Pesquisei o desenvolvimento da jurisprudência sul-coreana, norte-americana e brasileira. É impressionante a identidade de temas fundamentados no direito à felicidade: proteção à propriedade privada, combate aos excessos da tributação, liberdade para se casar com quem se quer, necessidade de ser deixado em paz — ou direito ao esquecimento — e respeito à privacidade.

ConJur — Quando sua tese foi defendida e quando o livro será lançado?
Saul Tourinho Leal — Defendi na PUC de São Paulo em agosto de 2013, numa banca coordenada por Marcelo Figueiredo, após quatro anos de pesquisas em três continentes, passando por instituições como a Universidade Georgetown, nos Estados Unidos, e tendo encontros com pesquisadores como Carol Graham, referência na aferição da felicidade dos povos. Agora, saiu uma edição do livro dirigida a pesquisadores. Mais à frente, quem sabe, teremos uma edição comercial.

ConJur — Quais foram os questionamentos que ela sofreu?
Saul Tourinho Leal — Falam da subjetividade da expressão. Também temem uma banalização dos direitos fundamentais e os riscos de conferir uma carta em branco a quem toma decisões públicas. Mas a fluidez do conceito de felicidade não é motivo para se negligenciar o tema. Quando o intelectual foge de temas complexos, quem perde é a comunidade. Os métodos científicos são objetivos, mas a ciência visa à verdade, e o que é a verdade? Aí já há fluidez. Imagine o pântano no qual estaríamos se não tivéssemos nos empenhado em debater o conceito de dignidade da pessoa humana. O conceito de justiça é fluido, mas nem por isso Hans Kelsen deixou de investigá-lo. O direito à felicidade invoca liberdade. Liberdade é um novo direito? Invoca condições mínimas de existência. Isso é um novo direito? Quanto à carta em branco, não sou eu quem deve fazer esse controle. O que devemos é nos precaver contra a retórica delirante, demagógica. Falo da Prússia, de Cuba, do Butão e da Venezuela, nações que invocaram a felicidade esquecendo-se da sua base: a liberdade. Questionar é um dever científico. Quem o faz está exercendo o seu papel. Mas não podemos esquecer que investigar e insistir também é. E é o que eu tenho feito.

ConJur — Essa discussão se encaixa em situações concretas ou é só um alicerce para uma mudança de pensamento?
Saul Tourinho Leal — Ela é importante porque reposiciona os propósitos públicos. Se uma nação se escandaliza quando se fala em felicidade dos povos, pode acreditar que o tempo gerou uma adaptação perversa em seu povo e que seus intelectuais estão ocupados demais para se debruçarem sobre temas valiosos. Essa tese tanto responde a inúmeros dilemas contemporâneos com segurança, como relembra o verdadeiro eixo do pensamento relativo ao papel do Estado.

ConJur — Como positivar o direito à felicidade?
Saul Tourinho Leal — Se eu escrevo num texto legal: “todos têm o direito à alimentação”, eu positivei, mas nem por isso as pessoas deixarão de sentir fome se nada for feito. A proteção jurídica ao direito à felicidade já existe na Constituição, explicitamente. Os economistas não usam só a expressão “felicidade”, eles falam em “bem-estar”. E o que diz o preâmbulo da Constituição? Que o Estado Democrático brasileiro se destina a assegurar o “bem-estar” de sua gente. Recentemente, na Associação dos Advogados de São Paulo, a ministra Cámen Lúcia, do STF, disse que o Estado existe para que as pessoas tenham mais chances de ser felizes. A ministra sabe o que está falando. Já o direito à busca da felicidade, esse é uma expressão da liberdade. Para que as pessoas busquem sua felicidade, temos que assegurar-lhes um prato de comida, um teto para dormir embaixo, um hospital para combater os males e uma escola para lhes tirar da ignorância. São os direitos sociais. Ou seja, a felicidade já está positivada.

ConJur — É possível ajuizar uma ação tendo esse princípio como base?
Saul Tourinho Leal — Ajuizar, sim, mas ter a concessão da aspiração à felicidade, por parte de um juiz, não. Imagine um sujeito que ajuíza uma ação dizendo que quer ser feliz. Isso é brincadeira. É como ajuizar uma ação querendo um bife à milanesa porque a Constituição assegura o direito à alimentação. Nós temos instituições, o Judiciário não está aí para brincadeiras. O que pode acontecer é a pessoa pleitear, por exemplo, a cirurgia conhecida como de mudança de sexo e, em seus fundamentos, suscitar o direito à busca da felicidade. Aí, sim. Estaríamos falando de desdobramentos do direito à felicidade. Nessas hipóteses, é plenamente possível.

ConJur — O condenado tem direito à felicidade? Em que medida?
Saul Tourinho Leal — Qual a finalidade das leis penais? A felicidade dos cidadãos, incluindo-se, nesse cômputo, os próprios condenados, que também devem ser considerados. Vamos a um caso concreto: um jovem do interior de Minas Gerais, sem antecedentes criminais, foi preso em flagrante e denunciado pela prática do crime de furto, por haver tentado levar um pedaço de carne de um supermercado. Após a prisão, sofreu uma ação penal. A Defensoria Pública tentou paralisar a ação no Tribunal de Justiça, mas o pedido foi negado. Um novo pedido foi feito, ao Superior Tribunal de Justiça, que também o negou. Ele chegou até a Suprema Corte. Lá, a ação penal foi paralisada. Essa decisão do STF mostra que Cesare Beccaria está certo quando disse ser melhor prevenir os crimes que puni-los: “Esta é a finalidade precípua de toda boa legislação, a arte de conduzir os homens ao máximo de felicidade, ou ao mínimo de infelicidade possível, para aludir a todos os cálculos dos bens e dos males da vida”, disse Beccaria. Deixe que eu mostre outra perspectiva: Derek Bok foi reitor de Harvard. Para ele, vale à pena conhecer os efeitos negativos que a prisão impõe ao casamento e à paternidade, principalmente nas regiões urbanas. Bok sugere que o Legislativo pode rever a aplicação de penas de prisão obrigatória para delitos de drogas e outros crimes não violentos. Isso, para determinar se os efeitos de dissuasão são suficientes para justificar as consequências devastadoras para as famílias. O raciocínio encontrou amparo no STF por meio da jurisprudência dos crimes de bagatela, que aplica o princípio da insignificância a crimes como o narrado acima.

ConJur — A atual indústria do dano moral não é um exemplo do estrago que se pode causar com um conceito subjetivo? Se calcular a honra de uma pessoa gera inúmeras discussões, como avaliar o quanto vale sua felicidade?
Saul Tourinho Leal — O dano moral é uma conquista. Não podemos temer conquistas pelo mau uso que eventualmente se dê e elas. Inclusive, acho que estamos atrasados nesse tema. Hoje em dia, fala-se em danos hedônicos, uma nova dimensão a compor os danos morais. Há decisões nos Estados Unidos entendendo que a mera reparação pecuniária quanto à dor e ao sofrimento não englobaria os delicados aspectos relativos à perda da felicidade com o gozo da vida. Danos hedônicos são compensações a um indivíduo pela perda da capacidade de desfrutar os prazeres da vida. Dois outros elementos são as expectativas do indivíduo para o futuro, bem como o gozo de atividades passadas. Para ilustrar, podemos utilizar como elementos informadores do valor do dano hedônico a incapacidade de dançar, de nadar, de praticar esporte, de se exercitar ou de se envolver em atividades recreativas, de surfar, de tomar sorvete, de ter relações sexuais, de fazer tarefas domésticas, de brincar com os filhos ou de desfrutar da companhia dos amigos. São novas dimensões do dano moral ou, para alguns, um novo tipo de dano que merece reparação.

ConJur — Um conceito tão aberto não escancara a porta para o ativismo judicial?
Saul Tourinho Leal — Excessos não virão em razão do direito à felicidade. Kant defendeu a concepção de autonomia, cuja consequência é a dignidade da pessoa humana. Há decisões judiciais no Brasil determinando indenizações a pessoas que fizeram “gambiarras” de energia, um crime, com base na dignidade. A tese é a culpada? Claro que não. Eu tive o cuidado de trabalhar bem o suporte fático do conceito para não darmos espaço para fantasias. Participação popular de qualidade, liberdade, segurança e dignidade. É a base.

ConJur — Há quem diga que a Constituição de 1988 criou um arcabouço tão grande de direitos que eles não cabem no orçamento. A ideia de felicidade não esgarça ainda mais essa corda?
Saul Tourinho Leal — Adam Smith é um dos marcos teóricos dessa tese e não posso dizer que seja um defensor de um “Estado-babá”. Imagine que uma política pública tem que optar entre água limpa para todos e um tratamento experimental para uma vítima de enfermidade incurável, cuja perspectiva é mexer um dedo a longo prazo. Conheço um caso assim. Qual das decisões seria a mais adequada segundo a teoria da felicidade? Água potável para todos, sem dúvida. Por quê? Porque concretiza em maior dimensão as bases do direito à felicidade, principalmente a segurança. Além disso, a mitigação que gera sobre o outro lado não o destrói quanto à sua dignidade. Veja que o que fizemos foi reduzir os riscos do voluntarismo político ou judicial. Não é coisa de aventureiro.

