segunda-feira, 7 de outubro de 2013

PARA O USO PRAGMÁTICO, ÉTICO E MORAL DA RAZÃO PRÁTICA



Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática*



Texto publicado em Scielo. Clique aqui para fazer citação.

Jürgen Habermas





Tradução: Márcio Suzuki

Até os dias de hoje, as discussões teóricas sobre a moral são determinadas pelo confronto entre três posições: as argumentações transcorrem entre Aristóteles, Kant e o utilitarismo. Apenas as éticas da compaixão fazem valer um motivo diverso. Outras teorias, mesmo a hegeliana, podem ser entendidas como tentativas de síntese de iniciativas conhecidas. A ética do discurso (Diskursethik), que se põe como tarefa salientar o conteúdo normativo de um uso lingüístico orientado para a compreensão, não é a referida síntese. Ao tentar demonstrar, com os meios da análise da linguagem, que o ponto de vista do julgamento imparcial de questões prático-morais — o ponto de vista moral — surge em geral dos pressupostos pragmáticos inevitáveis da argumentação, ela se filia à tradição fundada pela Crítica da razão prática. Com essa tomada de partido em favor de Kant, ela não adota, porém, aquelas premissas que forçam a ressaltar unilateralmente a iniciativa deontológica, ou seja, excluindo as intuições nas quais, com um certo direito, se concentram as iniciativas concorrentes. No que se segue, importa para mim o direito relativo daqueles três aspectos sob os quais podemos fazer um uso, a cada momento diferençado, da razão prática. Gostaria de mostrar isso pela via de uma análise dos tipos de argumentação a eles correspondentes.

Assim como a ética moderna, a ética clássica parte da questão que se põe ao indivíduo que precisa de orientação, quando ele, numa situação determinada, encontra-se diante de uma tarefa a ser vencida de maneira prática: como devo comportar-me, que devo fazer? Esse "dever" (Sollen) guarda um sentido não-específico enquanto o respectivo problema e o aspecto sob o qual deve ser solucionado não sejam determinados mais de perto. Antes de tudo, gostaria de diferençar o uso da razão prática tendo como fio condutor os modos pragmático, ético e moral de pôr a questão. Sob os aspectos daquilo que é adequado a fins (Zwechnässiges), do bom e do justo, esperam-se, respectivamente, desempenhos diferentes da razão prática. De acordo com eles, altera-se a constelação entre razão e vontade nos discursos pragmáticos, éticos e morais. A formação da vontade individual encontra, por fim, seus limites no fato de abstrair da realidade da vontade alheia. Com os problemas fundamentais de uma formação racional da vontade coletiva entram em jogo os modos de pôr a questão a partir de uma teoria normativa do direito e da política.







I

Problemas práticos impõem-se-nos em diferentes situações. Eles "têm" (müssen) de ser contornados, pois do contrário surgem conseqüências que são importunas mesmo nos casos mais simples. É assim que, por exemplo, "temos de" (müssen) decidir o que fazer quando a bicicleta usada diariamente estraga, quando surgem complicações de saúde, quando falta dinheiro para poder satisfazer determinados desejos. Buscamos, então, fundamentos para uma decisão racional entre diferentes possibilidades de ação frente a uma tarefa que "temos de" (müssen) solucionar, se quisermos alcançar uma meta determinada. As metas também podem, elas mesmas, tornar-se problemáticas, por exemplo, quando um plano para as próximas férias fracassa, repentinamente, ou quando se tem de escolher a profissão. Viajar para a Escandinávia, para Elba ou ficar em casa; visitar cidades orientais, viajar de barco pelo Dordogne ou ficar na praia; iniciar imediatamente um curso universitário ou fazer, primeiro, um curso técnico; tornar-se médico ou profissional em editoração, isso depende, acima de tudo, de nossas preferências e opções que se nos abrem numa dada situação. Uma vez mais buscamos fundamentos para uma decisão racional — desta vez, entre as próprias metas.

Em ambos casos, aquilo que se "deve" (soll) fazer de uma maneira racional é determinado, em parte, por aquilo que se quer: trata-se de uma escolha racional dos meios a partir das metas dadas ou de uma ponderação racional das metas a partir das preferências existentes. Nossa vontade já está estabelecida faticamente por "desejos e valores; ela só está aberta a outras determinações no que concerne a alternativas quanto à escolha dos meios ou quanto à fixação de metas. Trata-se unicamente de técnicas apropriadas, seja para o conserto da bicicleta ou para o tratamento de doenças, seja de estratégia para levantar dinheiro, de programas para o planejamento das férias ou da escolha da profissão. Em casos complexos, "têm-se" (müssen) até de desenvolver estratégias para tomar decisões — e então a razão assegura-se de sua própria conduta e torna-se reflexiva, por exemplo, na figura de uma teoria da escolha racional. Enquanto a pergunta "Que devo fazer?" referir-se a tarefas pragmáticas, as observações e investigações, as comparações e ponderações, que, apoiados em informações empíricas, empreendemos sob a perspectiva da eficiência ou com auxílio de outras regras decisorias, são pertinentes. A reflexão prática transcorre aqui no horizonte da racionalidade de fins (Zweckrationalität), com a meta de encontrar técnicas, estratégias ou programas adequados. Ela leva a recomendações que, em casos simples, têm a forma semântica de imperativos condicionais. Kant fala de regras de habilidade e de conselhos de prudência, de imperativos técnicos e pragmáticos. Eles põem causas e efeitos em relação, segundo preferências de valor e fixação de metas. O sentido imperativo que expressam pode ser entendido como um "dever" (Sollen) relativo. As indicações para a ação dizem o que "se deve" (soll) fazer ou que "se tem" (muss) de fazer em vista de um problema determinado, se se quer realizar determinados valores ou fins. Decerto, se os próprios valores tornam-se problemáticos, a pergunta "Que devo fazer?" aponta além do horizonte da racionalidade de fins.

