quinta-feira, 6 de março de 2014

ATUAÇÃO DE ADVOGADO, FIQUE DE OLHO!

Seguem abaixo sequência de notícias veiculadas na Conjur sobre atuação do advogado.
 

Advogado indenizará cliente por adotar estratégia errada

 
O advogado que age com comprovada imperícia, impedindo que seu cliente consiga uma posição mais vantajosa no processo, pode ser responsabilizado com base na Teoria da Perda de uma Chance. Com este entendimento, a 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve, integralmente, sentença que condenou um advogado a pagar R$ 10 mil, a título de danos morais, por ter prejudicado seu cliente. O erro da estratégia jurídica levou à prescrição do direito que estava sendo buscado, deixando o reclamante sem receber verbas rescisórias.
Após analisar as reais possibilidades de o autor obter êxito na demanda, os magistrados das duas instâncias concluíram pela culpa do profissional, em função do nexo de causalidade existente entre a sua conduta e o resultado final — a perda de direitos trabalhistas.
‘‘Na prática, era corriqueiro que, antes do pedido de habilitação do crédito, houvesse o ajuizamento de ação trabalhista, para consolidar o crédito em favor do empregado, o que demonstra, conforme fundamentando na sentença, o erro grosseiro do advogado que requereu diretamente a habilitação’’, afirma o desembargador-relator, Ergio Roque Menine. A decisão é do dia 19 de dezembro.
O casoO autor informou, na inicial, que trabalhou para a rede de lojas J. H. Santos de 1994 até 1997, quando o grupo veio a falir. Em vista da ruptura abrupta do Contrato de Trabalho, ele teve de constituir advogado e buscar na Justiça as verbas rescisórias não pagas pelo empregador. No caso, contratou um profissional indicado por seu sindicato, que estava atendendo os demais colegas, que amargavam a mesma situação.
O advogado optou habilitar o crédito dos trabalhadores no processo de falência do grupo empresarial, que tramitou na Vara de Falências e Concordatas de Porto Alegre, ao invés de entrar prontamente com as reclamatórias na Justiça do Trabalho. A estratégia, no entanto, não deu certo, porque a habilitação exigia a juntada de acordos homologados na Justiça Trabalhista — ou seja, era necessário o prévio ajuizamento das reclamatórias.
Em novembro de 2001, o advogado resolveu ajuizar a ação em nome do autor, mas já era tarde. A demanda foi julgada extinta pela vara local, pelo reconhecimento da prescrição do direito de ação. É que no processo do trabalho, a instituição da prescrição está disciplinada pelo disposto no inciso XXIX, do artigo, 7º da Constituição. O dispositivo assegura o direito de ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho.
Em função da imperícia, que causou a perda de uma chance, o autor ajuizou ação indenizatória contra o profissional, pedindo o pagamento de danos morais em valor equivalente a 100 salários-mínimos.
A sentençaAo julgar o mérito da ação indenizatória, o juiz de Direito Diego Diel Barth, da 2ª. Vara Cível da Comarca de Alegrete, disse que o advogado não desempenhou a contento as obrigações de meio, já que não tem obrigação de fim. Assim, em função do grave e grosseiro erro cometido, deve ser responsabilizado civilmente, pois causou inegável prejuízo ao autor.
O magistrado observou que, ao contrário do alegado na contestação, não havia controvérsia doutrinária na época sobre qual procedimento deveria ser adotado em casos análogos aos do autor. O único caminho correto, garantiu, era ajuizar a reclamatória trabalhista. Ou seja, o pedido de habilitação de crédito somente poderia ser considerado o procedimento correto, ainda que em tese e com ressalvas, caso o empregador ingressasse com a autofalência, mas continuasse funcionando plenamente, mantendo o vínculo empregatício com o autor.
‘‘Neste caso, ainda que se entenda que não houve a intenção deliberada de prejudicar o autor, certo é que o réu agiu, no mínimo, com imperícia, circunstância suficiente para consubstanciar a sua culpa e o nexo de causa entre o ato cometido pelo réu e o prejuízo sofrido pelo autor’’, escreveu na sentença.
Por fim, citou as disposições do artigo 32 do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), que considera o advogado como responsável ‘‘pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa’’.
O julgador arbitrou a reparação moral em R$ 10 mil, levando em conta os cálculos da rescisória informados na manifestação do próprio réu perante o juízo falimentar e a Justiça do Trabalho, quando atuou em nome do autor.
Clique aqui para ler a sentença.
Clique aqui para ler o acórdão.
 
Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico, 6 de março de 2014
 
 

Advogado deve indenizar por ofensas à honra da parte oposta

 
A imunidade profissional garantida pelo Estatuto da Advocacia não é absoluta, uma vez que o defensor não pode cometer abusos e afrontar a honra de outros envolvidos no processo, o que inclui tanto o juiz e o representante do Ministério Público como o outro advogado ou a parte contrária. Entendendo que um advogado ultrapassou os limites e ofendeu o adversário de seu cliente, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás determinou que o profissional pague R$ 10 mil a título de danos morais à vítima. Os desembargadores deram provimento parcial ao recurso do advogado e alteraram a sentença para excluir o pagamento de R$ 2,3 mil por danos materiais.
A vítima disse que, durante contestação de outra ação, foi ofendida pelo advogado da parte contrária, que imputou a ele a prática de crimes como estupro, ameaça, cárcere privado, apropriação indébita e simulação de casamento, motivando a queixa-crime contra o advogado. Para defender-se de tais acusações e oferecer a queixa-crime, o homem disse ter arcado com os honorários de seus advogados e com passagens aéreas entre Londres, cidade em que mora, e Goiânia, o que motivou o pedido de danos materiais além do dano moral.
Em primeira instância, o advogado foi condenado a pagar R$ 10 mil por danos morais e R$ 2,3 mil por danos materiais, referentes aos honorários advocatícios pagos, o que originou a Apelação ao TJ-GO. Relator do caso, o desembargador Carlos Alberto França citou o fato de o advogado ter alegado que possui imunidade judiciária, como prevê o artigo 2º, parágrafo 3º, do Estatuto da Advocacia, além da tese de que estava apenas cumprindo o pedido de seus clientes ao ler todos os crimes imputados à parte.
De acordo com o relator, o advogado conta com imunidade para exercer sua função, “prerrogativa profissional erguida para defesa da soberania da função, de modo a estimular o advogado a promover sem qualquer restrição a defesa da liberdade dos demais direitos de seu constituinte”. No entanto, continuou, os profissionais não podem cometer excessos, e devem ser responsabilizados quando isso ocorre, como no caso em questão.
Carlos Alberto França disse que “a violação à sua honra em nada guarda pertinência com a matéria que se debatia na ação de prestação de contas ajuizada”, sem outra razão que não a ofensa para justificar tal prática. Ele votou pela manutenção da indenização por danos morais, mas retirou os danos materiais por entender que era prematuro seu pagamento, uma vez que o valor está associado a outro processo, ainda tramitando no 3º Juizado Especial Criminal. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-GO.
Clique aqui para ler a decisão.
 
Revista Consultor Jurídico, 22 de fevereiro de 2014
 

Atuação de advogado suspenso anula atos processuais

 
Os atos processuais feitos por advogado não habilitado devem ser declarados nulos. Por isso, a 7ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou o retorno de um processo à origem, pois o advogado que acompanhou uma trabalhadora na audiência inaugural de seu processo estava com a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil suspensa.
No caso, uma operadora de telemarketing que entrou na Justiça em março de 2007 contra a empresa que a contratou, Telematic Tecnologia, e contra o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) do estado da Bahia, onde prestava serviços. Na ação, ela reivindicava verbas como 13º salário, férias e aviso prévio, que não haviam sido pagas quando da rescisão.
As empresas foram condenadas e, ao interpor recurso ordinário para o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, o Sebrae requereu a anulação da sentença, porque o advogado da trabalhadora, à época da audiência inaugural, estava com a carteira suspensa pela OAB.
Para a entidade, todos os atos processuais praticados pelo advogado deveriam ser declarados nulos porque ele esteve suspenso de maio a novembro de 2007 pelo cometimento de infração que levou à aplicação do artigo 37, parágrafo 1º, da Lei 8.906/94 (Estatuto da OAB). Como o advogado assistiu a trabalhadora na audiência que aconteceu em 4 de junho de 2007, houve vício na representação, já que ele estava proibido de exercer a profissão.
O TRT rejeitou os argumentos do Sebrae, com o entendimento de que a presença do advogado não implicava nulidade, já que o trabalhador pode postular em juízo sozinho (jus postulandi). Acrescentou que incumbia à vara informar à empregada sobre o impedimento do advogado, e que a atuação do profissional, mesmo suspenso, não gerou prejuízo à operadora de telemarketing.
O Sebrae recorreu mais uma vez, desta vez ao TST, onde foi dado provimento ao recurso. A relatora, a ministra Delaíde Miranda Arantes, entendeu que, se a audiência foi feita por advogado que não estava legalmente habilitado, são nulos os atos processuais decorrentes de sua atuação, nos termos do artigo 4º, parágrafo único, da Lei 8.906/94.
A turma determinou a anulação de todos os atos processuais praticados a partir da audiência e a devolução dos autos à Vara de origem para que promova novo julgamento. A decisão se deu por maioria de votos quanto a este tema, ficando vencido o ministro Cláudio Brandão. Com informações da Assessoria de Imprensa do TST.  
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Revista Consultor Jurídico, 14 de fevereiro de 2014

REGISTRO DE CONCORRENTE NA JUNTA COMERCIAL NÃO IMPEDE EMPRESA DE USAR MARCA CONCEDIDA PELO INPI

Registro de concorrente na Junta Comercial não impede empresa de usar marca concedida pelo INPI
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu pedido da empresa ML Produtos Alimentícios Ltda. ME para que ela possa continuar utilizando sua marca Delícias em Pedaços. A abstenção de uso da marca havia sido conseguida na Justiça paulista pela empresa Oficina do Artesão Ltda., dona da marca Amor em Pedaços.