ConJur — E quanto a instituições que defendem direitos difusos e coletivos, como o MP e a Defensoria Pública? Elas teriam esse bom senso ao exigir políticas públicas?
Saul Tourinho Leal — Se o fizessem, seria um excelente uso. Recentemente, a Procuradoria-Geral da República ajuizou uma ação no Supremo contra o crime de pederastia ou outro ato de libidinagem em lugar sujeito à administração militar. Fundamentaram o pedido no direito à busca da felicidade. Isso é ruim? Penso que não. É uma tese, uma forma de compreender o mundo. Cabe ao STF responder argumentativamente.

ConJur — A Justiça é a face do Estado da qual o cidadão menos duvida, mas sua sobrecarga ameaça esse título. Princípios abertos não a sobrecarregarão ainda mais?
Saul Tourinho Leal — O Supremo Tribunal Federal vira e mexe se queixa da quantidade de casos que tem que apreciar. Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso apresentou uma proposta visando conferir agilidade à corte. Qual é o propósito de uma corte como o STF? A felicidade das pessoas. E sabe onde isso está escrito? Na certidão de nascimento da jurisdição constitucional. A Constituição da Pensilvânia de 1776, nos Estados Unidos, criou o Conselho de Censores que, posteriormente, viraria o embrião da Suprema Corte. Foi dada a ele a prerrogativa de declarar leis inconstitucionais. Eu vou ler aqui o fundamento: “Quando for necessário à conservação dos direitos e felicidade do povo”. Olhe só. Princípios garantem a eternidade dos textos constitucionais. Não devemos temê-los, mas sim compreendê-los e dar-lhes a devida aplicação. O direito à felicidade eleva os propósitos do STF, não os deprecia.

ConJur — Pelo menos um voto no Supremo sua tese já tem a favor. Em que a citação feita pelo ministro Celso de Mello no caso do casamento homoafetivo ajuda a tornar esse entendimento mais prático?
Saul Tourinho Leal — O voto mostra um compromisso intelectual sincero do ministro em investigar qual a roupagem do direito à felicidade. Ele compreende que o direito está ligado à dignidade da pessoa humana. Para mim, essa é só uma das possibilidades. De todo modo, a manifestação de um humanista da envergadura do ministro Celso de Mello mostra que o assunto é levado a sério em suas múltiplas dimensões e que a Suprema Corte brasileira, na linha de outras respeitadas supremas cortes, como a norte-americana, vem utilizando esse direito para fundamentar decisões célebres expandindo o contato com os direitos fundamentais.

ConJur — Em 2010, a comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a PEC 19/2010, a chamada PEC da Felicidade, de autoria do senador Cristovam Buarque (PDT-DF). Mas a tramitação não andou e a discussão ganhou contornos caricatos. Em que essa proposta coincide com sua tese e no que ela ajudou ou atrapalhou?
Saul Tourinho Leal — Houve uma compreensão equivocada quanto à PEC, que não é somente de iniciativa do senador Cristovam Buarque. Há também uma proposta da deputada federal Manoela D’Ávila. O senador Cristovam é um educador. Ele foi reitor da UnB, governou o Distrito Federal, foi ministro da Educação, tem uma vida dedicada à educação. Ele merecia ser aplaudido, mas quando apresentou a proposta, imediatamente veio a galhofa: “eu serei feliz com uma piscina, então quero uma piscina”; “serei feliz com um carro novo, então quero um carro novo”. E por aí vai. É uma compreensão tão superficial que chega a ser perturbadora. Falar de felicidade, de bem-estar, vinculando isso a leis e políticas públicas, é algo respeitável. Para mim, a PEC tenta realçar um compromisso que a Constituição Federal já firmou. A diferença é que a Constituição usa o termo “bem-estar”. O mundo inteiro está discutindo esse tema, por meios de instituições e pessoas respeitadas. Todos vão te cumprimentar, sentar, ouvir e trocar ideias. Ninguém vai gargalhar, debochar ou tentar te humilhar.

ConJur — Em que o conceito de “felicidade interna bruta” como medição da riqueza de uma nação coincide com sua tese? A avaliação de uma nação pelo seu Índice de Desenvolvimento Humano e não mais pelo PIB é um caminho que levará à adoção da felicidade como critério?
Saul Tourinho Leal — A Felicidade Interna Bruta, nos termos do que foi feito no Butão, é perigosa. O governante, num gabinete, aponta o que ele supõe tornar a vida pública nacional mais elevada e, então, passa a perseguir isso com um porrete na mão. Sem liberdade, não há felicidade. A questão do IDH é diferente. Esse índice, cuja criação vem de Amartya Sen, o Nobel que ajudou Nicolas Sarkozy a mensurar o impacto das políticas na felicidade dos franceses, humaniza a questão do PIB. Vou dar um exemplo: num certo fim de ano, pesquisei o valor da passagem de avião para Teresina, no Piauí, e para Roma, na Itália. Era mais barato ir para Roma. Sabe por quê? Em razão do ICMS que incide no combustível do avião. Para quê? Incrementar o PIB. Recentemente, estive no Piauí. Vi centenas de jovens, nas pequenas cidades do sertão, conduzindo motocicletas, embriagados, e, em seguida, caídos no asfalto, feridos ou mortos. Isso gera PIB, porque precisa de ambulância, das próprias motos, da bebida que foi ingerida, dos equipamentos de hospitais, do enterro, de tudo. Mas é bom para nós? O IDH mostra que não. A vanguarda está em medir o bem-estar das pessoas, a felicidade, num viés quantitativo e qualitativo. O PIB seguirá seu caminho, mas sem monopólio.

ConJur — Países como Espanha e Turquia ampliaram direitos sociais nos últimos anos. É coincidência que a crise financeira internacional os tenha afetado com força?
Saul Tourinho Leal — Na ciência, precisamos provar o que afirmamos. Eu não consigo provar que a Espanha quebrou porque tentava garantir direitos sociais. O direito à felicidade envolve participação popular. Enquanto uma juventude urbana desempregada tomava a Puerta del Sol, em Madrid, no movimento Indignados, o monarca, Juan Carlos, em pleno século XXI, caçava elefantes em um safári em Botsuana, um lazer perverso que custa até 30 mil euros. Que tal? Não acredito que a débâcle [queda] passageira desses países tenha vindo do compromisso com os direitos sociais. Veio da violação a vieses do direito à felicidade. Direitos sociais trazem segurança. Eles são extraordinários.

ConJur — A “esperança” foi outro objeto de estudo seu. A Construção dos Direitos Fundamentais e a Esperança: da África do Sul ao Brasil, que está disponível para download gratuito no site do Instituto Brasiliense de Direito Público, diz que “a esperança é uma emoção universal que tem dado o tom da construção contemporânea dos direitos fundamentais”. Qual o contexto?
Saul Tourinho Leal — Estive na África do Sul no fim de 2013, no funeral de Nelson Mandela. O sentimento me permitiu descrever tudo o que compôs esse importante momento histórico, assim como desenvolver a temática da esperança na construção contemporânea dos direitos fundamentais. A trajetória da África do Sul é apresentada com suas conquistas em relação à união da população, à luta por igualdade e à manutenção de um Estado de reconciliação, exemplo para todos, quando considerado em seu contexto. Ao fim, com uma Constituição generosa, em 1996, a nação seguiu o caminho da reconciliação, fundamental no processo de aproximação de um povo dividido por tanto tempo. Percebi que líderes políticos que apostam na divisão, que sustentam o discurso do “eles contra nós”, que incitam ou toleram a violência contra cidadãos ativos, devem se conscientizar que estão plantando sementes do ódio que inevitavelmente florescerão.

ConJur — A comissão da verdade sul-africana buscou revelações, não revanchismo. Aqui, ainda se discute a revisão da Lei de Anistia. É possível uma pacificação, no Brasil, como aconteceu lá?
Saul Tourinho Leal — Na África do Sul, a Comissão da Verdade e Reconciliação visava tratar os assassinatos e torturas da era do apartheid. Foi uma experiência poderosa. O importante era ver os rostos, ouvir as vozes, ver as lágrimas das vítimas e também o choro dos agressores ao reconhecer sua conduta brutal e buscar anistia. Era a senhora falando sobre o filho que voltara para casa com o cabelo caindo, o corpo envenenado, moribundo. Tudo isso eu ouvi do amigo Albie Sachs, juiz da Corte Constitucional da África do Sul, que relatou vários casos em seu último livro,A Estranha Alquimia entre a Vida e o Direito, prestes a ser lançado no Brasil. Ele conta que Tony Yengeni pertencera ao braço armado do ANC, partido de Nelson Mandela, e foi torturado pelo sargento Benzien, que pedia anistia. A televisão mostrava a sessão da Comissão, com Tony pedindo que o sargento Benzien mostrasse como colocara grandes sacos molhados nas cabeças de prisioneiros. A Comissão pediu que alguém se deitasse no chão. O sargento Benzien se ajoelhou e segurou o saco por um bom tempo. Depois que ele se levantou, Tony pediu para que ele explicasse como um ser humano pode fazer isso com outro ser humano. O sargento começou a chorar. Ele desabou. São momentos como esse que a nação firma os valores da sua sociedade e constrói o princípio do “nunca mais”. Não posso julgar o cenário brasileiro, porque não o investiguei suficientemente, mas não me parece leviano afirmar que não há, entre nós, a mesma dimensão que há na África do Sul no que diz respeito ao compromisso em curar as cicatrizes do passado.