Em decisões complexas, como, por exemplo, a escolha da profissão, pode-se concluir que não se trata absolutamente de uma questão pragmática. Alguém que queira entrar no ramo editorial pode refletir se é mais adequado a esse fim (zwechnässiger) fazer primeiro um curso técnico ou cursar logo a faculdade; mas quem não sabe exatamente o que quer, está diante de uma situação de todo diferente. Aqui, a escolha da profissão, isto é, da orientação dos estudos, está ligada à questão das inclinações ou daquilo pelo que se interessa, de que tipo de atividade satisfaria a pessoa, etc. Quanto mais radicalmente essa questão se põe, tanto mais ela se exacerba no problema de saber que vida se gostaria de ter, e isso significa: que tipo de pessoa se é e, ao mesmo tempo, se gostaria de ser. Quem, em decisões de importância vital, não sabe o que quer, perguntará por fim quem ele é e quem ele gostaria de ser. Decisões triviais ou fracas sobre a preferência não exigem fundamentação; ninguém pede a si ou a outros justificativas pelas marcas de automóveis ou que tipo de pulôver prefere. Em contrapartida, chamamos, com Charles Taylor, de preferências "fortes" àquelas valorações que não concernem apenas às disposições e inclinações contingentes, mas também à compreensão de si (Selbstverständnis) de uma pessoa, ao tipo de vida que tem, ao caráter; tais valorações estão entrelaçadas com a identidade de cada um. Essa circunstância não empresta apenas um peso às decisões existenciais, mas também um contexto no qual elas são tanto carentes quanto capazes de fundamentação. Decisões de valor grave são tratadas, desde Aristóteles, como questões clínicas (klinisch) do bem viver. Uma decisão ilusória — o relacionamento com um parceiro errado, a escolha equivocada de alternativas profissionais — pode ter como conseqüência uma vida malograda. A razão prática, que neste sentido tem como objetivo não apenas o possível e o que é adequado a fins, mas também o bom, move-se então, se seguimos o uso clássico da linguagem, no âmbito da ética.

Problemas práticos impõem-se-nos em diferentes situações. Eles "têm" (müssen) de ser contornados, pois do contrário surgem conseqüências que são importunas mesmo nos casos mais simples.







Valorações fortes inserem-se no contexto da compreensão de si (Selbstverständnis). O modo como alguém compreende a si mesmo não depende apenas de como ele se descreve, mas também dos modelos pelos quais se empenha. A identidade própria determina-se ao mesmo tempo segundo o modo como alguém se vê e como se gostaria de ver — isto é, tal como alguém se encontra e por que ideais projeta-se a si e a sua vida. Essa compreensão existencial de si é, no fundo, valorativa e tem, como toda valoração, uma cabeça de Jano. Nela estão mesclados estes dois tipos de componentes: os componentes descritivos da gênese da história de vida do eu e os componentes normativos do ideal do eu. Por isso, a elucidação da compreensão de si ou o asseguramento clínico da própria identidade requer um compreender apropriador — a apropriação da história da própria vida como também das tradições e dos contextos de vida que determinaram o processo de formação próprio. Se há ilusões em jogo, essa compreensão hermenêutica de si pode ser aguçada no tipo de reflexão que dissolve auto-ilusões. O tomar consciência crítica (Das kritische Bewusstmachen) da história da vida e de seu contexto formativo não leva a uma compreensão de si, neutra de valores; ao contrário, a descrição de si alcançada de maneira hermenêutica está ligada internamente a uma postura crítica em relação a si mesmo. Uma compreensão de si aprofundada modifica os posicionamentos que suportam ou, pelo menos, implicam um projeto de vida pleno de conteúdo normativo. Assim, as valorações fortes podem ser fundamentadas pela via da compreensão hermenêutica de si.

Será possível decidir com melhores fundamentos entre um curso superior de administração de empresas e uma preparação para teólogo, depois que se tenha tornado claro quem se é e quem se gostaria de ser. Questões éticas são, em geral, respondidas com imperativos incondicionais do seguinte tipo: "Tens de seguir uma profissão que te dê a sensação de ajudar outras pessoas". O sentido imperativo de proposições como esta pode ser entendido como um "dever" (Sollen) que não depende de fins e preferências subjetivas e, no entanto, não é absoluto. O que tu "deves" (sollst) fazer ou "tens de" (musst) fazer possui aqui o sentido de que, a longo prazo e no conjunto, é bom para ti agir dessa maneira. Aristóteles fala, neste contexto, de caminhos para a vida boa e feliz. Valorações fortes orientam-se por uma meta posta como absoluta para mim, vale dizer, pelo Bem Supremo de um modo de vida autárquico, que tem seu valor em si. A questão "Que devo fazer?" muda uma vez mais seu sentido assim que minhas ações afetem os interesses de outros e levem a conflitos que devem ser regulados de modo imparcial, portanto, sob pontos de vista morais. Uma comparação por contraste é instrutiva a respeito dessa nova qualidade que com isso entra em jogo.

Tarefas pragmáticas colocam-se da perspectiva de um agente que parte de suas metas e preferências. Deste ponto de vista, os problemas morais não podem surgir de maneira alguma, porque as outras pessoas têm apenas a importância de meios ou condições restritivas para a realização de um plano de ação respectivo a cada indivíduo. No agir estratégico os participantes supõem que cada um decide de maneira egocêntrica, segundo o critério de seus próprios interesses. Esse conflito pode ser decidido ou contido e posto sob controle, bem como apaziguado por um interesse mútuo. Sem uma mudança radical da perspectiva e da postura, contudo, um conflito interpessoal entre os envolvidos não pode ser percebido como um problema moral. Se posso conseguir o dinheiro que me falta apenas pela via da dissimulação de fatos relevantes, o único que conta entre os pontos de vista pragmáticos é o possível êxito de uma manobra de engodo. Quem, no entanto, problematiza a licitude desse ponto de vista, põe uma outra espécie de questão — ou seja, a questão moral de saber se todos poderiam querer que, em meu lugar, qualquer pessoa agisse segundo a mesma máxima.

No agir estratégico os participantes supõem que cada um decide de maneira egocêntrica, segundo o critério de seus próprios interesses. Esse conflito pode ser decidido ou contido e posto sob controle, bem como apaziguado por um interesse mútuo.

Também as questões éticas não exigem absolutamente uma ruptura completa com a perspectiva egocêntrica; elas referem-se ao télos de minha vida. Deste ponto de vista, outras pessoas, outras histórias de vida e esferas de interesse ganham significado apenas na medida em que estejam unidos ou entrelaçados à minha identidade, à minha história de vida e à minha esfera de interesse no âmbito de nossa forma de vida partilhada intersubjetivamente. Meu processo de formação completa-se num contexto de tradições que partilho com outras pessoas; minha identidade também é marcada pelas identidades coletivas, e a minha história de vida está inserida em contexto de histórias de vida que se entremeiam. Nesta medida, a vida que é boa para mim toca também as formas de vida que nos são comuns. Assim, o etos do indivíduo permanecia, para Aristóteles, referido e adstrito à pólis dos cidadãos. No entanto, as questões éticas têm uma direção inversa das questões morais: a regulação dos conflitos interpessoais entre as ações, os quais resultam de esferas de interesse contraditórias, ainda não é tema aqui. Se eu gostaria de ser alguém que, numa situação aguda de apuros, aplica também uma pequena fraude numa sociedade anônima de seguros, isso não é uma questão moral — pois aqui se trata do respeito que tenho por mim (Selbstachtung) e, eventualmente, do respeito (Achtung) que outros demostram para comigo, mas não do respeito (Respekt) igual para com todos, isto é, do respeito (achtung) simétrico que cada um demostra pela integridade de todas as outras pessoas.