A ação foi ajuizada pela Oficina do Artesão sob o argumento de ser titular de vários registros para sua marca, regularmente expedidos pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Ela acusou a empresa ML de usar, ilicitamente, sinal distintivo praticamente idêntico.

O juízo da 4ª Vara Cível de Jundiaí (SP) reconheceu a prescrição do pedido de reparação de danos e não acolheu o pedido de abstenção do uso da marca, por entender que as expressões utilizadas são distintas, não passíveis de gerar confusão.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), entretanto, reformou parcialmente a sentença e determinou a abstenção do uso da marca Delícias em Pedaços, baseando sua decisão na suposta prática de parasitismo, uma vez que os termos “delícias” e “amor” evocam sensações prazerosas de comer um doce e as duas empresas atuam no mesmo segmento mercadológico.

No STJ, a ML alegou ser titular de três registros devidamente concedidos e válidos para a marca Delícias em Pedaços, um deles anterior à sentença de improcedência do pedido.

Sustentou também que não é possível determinar a abstenção do uso de expressão objeto de registro de marca válido e regular expedido pelo INPI.

Sistema atributivo

Em seu voto, o ministro Luis Felipe Salomão, relator do caso, destacou que as formas de proteção ao nome empresarial e à marca comercial não se confundem. A primeira se circunscreve à unidade federativa de competência da Junta Comercial em que são registrados os atos constitutivos da empresa, podendo ser estendida a todo o território nacional desde que seja feito pedido complementar de arquivamento nas demais Juntas Comerciais.

Por sua vez, a proteção à marca obedece ao sistema atributivo: é adquirida pelo registro validamente expedido pelo INPI, que assegura ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional.

De acordo com o ministro, a alegação da empresa Oficina do Artesão, de ter adotado o nome Amor em Pedaços perante a Junta Comercial de São Paulo em 1981, não é suficiente para impedir – como de fato não impediu – a obtenção do registro da marca Delícias em Pedaços pela empresa ML Produtos Alimentícios junto ao INPI, em 1999.

Eficácia do registro

Luis Felipe Salomão ressaltou que compete ao INPI avaliar uma marca como notoriamente conhecida e que qualquer ingerência do Judiciário nesse campo significaria invasão do mérito administrativo e ofensa ao princípio da separação dos poderes.

Segundo Salomão, a decisão do TJSP ultrapassou os limites de sua competência, pois extrapolou a discussão a respeito de eventual concorrência desleal e determinou a abstenção do uso de marca registrada pelo próprio titular.

“A determinação de abstenção de uso de marca registrada pelo seu próprio titular implicará retirar a eficácia do ato administrativo de concessão de registro, esvaziando por completo a decisão do INPI, sem a sua participação, violando, assim, inexoravelmente, o artigo 129 da Lei da Propriedade Industrial”, concluiu o ministro.
 