ConJur — Por quê?
Saul Tourinho Leal — A trajetória da África do Sul é apresentada com suas conquistas em relação à união da população, à luta por igualdade e à manutenção de um estado de reconciliação, exemplo para todos, considerado em seu contexto. Quando falamos em reconciliação como resultado da revolução calcada na esperança, o que estamos afirmando é que o ápice do movimento revolucionário ou da luta por direitos fundamentais deve ser, sempre, a reconciliação, jamais a revanche. No Brasil, temos alguns episódios que mostram, por exemplo, uma resistência imensa às mulheres politicamente ativas. Em 2011, a advogada Roberta Fragoso foi convidada pela Universidade de Brasília para participar de um debate sobre cotas raciais. Contrária à política, ao tentar falar, assustou-se com a gritaria. Chamada de racista, ouviu ofensas. Seu carro foi vandalizado. Nas portas, estava pichado: “Loira filha da p...”. Em 2013, a blogueira cubana Yoani Sánchez desembarcou no Recife disposta a discutir sobre Cuba. “Fora, Yoani!”, foi o que ouviu. Em seguida, um sujeito tentou fazê-la engolir notas de dólares, esfregando-as em sua face. Puxaram-lhe os cabelos. Na Bahia, proibiram a exibição de um documentário com a sua participação. Em São Paulo, novos protestos impediram-na de expor suas opiniões em um debate. Atitudes como essas nunca nos trouxeram nada de bom. Só nos dividiram, plantando o ódio e fazendo nascer uma revanche interminável. É uma atmosfera hostil.

ConJur — Qual foi a importância de Nelson Mandela, um advogado, para esse processo de pacificação?
Saul Tourinho Leal — Mandela fez um curso de Direito com dificuldade, reprovou em muitas disciplinas e exerceu a advocacia muito mais como instrumento de luta política do que qualquer outra coisa. Não penso que sua profissão tenha sido a razão do seu legado extraordinário. O jovem da etnia IsiXhosa virou um advogado militante e, posteriormente, um ativista político capaz de grandes renúncias pelo compromisso de livrar o seu povo doapartheid, o modelo da colonização promovido pela Grã-Bretanha que dividia o país em dois grupos: os dos brancos europeus e o dos não-brancos. De Soweto, nos arredores de Johannesburgo, Mandela, aquele homem alto, forte, carismático, praticante de boxe, que cultivava hábitos refinados, deu uma demonstração do seu caráter diante da condenação iminente à pena de morte. “Lutei contra a dominação branca e lutei contra a dominação negra”, disse. “Tenho cultivado o ideal de uma sociedade livre e democrática na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal no qual deposito a esperança de viver e alcançar. Mas, se for preciso, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer.” Essa foi a última declaração diante do juiz que tinha a sua vida nas mãos.

ConJur — Como se deu a implementação da atual Constituição da África do Sul?
Saul Tourinho Leal — Um episódio explica bem isso. Em 1995, o então presidente Nelson Mandela, valendo-se da Lei de Transição do Governo Local [Local Government Transition Act], usou o poder de ampliar suas próprias competências e alterou a lei, passando a determinar os locais das eleições municipais seguintes, o que favoreceria seu partido, o ANC. O ato foi questionado na Corte Constitucional. Mandela havia sido eleito por uma esmagadora maioria de votos, tinha uma popularidade inimaginável e apoio majoritário no Poder Legislativo. A Corte Constitucional derrubou a proclamação do presidente e a alteração feita na lei. Violava a Constituição esse tipo de delegação, que deixava o presidente da República gozando de poderes ilimitados. Nelson Mandela convocou uma declaração pública e afirmou: “Esse julgamento não foi o primeiro, nem será o último, no qual a Corte Constitucional ajuda a ambos, o governo e a sociedade, a garantir um governo constitucionalmente eficaz”. Ele cumpriu a decisão sem discutir. Ali nascia o Estado constitucional sul-africano contemporâneo.

ConJur — Brasil e África do Sul têm coincidências entre suas Constituições e cortes supremas?
Saul Tourinho Leal — São trajetórias diferentes. Contudo, os dois países têm um compromisso com a solidariedade, que, para os sul-africanos, se chama Ubuntu. Essa sintonia é virtuosa, pois estabelece um novo constitucionalismo, marcado pelas seguintes características: esperança como sentimento coletivo agregador; recusa à revanche em benefício da reconciliação; e construção de um constitucionalismo transformador. Deixe que eu leia o preâmbulo da Constituição sul-africana para você: “Nós, o povo da África do Sul, reconhecemos as injustiças do nosso passado; honramos aqueles que sofreram por justiça e liberdade em nossa terra; respeitamos aqueles que trabalharam para construir e desenvolver o nosso país, e acreditamos que a África do Sul pertence a todos que nela vivem, unidos na nossa diversidade”. É de arrepiar ou não é?

ConJur — A Constituição sul-africana é considerada generosa e complexa como a nossa?
Saul Tourinho Leal — Quanto à generosidade, não imagino nenhuma outra Constituição tão generosa como a desses dois países. Ambas fundam a noção de constitucionalismo transformador, comparável a um agente cuja missão é induzir mudanças sociais por meio do processo político, sem violência e com base legal. Há um compromisso com as futuras gerações. Ela tenta manter vivo o senso de comunidade, o “Ubuntu”, a filosofia africana que foca nas alianças e relacionamento das pessoas. “Eu sou, porque nós somos”, dizem os sul-africanos. Incorporado como um dos princípios fundamentais da África do Sul, o “Ubuntu” também é utilizado para enfatizar a necessidade da união e do consenso nas tomadas de decisão, bem como na ética humanitária envolvida nessas decisões. Essa inspiração e comprometimento estão presentes aqui também, por meio da fraternidade e solidariedade.

ConJur — Como funcionam institutos como liberdade de imprensa e política? É possível comparar aos do Brasil?
Saul Tourinho Leal — Há liberdade de expressão como em nenhum outro país africano e a política tem uma efervescência impressionante. Mas há costumes políticos que precisam ser aperfeiçoados, seja lá, seja aqui. Vou falar do Brasil. Atualmente, uma praga a ser debatida é a inauguração de coisas públicas. Elas ofendem a impessoalidade, a moralidade, a paridade de armas da balança política e até mesmo a concepção moderna de República. Ministros de Estado inventam inaugurações para levar aliados políticos a tiracolo e, assim, granjear dividendos do poder. O mesmo se dá com vereadores, prefeitos, deputados, governadores, secretários, senadores e até presidentes de tribunais. Isso viola a Constituição, porque personaliza algo que não deveria ter cara. Esses personalismos políticos surgem como desafios, lá e aqui.

ConJur — Há decisões da corte sul-africana citadas no Brasil e vice-versa?
Saul Tourinho Leal — A África do Sul menciona muito a Inglaterra, Canadá e Estados Unidos. O Brasil aprecia a Alemanha, França, Itália, Portugal e Estados Unidos. Eventualmente, a Colômbia, se tivermos tratando de direitos sociais. Não tínhamos decisões sul-africanas citadas frequentemente por aqui, mas isso começa a mudar, e rápido. Casos relativos ao direito à saúde e à moradia são lembrados cada vez mais por aqui.

ConJur — E o que eles têm a nos ensinar?
Saul Tourinho Leal — A África do Sul, tendo de optar entre o medo e a esperança, na tentativa de estabelecer a sua ordem constitucional, optou por esta última. Não que não tenha sucumbido à tentação do ódio em muitos episódios. Sabemos que a violência deu o tom das manifestações em certas ocasiões. Contudo, a meta dos guerreiros da liberdade nunca foi o ódio ou a revanche. O sentimento condutor era a esperança de que, um dia, todos estariam juntos, vivendo na terra que escolheram para sua existência. Isso é extraordinário para nós. Nações que se mantiveram firmes na esperança conseguiram alcançar seus objetivos e, com a chegada de uma ordem legítima, abraçaram a reconciliação. É um novo ciclo das lutas populares por direitos fundamentais que merece o nosso estudo, compreensão, análise e discussão.

Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico



Revista Consultor Jurídico, 7 de setembro de 2014, 07:52

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

SEGURADO DE BOA-FÉ QUE FEZ ACORDO COM TERCEIRO SEM ANUÊNCIA DA SEGURADORA TEM DIREITO A REEMBOLSO

Segurado de boa-fé que fez acordo com terceiro sem anuência da seguradora tem direito a reembolso

No seguro de responsabilidade civil de veículos, se não há demonstração de má-fé, o segurado mantém o direito de ser reembolsado pela seguradora com o valor que despender para indenizar terceiro, caso não haja prejuízo para a seguradora com a transação firmada sem a sua anuência.

O entendimento foi dado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento de recurso especial da Allianz Seguros contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS).

No caso, o veículo de uma empresa de mineração e terraplanagem envolveu-se em acidente com uma motocicleta, causando graves sequelas físicas ao motociclista. A empresa de mineração havia firmado contrato de seguro para o veículo, vigente à época dos fatos.

Após recusar R$ 13 mil oferecidos pela seguradora, o motociclista ajuizou ação de indenização contra a empresa de mineração, pedindo mais de R$ 1,5 milhão por danos morais, patrimoniais e estéticos.

Acordo

No curso da ação, foi homologada transação em que a mineradora se comprometeu a pagar pouco mais de R$ 62 mil ao motociclista. Ao pedir o reembolso do valor à seguradora, esta se negou a pagar, alegando não ter aprovado o acordo judicial.

A empresa de mineração entrou com ação para receber da seguradora o valor pago ao motociclista a título de indenização. A sentença condenou a seguradora a pagar R$ 57 mil. Seguradora e empresa apelaram ao TJRS, que reduziu o montante indenizatório.

No STJ, a seguradora alegou que, embora no seguro de responsabilidade civil o segurador arque com o pagamento de perdas e danos ao terceiro prejudicado, é vedado ao segurado, sem prévia e expressa anuência, reconhecer sua responsabilidade, transigir ou indenizar diretamente o lesado, sob pena de perda da garantia.

O relator do recurso, ministro Villas Bôas Cueva, afirmou que o segurado, nesse tipo de seguro, não pode, em princípio, “reconhecer sua responsabilidade, transigir ou confessar judicial ou extrajudicialmente sua culpa em favor do lesado, a menos que haja prévio e expresso consentimento do ente segurador, pois caso contrário perderá o direito à garantia securitária, ficando pessoalmente obrigado perante o terceiro, sem direito de reembolso do que despender”.

Boa-fé

De acordo com o ministro, a finalidade da norma é “impedir que o segurado retire o direito da seguradora de analisar tecnicamente os fatos e de fazer a regulação do sinistro, haja vista que será dela o dispêndio econômico e que poderá, inclusive, obter condições mais vantajosas de pagamento”.

Mas o ministro afirmou que a proibição do reconhecimento da responsabilidade pelo segurado perante terceiro deve ser analisada segundo a cláusula geral da boa-fé objetiva.

O relator explicou que a proibição existe para coibir posturas de má-fé, ou seja, aquelas que lesionem interesse da seguradora, como “provocar a própria revelia ou da seguradora, assumir indevidamente a responsabilidade pela prática de atos que sabe não ter cometido, faltar com a verdade com o objetivo de prejudicar a seguradora, entre outras que venham a afetar os deveres de colaboração e lealdade recíprocos”.

O ministro afirmou que a melhor interpretação do parágrafo 2º do artigo 787 do Código Civil é que a confissão ou a transação não retiram do segurado de boa-fé e que tenha agido com probidade o direito à indenização e ao reembolso, sendo os atos “apenas ineficazes perante a seguradora”.

Desse modo, a perda da garantia securitária só se dará nas situações de prejuízo efetivo ao ente segurador, “como em caso de fraude ou de ressarcimento de valor exagerado ou indevido, resultantes de má-fé do próprio segurado”, afirmou Villas Bôas Cueva.

Com essa argumentação, a Turma definiu que quando “não há demonstração de que a transação feita pelo segurado e pela vítima do acidente de trânsito foi abusiva, infundada ou desnecessária, mas, ao contrário, sendo evidente que o sinistro de fato aconteceu e o acordo realizado foi em termos favoráveis tanto ao segurado quanto à seguradora, não há razão para erigir a regra do artigo 787, parágrafo 2º, do CC em direito absoluto a afastar o ressarcimento do segurado”

Fonte: STJ

EMPREGADOR DEVE RECOLHER FGTS DURANTE PERÍODO DE AFASTAMENTO POR ACIDENTE DO TRABALHO




Empregador deve recolher FGTS durante período de afastamento por acidente do trabalho




O empregador está obrigado a continuar a efetuar os recolhimentos do FGTS nos casos de afastamento do empregado para prestação do serviço militar obrigatório e de licença por acidente do trabalho, como prevê o parágrafo 5º da Lei 8.036/90. Com base nesse fundamento, a 1ª Turma do TRT-MG confirmou a decisão que determinou o pagamento do FGTS, inclusive no período em que o trabalhador esteve afastado em razão de acidente do trabalho.

A condenação alcançou todo o período contratual, já que não houve prova de qualquer recolhimento de FGTS na conta vinculada do trabalhador já falecido. Em seu recurso, a construtora reclamada pretendia convencer os julgadores de que o pagamento determinado ao espólio não deveria abranger o período em que o ex-empregado recebeu auxílio doença dito "comum".

Mas o desembargador Emerson Alves Lage não acatou esse argumento. É que, apesar de o empregado falecido ter recebido o auxílio doença "comum" durante certo período, ficou claro que todos os afastamentos decorreram do acidente de trabalho sofrido durante a execução dos serviços à empregadora.

Nesse sentido revelaram os próprios laudos apresentados pelo órgão previdenciário. No caso, ficou demonstrado que a reclamada demorou a emitir a CAT (Comunicação de Acidente do Trabalho) após o acidente que lesionou o joelho do empregado. Conforme observou o relator, ao emitir a CAT a empresa acabou reconhecendo o acidente do trabalho.

Para o julgador, o fato de o trabalhador não ter recebido auxílio doença acidentário (código B91), mas sim "comum" (código B31), é irrelevante. Ele aplicou ao caso o disposto no artigo 129 do Código Civil, que reputa "verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer".

E foi o que se deu no caso: "O falecido empregado deixou de receber o auxílio-acidente que lhe era devido apenas porque a reclamada não emitiu a CAT a tempo e modo, conforme lhe competia, não sendo dado a esta se beneficiar do seu ato omissivo", explicou o julgador, negando provimento ao recurso da reclamada, no que foi acompanhado pela Turma julgadora.( 0001837-53.2012.5.03.0134 ED )

Fonte: TRT3ª

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

VÍDEO EXPLICA VANTAGENS DO PROCESSO ELETRÔNICO


Fonte: TST

As mudanças trazidas pela implantação do processo judicial eletrônico da Justiça do Trabalho (PJe-JT) são objeto de um vídeo institucional produzido pelo Comitê Gestor Nacional do Pje-JT, como parte de uma campanha nacional de esclarecimento sobre o novo sistema. A Justiça do Trabalho é o ramo do Judiciário mais avançado em termos de informatização do processo judicial, e hoje já existem mais de 1,5 milhão de processos que tramitam exclusivamente em meio eletrônico desde seu início.

Facilidade de acesso, visualização simultânea, agilidade de tramitação, redução de gastos e ganhos ambientais são algumas das vantagens do PJe-JT. "O processo acaba tramitando de forma mais rápida", afirma a coordenadora nacional, desembargadora Ana Paula Pellegrina Lockman. Para o cidadão, outro lado positivo é a facilidade de acesso ao Judiciário, "de qualquer lugar onde haja internet".

O PJe-JT já está instalado em mais de 70% das Varas do Trabalho e nos 24 Tribunais Regionais do Trabalho. O presidente do TST, ministro Barros Levenhagen, espera que, até o fim de sua gestão, em fevereiro de 2016, o sistema esteja funcionando em órgãos judicantes do Tribunal – Turmas e sessões especializadas.

Confira o vídeo:



CONCURSO DO MP DE MINAS GERAIS INCENTIVA DESOBEDIÊNCIA À DOUTRINA E AO STF


Concurso do MP de Minas Gerais incentiva desobediência à doutrina e ao STF




Ainda e sempre a questão dos concursos públicos
Tenho batido em várias teclas aqui na ConJur. Uma delas é o mau uso dos concursos públicos, que acabam se configurando em retrocesso no ensino do direito. Em suma: não é raro encontrar péssimos exemplos nas questões dos concursos públicos, hoje transformados em quiz shows e por vezes sequer obedecem ao que já está consolidado pela jurisprudência e pela boa doutrina. Ou se apegam à má doutrina.