Aproximamo-nos, com efeito, do modo de consideração moral assim que examinamos se nossas máximas são conciliáveis com as máximas de outros. Kant chama de máximas àquelas regras de ação próximas da situação (situationsnah) e mais ou memos triviais pelas quais a prática de um indivíduo se orienta habitualmente. Elas dispensam o autor do esforço cotidiano de tomar decisões e encaixam-se de maneira mais ou menos consistente numa prática de vida na qual se espelham o caráter e o modo de vida. Kant tinha ante os olhos sobretudo as máximas da sociedade burguesa em seus primórdios, que se diferençava segundo a posição profissional. Em geral, as máximas constituem as menores unidades de um entrelaçamento de hábitos praticados, nos quais se concretizam a identidade e o projeto de vida de uma pessoa (ou de um grupo) — elas regulam o curso do dia, o modo de tratamento, o jeito de lidar com problemas, de solucionar conflitos, etc. As máximas constituem o ponto de intersecção entre ética e moral, porque podem ser julgadas simultaneamente sob os pontos de vista ético e moral. A máxima de praticar também uma vez uma manobra de engodo pode não ser boa para mim — isto é, quando não se enquadra à imagem da pessoa que gostaria de ser e que, como tal, quero ser reconhecido. A mesma máxima pode, simultaneamente, ser injusta — isto é, se sua obediência universal não for igualmente boa para todos. Um exame das máximas, ou uma heurística formadora de máximas, que não se deixe guiar pela questão de como quero viver, toma a razão prática de uma maneira diferente da reflexão sobre se de meu ponto de vista uma máxima obedecida universalmente é apropriada a regular nossa vida em comum. Num caso se examina se uma máxima é boa para mim ou adequada à situação; no outro caso, se posso querer que uma máxima seja observada como lei universal para todos.

Kant chama de máximas àquelas regras de ação próximas da situação (situationsnah) e mais ou menos triviais pelas quais a prática de um indivíduo se orienta habitualmente.

Trata-se, lá, de uma reflexão ética; aqui, de uma reflexão de natureza moral — embora ainda num sentido restrito. Porque o resultado dessa reflexão sempre permanece preso à perspectiva pessoal de um determinado indivíduo. Minha perspectiva é determinada por minha compreensão de mim; e, conforme a maneira de como gostaria de viver, uma postura indolente para com manobras de engodo pode também ser aceitável se os outros portam-se da mesma forma em situações comparáveis, tornando-me ocasionalmente vítima de suas manipulações. Mesmo Hobbes conhece a "regra de ouro" segundo a qual uma máxima como esta poderia eventualmente ser justificada. Para ele, é uma "lei natural" que cada um conceda também aos outros os direitos que exige para si. De um teste de universalização levado a efeito de maneira egocêntrica não se segue ainda que uma máxima seja aceita por todos como fio de prumo moral de seu agir. Essa conclusão seria correta apenas se a minha fosse a fortiori congruente com a de todos os outros. Aquilo que de minha perspectiva é igualmente bom para todos residiria de fato no interesse igual de todos apenas se minha identidade e meu projeto de vida refletissem uma forma de vida universalmente válida.







O imperativo categórico, segundo o qual uma máxima é justa apenas se todos podem querer que ela seja seguida por cada um em situações comparáveis, é o primeiro a romper com o egocentrismo da "regra de ouro" ("Não faças a ninguém aquilo que não queres que te façam"). Cada um "tem de" (muss) poder querer que a máxima de nossa ação se torne uma lei universal. Apenas uma máxima capaz de universalização a partir da perspectiva de todos os envolvidos vale como uma norma que pode encontrar assentimento universal e, nesta medida, merece reconhecimento, ou seja, é moralmente impositiva. A questão "Que devo fazer?" é respondida moralmente com referência àquilo que se deve fazer (was man tun soll). Mandamentos, morais (moralische Gebote) são imperativos categóricos ou incondicionados que exprimem normas válidas ou fazem implicitamente referência a elas. Apenas o sentido imperativo desses mandamentos pode ser entendido como um "dever" (Sollen) que não é dependente nem de fins ou preferências subjetivos, nem da meta, para mim absoluta, de uma vida boa, uma vida de êxito ou não-malograda. Em contrapartida, o que se "deve" (soll) fazer ou o que se "tem de" (muss) fazer possui aqui o sentido de que é justo e, portanto, de que é dever (Pflicht) agir desta maneira.



II

Portanto, dependendo de como o problema se põe, a questão "Que devo fazer?" ganha um significado pragmático, ético ou moral. Em todos os casos se trata da fundamentação de decisões entre possibilidades alternativas de ação; as tarefas pragmáticas, porém, exigem um tipo de ação diferente das éticas e morais; as questões que lhe são correspondentes exigem um tipo de resposta diferente das respostas éticas e morais. A ponderação das metas orientada para valores e a ponderação dos meios disponíveis mediante a racionalidade de fins servem à decisão racional sobre como temos de intervir no mundo objetivo para provocar um estado desejado. Neste caso, trata-se essencialmente da elucidação de questões empíricas e de questões de escolha racional. O terminus ad quem de um discurso pragmático correspondente é a recomendação de uma tecnologia adequada ou de um programa exeqüível. Outra coisa é a preparação racional de uma decisão de valor grave que afeta a orientação de toda uma prática de vida. Neste caso, trata-se de uma elucidação hermenêutica da compreensão de si de um indivíduo e da questão clínica do êxito ou não de minha vida. O terminus ad quem de um discurso ético-existencial correspondente é um conselho para a orientação correta na vida, para a realização de um modo pessoal de vida. Uma outra coisa é, por sua vez, o julgamento moral de ações e máximas. Ele serve à elucidação de expectativas legítimas de comportamento em face de conflitos interpessoais que atrapalham o convívio regulado de interesses antagônicos. Neste caso, trata-se da fundamentação e da aplicação de normas que estabelecem deveres e direitos recíprocos. O terminus ad quem de um discurso prático-moral correspondente é uma compreensão sobre a solução justa de um conflito no âmbito do agir regulado por normas.

... dependendo de como o problema se põe, a questão "Que devo fazer?" ganha um significado pragmático, ético ou moral. (...) as questões que lhe são correspondentes exigem um tipo de resposta diferente das respostas éticas e morais.

O uso pragmático, ético e moral da razão prática tende, portanto, a indicações técnicas e estratégicas de ação, a conselhos clínicos e a juízos morais.