Processo: REsp 1189022
Fonte: STJ

SEMPRE AINDA A DURA FACE DO ATIVISMO EM TERRAE BRASILIS

Sempre ainda a dura face do ativismo em terrae brasilis

 
Rubem Alves, em Variações Sobre o Prazer, diz que quem sonha com um banquete há de dominar a ciência das panelas e dos fogos. Diz ele: “Tornei-me um inimigo dos sonhadores ingênuos que pensavam que bastaria que os homens mudassem suas ideias para que o mundo também mudasse. Moquecas não se fazem só com ideias e intenções. Quem quer mudar o mundo tem de ser um especialista no uso do fogo”.
Pois a coluna de hoje se encaixa no dizer de Alves e na discussão provocada na semana passada sobre o julgado do TST (clique aquiaqui para ler). A pedidos, calço as sandálias da humildade para dizer que efetivamente minha análise sobre o julgado do TST está... correta. Não foi o texto mais lido, mas “enquanto” coluna, ficou no topo do ranking semanal. Volto, pois, à discussão, dizendo, em face dos comentários dos leitores que é de uma profunda ingenuidade:
— querer defender um cêntimo de um acórdão eivado de uma coisa chamada ativismo-decisionismo.
— querer salvar uma floresta contaminada olhando uma árvore que, pretensamente (e só pretensamente) não foi conspurcada pelos fungos epistêmicos.
— acreditar na bondade dos bons, pensando que, via “mística da proporcionalidade” (na verdade, a Katchanga Real contemporânea), é possível admitir que, genericamente, um tribunal possa corrigir decisões judiciais sem que os pressupostos de admissão recursal estejam presentes.
Assim, não mudaremos o Direito se:
— não nos desvestirmos de nossos corporativismos, de nossos compromissos estamentais, conscientes ou inconscientes. Não mudaremos o Direito se, em vez de atacar a matéria, contesta-se-a porque o autor não é simpático aos olhos do crítico.
— não dominarmos “o fogo”, isto é, as condições de possibilidade em que um discursos jurídico é proferido. E o discurso do TST tem um lugar não muito difícil de entender. Só não entende quem não quer (ou não consegue entender).
Retomando o acórdão do TSTTrata-se de um acórdão que coloca à lume a dura realidade do ativismo de terrae brasilis. Portanto, não importa os pormenores espiolhados que alguns comentaristas tentaram fazer para justificar o injustificável. De toda sorte, a pluralidade da ConJur resolveu a discussão, porque um grupo de comentaristas (FNeto, HP Vilaça, Luis Henrique Braga Madalena, Marcelo Francisco, Leandro Rodrigues, Bdjp, Osvaldo Guedes, entre outros) afastou os fantasmas colocados pela minoria alinhada com o ativismo Te-eSse-Te-niano. Dando-se o nome que se queira dar, nada muda o caráter ativista desse tipo de decisão (algo como a frase de encerramento do romance O Nome da Rosa: “stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus”).
Para brincar mais um pouco: a malsinada decisão do TST foi baseada na alínea “c” do art. 896 da CLT, pela qual cabe Recurso de Revista das decisões dos TRTs que  que forem “proferidas com violação literal de disposição de lei federal ou afronta direta e literal à Constituição Federal”. Digamos em voz alta: “afronta direta e... literal da CF”. Bingo! Pois a única coisa que não se viu foi isso: a tal afronta literal...!
Mais: o item “prequestionamento” consta apenas na ementa. No acórdão em si não há nada mais sobre a matéria ter sido ventilada no acórdão do TRT. E, claro, não se pode ler um julgado pela ementa como também não se lê um livro pela orelha. E como há críticos literários por aí que leem só orelhas... e juristas que só leem (e tiram as conclusões apenas a partir das) ementas — pois que desconhecem a diferença ontológica, a concretude indisfarçável e incontornável que medeia tanto o texto e a norma quanto a ementa e o acórdão de um julgado. Aliás, ao contrário dos comentaristas que disseram, levianamente, que eu não teria lido o acórdão do TST, parece que eles não leram... o acórdão original do TRT. Bingo de novo. O acórdão do TRT nada fala sobre o tal dispositivo da CF. Engraçado é que o TST menciona o artigo 5º, V, CF, apenas porque a reclamada o invocou. Mas não foi nada discutido na origem... O que o TST faz é afirmar o que ele considera “injusto” e desproporcional: o valor arbitrado. Mas, atenção. Sejamos honestos intelectualmente: a discussão sobre o valor é absolutamente secundária, dependente da principal, que fora rechaçada por ele mesmo, o TST. Simplíssimo, pois. Aqui, o TST esqueceu que a doutrina trabalhista diz que “Na análise do recurso de revista não mais se busca declarar a justiça ou injustiça da decisão” (v.g., Aloysio Correa da Veiga). E veja-se o que diz o ministro do TST Ives Gandra Martins Filho sobre a alínea “c” do art. 896 da CLT, no nosso Comentários a Constituição do Brasil (Canotilho, Mendes, Sarlet e Streck – Saraiva, Almedina, 2013).
Note-se, ademais, que o TST ao citar os "precedentes" (ementas) para fundamentar a afronta direta e literal (atenção aos que não leram: a decisão do TST fala apenas em "violação") à Constituição e a desproporcionalidade, citou casos em que o próprio TST afastou a ocorrência de dano moral nas "revistas impessoais". Incrível, não é?
E, atenção de novo: este-tópico-já-estava-superado, pois o recurso de revista não foi conhecido neste ponto. Isto é fato! Esse "(f)ato falho" confirma que o motivo da diminuição do montante indenizatório não é a desproporcionalidade do valor ou a afronta direta e literal do artigo 5º da CF, mas, sim, a própria jurisprudência do TST que não entende ser dano moral a "revista impessoal".
E, atenção de novo: as ementas em momento algum falam em reduzir o valor da indenização por que o TST entende que não-configura-dano-moral-a-revista-impessoal...! Mais um golaço meu. Senso Incomum F.C. 3x0 (o terceiro gol foi um passe de trivela do comentarista FNeto; e, jogando fora de casa, cada gol vale o dobro!).
Mas não estou satisfeito. Quero aumentar a goleada. Senso Incomum F.C é terrível. É que o artigo 5º, V, CF, prevê que: "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem". Ora, não há na decisão do TRT afronta "direta e literal" a esse dispositivo, pois a proporcionalidade referida no artigo 5º, V, CF é da "resposta" ao "agravo" e não da "indenização". Acaciano isso. A decisão do TST não parece fundamentar no artigo 5º, V, CF a redução (essa, sim, desproporcional...!) do valor da indenização para R$ 1 mil, embora cite esse dispositivo. A decisão parece muito mais fundamentar a redução na sua jurisprudência que admite as tais "revistas impessoais". É como se dissesse: "reduzo porque entendo que sequer há dano moral". Por uma questão de lógica, a redução deveria ser... para zero reais. Senso Incomum F.C. 4x0!
O que também é engraçado é que nenhum dos defensores do julgado do TST quis falar sobre a hipótese de o TST passar a fazer o contrário: quando a indenização é considerada pequena, ele, o TST, pode aumentar o valor “desproporcional”, com base no mesmo (mágico) artigo 5º, inciso V, da CF (alguém já leu amiúde esse dispositivo, a propósito?). Que tal?
A propósito, o STJ tem diversos acórdãos em que reduz o valor do dano moral sem recorrer à CF dizendo apenas que o valor é desproporcional. Pois é. Terrae brasilis é fogo. Difícil mesmo é entender a relação do artigo 5, V, com o valor do dano... Quem quiser aprofundar isso, leia o livro Jurisdição Constitucional de Georges Abboud (RT, 2012, pp. 98 e 99). O autor mostra um bom exemplo desse ativismo-decisionismo no STF (decisão da ministra Ellen Gracie no AIn. 374.011 — Informativo STF/365), que dispensou o preenchimento do requisito do prequestionamento de um recurso extraordinário, sob o fundamento de dar efetividade ao posicionamento do STF sobre questão constitucional. No voto, o RE foi “equiparado” a um remédio de controle abstrato de constitucionalidade; assim, dispensou-se o prequestionamento para assegurar posicionamento do STF sobre matéria. Eis aí uma decisão discricionária violadora de texto expresso da Constituição Federal. Quando a Constituição estabelece o prequestionamento (rectius: “causas decididas”) como requisito para a admissão do recurso extraordinário (CF, artigo 102, III), não pode o STF dispensá-lo em nenhuma hipótese, ainda que seja para assegurar posicionamento consolidado pela Corte. Se prosperar esse posicionamento, o que impedirá que o STF desconsidere outros institutos e garantias constitucionais pétreas como a coisa julgada, o ato jurídico perfeito ou o direito adquirido, a fim de assegurar seu posicionamento? Afinal, os fundamentos para tanto seriam os mesmos, vale dizer, são casos em que a decisão do Supremo contraria texto expresso da Constituição, complementa Abboud. E eu digo: Bingo! And I rest my case!
Ainda, para finalizar, aproveitando mais um lançamento em profundidade de FNeto, meio-campista do Senso Incomum F.C., vejam a dura face do ativismo (quem quiser, pode chamar o ativismo de “bem-aventurança decisional”, que nada, absolutamente nada, mudará): “A edição de súmulas pelos tribunais afasta qualquer possibilidade de reconhecimento de violação de dispositivo de lei ou da Constituição da República? Vejamos a resposta da 1ª Turma do TST, sob relatoria do ministro Lelio Bentes Corrêa, no julgamento do Ag-AI-RR-57400-82.2011.5.17.0132. Tratava-se de Agravo em Agravo de Instrumento em Recurso de Revista. Ufa..! Assim se pronunciou a 1ª Turma: "Cumpre salientar, por fim, que a edição de súmulas por esta Corte uniformizadora pressupõe a análise exaustiva do tema, à luz de toda a legislação pertinente, o que afasta qualquer possibilidade de reconhecimento de violação de dispositivo de lei ou da Constituição da República, bem assim o confronto da decisão com arestos supostamente divergentes, porquanto superados pela jurisprudência dominante neste Tribunal Superior". Em suma, "todo o poder (d)às súmulas"...! A inautêntica (no sentido gadameriano) "holding" que se extrai da afirmação transcrita é que inexiste possibilidade de inconstitucionalidade-ilegalidade se existe súmula em sentido contrário ao alegado pela parte. Quer exemplo mais claro de sequestro da temporalidade, da faticidade e da complexidade inerentes ao fenômeno jurídico? É como se as súmulas fossem enunciados plenipotenciários, que abarcassem todas as hipóteses de aplicação. Fica a pergunta: não poderia o próprio teor da súmula implicar uma inconstitucionalidade-ilegalidade?” FNeto: obrigado, parceiro! Mais um gol na prorrogação. E... bingo de novo!
Numa palavra — como o ativismo “bate” na AP 470A dura face do ativismo aparece sob várias máscaras. Por vezes aparece do lado do “bem”; por vezes do lado do “mal”. Esse é o problema. Depende do lado em que o utente está. Por isso o ativismo sempre é ruim para a democracia. Um dos modos de o ativismo aparecer é o que foi transcrito acima. Mas ele é facilmente detectado quando o julgador diz que está decidindo de um determinado modo porque-é-o-seu-“sentimento”, como se sentença viesse mesmo de “sentire”. A questão é: por que temos de depender de atitudes ativistas?
Com efeito, no julgamento da AP 470 isso apareceu muitas e muitas vezes (em vários votos, sob diversos epítetos). Agora, no finalzinho, quando da decisão acerca da existência do crime de quadrilha, o ministro Roberto Barroso falou repetidas vezes que assim julgava porque esse era o seu “sentimento” (já o fizera em outros momentos no STF). Para a maioria das pessoas isso pode ter passado despercebido. Mas a um hermeneuta isso bate fundo. A pergunta é: a Justiça pode depender do sentimento pessoal do julgador? Para o “bem” e para o “mal”? Tenho batido nessa tecla há mais de 20 anos (por isso, ninguém pode se surpreender com esta coluna — minha crítica é feita de forma lhana, acadêmica e respeitosa). Afinal, a Justiça (ou seja lá o nome que se dê a uma decisão conforme o Direito) pode depender de uma delegação à consciência (subjetividade) do(s) julgador(es)? Não. Definitivamente, não!
E posso demonstrar isso facilmente, a partir de duas decisões do mesmo ministro Barroso. No caso Donadon, visivelmente ele errou, ao emitir a liminar no MS 32.326, utilizando argumentos metajurídicos, que indubitavelmente são a confirmação de que o julgador coloca a sua subjetividade acima da estrutura do ordenamento (e não sou apenas eu quem diz que a decisão foi equivocada; veja-se, por exemplo, a crítica a ele feita pelo ministro Gilmar Mendes). Portanto, também ali a decisão, por conter argumentos metajurídicos, pode ser qualificada como subjetiva (ou segundo o seu sentimento). Além disso, no caso Donadon, o ministro Barroso disse que o julgador não deve se contaminar com o que pensa a opinião pública; entretanto, no caso da AP 470, disse que o juiz deve dialogar com a sociedade...Afinal, ele deve ou não deve ouvir a opinião pública?
Sigo. Recentemente, no caso do julgamento da AP 470 (ao apreciar a “questão” da quadrilha), não sei se errou ou acertou. Nem importa na discussão. Vamos, ad argumentandum tantum, dizer que acertou, o que apenas demonstra o acerto de minha tese. Decidir conforme o sentimento, como se sentença viesse de sentire (como isso é ainda repetido por aí) é sempre um jogo perigoso, porque não depende de um a priori compartilhado ou de uma estrutura discursiva que respeite a tradição hermeneuticamente reconstruída. Depender do “sentir individual” é dar um passo para trás, filosoficamente falando. Trata-se de um behaviorismo interpretativo. Decidir conforme o sentir pessoal é ignorar os paradigmas filosóficos e os filósofos responsáveis pelos câmbios e giros paradigmáticos, como Wittgenstein, Heidegger, Gadamer, Habermas, Müller, Dworkin, Luhmann, para citar apenas estes (no Brasil — e como não sofro da síndrome de caramuru — lembro que inúmeros professores trabalham isso: Dierle Nunes, Marcelo Cattoni, Leonel Rocha, Warat, Tércio, entre outros).
Para entender melhor os riscos que se corre ao se julgar com base no sentire, os juízes alemães alinhados ao nazismo também decidiam pelo sentir, seu próprio ou de acordo com o “sentimento do povo alemão” — e, claro, tal sentimento só existiria quando estivesse alinhado às intenções da doutrina nazi-fascista. Por exemplo, no julgamento de Hitler pela participação do Putsch de Munique, em 1923, embora: a) a sentença mínima fosse de cinco anos e a máxima fosse ilimitada; b) Hitler estivesse em liberdade condicional — o que impedia a suspensão condicional da pena; c) e fosse estrangeiro (de nacionalidade austríaca — o que ensejaria deportação), foi sentenciado a uma pena de somente seis meses de prisão, a ser cumprida em um luxuoso castelo. A corte recusou a deportação sob a alegação de que “no caso de um homem como Hitler, de ideais e sentimentos tão alemães, a opinião desta corte é que os desígnios e propósitos da lei não se aplicam”. Enquanto isso, os judeus eram punidos implacavelmente. Os magistrados judeus e os identificados como sociais-democratas foram afastados e depois demitidos. E os advogados judeus, proibidos de exercer sua profissão, foram transformados em “consultores jurídicos”, podendo apenas aconselhar os judeus. Leis flagrantemente inconstitucionais eram validadas sob as togas do Judiciário que decidia com base não na normatividade, mas no sentire. Veja-se: não estou comparando um caso e outro. Apenas quero falar do alcance da questão paradigmática que exsurge de decisões subjetivas. Ainda hoje é difícil convencer os tribunais de terrae brasilis a cumprirem, por exemplo, a “literalidade” do art. 212 do CPP...
No Império, os juízes também decidiam conforme o seu sentir. Como a maioria era escravocrata, não aplicavam nem mesmo a (parca) legalidade, como por exemplo, a lei que proibia o tráfico de escravos de 7 de novembro de 1831 (leiam a luta do rábula Luis Gama para fazer cumpri-la) e a lei que limitava o castigo a escravos em 50 chibatadas por dia. Entre as leis e a “consciência”, os juízes e tribunais do Império ficavam, no mais das vezes, com a segunda. Claro que no Império isso era explicável: o sujeito da modernidade ainda querendo se impor (filosoficamente falando). Só que, hoje, no século XXI, depois do linguistic turn e do ontologic turn...não parece adequado insistir em teses protagonistas-subjetivistas.
Sendo mais claro, o que tenho deixado assentado é que decidir não é o mesmo que escolher. Pelo menos não pode ser. Se existe uma estrutura jurídica (leis, Constituição etc), uma decisão deve estar de acordo com esse arcabouço e não em conformidade com sentimentos pessoais. Pode até isso ser contestado, dizendo-se que o ministro (e isso acontece com parcela considerável da comunidade jurídica) não quis dizer isso e que o sentimento não deve ser interpretado desse modo. Mas, em resposta, afirmo que a minha crítica não se restringe ao espiolhamento do discurso e por eu ter escolhido a dedo a palavra “sentimento” ou “consciência”. É do conjunto da obra desse e de tantos outros juristas que se pode (re)tirar essa convicção. Simbolicamente, isso representa o autoritarismo da sociedade brasileira, isto é, até mesmo uma decisão judicial é fruto de um pensar individual, com o que a sociedade sempre estará dependente de uma coisa chamada “solipsismo”.
Se cada julgador tem critérios próprios e pessoais, se cada um julga conforme o seu sentir, não podemos nos admirar que o sistema jurídico seja um conjunto de decisões fragmentárias e fragmentadas. Por isso, as súmulas vinculantes são um remédio que o sistema se auto inoculou, porque ele mesmo não aguentou a sua fragmentação. Remédio amargo à democracia e à independência funcional das instâncias ditas “inferiores”.
Insisto nisso de há muito e posso pecar pela minha chatice epistêmica: se, por exemplo, tivermos que discutir se o aborto (pego esse exemplo pela sua complexidade) deve ser liberado, sendo, na hipótese, hipoteticamente posta na mão do Supremo Tribunal Federal essa tarefa, teremos que depender das convicções morais (subjetivas) de cada julgador? Ou, quem sabe, devamos depender daquilo que o direito, na sua reconstrução institucional, pode nos dizer? E assim por diante. Ah: e agora vem o caso dos poupadores. Devemos depender do Direito ou do sentimento que cada julgador tem em relação ao caso? E no caso do mensalão mineiro: devemos esperar um resultado jurídico ou decorrente de sentire? Eis o busílis da questão. E se o sentimento pessoal do julgador não coincidir com o direito? Tenho que acreditar que, em-si-mesmo, o julgador é “do bem” e que tem “bons sentimentos”?
Simplificando, você pode perguntar: embargos infringentes, crime de quadrilha, dolo no estelionato, conceito de lavagem de dinheiro... dependem de que(m)? Se o Direito, enquanto estrutura discursiva, não forjou uma tradição para dizer o que cada um desses institutos significa, então fracassamos. Sim, fracassamos pela simples razão de que o direito e seus institutos são, melancolicamente, aquilo que cada julgador diz (e sente) que é. E, em uma sociedade de origem estamental, a malta dependerá do que lhe dirão os setores estamentais. As vezes até coincidirá a resposta... Mas, convenhamos: um relógio estragado também acerta as horas duas vezes por dia.
Logo, se isso é assim, o direito é um simples jogo de poder. Então o pessimismo de Kelsen tinha razão de ser, quando disse que a aplicação do direito era um ato de vontade (e eu sempre acrescentei: de poder, a velha Wille zur Macht, de Nietzsche). Por isso é que o TST acolhe o recurso quando bem entende. Por isso, nos tribunais pátrios continuam valendo as máximas da “busca da verdade real”, “da livre convicção”, “do livre convencimento”, “da decisão conforme a consciência”, “da decisão segundo o sentimento”. E poucos, poucos mesmo, se perguntam: mas se isso é assim, para que estudar? Para que serve a doutrina? Pois é!
 