É o caso do recente concurso para Promotor de Justiça em Minas Gerais, em que várias questões do certame não devem servir de guia para o aprendizado daquilo que se quer como futuro para o nosso direito, mormente se considerarmos que a Constituição diz que o Ministério Público é o ombudsman da República. Aqui discutirei uma questão de direito processual penal, assim formulada:

Tício foi denunciado em 30/07/2012 como incurso nas sanções do artigo 155, parágrafo 4º, inciso I, c/c artigo 61, I, ambos do Código Penal, porque em 25 de junho de 2012, por volta das 21h15min, em residência situada nesta Capital, imbuído de animus furandi, mediante arrombamento do portão que guarnecia o local, subtraiu um violão, instrumento de trabalho de propriedade do músico Mélvio, avaliado pelo laudo pericial no valor de R$ 200,00. Processado, foi condenado, conforme segue:

Pena: 2 anos de reclusão mais multa, presente a agravante da reincidência específica em delito patrimonial, aumentou a pena-base em 1/6, resultando em 2 anos e 4 meses de reclusão; regime semiaberto e impossibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos. Também determinou a suspensão dos direitos políticos de Tício, pelo prazo da condenação, a teor do artigo 15, inciso III, da Constituição da República. Intimado regularmente do teor da decisão, o Ministério Público manteve-se inerte. O acusado Tício é hipossuficiente econômico.

A Defensoria Pública pugnou, em resumo:

- A desclassificação do crime para furto simples, posto (sic) que ausente o laudo pericial de exame de rompimento ou destruição de obstáculo, embora a vítima e testemunhas ouvidas em juízo confirmassem o arrombamento; Requereu a aplicação do princípio da insignificância, posto (sic) que a res furtiva foi avaliada abaixo do valor do salário mínimo da época (R$ 622,00); Afastamento da reincidência por constituir bis in idem; consequentemente, deveria ser decotado o gravame da pena, fixado o regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos. Por derradeiro, não seria possível a suspensão de direitos políticos, em caso de inexecução da pena privativa de liberdade.

A questão, então, indagava: “Na condição de Promotor de Justiça, elabore a peça processual cabível, contrariando as teses defensivas”.

Parênteses meu: aqui, antes de tudo, uma questão interessante: o Ministério Público não deve, necessariamente, contrariar teses defensivas. Deve contrariá-las quando estas forem... incorretas! Ou, dito de outro modo, quando as teses de Defesa não corresponderem à melhor interpretação do Direito, compreendido em sua integridade. O Ministério Público não deve fazer as vezes de uma Defesa espelhada (que, a rigor, tem o dever de articular todas as teses que, contando com algum grau mínimo de plausibilidade, e dentro das regras do jogo, forneçam resultados favoráveis ao acusado). Deve, isso sim, agir como um guardião da integridade do Direito. Digo isso para não passar em branco, mas, tudo bem: suponhamos que o Promotor de Justiça tenha, em alegações finais, formulado um pedido tal qual acolhido na sentença. Nesta hipótese, também não poderia agora vir a atacar um provimento jurisdicional que ajudou a construir.

Seguindo: O espelho oficial ofertava o seguinte modelo de resposta correta:

- A infração penal deixou vestígios e, portanto, era obrigatória a realização de exame pericial, a teor do artigo 171 do CPP. Todavia, tal dispositivo deve ser interpretado em consonância com o princípio do livre convencimento ou persuasão racional, definido no artigo 155 do mesmo diploma legal, segundo o qual o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, inexistindo hierarquia dos meios probatórios, podendo ele embasar a presença da forma qualificada do furto nas declarações de vítima e testemunhas, a teor do artigo 167 do CPP. Outro parêntesis meu: Eita! O examinador deve ficar mesmo muito animado quando o livre convencimento do juiz leva a uma conclusão com a qual concorda o promotor, não? Não terá passado por sua cabeça que, a partir deste princípio ônibus — um mero álibi teórico-retórico, em que qualquer coisa cabe — uma decisão que dissesse o exato oposto estaria, por esta mesma lógica, também justificada? Não se deu conta o examinador que esse “princípio” é um tiro no pé do promotor e de qualquer defensor?

Na sequência, o espelho especificava os argumentos para a tese da inaplicação do princípio da insignificância:

- Tal princípio não encontra assento legal e, se reconhecido, violaria os princípios da reserva legal e da independência de poderes; no tocante ao crime de furto, o legislador valorou o bem jurídico, diferenciando insignificância e pequeno valor, e criou a forma privilegiada no § 2º do artigo 155 do CPB, beneficiando o criminoso primário, o que não se aplica ao reincidente; consoante entendimento dos pretórios, não cabe a aplicação do instituto para reincidentes, sob pena de incentivo à criminalidade [outro parêntesis do Senso Incomum: isso não passa de um argumento de política — e, portanto, nada tem a ver com o sistema de direitos em torno do qual se deve(ria) produzir o Direito em Estados Democráticos]; o crime foi praticado na forma qualificada, não podendo ser considerado inexpressivo; por fim, no caso concreto, a coisa subtraída era instrumento de trabalho da vítima, não podendo a aferição pautar-se tão somente pelo aspecto valorativo de comparação econômica.

- O STF, em decisão de recurso extraordinário, reafirmou a constitucionalidade da agravante da reincidência (RE 453.000 RS). A decisão foi tomada em regime de repercussão geral, e vincula o entendimento jurídico nacional.

- O regime semiaberto foi corretamente fixado, a teor do artigo 33, parágrafo 2º, do CPB. A reincidência impede a substituição da pena, a teor do artigo 44, inciso II, do CPB. O dispositivo do artigo 15, inciso III, é autoaplicável, não necessita de regulamentação, constituindo efeito automático da condenação. Fim do espelho da prova.

Minha anamnese
Não vou examinar todas as especificações da questão e tampouco as da grade. Fixar-me-ei em alguns pontos. De pronto, uma clara violação da, digamos assim, literalidade[1] do Código Processual (o que não configura um bom exemplo vindo do órgão encarregado de fiscalizar a boa aplicação da lei, pois não?), quando sustenta que, mesmo o crime apresentando vestígios, o juiz pode, com base no “princípio” (sic) da livre apreciação da prova, condenar sem laudo pericial, exigido no artigo 168 do CPP. Como assim? Estamos falando de concurso para ingresso na carreira de um agente político do Estado, fiscal da lei, vitalício e com as garantias da magistratura. Não é um concurso para mandalete. Dizer que é possível condenar alguém com violação ao CPP é um caso de improbidade epistêmica. Mesmo que haja julgados (e, claro, sempre haverá — embora equivocados e contra legem) e alguma doutrina sustentando essa dispensa do laudo pericial em crimes que deixam vestígio, devemos combater esse tipo de descumprimento. Juiz não cria direito, mormente se for contra o réu. Aliás, se o espelho é “tão legalista” (a observação é irônica!) ao ponto de considerar correto retirar os direitos políticos de alguém que furta um violão, por que não admitir criação jurídica para aplicar um princípio jurídico-constitucional? A propósito: não é muito inspirador para o Ministério Público pregar, em pleno Estado Democrático, que uma garantia processual (exigência-de-laudo-feito-por-peritos) possa ser “substituída” por algo serôdio e ingênuo como o princípio (sic) da livre apreciação da prova ou persuasão racional (sic). Essa “livre apreciação” ou o tal “livre convencimento” é tão anti-democrático que, no projeto do novo CPC, ele foi expungido.

Aliás, isso me leva ao segundo ponto: o reverberamento contra o princípio da insignificância — consagrado mesmo nas medianas doutrinas e pelos tribunais de todo o país (e do mundo) — sob o argumento de que não pode ser aplicado por falta de previsão legal ou constitucional. Deixa ver se entendi: Quer dizer que, pelo fato de não estar escrito no Código Penal e na Constituição, não podemos aplicar a insignificância? Quer dizer que o STF, ao aplicar o princípio (por exemplo, no RHC 113.773, em que, vejam, o STF trancou a ação penal em caso de furto insignificante — com parecer favorável do MPF — aliás, num caso de Minas Gerais), está a Suprema Corte incorrendo em inconstitucionalidade? E o que dizer do STJ (REsp 1.133.602 MG 2009/0149713-5)? Aliás, um princípio, para ter validade, deve estar escrito na Constituição? Se é assim, onde está o princípio da isonomia na Constituição? Na minha eu não encontrei. E ele é utilizado muito pelo Ministério Público, se me entendem o que quero dizer. Em meus quase trinta anos de carreira, muito esgrimi esse princípio! E o princípio da subsidiariedade? Qual é assento (marco) legal? E o da confiança no juiz da causa? Está escrito onde? Ademais, o artigo 563, que trata, a lo largo, do velho e ultrapassado “princípio” pas de nullité sans grief, deveria ser lido em conformidade com a Constituição, problemática que discuto já de há muito. Veja-se que todos os dias essa velharia (axioma inventado no velho formalismo) é utilizada para — pasmem — não cumprir a literalidade, por exemplo, do artigo 212 do CPP (por exemplo, STF-HC 103.525). Perguntando mais claramente: Por que a não realização do laudo pericial não acarretaria prejuízo ao réu, se, graças a ele, a pena dobrou? Paro por aqui? Cartas para a Coluna. Para não deixar passar in albis e jogando o examinador contra o examinador: A proporcionalidade, para citar apenas esta, também não tem respaldo legal (explícito)! Mas todo mundo usa, certo? Que fazemos com ela? E, epa: linhas atrás, o mesmo examinador não defendeu a aplicação do “princípio” (sic) do livre convencimento — esse sim, um argumento sem DNA democrático? Um livro Verdade e Consenso de presente para quem me apresentar o “assento constitucional” deste princípio. Em outras palavras, para a banca, a insignificância NÃO é princípio porque não tem assento constitucional... Mas o livre convencimento é princípio, mesmo sem passar nem perto da Constituição. Ao que tudo indica, quem tem mesmo livre convencimento é a banca examinadora do concurso.