Chamamos de razão prática à capacidade (Vennögen) de fundamentar imperativos onde se modifique, conforme a referência à ação ou o tipo de decisões a serem tomadas, não apenas o sentido ilocutório do "ter de" (müssen) ou do "dever" (Sollen), mas também o conceito de vontade, que deve poder ser determinada a cada momento por imperativos fundamentados racionalmente. O "dever" (Sollen) das recomendações pragmáticas, relativizado nos fins e valores subjetivos, está voltado para o "arbítrio" (Willkür) de um sujeito que toma decisões prudentes com base nos posicionamentos e preferências, dos quais parte de maneira contingente: a capacidade de escolha racional não se estende aos próprios interesses e orientações de valor, mas os pressupõe como dados. O "dever" (Sollen) dos conselhos clínicos, relativizado no télos da vida boa, endereça-se ao esforço de auto-realização, portanto, á vontade do indivíduo que se decide por uma vida autêntica: a capacidade (Fähigkeit) de decisão existencial ou de auto-escolha radical opera sempre no âmbito de um horizonte da história de vida, a partir de cujos traços o indivíduo pode aprender quem ele é e quem gostaria de ser. Por fim, o "dever" (Sollen) categórico de mandamentos morais é direcionado para a vontade — em sentido enfático — livre de uma pessoa que age segundo leis que ela mesma se dá (nach selbstgegebenen Gesetzen): apenas esta vontade é autônoma no sentido de que se deixa determinar inteiramente pelo conhecimento moral. No âmbito de validade da lei moral, nem as disposições contingentes, nem a história de vida e a identidade pessoal põem limites à determinação da vontade pela razão prática. Apenas a vontade conduzida pelo conhecimento moral e inteiramente racional pode chamar-se autônoma. Nela, todos os traços heteronômicos do arbítrio ou da vontade são apagados numa vida única e, ainda assim, autêntica. Na verdade, Kant confundiu a vontade autônoma com a vontade onipotente: para poder pensá-la como uma vontade pura e simplesmente soberana, ele teve de transpô-la ao reino do inteligível. Todavia, no mundo tal como o conhecemos, a vontade autônoma alcança eficácia apenas na medida em que a força de motivação dos fundamentos bons pode afirmar-se contra o poder de outros motivos. É assim que, na linguagem realista do dia-a-dia (em alemão), chamamos a vontade informada corretamente, mas fraca, de vontade "boa".

Em resumo, a razão prática volta-se para o arbítrio do sujeito que age segundo a racionalidade de fins, para a força de decisão do sujeito que se realiza autenticamente ou para a vontade livre do sujeito capaz de juízos morais, conforme seja usada sob os aspectos do adequado a fins, do bom ou do justo. Com isso, alteram-se a cada momento a constelação entre razão e vontade, e o próprio conceito de razão prática. Com o sentido da questão "Que devo fazer?", não é apenas o receptor — a vontade do agente que busca uma resposta — que muda seu status, mas também o emissor - a própria capacidade (Vermögen) de reflexão prática. Para Kant, razão prática e moralidade coincidem; apenas na autonomia, razão e vontade são uma só. Para o empirismo, a razão prática resume-se a seu uso pragmático; com as palavras de Kant, ela reduz-se à utilização da atividade do entendimento segundo a racionalidade de fins. Na tradição aristotélica, a razão prática assume o papel de uma faculdade de julgar que esclarece o horizonte da história de vida de um etos que se tornou costumeiro. Em cada caso, atribui-se um desempenho diferente à razão prática. Isso se mostra nos diversos discursos em que ela se move.

... a razão prática volta-se para o arbítrio do sujeito que age segundo a racionalidade de fins, para a força de decisão do sujeito que se realiza autenticamente ou para a vontade livre do sujeito capaz de juízos morais...



III

Discursos pragmáticos, nos quais fundamentamos recomendações técnicas e estratégicas, têm uma certa afinidade com discursos empíricos. Eles servem para referir saber empírico às fixações de fim e às preferências hipotéticas, e valorar as conseqüências de decisões (informadas de modo incompleto) segundo máximas postas como fundamento. Recomendações técnicas ou estratégicas tiram sua validade do saber empírico no qual se apoiam. Sua validade é independente de se um receptor decide adotar as indicações para a ação. Discursos pragmáticos referem-se a contextos possíveis de aplicação. Eles estão em contato com a formação fática de vontade dos agentes apenas mediante suas fixações de fim e de suas preferências subjetivas. Não há nenhuma relação interna entre razão e vontade. Nos discursos ético-existenciais, essa constelação se modifica de maneira que as fundamentações constituam um motivo racional para a mudança de posicionamento.







Nos processos de compreensão de si, os papéis dos participantes do discurso e dos agentes entrecruzam-se. Quem quiser obter clareza sobre sua vida como um todo, quem quiser fundamentar decisões de valor grave e assegurar-se de sua identidade, não pode deixar-se substituir no discurso ético-existencial -nem enquanto pessoa de referência (Bezugsperson), nem enquanto instância comprobatória. Não obstante, trata-se de um discurso, pois também aqui os passos da argumentação não podem ser idiossincráticos, mas têm de permanecer exeqüíveis intersubjetivamente. O indivíduo só ganha distância reflexiva em relação à própria história de vida no horizonte de formas de vida que ele partilha com outros, e que formam, por sua vez, o contexto para os projetos de vida diferentes de cada um. Os integrantes de um mundo vivido em comum são participantes potenciais que assumem o papel catalisador do crítico desinteressado nos processos de compreensão de si. Esse papel pode ser distinguido no papel terapêutico de um analista, tão logo um saber clínico universalizável entre em jogo. Certamente, esse mesmo saber clínico só se forma em tais discursos.

A compreensão de si refere-se a um contexto específico da história de vida e leva a asserções valorativas sobre o que é bom para uma determinada pessoa. Tais valorações, que se apoiam na reconstrução de uma história de vida da qual ao mesmo tempo se tomou consciência e apropriou, têm um status semântico próprio. Pois "reconstrução" não significa apenas a apreensão descritiva de um processo de formação mediante o qual alguém se tornou aquilo que constata; ela significa, ao mesmo tempo, um exame crítico e uma ordenação reorganizadora dos elementos apreendidos, de sorte que o próprio passado (surge), à luz das possibilidades atuais da ação, como história de formação da pessoa que gostaria de ser e permanecer no futuro e, como tal, ser aceita. A figura do "projeto pro-jetado" (geworfener Entwurf) do pensamento existencialista ilumina o caráter de Jano daquelas valorações fortes que são fundamentadas pela via de uma apropriação crítica da própria história de vida. Aqui, gênese e validação já não se deixam separar uma da outra como nas recomendações técnicas e estratégicas. Quando conheço o que é bom para mim, já me aproprio também, de certa maneira, do conselho - este é o sentido de uma decisão consciente. Quando me convenço da justeza de um conselho clínico, também já me decido a uma reorientação aconselhada de minha vida. Por outro lado, minha identidade só é condescendente, e mesmo indefesa, diante da pressão reflexiva de uma compreensão de si modificada, se esta obedece aos mesmos critérios de autenticidade que o próprio discurso ético-existencial. Um tal discurso pressupõe já, por parte do receptor, o esforço por uma vida autêntica — ou a pressão sofrida por um paciente que percebe a "doença de morte" (Krankheit zum Tode). Nesta medida, o discurso ético-existencial permanece dependente do télos prévio de um modo de vida consciente.