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 6 de março de 2014

LEI IGNORA RECUPERAÇÃO JUDICIAL DO PRODUTOR RURAL

Lei ignora recuperação judicial do produtor rural

 
O setor que mais cresceu no ano de 2013 foi o agronegócio, registrando um produto interno bruto de 7%, mantendo equilibrada a sazonalidade dos demais setores da economia, cujo desempenho tem sido alvo de crítica e desesperanças locais e internacionais. No entanto, o verão trouxe uma seca enorme e com ela se calcula um prejuízo de quase R$ 10 bilhões no setor do campo.
A lei de recuperação, na sua interpretação, ao que tudo indica não disciplina, por motivos injustificados e inexplicáveis, a recuperação judicial do produtor rural. A atividade rural mudou substancialmente nos últimos cinco anos, com tecnologia de ponta, aumento das áreas agricultáveis, presença de grupos estrangeiros, produção em escala, mas os custos ainda são elevados, e a cobertura dada pelo governo é muito inferior daquela esperada.
Bem assim, se o registro de empresa passa a ser o fator negativo, que não permite a recuperação judicial do produtor rural, correto afirmar que, com a entrada do estatuto do microprodutor individual e da empresa individual, novos aspectos surgiram no horizonte.
Noutro giro, se a preocupação do governo é de arrecadar com meio de inserção na declaração do produtor rural, esse aspecto, por si só, é capaz de comprovar o prazo de dois anos exigido para o pleito de recuperação.
A jurisprudência não está totalmente consolidada, e seu viés de forma alguma deverá se inclinar pelo formalismo do registro, permitindo que outros dados possam comprovar o exercício da atividade rural produtiva, afinal de contas, se apenas o empresário regular fizer jus à recuperação, aquele outro ficará prejudicado e sem a necessária isonomia.
Defendemos, com todas as letras, que a recuperação judicial do produtor rural se insira no moderno ordenamento e se aprimore com os requisitos de inscrição na casa da lavoura, na venda por meio de notas e quaisquer negócios realizados, inclusive perante a Receita Federal.
O empresário rural sem registro na junta deve estar enquadrado na legislação, trabalhando diuturnamente, e pela cultura rural brasileira seria exigir muito para que se obrigasse produtor rural fazer o registro público de empresa.
A nomenclatura de outra entidade que possa demonstrar essa situação é fundamental para evidenciar que sua tendência pode estar imbricada no empresário individual, ou pequeno produtor rural, assim todas as formalidades ficariam, via de regra, atendidas para que pudesse o destinatário da norma requerer a recuperação judicial.
No ataque mais grave de pragas, falta de chuva, ou quedas pluviométricas em excesso, o produtor não dispõe do seguro rural efetivo e todos os empréstimos feitos pelo sistema financeiro, ou cooperativas, tudo fica comprometido.
A sujeição ao regime de cooperativa não destipifica a finalidade de lucro, daí porque o registro de empresa ficaria pulverizado no tempo e no espaço.
A crise econômica mundial perpassa todos os setores, e não olhar com entusiasmo para o campo representa um grave retrocesso. O setor sucroalcooleiro reclama e também a maioria das usinas, atingidos pelo congelamento de preços e de uma política governamental míope, que não alarga a produção ou incentiva o crescimento interno e externo.
Sofrem todos os produtores rurais que não possuem um guarda-chuva no sol ou durante a tempestade, mais ainda quando o financiamento é caro e a safra contempla preço que nada estimula, somente os players do mercado ganham e aumentam seus rendimentos.
A vinda dos títulos rurais deu um novo alento, a partir da cédula do produtor, da letra rural e outros afins, porém não de forma suficiente para o custeio, cujos preços, dentro em breve, aumentarão nas gôndolas, influenciados pela seca que varreu a maioria das regiões do Brasil.
Em termos práticos, prestigiar a recuperação do produtor rural, no mais das vezes, simboliza apostar as fichas no campo e no desenvolvimento do agronegócio, além do que a grande maioria dos produtores rurais tem um endividamento, cuja vertente não é de molde a causar ruptura ou quebra de outros setores em cadeia.
Doutra banda, se a situação não se resolve mediante um procedimento com maior prazo de pagamento e uma carência ao produtor rural, vamos assistir a empenhos do governo e bilhões do Tesouro para que a mola da quebradeira não seja geral. Isso significa que entra dinheiro público para sanar as falhas do agronegócio e a tutela do produtor rural.
Com a implantação de uma ferramenta recuperacional, todos os produtores, com inscrição ou não, de direito ou irregulares, mas que comprovem atividade ao longo de dois anos, teriam condições por fazer jus ao ingresso na recuperação da atividade empresarial do pequeno produtor rural.
 