Sigo. E para insistir neste ponto: Uma questão de concurso público deve servir de exemplo para os jovens que pretendem ingressar na carreira. Lembram da questão 10 do Concurso da Defensoria do Rio de Janeiro, que incentivava a que um cidadão ingressasse em juízo para se tornar um “lagarto” (ler aqui)? Concursos devem servir de fator de denúncia. E de pedagogia. Para o bem. E não para o mal. Por exemplo, seria muito mais conveniente que o Ministério Público de MG utilizasse o concurso público — especialmente a prova de processo penal ou penal — para discutir como é possível que, em um país como o nosso, alguém que furte um violão seja condenado a mais de dois anos de prisão sem condições de substituição de pena e ainda perdendo os direitos políticos, enquanto na sonegação de tributos...deixamos por isso mesmo, isto é, aceitamos que se devolva o produto sonegado e a pena vira fumaça!

Sim, o concurso poderia comparar esse exemplo com as condenações (ou absolvições, que é mais fácil) de sonegadores de tributos e lavadores de dinheiro. Quantos sonegadores iriam presos no Brasil nas bases em que foi proferida a decisão que — fictamente — embasou a questão em tela? Não seria um belo momento para questionar as desproporcionalidades do sistema jurídico de terrae brasilis, em vez de fazer apologia à que não se obedeça aquilo que está consolidado no STF e no mundo todo, que é o reconhecimento do princípio da insignificância? Aliás, olhando a prova como um todo, o pano de fundo que exsurge é a velha dogmática jurídica, traduzida por manuais fora do tempo e dirigidos para um direito estandartizado, cuja parcela considerável de livros deveria ter aquela tarja de “seu uso constante pode fazer mal à saúde jurídica do utente”.

Mais: a vingar a posição sustentada no espelho da prova, qualquer furto redundará sempre em condenação, já que inviável a aplicação da insignificância. É isso, pois não? Um furto de um alfinete já configura o tipo de subtração de coisa móvel alheia, ao que se depreende da grade. Ou seja: na tese esgrimida no espelho, um furto de alfinete (ou de sabonetes ou de um velho ferro de passar roupas) com rompimento de obstáculo acarreta pena maior do que dois anos, já que, ao que parece, a qualificadora não é compatível com a privilegiadora do pequeno valor. Mas, se alguém disser que é, cabe a pergunta: assim como a insignificância não está escrita na lei e na Constituição, também a compatibilidade do furto qualificado com privilégio também não está... Afinal, para não sermos esquizofrênicos, pergunto: em que momento aceitamos a jurisprudência do STF (ou de outros tribunais)? Quando nos interessa?

Poderia ainda elencar outros problemas da prova e da grade. Um deles: que tipo de promotores de justiça queremos? O velho “promotor público”? Ou um garantidor de direitos fundamentais? Mas, paro por aqui, porque quero somente levantar o aspecto simbólico que exsurge desse tipo de questão e de espelho de resposta. Não é o fato. O que é importa é o simbólico que ele representa, em um imaginário jurídico atravessado por uma profunda crise de paradigmas, já denunciada há mais de vinte anos por José Eduardo Faria.

Isto está bem claro no exemplo do furto do violão: preparados para resolver questões entre Caio e Ticio (aliás, não é coincidência que o nome do réu do violão seja...Tício), a operacionalidade do direito não está preparada para enfrentar os problemas decorrentes da transindividualidade. Por isso é que, enquanto apenas algumas dezenas de pessoas foram condenadas por lavagem de dinheiro nos últimos 16 anos, nesse mesmo período condenamos mais de 150 mil autores de furtos e outros quetais (em uma perspectiva otimista desses números). Claro: somos bons em pegar o Caio do violão; e somos péssimos para pegar os doutores que quebram bancos, lavam dinheiro e praticam mal feitos chamados de improbidade... Aliás, desde a Lei da Improbidade (1992), no Estado de Minas Gerais, ao que consta no site do CNJ, houve apenas a condenação de 459 envolvidos.[2] Por que será? Não será porque as instituições passam por uma profunda crise de paradigmas? Para não repetir a clássica frase La ley es como la serpiente... solo pica a los descalzos, lanço-a agora em alemão: Das Gesetz ist wie eine giftige Schlange. Und diese Schlange beißt nur diejenigen ohne Stiefel (a lei é como uma cobra venenosa; somente morde aos que não usam botas). 

Um parêntesis: não, não vou discutir se o violão configura ou a insignificância; não existem respostas a priori, anteriores ao caso, para problemas jurídicos; não há uma fórmula do tipo: se for reincidente o infrator, não importa o valor da coisa subtraída....; de todo modo, é lamentável que a doutrina e a jurisprudência não conseguiram, ainda, construir uma doutrina sobre os limites e o alcance desse princípio, uma vez que, por vezes, o valor se aproxima do salário mínimo e, em outras, nega-se a sua aplicação para valores irrisórios...; sem considerar, também, que o STJ e os TRFs aplicam a insignificância em valores que ultrapassam os milhares de reais, nos casos de contrabando e descaminho; portanto, advirto aos comentaristas da ConJur para que não se digladiem sobre se o violão furtado configura ou não a insignificância; por favor, por favor, não-é-disso-que-se-trata; não esqueçam que estou discutindo o espelho da prova não-por-esse- fato, e, sim, pela assertiva de que a insignificância não poderia ser aplicada por ausência de previsão legal-constitucional, além de outras questões de fundo, que atingem a crise de operacionalidade de terrae brasilis; não esqueçamos que a validade e o peso de um (argumento que invoca um) princípio não depende de sua textualidade legal, mas de uma construção intersubjetiva da comunidade política. OK? Estamos entendidos?).

Numa palavra final
A crise dos concursos públicos está chegando ao seu ápice. Não pode se agravar, uma vez que já chegou ao fundo do poço. Urge que a comunidade jurídica discuta esse fenômeno. Concursos são a porta de entrada dos agentes políticos do Estado. Que serão vitalícios. Deputados podemos substituir. Juízes e Promotores, não. Logo, o problema é sério demais para ser transformado em um emaranhado de perguntas típicas de cursinhos de preparação de concursos, que nada mais fazem do que treinar os utentes. Consequência: são aprovados espertos e não experts.

Em tempos como estes, em que juristas estão sendo chamados a responder questões cada vez mais complexas e relevantes (pensemos, por exemplo, najudicialização da política), ainda estamos selecionando promotores de justiça preparados para lutar a favor da condenação da criminalidade miúda. Armados e encouraçados para raciocinar dentro deste arquétipo, de combate à criminalidade patrimonial/individual... Que coisa, não? Premissa maior, premissa menor e conclusão: cadeia! Quem está surpreso? Será que já não deveríamos estar em busca da formação e seleção de pessoas capazes de responder pela fundamentação moral (falo, é óbvio, em moralidade política) de suas decisões? Cartas para a Coluna.

E sobre a questão dos princípios, parece que a doutrina — ou parte dela — não aprendeu nada nos últimos anos. Talvez os juristas devessem ler um livro de 1726, escrito por Jonathan Swift, chamado As Viagens de Gulliver. Ali, além de denunciar o fetichismo em torno da lei, quando os pequeninos se matam por causa da interpretação semântica do que seja “o lado certo do ovo”, também podemos ver a falta que faz a aplicação de um princípio. Um mundo de regras sem princípios resulta na condenação de Gulliver, mesmo que, com sua atitude contra legem, tenha salvado a rainha do incêndio. Só para lembrar: Gulliver, na falta de outro modo de apagar o incêndio no palácio real, decide urinar sobre o fogo, apagando-o (único modo de salvar a rainha). O “Promotor” de Liliput decide, então, denunciá-lo pela violação de uma regra: a de ter urinado em local público, sendo condenado por isso à morte (de fome). Pois é: regras sem princípios dá nisso.

And I rest my case. It is dark; but still I sing!



[1] Antes que fale e/ou reclame da tal “literalidade”, sugiro ler meu artigoAplicar a letra da lei é uma atitude positivista?, disponível no Google.