IV

Nos discursos ético-existenciais, razão e vontade determinam-se mutuamente, de modo que permanecem inseridas no contexto que se toma tema deles. Nos processos de compreensão de si, os envolvidos não podem desprender-se da história ou da forma de vida nas quais se encontram faticamente. Discursos prático-morais exigem, ao contrário, o rompimento com todas as evidências (Selbstverständlichkeiten) da moralidade concreta tornada costumeira, como também o distanciamento em relação àqueles contextos de vida aos quais a própria identidade está indissoluvelmente ligada. A intersubjetividade de um grau mais alto (die höherstufige Intersubjektivität), que conjuga a perspectiva de cada um com a perspectiva de todos, pode constituir-se apenas sob os pressupostos comunicativos de um discurso ampliado universalmente, no qual todos os possivelmente envolvidos possam participar e tomar posição com argumentos numa postura hipotética em vista das pretensões à validade (tornadas problemáticas a cada momento) de normas e modos de ação. Esse ponto de vista da imparcialidade solapa a subjetividade da perspectiva própria de cada participante, sem perder o vínculo com o posicionamento pré-formativo dos mesmos. A objetividade de um assim chamado observador ideal obstruiria o acesso ao saber intuitivo do mundo vivido. O discurso prático-moral representa a ampliação ideal de nossa comunidade de comunicação a partir da perspectiva interior. Diante desse fórum, só podem encontrar assentimento fundamentado aquelas sugestões de norma que expressam um interesse comum de todos os envolvidos. Nesta medida, as normas fundamentadas discursivamente fazem valer a um só tempo duas coisas: o conhecimento daquilo que a cada momento reside no interesse geral de todos e, também, uma vontade geral que apreendeu em si sem repressão a vontade de todos. Neste sentido, a vontade determinada por fundamentos morais não permanece exterior à razão argumentativa; a vontade autônoma é completamente interiorizada na razão.

Nos discursos ético-existenciais, razão e vontade determinam-se mutuamente, de modo que permanecem inseridas no contexto que se torna tema deles.







Por isso, Kant acreditava que a razão prática volta inteiramente a si mesma e coincide com a moralidade apenas enquanto instância examinadora de normas. A interpretação teórico-discursiva (diskurstheoretisch) que demos ao imperativo categórico deixa reconhecer, no entanto, a unilateralidade dessa teoria que se concentra unicamente em questões de fundamentação. O problema de como normas fundamentadas dessa maneira podem em geral ser aplicadas torna-se mais agudo assim que as fundamentações morais apoiem-se num princípio de universalidade que constrange os participantes do discurso a examinar as normas discutíveis, separadamente das situações e sem consideração dos motivos subjacentes ou das instituições existentes. Tais normas devem sua universalidade abstrata à circunstância em que são aprovadas no teste de generalização apenas numa figura descontextualizada. Nesta versão abstrata, porém, as normas válidas só podem encontrar aplicação sem restrições naquelas situações padrões, cujos sinais já foram observados de antemão enquanto condições de aplicação dos componentes "se" (Wenn-Komponenten)) da regra. Ora, toda fundamentação de norma tem de operar sob as limitações normais de um espírito finito; portanto, ela não pode a fortiori tomar já explicitamente em consideração todos aqueles sinais que caracterizam as constelações do caso particular imprevisto. Por esse motivo, a aplicação da norma exige uma elucidação argumentativa de seu próprio direito. Neste caso, a imparcialidade do juízo não pode, por sua vez, ser assegurada mediante um princípio de universalização; em questões da aplicação "sensível ao contexto" (kontextsensibel), a razão prática tem, ao contrário, de ser validada por um princípio de adequação. Isto é, tem-se de mostrar aqui, à luz de todos os sinais relevantes da situação, apreendidos de forma a mais completa, qual das normas já pressupostas como válidas é a mais adequada a um caso dado.

Como os discursos de fundamentação, os discursos de aplicação permanecem, decerto, uma operação puramente cognitiva e não oferecem, por isso, nenhuma compensação à separação do juízo moral em relação aos motivos do agir. Mandamentos morais são válidos independentemente de se o receptor despende a força para fazer o que foi reputado como correto (das Für-Richtig-Gehaltene). A autonomia de sua vontade se mede certamente pelo fato de que se pode agir a partir do conhecimento moral; mas conhecimentos morais não provocam já um agir autônomo. A pretensão à validade que ligamos às proposições normativas tem certamente a força de um dever (verpflichtende Kraft). Dever (Pflicht) é, segundo a terminologia kantiana, a afecção da vontade pela pretensão à validade de mandamentos morais. Que os fundamentos que apoiam uma tal pretensão à validade não sejam ineficazes, isso se mostra na má consciência que nos atormenta quando agimos contrariamente a um saber mais abalizado. Sentimentos de culpa são um indicador palpável do não-cumprimento do dever. Mas neles se exprime apenas que sabemos que não temos melhores fundamentos para agir de maneira diferente. Sentimentos de culpa indicam uma cisão da vontade.



V

A vontade empírica cindida da vontade autônoma desempenha um papel digno de nota na dinâmica de nossos processos de aprendizado moral. Porque a cisão da vontade só é um sintoma de fraqueza da vontade se as exigências morais, contra as quais a vontade choca, são de fato legítimas e "cabíveis" (zumutbar) sob condições dadas. Na revolta de uma vontade discordante revelam-se muito freqüentemente, como sabemos, a integridade ferida da dignidade humana, a recusa de reconhecimento, o interesse negligenciado, a diferença negada. Visto que os fundamentos de uma moral tornada autônoma têm uma pretensão análoga à do conhecimento (erkenntnisanalog), a validação e a gênese separam-se de novo aqui, como no discurso pragmático. Assim, por trás da fachada de uma validação categórica, pode-se ocultar e abrigar um mero interesse capaz de impor-se. Essa fachada deixa-se construir tanto mais facilmente, uma vez que a correção dos mandamentos morais, ao contrário da verdade de recomendações técnicas ou estratégicas, não está numa relação contingente para com a vontade do receptor, mas a obriga racionalmente. Para quebrar as correntes de uma universalidade falsa, meramente presumida, de princípios universalistas criados seletivamente e aplicados de maneira sensível ao contexto (kontextsensibel angewendet), sempre se precisou, e se precisa até hoje, de movimentos sociais e de lutas políticas no sentido de aprender das experiências dolorosas e dos sofrimentos irreparáveis dos humilhados e ultrajados, dos feridos e dos mortos, que ninguém pode ser excluído em nome do universalismo moral — nem as classes subprivilegiadas, nem as nações exploradas, nem as mulheres tornadas domésticas (die domestizierten Frauen), nem as minorias marginalizadas. Quem exclui o outro, que lhe permanece um estranho, em nome do universalismo, trai sua própria idéia. O universalismo do respeito igual em relação a todos e da solidariedade com tudo o que tenha o semblante humano se comprova apenas na libertação radical de histórias individuais e de formas particulares de vida.