Carlos Henrique Abrão é magistrado em segundo grau do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 6 de março de 2014

quarta-feira, 5 de março de 2014

O DESENVOLVIMENTO DO DIREITO COMPARADO NOS SÉCULOS XIX E XX

Desenvolvimento do Direito Comparado nos séculos XIX e XX

 
O Direito Comparado pode assumir a forma de uma disciplina científica, uma matéria autônoma ou de um método de estudo dos ordenamentos jurídicos. Sobre esse ponto, há enormes divergências. Suas origens “oficiais” remontam ao século XIX, embora desde sempre a comparação — ainda que destituída de método ou do rigor que se tornou vulgar exigir nos últimos dois séculos — tenha sido utilizada pelos juristas em seus escritos. A esse propósito, como anota Ernesto Leme, a coleta de materiais e fontes jurídicos é uma prática que remonta ao século V d.C. No entanto, Anselm Feuerbach (1775-1833) possui a primazia de haver lançado “de fato os fundamentos da Ciência do Direito Comparado”.[1]
Nos séculos XIX e XX, grandes comparatistas deram outra dimensão ao Direito Comparado. Vejam-se alguns desses nomes e suas respectivas contribuições. Famosíssimo pela frase sobre a passagem da era do status para a do contrato, o inglês Henry James Sumner-Maine (1822-1888) foi o regente da primeira cátedra de Direito Comparado, instituída em 1869, na Universidade de Oxford.
O austro-húngaro Ernst Rabel (1874-1955), a quem já se dedicou uma coluna (clique aqui para ler), foi outro grande nome do Direito Comparado e um dos responsáveis pela reabertura da Alemanha à cooperação acadêmico-jurídica no primeiro pós-guerra. Desde 1926, ele assumiu a direção do Kaiser-Wilhelm-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Instituto Imperador Guilherme de Direito Comparado [literalmente, Estrangeiro] e Privado Internacional), que é o atual Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Privado Internacional), cuja sede fica em Hamburgo, e que é o mais importante centro de comparação jurídico-privatística da Europa na atualidade. Rabel deixou como herança o (a) desenvolvimento do método funcional, o mais utilizado até hoje pelos comparatistas alemães e (b) a inspiração teórica para Convenção de Viena das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias.
Pierre Arminjon, Barão Boris Nolde e Martin Wolff também ocupam posição de enorme relevo no Direito Comparado, graças a seu monumental Traité de Droit Comparé, editado pela francesa LGDJ, em Paris, no ano de 1950.[2] É raro um livro jurídico brasileiro, que trate de Direito Comparado, e não cite esses três autores. Parece ser interessante dizer algumas palavras sobre suas vidas.
Paul Pierre Henri Arminjon (1869-1960), de uma antiga família de origem savoiana, foi professor extraordinário (1934-1937) e catedrático (1937-1939) de Direito Civil Comparado e de Direito Internacional Privado na Universidade de Lausana, na Suíça. Exerceu grande influência intelectual no Egito, onde lecionou na Universidade do Cairo.
Martin Wolff (1872-1953), alemão de origem judaica, foi professor de Direito Civil, Direito Comercial e Direito Internacional Privado na Friedrich-Wilhelms-Universität, atualmente Humboldt-Universität zu Berlin. Suas aulas eram extremamente populares e sua docência muito respeitada na Alemanha. Com a chegada dos nazistas ao poder, sua permanência na universidade foi interrompida. Ele terminou demitido do serviço público, juntamente com Ernst Rabel e Hans Kelsen. Em 1938, Wolff emigrou para o Reino Unido, onde se tornou professor em Oxford. É de 1945 seu clássico Private International Law. Wolff, todavia, é mais conhecido no Brasil por sua coautoria do famoso Tratado de Direito Civil alemão, escrito com Ludwig Enneccerus e Ludwig Enneccerus.
O Barão Boris Emmanuilovich Nolde (1876-1948), cujo retrato pode ser visto aqui foi professor na Universidade de Petrogrado. Nolde foi ministro do governo provisório de Kerensky, derrubado pela Revolução de Outubro de 1917, que instaurou o regime comunista em seu país e deu origem à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Nolde é autor de obras não-jurídicas de grande acolhida nos meios históricos e econômicos, como o “O antigo regime e a revolução russos”, “O reino de Lênin” e “A formação do Império Russo”. O barão Nolde também integrou a Corte Permanente de Arbitragem na Haia. Ele faleceu quando as provas do Traité já se encontravam na editora.
Deve-se a Arminjon-Nolde-Wolff a divisão dos sistemas jurídicos contemporâneos em “sete famílias”, a saber: francesa (tomando-se como ponto de convergência a utilização do Código Napoleão como modelo normativo); alemã; escandinava; inglesa; soviética; islâmica e hindu.[3]
René David (1906-1990) é outro clássico do Direito Comparado do século XX. Suas principais obras possuem tradução para o português e são bastante conhecidas do público brasileiro.[4] A trajetória acadêmica de René David merece algumas referências, a partir das notas biográficas de William Jeffrey Jr:[5] David iniciou sua carreira docente em 1929, na Universidade de Grenoble. Na Segunda Guerra Mundial, René David serviu no Exército francês. Em 1943, assumiu cátedra na Faculdade de Direito da Universidade de Paris, tendo-se aposentado nos anos 1970, quando lecionava na Universidade de Aix-en-Provence (1968-1976). Nos anos 1930, René David atuou no Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado.
A classificação de René David dos sistemas e famílias compreende os direitos ligados à tradição romano-germânica, a Common Law, além do hoje extinto Direito soviético e de outros direitos que se caracterizam por sua natureza sui generis, como o hindu, o chinês e o judaico.
O civilista francês Henri Capitant (1865-1937) também merece um lugar de honra no comparatismo do século XX. De entre suas obras mais relevantes encontram-se o Curso elementar de Direito Civil francês, escrito com Ambroise Victor Charles Colin, que se tornou conhecido como o Cours Colin-Capitant.[6] Seu livro Da causa das obrigações[7] foi um marco no estudo da causa no Direito Civil, tendo inspirado autores brasileiros da segunda metade do século XX, como Antonio Junqueira de Azevedo e Arnoldo Wald. A maior contribuição de Capitant, que foi professor nas universidade de Grenoble e de Paris, não foi propriamente ao método ou desenvolvimento teórico do Direito Comparado e sim permitir o florescimento de estudos comparatistas no Direito Civil, por meio da Association Henri Capitant (atualmente denominada Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française [Associação Henri Capitant dos Amigos da Cultura Jurídica Francesa]. Com seções em dezenas de países, a Associação Henri Capitant realiza encontros anuais de seus membros – as Jornadas Internacionais -, que consistem na apresentação de relatórios temáticos sobre o estado-da-arte de instituições e figuras jurídicas nas nações dos integrantes da associação. Posteriormente, publicam-se as atas desses encontros, que se transformam em riquíssima fonte para estudos de Direito Comparado e Direito estrangeiro.[8]
Konrad Zweigert (1911-1996) e Hein Kötz (1935-) integram a lista de autores mais influentes no Direito Comparado da segunda metade do século XX. Zweigert, já falecido, foi juiz do Tribunal Constitucional Federal e professor de Direito Comparado e Internacional Privado na Universidade de Hamburgo. De 1963 a 1979, dirigiu o Max-Planck-Instituts für ausländisches und internationales Privatrecht, tendo sido vice-presidente da Sociedade Max-Planck no período de 1967-1978.[9] Hein Kötz dirigiu o Instituto Max-Planck de Hamburgo no período de 1978 até 2000, tendo sido professor nas universidades de Constança e Hamburgo, além de ter ocupado o cargo de juiz do Tribunal Regional de Karlsruhe.
Seu livro Introdução ao Direito Comparado, [10] que é mais conhecido por sua versão em inglês,[11] tornou-se um “clássico contemporâneo”. Seus autores mantiveram-se fiéis ao legado de Ernst Rabel, ao tempo em que conseguiram posicionar o Direito Comparado nos grandes debates sobre a uniformização, a comunitarização e a europeização do Direito.
O nome de Reinhard Zimmermann (1952-), atual diretor do Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Privado Internacional de Hamburgo e presidente da prestigiosa Associação de Professores de Direito Civil da Alemanha, transcende o século XX e coloca-se hoje como um dos grandes comparatistas de nosso tempo. Além dessas importantes funções acadêmicas, Zimmermann é catedrático da Universidade de Ratisbona e, nos anos 1980, lecionou na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul.
Dentre seus textos mais importantes encontra-se O Direito das Obrigações, escrita em inglês, inicialmente publicado na Cidade do Cabo em 1990. Trata-se de um monumental estudo sobre as relações obrigacionais, que combina elementos romanísticos e civilísticos, tanto da tradição romano-germânica quanto da tradição anglo-saxã.[12] Deve-se citar também O novo Direito das Obrigações alemão[13], no qual o leitor pode encontrar um exame isento do polêmico processo de reforma do Código Civil alemão, que contou com a oposição de muitos catedráticos de Direito Civil da Alemanha.
Com obras traduzidas nos mais diversos idiomas e com doutorados honorários em 9 universidades, Zimmermann é um nome que conseguiu ultrapassar as fronteiras do Direito, o que se comprova pelo reconhecimento que ele teve na África do Sul por seu compromisso com a restauração do estado de direito naquele país durante o apartheid. E, ainda, por haver ele sido a inspiração para a personagem Moritz-Maria von Igelfeld, do livro “Verbos irregulares portugueses”, primeiro volume da trilogia “Os 2 ½ Pilares da Sabedoria”, do autor escocês Alexander McCall Smith.
Ao lado de Jürgen Basedow (1949-) e Holger Fleischer (1965-), Zimmermann tem sido responsável pelo fortalecimento das ligações do Instituto Max-Planck com a América Latina. Atualmente, a bela tradição de Jürgen Samtleben (1937-) é conduzida por juristas mais jovens como Jan Peter Schmidt e Tilman Quarch, ambos pesquisadores do Max-Planck e com produções de relevo para a cultura jurídica brasileira.[14]
Na próxima coluna, prosseguir-se-á neste tema, com enfoque na perspectiva lusobrasileira.