[2] Vale registrar que, ao mesmo tempo que o MP-MG mostra essa postura ortodoxa em relação ao direito criminal (basta ler as questões do concurso), verifico que, por exemplo, na ação de usucapião de terras públicas que faz sucesso nas redes (proc n. 0112383-35.2010.8.13.0194), em primeiro grau exarou parecer a favor do pleito (ao meu ver, contrariamente ao que diz a CF – sobre isso escreverei artigo específico) e, no segundo grau, onde é fiscal da lei, para surpresa minha, nosso MP deixou de intervir na mesma ação de usucapião. Será que as terras públicas não demandam intervenção do MP, que, pela Constituição, deve zelar pelo patrimônio público, que é de todos? Como contribuinte, eu contestaria essa atitude ministerial de segundo grau. Afinal, quem defende o interesse público? O MP tem liberdade de conformação, escolhendo no que quer intervir? O conceito de interesse público é disponível? Ora, se nós não conseguimos dizer para a população o que é interesse público...quem pode? Lembro-me de quando entrei no MP em 1986, sem assessoria, com uma máquina de escrever comprada do meu bolso, com gabinete emprestado pelo juiz, além de intervir no cível em tudo (inclusive em usucapião), homologava rescisões trabalhistas, fazia cobranças da dívida pública e atendia centenas de pessoas por semana, ao lado de júris cotidianos. Hoje o MP acha que sua função no cível é de somenos importância, não devendo intervir em usucapião de terras públicas e nem em ações fiscais que dizem respeito diretamente ao patrimônio da Viúva (isso para dizer o menos e pouco!). Quem protege, afinal, o interesse público? O erário, as terras públicas, por exemplo, não se enquadram na noção de interesse público? Cartas para a Coluna (endereço é: Rua Jabuticaba, s/n, Pindorama). 


Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.



Revista Consultor Jurídico, 4 de setembro de 2014, 08:00

MATAR O GORDINHO OU NÃO? O QUE AS ESCOLHAS MORAIS TÊM A VER COM O DIREITO


Matar o gordinho ou não? O que as escolhas morais têm a ver com o Direito?




No seminário sobre improbidade administrativa promovido pelo Conselho da Justiça Federal nos dias 21 e 22 de agosto, um dos assuntos pelos quais fui abordado nos bastidores foi a minha diferenciação entre decisão e escolha. Na própria conferência dei uma pincelada sobre esse tema. Em algumas rodinhas, tentava explicar essa minha tese, advinda da imbricação que faço da hermenêutica filosófica com a teoria integrativa de Dworkin. A soma disso rendeu a Crítica Hermenêutica do Direito, que procuro explicar no recente Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Muitos me indagavam se isso não me transformava em um positivista exegético... Candidamente, respondia que não e que isso tem sido explicado por mim já há mais de vinte anos.

Um dos pontos que sempre deixo claro é que o direito, no segundo pós-guerra, assume-se como um novo paradigma. A Constituição virou norma. Observe-se que nos EUA, bem antes disso, é pertinente observar que a Constituição deles não sofreu qualquer influxo direto do pós-guerra; na realidade, o pós-guerra da Europa Continental é o pós-guerra civil dos americanos (sempre é bom diferenciar estas tradições, até porque, por aqui, trabalhamos com ambas).

Sigo. O direito havia fracassado com as duas grandes guerras: genocídios e todos os tipos de tragédias nas e pelas quais o direito nada pode fazer ou resolver. Eis que, transformadas as constituições em norma, o direito assume uma faceta de transformação social. O ideal de vida boa é transportado para “dentro” dos textos. O velho positivismo, que havia cindido direito e moral, agora é (ou deveria ter sido) suplantado pela tese da cooriginariedade entre direito e moral (de novo, uma observação necessária: a discussão norte-americana se dá quase que paralelamente a isso; por lá, o positivismo jurídico ainda ocupa o mainstream, sem essa ênfase toda no anti [ou pós] positivismo).

Isto quer dizer, no mínimo, que a moral não pode ser corretiva. Moral não corrige o direito. Isto também quer dizer que uma decisão jurídica não é uma “questão de moral ou de filosofia moral”. A partir disso tudo, venho sustentando que os juízes tem responsabilidade política. Eles cumprem um papel. Para entender essa questão, basta ter em mente a alegoria ou metáfora dos dois corpos do rei, que aconselho sempre a leitura.[1] E assim por diante (já escrevi tanto sobre isso que hoje sofro de LEER – Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo).

Esta coluna, assim, é somente para relatar um pouco das discussões que venho travando e as que travei nos bastidores do seminário, assim como em outros congressos (como no da OAB do Paraná, no dia 15 de agosto).

Sempre aparece alguém para falar do Michael Sandel, que vende um montão de livros para os juristas. O que é fazer a coisa Certa? perguntará Sandel em um dos seus livros. Em muitos cursos de graduação e pós, estão discutindo os dilemas morais que o professor de filosofia de Harvard levanta, como se isso fosse uma discussão de e sobre o direito. Rechaço isso. Os exemplos apresentados pelo Sandel tais como o “trolley dilemma” (Dilema do Vagão) servem como pontos de partida para a problematização aceca dos sistemas éticos. Ou seja, tem uma finalidade didática e uma abordagem específica. 

Para delírio de operadores do direito (estou usando a palavra com um tom um tanto sarcástico, confesso), os exemplos acerca das “escolhas morais” que devem ser feitas fluem como se fossem um bálsamo. A partir dos exemplos de Sandel, já começam as adaptações... E os ativismos... E os decisionismos... E, lógico, as “escolhas” erradas. Claro que as vezes, a escolha é acertada... Mas um relógio parado também acerta a hora duas vezes por dia.

Vem Sandel e diz: você está em um trem que tem pela frente cinco pessoas... mas tem um desvio que pode ser feito, onde está um gordinho... O que você faz? Salva as cinco pessoas, matando o gordinho?[2] Na sequência: e se você está em uma plataforma do trem e este matará cinco pessoas... Mas você pode salvá-las, derrubando um gordinho sobre os trilhos, parando, assim, a trajetória do trem. No primeiro, as pessoas dizem que matariam o gordinho; na segunda, não, porque teriam que empurrá-lo... Ou não. E daí? O que isso tem a ver (diretamente) com o direito? Serve, sim, para discutir filosofia moral e correlatas; mas, para o direito, uma aplicação direta só fragiliza sua autonomia.

Permitam aqui desfazer qualquer tipo de mal entendido: sei que Sandel é um jusfilósofo dos bons. Nada tenho contra o seu célebre curso Justice, no qual trata, em linguagem direta, desanuviada e sem imposturas, do pensamento de gente como Aristóteles, Kant, Bentham e Rawls. É uma prova, aliás, de que clareza e simplificação não são sinônimos. Também, endosso sua postura de tentar resgatar o debate público, em especial o político, das trevas onde se encontra hoje em dia. Ao demonstrar que problemas morais têm repercussão no âmbito político (na construção de uma sociedade justa etc.), Sandel acerta na mosca.

Aliás, também Dworkin — fazendo aqui um brevíssimo “parênteses” — é um autor identificado com essa postura:[3] a de participar ativamente do debate público, tentando ultrapassar a barreira entre a linguagem profissional, acadêmica, e as questões que ocupam a ordem do dia. O seu Is Democracy Possible Here? é um dos muitos bons exemplos disso. Neste ensaio, Dworkin propõe que se faça uma espécie de depuração do debate político norte-americano, polarizado entre Democratas e Republicanos. Dworkin procura estabelecer um common ground entre adversários políticos (e não inimigos) que torne a discussão autêntica e produtiva. Concordamos que valores como dignidade, igualdade e democracia são importantes (ainda que discordemos a respeito do que estes conceitos significam)? Eis aí um bom ponto de partida.

Retomando, eu acho que as lições de Sandel, se bem lidas, fazem (muito) mais bem do que mal ao debate público e, mesmo, à argumentação jurídica. Mas seus exemplos devem ser lidos com uma advertência (deveriam carregar uma tarja): “você, que escolhe se mata ou não o gordinho, não está agindo como um jurista”. O agente moral que deve fazer esta escolha não representa um juiz em sua tomada de decisão enquanto agente público. Desenvolvo isso ad nauseam em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 

Voltemos ao exemplo do gordinho e à eventual moralidade do assassinato. Sandel utiliza esse problema para ilustrar as posturas utilitaristas. A morte de uma pessoa seria preferível à morte de cinco. Porém, a audiência não consegue universalizar esse princípio: a maioria fica desconfortável em assumir a responsabilidade por empurrar o gordinho nos trilhos; e isso leva a reformular, ou a refinar, o argumento inicial de que a vida de muitos vale mais do que a vida de um só. Não precisamos ir muito longe para sermos apresentados a uma versão preliminar do conceito de dignidade humana, pela qual a vida humana tem uma dimensão não instrumental.