... Kant acreditava que a razão prática volta inteiramente a si mesma e coincide com a moralidade apenas enquanto instância examinadora de normas.

Essa reflexão ultrapassa já os limites da formação de vontade individual. Até agora investigamos o uso pragmático, ético e moral da razão prática, tendo como fio condutor a questão tradicional: "Que devo fazer eu?". Ora, quando o horizonte da questão se desloca da primeira pessoa do singular para a primeira do plural, modifica-se mais que o fórum da reflexão. A formação de vontade individual segue já, segundo sua idéia, uma argumentação publica que se realiza in foro interno1 . Não se trata de uma mudança de perspectiva da interioridade do pensamento monológico para o espaço público do discurso, mas de uma alteração na posição do problema: o que altera é o papel no qual o outro sujeito se encontra.

Com certeza, o discurso prático-moral desvincula-se da perspectiva à qual as reflexões pragmáticas e éticas ainda estão presas. Todavia, também para a razão que examina normas, o outro só surge como oponente numa argumentação "ao nível da representação" (in einer vorgestellten Argumentation). Assim que o outro apareça como um oposto (Gegenüber) com vontade própria, insubstituível, põem-se novos problemas. Naturalmente, também a formação de vontade individual está sob restrições contingentes; mas das condições de formação de vontade coletiva faz parte, sobretudo, a realidade da vontade alheia.

Dessa circunstância da pluralidade dos agentes e da condição de dupla contingência sob a qual a realidade de uma vontade coincide com a realidade da outra, resulta o problema da busca conjunta de metas coletivas, e o problema já conhecido da regulamentação da vida em comum põe-se de uma nova maneira sob a pressão da complexidade social. Quando o interesse próprio tem de ser posto em harmonia com o alheio, os discursos pragmáticos apontam a necessidade de compromissos. Nos discursos ético-políticos, trata-se da elucidação da identidade coletiva, que tem de deixar espaço para a multiplicidade de projetos individuais de vida. Nos discursos prático-morais, tem-se de examinar não apenas a validade e a adequação dos mandamentos morais, mas examinar também se são cabíveis (deren Zumutbarkeit). Com a implementação de metas e programas põem-se, enfim, questões da transferência e da utilização neutra do poder.







O direito racional moderno reagiu a esses modos de pôr o problema. Naturalmente, falta-lhe a natureza intersubjetiva de uma formação de vontade coletiva, a qual não pode ser representada como uma formação de vontade individual em formato ampliado. Temos de abrir mão das premissas da filosofia do sujeito (subjektphilosophisch) do direito racional. Com o problema da compreensão entre as partes cujas vontades e interesses se chocam, as operações da razão prática executadas in mente2 deslocam-se para o plano dos procedimentos e dos pressupostos comunicativos dos discursos e discussões que são levados realmente a termo.

A partir deste ponto de vista da teoria comunicativa (kommunikatiom-theoretische Sicht), deveríamos também encontrar uma resposta para a pergunta que há muito se põe por nossa análise até aqui. Podemos falar ainda da razão prática no singular, depois que ela foi desagregada em formas diversas de argumentação sob os aspectos do adequado a fins, do bom e do justo? É certo que todos esses argumentos referem-se à vontade de agentes possíveis; mas vimos que também os conceitos de vontade modificam-se com o tipo das perguntas e respostas. A unidade da razão prática já não se deixa fundamentar sem restrições na unidade da argumentação em geral, isto é, no procedimento da argumentação. Ou seja: não há um metadiscurso ao qual pudéssemos recuar para fundamentar a escolha entre formas diversas de argumentação. Não fica, então, à discrição de cada indivíduo ou, na melhor das hipóteses, à sua faculdade de julgar, a escolha se gostaria de apreender e tratar um dado problema sob o ponto de vista do adequado a fins, do bom ou do justo? O recurso a uma faculdade de julgar que examina se os problemas são de natureza estética ou econômica, teórica ou prática, ética ou moral, política ou jurídica, tem de ser insatisfatório para todo aquele que, como Kant, possui bons fundamentos para deixar de lado o conceito aristotélico não-claro da faculdade de julgar. Além disso, não se trata, neste ultimo, de uma faculdade de julgar reflexionante, que refere casos a regras, mas de uma aptidão para a classificação de problemas.

Tal como Peirce e o pragmatismo enfatizaram com justeza, os problemas têm sempre algo de objetivo; somos confrontados com problemas que vêm ao nosso encontro. Esses mesmos problemas têm uma força definidora de situação (eine situationsdefinierende Kraft) e requerem, por assim dizer, nosso espírito segundo a própria lógica deles. Não obstante, se a cada instante seguissem sua própria lógica, que não teria nenhum contato com a lógica do problema seguinte, toda nova espécie de problema puxaria nosso espírito numa outra direção. A razão prática, que encontrasse sua unidade no ponto cego de uma tal faculdade de julgar reativa, permaneceria uma formação (Gebilde) opaca, apenas explicável fenomenologicamente.

A unidade da razão prática pode fazer-se valer, de maneira inequívoca, apenas no contexto interno daquelas formas comunicativas nas quais as condições de formação racional da vontade coletiva tomam figura objetiva.





Jürgen Habermas é filósofo do Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt (Alemanha), e conferencista do mês de outubro, 1989 do IEA.
* Texto apresentado na Conferência do Mês (IEA/USP): "Zum pragmatischen, ethischen und moralise hen Gebrauch der praktischen Vernunft", realizada em outubro de 1989.
1 Assim no original. (N .T.)
2 Assim no original. (N.T.)Texto publicado no Scielo. Clique aqui para fazer citação.

'É preciso rever regras regulatórias da advocacia'

 


Por Marcos de Vasconcellos



Com 798 advogados, o JBM é o maior escritório do Brasil em quantidade de profissionais do Direito. Até o fim de 2012, eram 737, mas o crescimento da banca, que lida apenas com advocacia de massa, exigiu mais. No entanto, não foi a quantidade de trabalhadores que a fez atingir o faturamento de R$ 110 milhões ao ano. Foi a tecnologia.

Os sistemas e métodos são tão importantes para a atuação do JBM no mercado que, no meio deste ano, o escritório se dividiu, colocando advogados de um lado e a turma da tecnologia de outro. Nascia a empresa Finch Soluções. O novo negócio começou com 550 colaboradores em 27 filiais, e levou consigo a expertise em dados que o JBM coletou nos seus cinco anos de vida e nos 18 mil processos que recebe mensalmente — ao todo, hoje são conduzidos cerca de 320 mil.