[1] LEME, Ernesto. Direito Civil comparado. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo,v. 55, p. 59-70, 1960. p.59.
[2] O tomo primeiro do tratado está disponível em sua íntegra no seguinte endereço: http://digitalcommons.law.scu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1007&context=monographs. Acesso em 4-3-2014.
[3] ARMINJON, Pierre; NOLDE, Barão Boris; WOLFF, Martin. Traité de droit comparé.Paris: LGDJ, 1950. v.1. p. 49-54.
[4] DAVID, René. Os Grandes sistemas do direito contemporâneo.Tradução Hermínio A. Carvalho. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (A edição francesa possui esta referência, tendo-se incluído o nome de uma coautora, responsável pela atualização da obra: DAVID, René; JAUFFRET-SPINOSA, Camille. Les grands systèmes de droit contemporains. 11. éd. Paris: Dalloz, 2002); DAVID, René. O direito inglês. Tradução de Eduardo Brandão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006).
[5] WILLIAM JR., Jeffrey. René David: An introduction. U. Cin. Law Review, n. 124, v. 52, 1983. p.124.
[6] Há sucessivas edições do Cours élémentaire de droit civil français, editado em Paris, pela Dalloz, em três volumes, desde 1915.
[7] CAPITANT, Henri. De la cause des obligations (Contrats, Engagements unilatéraux, Legs). 3 ed. Paris: Dalloz, 1927.
[8] São exemplos desses relatórios os seguintes textos, apresentados por autores brasileiros: JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Relatório brasileiro sobre revisão contratual apresentado para as Jornadas Brasileiras da Associação Henri Capitant. In. JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Novos estudos e pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 182-198; TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. O extremo da vida : eutanásia, accanimento terapeutico e dignidade humana. Revista Trimestral de Direito Civil: RTDC, v. 10, n. 39, p. 3-17, jul./set. 2009 (Jornada de 2009); TACITO, Caio. Responsabilidade do Estado e dos organismos públicos em razão da direção do crédito e da supervisão dos estabelecimentos de crédito.In. Temas de direito público. Rio de Janeiro : Renovar, 1997. p. 1145-1151, v. 2 (Jornada de 1984); SOARES, Guido Fernando Silva. A eficácia das decisões judiciais em direito internacional privado. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, v. 12, n. 46, p. 209-220, out./dez. 1988 (Jornada de 1985).
[9] Há um completo estudo biográfico sobre Konrad Zweigert publicado em: DROBNIG, Ulrich. Konrad Zweigert (1911 - 1996). In. GRUNDMANN, Stefan; RIESENHUBER, Karl (Hrsg). Deutschsprachige Zivilrechtslehrer des 20. Jahrhunderts in Berichten ihrer Schüler. Eine Ideengeschichte in Einzeldarstellungen. Berlin: De Gruyter, 2007. v.1 p. 90 e ss.
[10] ZWEIGERT, Konrad; KÖTZ, Hein. Einführung in die Rechtsvergleichung. 3. Auflage. Tübingen: Mohr Siebeck, 1996.
[11] ZWEIGERT, Konrad; KÖTZ, Hein. Introduction to Comparative Law. Tradução de Tony Weir. 2. ed., rev. Oxford: Claredon Press, 1992.
[12] ZIMMERMANN, Reinhard. The law of obligations: Roman foundations of the civilian tradition. Oxford: Oxford University Press, 1999.
[13] ZIMMERMANN, Reinhard. The new German law of obligations: Historical and comparative perspectives. Oxford: Oxford University Press, 2005.
[14] Para maiores detalhes sobre esse tema, sugere-se a leitura de: A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v. 938, p. 79-155, dez. 2013. Disponível em: http://www.direitocontemporaneo.com/wp-content/uploads/2014/01/A-Influ%C3%AAncia-do-BGB-e-da-Doutrina-Alem%C3%A3-no-Direito-Civil-Brasileiro-do-S%C3%A9culo-XX.pdf
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.
Revista Consultor Jurídico, 5 de março de 2014

NOVAS TAREFAS DE EMPREGADO NÃO SÃO ACÚMULO DE FUNÇÃO

Novas tarefas de empregado não são acúmulo de função

 
O empregador tem a prerrogativa de alterar as condições de trabalho de seus empregados, desde que de acordo com a lei e não configure mudança prejudicial ao trabalhador. Isso inclui acrescentar outras funções, sem que seja caracterizado o acúmulo. Assim entendeu o juiz convocado Manoel Barbosa da Silva, ao relatar recurso na 9ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG). O posicionamento foi acompanhado pelos demais integrantes do colegiado.
Na ação, o trabalhador pretendia receber diferenças salariais pelo acúmulo de funções. O empregado afirmou que, apesar de ter sido contratado para trabalhador como Operador de Produção III, passou a acumular atividades distintas de sua função, tais como descarga de sacos de cal e outros produtos, queima de cal, além de fazer dosagem de polímeros. Entretanto, o Barbosa da Silva observou que a prova oral demonstrou que as atividades desenvolvidas pelo trabalhador não fogem àquelas inerentes ao cargo para o qual fora contratado, não ficando caracterizado o acúmulo de funções.
Ele apontou que à composição de uma função podem se agregar tarefas distintas, que embora se somem, não desvirtuam a atribuição original. "O exercício de atribuições complementares à função original, em consonância com a condição pessoal do trabalhador, faz parte do jus variandi do empregador. Se o empregado trabalhou a jornada contratada, executando serviços de acordo com a sua condição pessoal, e recebeu o salário ajustado, não tem direito à diferença salarial pretendida (parágrafo único do artigo 456 da CLT)", escreveu o relator. 
No entender do julgador, quanto o legislador pretendeu reconhecer direito à majoração salarial por acúmulo de função ele o fez expressamente, conforme artigo 13 da Lei 6.615/1978, que regulamentou a profissão de radialista. E, por se tratar de regra excepcional, a norma é de interpretação restritiva, concluiu, negando provimento ao recurso. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRT-3.
 
Revista Consultor Jurídico, 5 de março de 2014

"PROCESSO DO MENSALÃO É VINGANÇA CONTRA DESIGUALDADE"

Direito e política

"Processo do mensalão é vingança contra desigualdade"