Certo. Mas um jurista não está em condições de fazer este tipo de escolha fundamental (entre o utilitarismo e a dignidade, por exemplo). Para ser bem claro sobre esse ponto: já há um sistema (de regras, princípios etc.) que lhe antecede e que lhe coloca em condições de dizer algo. Ninguém quer saber se o juiz do caso é pragmaticista, consequencialista, ou se ele age com base em princípios morais (quais? de quem?). Melhor dito: o Direito democrático não pode depender disso.

É claro que, dada a cooriginariedade entre Direito e Moral (e o fato de o comando jurídico não poder contrariar o conteúdo moral, apesar de com este não se confundir), o argumento jurídico é, radicalmente, moral (por isso Dworkin irá ainda mais longe e dirá que o Direito é um branch da Moral). Mas a moralidade que o jurista articula quando argumenta não é a suamoralidade privada; não é a mesma que governa suas escolhas pessoais. A moralidade pública e política é outra, e gira, em Estados Democráticos ao menos, em torno de um sistema de direitos. Você tem ou não tem um direito? Essa resposta depende de uma argumentação moral, e o juiz tem areponsabilidade política de desenvolvê-la de forma adequada. Não depende de uma escolha.

Porque não posso exigir que o Estado me forneça pescoços de galos-índio!
Tenho tentado mostrar esse grau de autonomia do direito. Ele não pode ser corrigido por subjetivismos, seja com que roupagem for, se éticas ou morais ou moralizantes — por exemplo, a autorização de julgamento por equidade, presente também no projeto do novo CPC, jamais poderá significar um álibi para que o juiz se afaste do sistema de direito e julgue conforme critérios morais, econômicos, políticos, etc. Nessa linha, tenho utilizado algumas ilustrações. Confesso, ilustrações duras e até antipáticas. Mas bastante didáticas e isto ninguém pode negar! Por exemplo, um aluno de medicina ou biologia alega objeção de consciência para não frequentar a cadeira de anatomia, onde são feitos exercícios com animais (dissecação). Entra em juízo e pede que a Universidade lhe proporcione um curriculum alternativo. O judiciário concede a ordem. Qual é o problema dessa decisão? Sem dúvida, a decisão é equivocada. Sem discutir o direito dos animais (essa é outra questão), não parece constitucional que o restante da sociedade transfira recursos para proporcionar o bem estar da consciência moral do nosso pretendente a esculápio. O juiz terá que responder a algumas perguntas, como: há um direito fundamental a cursar medicina? Se não há, o pleito não vinga. Segundo: a conduta é universalizável? Um estudante de direito pode alegar problemas morais e não cursar direito penal, por exemplo? E na engenharia, pode o estudante exigir um currículo próprio? E a isonomia, a igualdade, a república, etc...onde ficam? E os recursos, que são de todos, podem ser desviados em favor de um?

Pais que professam religião que proíbe transfusão de sangue levam seu filho ao hospital. O menino está com a vida em risco. Estado grave. Os médicos prescrevem operação com transfusão de sangue. Indagam aos pais que vedam o procedimento. A criança morre. Os pais podem ser processados por homicídio? Este caso ocorreu há pouco tempo. O Superior Tribunal de Justiça entendeu que os pais não devem ir a júri, porque agiram sem dolo eventual. Qual é o busílis? Os pais têm direito a assim proceder? Vejamos. Não devemos misturar moral com direito e nem religião com direito e tampouco religião com medicina. Os médicos não deveriam ter consultado os pais. Os pais não possuem o direito fundamental a que seu filho não faça transfusão de sangue. Seu direito de crença não vai ao ponto de sacrificar uma vida. Se dermos o direito aos pais de veto a um procedimento imprescindível prescrito por esculápios entendidos no assunto, também teremos que aceitar que, daqui há um tempo, algum órgão público (MP ou Defensoria) ingresse com ação de danos morais contra o hospital que salvou o filho de um casal religioso (na terra da Jabuticaba, quem duvida é louco...). Afinal, poder-se-ia alegar que, ao salvar-lhes o filho, o hospital constituiu um dano moral na vida dos que professam a crença, porque sangue impuro estaria circulando nas veias do paciente (ou algum argumento desse jaez). Exageros meus à parte, nesse sentido o STJ acertou, embora não tenha desenvolvido à saciedade uma argumentação que possa servir para casos futuros. Não basta dizer que não há dolo eventual. Há que fixar doutrina para casos futuros. O direito deve superar a moral e as crenças pessoais em uma coletividade.

Mutatis mutandis, isso se aplica aos casos de pessoas que exigem, judicialmente, que um concurso público seja feito em outro dia que não aquele em que a religião do utente permita trabalhar ou exercer atividades. Ora, não parece que exista um direito fundamental a que o utente faça aquele concurso específico. Por que os demais concidadãos devem transferir recursos para proporcionar o bem estar de consciência de um individuo, isoladamente? Eu e você temos o direito de crer (ou não) no que quisermos: posso acreditar que se engolir três pescoços de galos-índio por dia vou purificar minha alma e assegurar meu lugar aos céus. Mas isso não me dá o direito, caso não tenha eu condições financeiras, de pleitear judicialmente ao Estado que me forneça um caminhão de pescoços sempre que necessitar (leiam o Post Scriptum). Exageros (de novo) à parte, fazer escolhas religiosas implica ônus. Muitos. Mesmo que a Constituição garanta a liberdade de credo, isto não quer dizer que tal direito se converta em direito subjetivo a obter aquilo que acredito para todas as hipóteses.

Numa palavra final:
Há hoje o "imaginário Sandel”, presente na doutrina das chamadas "escolhas trágicas" (sic) que o juiz seria levado a tomar, como se os dilemas morais apresentados fossem os casos difíceis do direito. Nesta linha dizem, equivocadamente: "quem deve morrer para que a decisão judicial em que se determina o fornecimento de leito a X seja cumprida"... Sobre isso escreverei em outra oportunidade. Em conferência que ministrei, meses atrás, aos novos juízes do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), tratei desse assunto.

De todo modo, o ponto é: a impossibilidade de transplantar a filosofia moral, sem mediação, para o Direito — coisa que acontece com quem trabalha com o paradigma das tais "escolhas trágicas", por exemplo. No âmbito judicial o juiz não é um agente moral que age guiado por suas convicções pessoais; diante da responsabilidade política que possui, a resposta jurídica decorre de uma decisão fundamentada no direito. Por isso, venho insistindo que, nodireito, temos decisões e não escolhas.

Post scriptum:
Esta é uma coluna conceitual. Trata de uma discussão sofisticada sobre a relação entre direito e moral. Espero que os comentaristas da ConJur não se digladiem em torno dos exemplos que citei. São apenas exemplos para discutir o tema. Já aviso que não gosto de engolir pescoços de galos-índio. Quem não tiver condições de discutir o cerne do problema aqui trazido, não leia até o final e poupe os demais leitores de observações periféricas, ideológicas ou de cariz idiossincrático (algo como “não entendo e não gosto” ou “não gosto do foi escrito porque não gosto do articulista”). Ah: não estou comparando a crença sobre proibição de transfusão sangue com qualquer crendice (de brincadeira ou séria). Cada crença têm o direito constitucional de ser respeitada...desde que não coloque em risco direitos humanos-fundamentais, como, por exemplo, a vida de alguém. Estamos combinamos?



[1] A ConJur trouxe, recentemente, um exemplo de um magistrado que olvidou possuir “dois corpos”, o dele mesmo (natural e representativo da pessoa humana que é), e o do juiz (corpo místico, superior ao primeiro, e no qual se concentra sua responsabilidade política). Ver aqui. Por mais horrendo que seja o crime praticado pela ré (ela ajudou o namorado a estuprar, por várias vezes, sua filha de oito anos e a abusar sexualmente, de outras formas, da filha de seis), não estava o magistrado autorizado a usar palavrões em sua sentença — nas palavras dele: “Eu não sei se eu já disse algum palavrão na minha função de juiz, mas você é provavelmente a puta mais desprezível que eu já encontrei na vida.” A questão vai além da quebra do decoro judicial, pois indica julgamento com parcialidade, apartado da responsabilidade política. Em outros termos: o juiz americano decidiu com base em seus sentimentos pessoais, preso as carências e imperfeições do seu “corpo natural”, deixou de lado o “corpo místico” do qual deve se valer todo e qualquer magistrado no exercício da nobre e difícil atividade judicante.

[2] No exemplo original do Sandel o desvio acarretaria na morte de um trabalhador. Aqui preferi colocar o gordinho por critérios, digamos assim, isonômicos, não necessitando figurar somente na hipótese em que teria que ser empurrado para a morte.

[3] Essas questões vem sendo estudas na Pós-Graduação da Unisinos (CAPES 6). Recentemente orientei a tese de doutorado de Francisco Motta, que, de forma brilhante, faz uma análise hermenêutica da teoria integrativa dworkiniana. Em breve, em livro.



Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.



Revista Consultor Jurídico, 28 de agosto de 2014, 08:00

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