A Finch presta serviços para o próprio JBM, para clientes do escritório e para outras bancas de advocacia. Seu faturamento anual chega a R$ 45 milhões, para alegria do advogado José Edgard Bueno. Maestro a reger essas duas orquestras ao lado do sócio Reinaldo Mandaliti — na Finch, entram outros dois sócios —, Bueno não gosta de gravatas, prefere jeans a ternos e usa constantemente o termo “indústria do Direito”. De propósito. Ele quer quebrar o tabu em torno da chamada “mercantilização da advocacia”, expressão que provoca arrepios aos advogados por causa de restrições da OAB.

O medo de a profissão mercantilizada levar ao aviltamento de honorários só serviu para que não houvesse regras adequadas ao mercado, e os honorários caíram ainda assim, diz Bueno. Para ele, é hora de a profissão se livrar de preconceitos e interesses e se reinventar — ou se rediscutir. Regras rígidas demais levaram ao engessamento, opina.

Entre os clientes do escritório estão Itaú, Bradesco, CPFL, Elektro, Unilever, Electrolux, Vivo e CSN, com demandas de Direito do Consumidor e, em alguns casos, do Trabalho. Na carteira da Finch também estão alguns dos grandes, como Itaú, Rodobens e Banco Safra.

A empresa de tecnologia também oferece soluções como jurimetria, ou seja, projetar possibilidades jurídicas para seus clientes a partir dos dados já coletados de suas contendas na Justiça, ou de outros concorrentes. A partir das medições, vem o trabalho jurídico — aí pelo JBM —, de propor que em uma comarca sejam forçados mais acordos, ou que em outra as brigas sejam levadas adiante.

José Edgard Bueno bate na tecla de que a Ordem dos Advogados do Brasil deveria repensar os moldes da regulamentação da advocacia. Pensar em regras especificamente para escritórios grandes, outras para médios, para pequenos e para os advogados que atuam sozinhos.

As normas para contratação de advogados também o incomodam. Para ele, advogado que não é sócio só poderia ser celetista. “Quem não contrata por CLT faz concorrência desleal”, reclama. O regime de associado, diz ele, é uma aberração. “Como pode a OAB recomendar uma forma de contratação que a Justiça não aceita?”

Bueno recebeu a revista Consultor Jurídico na última segunda-feira (30/9) em seu escritório na Avenida Faria Lima, na capital paulista — uma das 26 filiais do JBM. Sem gravata.

Leia a entrevista:

ConJur — Tem havido muitas cisões em escritórios. A Ordem dos Advogados do Brasil está preocupada em fortalecer sua câmara arbitral, para que os rachas sejam resolvidos entre advogados. O JBM tem experimentado essas situações?
José Edgard Bueno — Cisão de sócio é praticamente inexistente para a gente, porque o nosso mercado é sui generis. Para entrar, precisa ter uma estrutura muito grande ou ir para outro lugar que já tenha uma estrutura razoável, para levar clientes e ter o investimento necessário para isso. Uma parte do serviço da advocacia aqui não depende só do know how do advogado, como no mercado tradicional. Aqui, a estrutura é um fator decisivo. O cliente compra também a tecnologia envolvida por trás do negócio. E isso não sai do dia para noite.

ConJur — O JBM nasceu com seis sócios, agora são só dois. O que motivou a saída dos outros quatro?
José Edgard Bueno — Eles montaram um escritório em Ribeirão Preto (SP). Queriam advogar, fazer um escritório menor. E estão indo super bem. Acho que eles sentiram que era o momento de montar a butique deles. Porque aqui, a sociedade é quase como que uma estrutura de empresa.

ConJur — O escritório se dividiu em duas organizações, uma ficando com a advocacia e outra com a tecnologia. Como foi isso?
José Edgard Bueno — Essa é uma história de tentativas e erros. Tínhamos advogados e sistema, e achávamos que o sistema resolveria todos os problemas do advogado e que com ambos conseguiríamos fazer a prestação do serviço final. Isso funcionou durante um período, mas, no fundo, a gente começou a perceber que não é só isso. Não adianta nada ter um sistema de prateleira, nem mesmo desenvolver um próprio, como é o nosso caso. Ele, em si, não resolve. O que vai resolver é conhecer o negócio, a estrutura do mercado jurídico, o seu cliente e aplicar esse conhecimento ao seu sistema. Aí é onde você começa a desenvolver alguns aplicativos, é o que eu chamo da tecnologia. Identificamos que tínhamos essa tecnologia e notamos que ela tem um valor no mercado. Vimos que não era um serviço de advogado, não fazia sentido ficar dentro do escritório. Então criamos uma empresa específica para isso, a Finch Soluções, que faz essa gestão da minha tecnologia. No fundo é o que a literatura chama de BPO - Business Process Outsourcing.

ConJur — E passaram a prestar serviços para si mesmos?
José Edgard Bueno — Toda tecnologia que eu aplicava para mim mesmo tinha um valor. Começamos a prestar serviços para os clientes do escritório e, depois, para outros escritórios de advocacia.

ConJur — Que tipos de produtos vocês oferecem?
José Edgard Bueno — Para clientes, por exemplo, um produto muito interessante é o que a gente chama de jurimetria. O JBM é um grande laboratório, com informações de processos tramitando no Brasil inteiro. O volume de informações que circulam no nosso sistema interno é brutal. São 15 mil audiências por mês, 160 mil diligências. Entram, por mês, uma média de 18 mil processos. Isso me dá uma base de dados incrível a respeito do sistema judiciário. A gente começou a ligar os pontos, descobrir que uma empresa teria mais problemas com um tipo de ação em um local específico. Conectando várias informações de fontes diferentes, formamos uma informação final para o cliente. Criamos um negócio e alguns produtos em cima disso. Um deles é informar ao cliente que há um processo contra ele em D+2, ou seja, dois dias depois de entrarem com a ação, muito antes de ele ser citado. Isso tem um valor para ele que é incomensurável, porque ele vai ser citado, em média, só cinquenta e poucos dias depois. Então, ele tem quase dois meses de informação antecipada para tomar uma série de atitudes.

ConJur — Ele já prepara a defesa?
José Edgard Bueno — Aí entra o conhecimento do negócio. Eu falo que tem essa ação no interior do Maranhão, por exemplo. Ele vai chegar no SAC dele, vai ter essa informação antecipada, terá um prazo razoável para preparar uma boa defesa, pegar as informações e tudo o mais.

ConJur — E a parte de jurimetria?
José Edgard Bueno — É um tipo de informação de serviço que damos ao cliente com base nesses dados todos que temos na nossa base, podendo desenhar tendências. Hoje eu tenho condições de verificar na comarca “x” ou na comarca “y” qual vai ser a decisão do juiz em determinada matéria, daquele juiz, daquela comarca especifica, com aquela empresa ou com aquele tipo de problema. Conseguimos até identificar diferenciações entre empresas. Porque o juiz também reage conforme a postura que a empresa adota perante o Judiciário.