 
O devido processo legal não pode ter uma vinculação com o estrato social da pessoa que está sendo julgada. Esse princípio, porém, tem sofrido uma distorção no Brasil, do qual o processo do mensalão dá provas. Quem afirma é o professor da Universidade de Coimbra Rui Cunha Martins. “O processo do mensalão é a grande oportunidade que as populações cansadas de tanta desigualdade têm agora do revanchismo, da vingança. E o sistema jurídico aceita fazer esse papel”.
Professor visitante de programas de pós-graduação e membro de grupos de pesquisa em diversas universidades brasileiras e espanholas, Martins tem como foco de trabalho investigar confluências entre a Teoria da História, Teoria do Direito e Teoria Política, áreas em que orienta trabalhos de mestrado e doutorado. As linhas de pensamento mais presentes em seus trabalhos são a problemática da mudança política e da transição, a problemática da fronteira e da estatalidade e os regimes da prova e da verdade. No Brasil, as ideias foram explicadas nos livros O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons e A Hora dos Cadáveres Adiados, lançados no ano passado.
Para Martins, ao relativizar a importância das provas e justificar entendimentos com a repercussão que o resultado do julgamento teria em outros casos ou na opinião pública, o Supremo admitiu a participação de um elemento informal na técnica de decidir: a pressão social. Pressão essa que, segundo o professor, se volta contra a corrupção como se ela fosse a causa dos problemas sociais e econômicos do país. Em sua opinião, porém, esse tipo de pensamento tira o foco de um mal ainda mais destrutivo: a incompetência de quem tem a obrigação de guiar bem a gestão pública. Em entrevista exclusiva concedida à ConJur, ele afirma: “Se os tribunais fizerem o papel da ‘limpeza’, se arriscarão a ser os faxineiros do serviço, os idiotas úteis”.
E ele é ainda mais assertivo. Diagnosticando o movimento, que com a postura do Supremo ganha força na Justiça, Martins faz um alerta. Diante do anseio em acabar com a corrupção colocando ricos e poderosos atrás das grades, há o risco de se questionar a conveniência de se viver em um Estado Democrático de Direito, que, por regra, não pode abrir mão do devido processo legal — princípio que, por natureza, pede o contraditório e é inimigo da pressa em julgamentos penais. “Devido processo legal não tem que ter uma vinculação ao estrato social da pessoa que está a ser julgada. Esse princípio tem sofrido uma distorção no Brasil. Tem havido um peso de punição, de prisões, de execuções, proveniente de camadas sociais”, afirma. “O Estado de Direito não é salvo cada vez que um corrupto é condenado. E não será salvo se prender pessoas que não deveriam ser presas. Dizer: ‘Eu também vou julgar poderoso’ não vai oferecer segurança às populações.”
O professor visitou a redação da ConJur em uma de suas viagens ao Brasil, que faz com frequência para dar palestras em universidades. 
Leia a entrevista: 
ConJur — O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons e A Hora dos Cadáveres Adiados foram duas obras recentes com análises sobre eventos na sociedade brasileira, como as manifestações de junho. Qual foi o objetivo?Rui Cunha Martins — Há um objetivo especifico e um objetivo comum. O objetivo comum é o de tentar construir uma problemática, pensar assuntos que o senso comum nos coloca, problemas da sociedade atual, das sociedades contemporâneas e, sobretudo, da sociedade brasileira. De forma a construir o que eu chamo de uma boa problemática, tentar pensar em vez de tomar partido ou, de forma impulsiva, transportar nossas pré-compreensões para assuntos que são mais sérios do que elas. Minha intenção é sugerir vias reflexivas para problemas que o Direito coloca.
ConJur — Suas obras fazem uma distinção entre a forma legal e a forma política de ver.Rui Cunha Martins — Meu trabalho se situa no cruzamento entre Ciência Política, Direito e História. É um trabalho situado nos interstícios, nas dobras, nas pontes. Um exemplo concreto na sociedade brasileira se refere às expectativas sociais criadas em face à decisão judicial. O megaprocesso do mensalão é a expressão máxima de determinados problemas que há muito tempo ocorrem na sociedade brasileira e nas relações entre o sistema jurídico e o sistema social. Estamos a falar de uma zona de fronteira, de passagem. É uma tripla fronteira, porque, além do sistema social e do jurídico, há interferência da mídia e, portanto, do sistema comunicacional também. O sistema comunicacional é hoje expressão do sistema econômico. A mídia é a tradução do poder econômico. Os grupos de empresas são grandes. É o motivo do título do meu segundo livro, A Hora dos Cadáveres Adiados. É uma procissão de cadáveres, na qual está o sistema jurídico, que é a parte sacramentada, a parte do rei do momo no Carnaval, do bobo, que está desacreditado. É também uma festa que não pode passar sem o sistema político, em quem todos batem também. Mas a prova de que todos fazem política é em relação aos juízes do Supremo. Alguns deles são apontados até mesmo como putativos candidatos presidenciais, ou seja, candidatos ao topo do sistema político.
ConJur — O Supremo Tribunal Federal é uma corte constitucional em que a política faz parte das decisões, até por conta da forma como deve ser composto. É razoável que ele decida estritamente com argumentos jurídicos?Rui Cunha Martins — Não tenha certeza se se quer isso. Sim, há um senso comum jurídico, porque não há só o senso geral da rua, mas também o senso comum jurídico. Mas vimos que a pressão feita sobre os ministros a partir das ruas, do sistema social, é justamente o contrário. A exigência que é feita — ou pelo menos que a mídia retrata ser feita — pelas populações é a de que haja julgamento político. Ou seja, que se dê o sinal fortemente político no sentido, quase pedagógico, de excomungar o poderoso. O problema é como desempenhar uma função que também é política, mas não pode deixar de ser técnica. E aqui já estamos quase a falar na teoria da democracia, no lugar do Direito nas sociedades democráticas, do Estado de Direito. Como uma decisão pode ter em conta as expectativas sociais?
ConJur — E qual é a resposta?Rui Cunha Martins — Essa foi uma questão presente, por exemplo, no mensalão, em relação aos Embargos Infringentes. Até que ponto há obrigação do Direito em dar resposta às expectativas sociais? Isso é preocupante. É preocupante pensar que as expectativas sociais a respeito do Direito e do sistema jurídico sejam interpretadas no sentido de que o ruído da rua deve ser levado em conta pela decisão judicial. Penso que, no âmbito do Estado de Direito, não pode ser levado em conta. Não é dessa forma que se assegura a certeza do Direito.
ConJur — Sua tese é de que só se consegue inibir a impunidade quando o corrupto assumido passa pelo devido processo legal. Decisões que tendam a dar uma resposta rápida ao clamor por condenações acabam sendo um tiro pela culatra?Rui Cunha Martins — Sim. Há uma ideia de que o sistema jurídico, quando condenar um poderoso, está finalmente a dar resposta aos anseios de justiça social. Ora, o fato de se viver em um Estado de Direito tem um preço, que é o devido processo legal. É nesse conceito que está incrustada a ideia de Estado de Direito e, sobretudo, de uma das versões de Estado de Direito, que é o Estado Democrático de Direito. Esse devido processo legal não tem que ter uma vinculação ao estrato social da pessoa que está a ser julgada. Esse princípio tem sofrido uma distorção no Brasil. Tem havido um peso de punição, de prisões, de execuções, proveniente de camadas sociais. Essa mesma sociedade, depois, tem de enfrentar problemas no sistema prisional. Esse problema nasce de outros. São problemas econômicos não resolvidos, de desigualdade social, do sistema capitalista. O sistema econômico não resolveu o problema da desigualdade social, dos crimes de injustiça econômica. Não é surpresa, portanto, que no âmbito do Estado de Direito, que funciona a partir de um processo legal, se esteja a procurar que seja o sistema jurídico quem resolva os problemas que o sistema econômico não resolveu. E quem carrega essa bandeira tem a esperança de que os tribunais limpem o terreno. Nisso, o mensalão não traz nada de novo. Ele é a grande oportunidade que as populações cansadas de tanta desigualdade têm agora do revanchismo, da vingança. E o sistema jurídico aceita fazer esse papel. 
ConJur — O que precisa se descaracterizar para fazer.Rui Cunha Martins — Estamos a discutir isso em sociedades contemporâneas, no pleno vigor do Estado de Direito, que consolidou o conceito de “in dubio pro reo”, de que não há julgamento sem culpa formada, que privilegia sistemas garantistas. É por isso que vejo a corrupção como alvo da tentativa dos tribunais de procurar resolver o problema. A eleição da corrupção como alvo esconde o fundamental. Há uma falsa ideia de que, se limpássemos o terreno, tudo funcionaria bem. Tudo o quê? O sistema. Então, tudo, afinal, é contestar o sistema. Há outra ideia, subjacente a isso, de que a corrupção é patológica em relação ao sistema, o sistema capitalista. Não é só patológica, ela é também sociológica. A grande discussão é se o sistema capitalista a produz fisiologicamente, por instituir uma sociedade que vive do lucro, da ideia de valor, de mercadoria. Será possível que uma sociedade cada vez mais orientada para isso não produza fisiologicamente corrupção? O sistema que temos produziu desigualdades socioeconômicas sem as quais não é possível discutir o sistema de carceragem. Se os tribunais fizerem o papel da “limpeza” se arriscarão a ser os faxineiros do serviço, os idiotas úteis. Vai ficar tudo na mesma. Porque estamos queimando as etapas de discussão e debates que nunca foram feitos. São problemas antigos, mas não resolvemos.
ConJur — Como o Direito pode reagir?Rui Cunha Martins — A sociedade tem estabilizadores de expectativas sociais e normativas. E o Direito, no ultimo século, tem feito esse papel. Aquilo que devo esperar é aquilo que o Direito permite. Como a religião fez esse papel, a Ciência fez esse papel, enfim, é o progresso. “Estado de Direito” quer dizer que o Direito deve estabilizar as minhas expectativas sociais e normativas. Aonde posso ir, o que posso esperar, o que é permitido. O que nós assistimos é o enfrentamento entre os julgamentos pelos tribunais e os julgamentos pela mídia, a manifestação da mídia na forma como ela traduz os protestos das ruas. É o que chamo de batalha das expectativas. É uma batalha que o Direito tem que perder. O Direito nunca vai ser tão rápido. Porque o processo é uma garantia? Porque implica demora. O processo muito rápido é o que faz a mídia. Coloca uma pessoa como suspeita, mas a prova não está presente. A evidência é tomada como prova.
ConJur — A sociedade não compreende a diferença?Rui Cunha Martins — É uma diferença basilar, porque implica dois tipos de narrativa, dois tipos de conhecimento, dois tipos da abordagem da realidade. São conceitos gêmeos, mas não coincidentes. Estamos, nesta entrevista, em três pessoas. Isso é evidente. E se é evidente, não preciso provar. Essa é a força do discurso da evidência, do discurso rápido, intuitivo, instantâneo. O discurso da evidência dispensa a prova. Mas no Direito, no âmbito do devido processo legal, que deve se erguer no horizonte constitucional do Estado Democrático de Direito, é suposto que as decisões judiciais são construídas não sobre evidência, ou seja, não sobre aquilo que é imediato, mas sobre uma prova, depois de se ter feito uma série de contraditórios, de indagações. E, portanto, esse é o enfrentamento entre mídia e tribunal, a expressão dos dois discursos e dos dois tipos de conceito. A função social da mídia é essa, de informar. O Direito nunca vai ganhar essa batalha. Porque presume que, na dúvida, é preciso libertar. É claro que também há dimensões escandalosas no Direito, que é quando o processo demora tanto e de forma nada inocente. Mas também é escândalo quando tenta ser rápido demais. Tem de haver grande cautela com a celeridade. Ela é a tradução de pressupostos eficientistas para o Direito Penal. Esse é um dos motivos pelos quais se deve ter cuidado com a transação penal.
ConJur — A informação judicial não é útil à população?Rui Cunha Martins — A pergunta que tem que ser feita às populações é: “Querem, afinal, o Estado de Direito?” Não se tem feito essa pergunta por dois motivos: um é porque as pessoas têm sido seduzidas com o excesso voyeurista, com os julgamentos indiretos. Tornou-se um costume dizer que o Brasil é o país da impunidade. Ora, todos os países o são, de uma maneira ou de outra. O que é específico no caso brasileiro é o peso que tem se dado ao julgamento indireto. É dar à criança o brinquedo e não explicar como funciona, porque não há uma descodificação. As pessoas não sabem que, em um julgamento, não se faz um “Fla-Flu”, não se pode tomar partido. Não lhes é dito que há procedimentos, e isso é um problema quase perverso.
ConJur — O problema é da informação ou dos meios?Rui Cunha Martins — O Estado Democrático é o Estado que dá satisfações e, portanto, onde tem de haver transparência. Ele faz contraponto com o Estado inquisitivo, autoritário, em que não havia transparência. Já sabemos tudo o que isso causou. Agora, porém, temos que abrir a problemática da transparência. Porque em um mundo que tudo comunica, a transparência é quase pornográfica. E o sentido de pornografia é o de uma transparência sem contenção. Quando falo sobre o voyeurismo é no sentido de as pessoas só veem, sem terem a descodificação daquilo. É o problema da transmissão excessiva e direta dos julgamentos. A transparência já ameaça o próprio sistema democrático, porque atenta contra a privacidade das pessoas e é vítima da manipulação informativa do povo, da massa.
ConJur — Qual é a responsabilidade do povo?Rui Cunha Martins — O povo é identificado como portador de um desígnio sacrossanto. Ele não se engana, é sabedor. Essa é uma retórica que permeia a narrativa dos consensos democráticos, de que a bondade está no povo. Isso é perigoso quando contrasta com a imagem dos seus representantes, que são “vândalos”, “maléficos”, “corruptos”. É uma linguagem da revolução francesa, perigosa porque alimenta uma suspeição quanto à política e acaba por omitir que o povo, como massa, foi conivente com a ditadura e com o totalitarismo. Por isso, não espanta que, hoje em dia, haja desinteligências, que os cidadãos não queiram garantias processuais e achem que isso seja um exagero, uma excrescência. O próprio Estado de Direito, embora nós esqueçamos disso, surgiu não apenas como oposto ao Estado absolutista, ao Estado de polícia, mas também ao terror revolucionário, à massa, ao grande número. O Estado de Direito tem uma dificuldade enorme de lidar com a massa e é produto de um compromisso de várias forças conservadoras. E nisso está a sua força também, porque é um Estado garantista, porque garante também contra o povo. Portanto, não admira que sempre que a rua fala, o Estado de Direito treme. Nem espanta que a própria rua não perceba que o discurso do Estado de Direito existe para proteger, que as garantias são para as populações. Não se tem essa ideia, não se sente isso como seu.
ConJur — O Estado funciona mal por causa da corrupção ou da incompetência? Não se está mirando o alvo errado?Rui Cunha Martins — Eu também coloco essa pergunta. Quer nível macro, quer níveis micro, quer nível de política global estatal, quer nível de pequenas instituições, tenho defendido que o problema de se entrar no estudo da corrupção e pretendermos que aquilo que não funciona tem a ver com o que ela tira omite algo importante. E essa omissão é política, é nossa capacidade de medir quando determinada pessoa, à frente de determinada instituição, é ou não competente. É a pergunta final: Quem é que exerce? Como é que exerce? E que decisões tomou esse representante, esse governante, esse togado? Por que que todo esse movimento populista em certo sentido é perigoso para a política? Porque omite essa pergunta. Ora, se eu vou atrás dos corruptos, vou excluir que os virtuosos podem não ser competentes. A ideologia dos honestos vai ditar as decisões. E essas decisões podem ser, elas próprias, do ponto de vista político, mais honestas ou não, mais virtuosas ou não. 
ConJur — E isso não pode ser decidido nos tribunais.Rui Cunha Martins — Evidentemente.
ConJur — Como vê a TV Justiça no Brasil, que foi considerada um exemplo até mesmo pelo presidente da Suprema Corte do Reino Unido?
Rui Cunha Martins — É um exemplo de transparência, é credora dos maiores elogios, principalmente por seu pioneirismo. Entendo a bondade da ideia. Meu problema é que o próprio conceito que traduz essa iniciativa, da existência desse canal televisivo, que é o conceito de transparência, deve ser repensado. Quando digo isso não estou esfregando as mãos para dizer que, afinal, a ditadura era boa. Nada disso. Essa conquista é fundamental, mas tem que ser repensada para não ser o coveiro daquilo em nome do qual ela foi forjada. Se essa experiência é boa e pioneira, não se pode furtar à crítica. Esse mecanismo interfere na decisão judicial.
ConJur — Como?Rui Cunha Martins — Hoje, temos que incorporar mais uma etapa no processo, a etapa em que as expressões sociais interferem sobre o que o juiz vai decidir. Ou seja, a decisão tem um componente que já não é formal. É o momento das expectativas sociais midiaticamente mediadas.
ConJur — Os julgamentos fechados ao público estão isentos?Rui Cunha Martins — Eu prefiro a sociedade em que esse assunto pode ser debatido e é debatido de forma rigorosa. O que quer que se decida sobre esse assunto, que seja o resultado de um debate feito na esfera pública. Nós temos que reabrir as discussões sobre os limites. As sociedades democráticas, ao contrário do que a gente estuda muitas vezes, não são sociedades em que acontece o contrário das ditaduras repletas de limites e regras. Pelo contrário, as sociedades democráticas são as que aceitaram debater os limites que querem. E limites que aceitem a sua revisão, que aceitem responder sobre sua legitimidade.
ConJur — Um de seus livros diz que o processo judicial, por si só, é uma potencial ruptura com a ordem estabelecida. Por quê?Rui Cunha Martins — Estamos a viver em um mundo que apresenta problemas novos, para os quais só temos mecanismos antigos. Quando se vive em ditaduras, a ruptura é tentar o ato revolucionário. Mas quando a democracia se instala como regime de consenso, como procurar rupturas, sendo que está patente que elas são necessárias? Como reinventar a diferença, a mudança? Como reinventar a mudança? Isso também vem junto com alguma insatisfação com a transição. Porque as sociedades que passaram da ditadura para a democracia usaram o mecanismo da transição, que é um mecanismo de mudança. Mas é um mecanismo incompleto, porque as transições não fazem tudo. Transita-se, mas há muito que permanece. Porque os juízes que exerciam os cargos durante a ditadura não foram mudados, não são mudados em um momento de transição política. A transição é incompleta. Ela diz que alguma coisa, a partir de agora, se pode fazer. Mas está tudo por fazer. O mais óbvio, diante da insatisfação com a transição, é buscar o ato, o evento. Nós precisamos, sem dúvida, de uma ruptura com o existente. O existente é uma sobreposição das formas, das realidades, do sistema político, do sistema jurídico. E aí entra o Judiciário e o julgamento cada vez mais apressado pela busca da celeridade. Se isso constitui nossa realidade, aquilo que temporariamente rompe com essa realidade é o mecanismo em sentido contrário, que garante hiatos, que garante processos. Por isso digo que só o processo é potencial ruptura. O processo é radical.
ConJur — Mas ele atende à necessidade de punição ao mesmo tempo em que freia a sede de sangue?Rui Cunha Martins — Ele tem que, sobretudo, achar uma decisão. Porque a sociedade só quer a decisão. Não é discussão pela discussão. É chegar a termos seguros. A segurança jurídica não é punir. Segurança jurídica é saber que houve um devido processo legal. O Estado de Direito não é salvo cada vez que um corrupto é condenado. E não será salvo se prender pessoas que não deveriam ser presas. Dizer: “Eu também vou julgar poderoso” não vai oferecer segurança às populações. Porque o processo continua a ser injusto socialmente, continua a ter uma matriz de decisão que tem por base o estrato social da pessoa. Sempre que se cria mecanismos para combate ao crime organizado, à corrupção, ao crime de colarinho branco, ao desvio de fundos, ao crime com dinheiro público, como violar o sigilo bancário, esses dispositivos de controle, daqui a cinco ou dez anos, já não funciona, porque o “peixe graúdo” já aprendeu a lidar com eles. Só que o mecanismo ficou criado. E quem vai cair dentro do mecanismo? Criamos as coisas com um intuito, mas elas depois ficam disponíveis para uso geral.
ConJur — Existe a verdade no processo penal?Rui Cunha Martins — É impensável deixar que a verdade seja, como foi no âmbito do processo inquisitorial, a rainha do processo, porque isso alimentou situações em que, em nome da verdade, tudo era permitido. Alguém era torturado, por exemplo, para se chegar à verdade. É preciso pensar no trajeto da maior parte dos juízes para chegar às suas decisões. O processo não pode produzir verdade. Mas é impensável, também, que um dos elementos constantes do processo não seja a linha da verdade, de alguma maneira. Ou seja, uma coisa é dizer: “Não é suposto que o processo tem a garantia da verdade.” Estou de acordo com isso. E que se diga que não vale tudo para se conseguir a verdade. Agora, há métodos em que estou a buscar, de fato, uma reconstituição do que se passou. Claro que essa reconstituição não é verdade, mas nenhuma reconstituição é verdade. Não é possível reconstituir o que se passou. O processo produz determinado tipo de representação, mas não produz verdade. Porque a verdade é sempre autoral. Não há verdade sem autor. Quem proferiu? Em que condições lógicas, sociais, temporais e de poder proferiu?
ConJur — Levando em conta as convicções de quem profere a decisão judicial, é possível dizer que ela já está tomada antes mesmo de as partes serem ouvidas?Rui Cunha Martins — Fatalmente todos nós partimos para uma decisão com níveis de pré-compreensão. Às vezes no nível do impensável, intuitivo, com intuições, com preconceitos. Preconceito relativamente a determinado assunto, à possibilidade de aquela pessoa ser ou não quem praticou determinado ato. É suposto que o processo de convicção é um processo de depuração. Eu vou depurar minha crença inicial. Aqui está em jogo a diferença entre crença e convicção. A crença corresponde à evidência, na oposição que mencionamos antes sobre evidência e prova. Crença é em algo que eu não tenho que justificar. A decisão judicial não pode ser atingida a partir de níveis de crença. Ela precisa passar por várias etapas mediante as quais essa crença originária será desmentida, controlada, despistada. A convicção, por sua vez, é todo processo de constrangimento à crença. Esses processos nunca são perfeitos. É por isso que, apesar de tudo, se garante o in dubio pro reo, dimensão garantista que tem por pano de fundo a possibilidade do erro judiciário.
 
Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico
Elton Bezerra é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 2 de março de 2014

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