ConJur — É possível identificar o tratamento diferente para uma ou outra empresa?
José Edgard Bueno — Tem cliente nosso, do qual obviamente não vou citar o nome, que adotou uma política agressiva de acordos perante o Judiciário. Ele comprava esse produto nosso para saber a informação antes, para ter tempo de ver o que era caso de acordo e o que não era. Ele chegou a uma postura tão sofisticada que não contestava a ação. Ele chegava no Judiciário com a postura de falar: “Olha, eu errei, juiz. Mas não devo essa quantia toda que este senhor está pedindo, mas sim o que está aqui, conforme esse laudo. Em vez dos 10 pedidos, estou disposto a pagar 5”.

ConJur — E os juízes passaram a aceitar as propostas?
José Edgard Bueno — A reação natural do juiz em uma situação como essa é forçar, obviamente, a parte contrária a fazer um acordo. Quando não há acordo, o juiz começou a condenar a empresa naquele valor que ela reconhecia como correto, e não no valor pedido. Diminuiu, então, brutalmente o índice de condenação daquele cliente. O subproduto disso foi que, naqueles casos em que o cliente não reconhecia o pedido, não chegava com essa postura agressiva de fazer acordo, o juiz começou a ler a argumentação da empresa. Não entrou mais no automático. Porque a gente sabe como é que funciona. O Judiciário, quando tem milhares de ações, vai mais ou menos automático. É muito difícil parar para ler, até pelo volume. Em um segundo momento, passou a diminuir o número de condenações. Isso começou lá atrás, quando ele passou a saber dos processos com antecedência e soube tratar essa informação.

ConJur — A Finch já nasceu grande, com R$ 45 milhões em faturamento anualizado. Como isso foi possível?
José Edgard Bueno — É porque eu transferi todos os ativos, transferi contratos e deixei no JBM só os advogados. A Finch me presta serviço de tudo. Toda contabilidade, faturamento, tudo aquilo que exige a expertise de escritório de advocacia a gente faz na Finch também. O JBM é um cliente da Finch.

ConJur — Tem havido uma grita de advogados contra os leilões reversos, onde clientes chamam diversos escritórios para um serviço e ficam com aquele que oferece o menor preço. Vocês são contrários a essa prática?
José Edgard Bueno — É impossível interferir em regras de mercado. Ou temos um mercado livre ou temos um mercado regulado. O que nós queremos ser? Nós queremos ter uma reserva de mercado onde o advogado estabelece o preço do produto tabelado? Esse não é o espírito da nossa lei. A nossa Constituição não é assim. Estamos em uma sociedade capitalista e isso faz parte. Precisamos rever nossas regras regulatórias, o que permitiria enfrentar uma situação como essa. Hoje só acontece isso porque o mercado está absolutamente pulverizado na oferta de serviços. Tem uma oferta brutal de escritórios e serviços, e uma demanda que não é suficiente. A regra aplicada é a de Adam Smith. Só acontece isso porque tem uma oferta muito grande. Como se enfrenta isso? Revendo-se algumas regras que engessam a nossa profissão e, especificamente, facilitando a fusão e os possíveis formatos de um escritório, de uma sociedade de advogados, em formato de empresa. Se houvesse essa possibilidade, o mercado se autorregularia para chegar a um nível de consolidação do mercado de prestação de serviço para se ter grandes players.

ConJur — A OAB bloqueia as fusões entre escritórios?
José Edgard Bueno — Não é que ela bloqueia. As regras são tão rígidas para viabilizar uma fusão que, na prática, elas inviabilizam. Eu não posso ser sócio de um outro escritório na mesma subseção em que eu tenho inscrição. É um absurdo. Na prática, eu não posso fazer uma fusão com o escritório aqui do lado, na Avenida Faria Lima. Porque a OAB diz que só pode sociedade entre advogados pessoas físicas, a minha sociedade não pode ser sócia de uma outra sociedade, como duas pessoas jurídicas. Isso facilitaria e muito as fusões entre escritórios e, de repente, oxigenaria um pouco nosso mercado de advocacia. O Estatuto da Advocacia cumpriu o seu papel, só que agora está na hora de começar a rever isso.

ConJur — Existe abertura para mudar?
José Edgard Bueno — É preciso acabar com alguns mitos no Brasil. Primeiro, em lugar nenhum do mundo acabaram com o que lá fora se chama sole practitioners, os advogados que atuam sozinhos. Isso não acaba. Vai sempre existir mercado para eles. Também não acho que exista uma tendência única predeterminada em que se vai ter só escritório grande ou só escritório médio. O que é preciso é ter regra para cada um desses mercados, como na Inglaterra. Você não pode ter uma regra única que abarque todos os tipos de advocacia que existem. É preciso entender como funciona o mercado para escritórios pequenos, médios e grandes e montar estratégias para regular cada um desses mercados. Só tem que tomar cuidado para não fazer uma quantidade de regras que engesse a profissão.

ConJur — Por que não se discute isso?
José Edgard Bueno — Primeiro, o advogado não é treinado para discutir isso. Na faculdade, o sujeito é treinado para dizer o que pode e o que não pode fazer, para consultar em cima de um arcabouço legal e dizer. Em nenhum momento se fala de cliente. Na OAB, outro problema, são dezenas de comissões, mas nenhuma fala da essência do mercado, que se chama "cliente". Ele é o driver do processo de mudança da nossa indústria. O que ele quer determina para onde você vai. A estratégia que vai ser adotada daqui a cinco ou dez anos na nossa profissão depende daquilo que o cliente necessita.

ConJur — Como é que o JBM, com cinco anos, cresceu tanto?
José Edgard Bueno — É um bebê que já nasceu com uns quilinhos a mais, pois quando deixamos o Demarest e Almeida, foi uma saída acordada, não uma cisão. Eles não queriam mais operação de massa e nós assumimos as ações. Mas nós somos jovens, então tem muito mar para remar ainda, queremos crescer, mudar, andar para frente...

ConJur — O medo de mercantilizar a advocacia impede o crescimento do mercado no Brasil?
José Edgard Bueno — Impede. É uma discussão que não vai levar a nada. Só leva a essa situação em que nós estamos, em que um diz que é mercantilizar e outro que não é. É um termo um pouco genérico. Se você somar o faturamento dos 6 ou 7 maiores escritórios do Brasil, você chega a uma cifra de R$ 1 bilhão por ano. Isso não é uma profissão mercantilizada? O termo é inapropriado, pois tem uma origem histórica, uma razão de ser. Nós aprendemos lá na faculdade que tinha que separar entre o comerciante e o advogado. O advogado não tem preço, ele recebe honorários, pois é uma honra para o cliente ele prestar o serviço. Isso não funciona mais nos dias de hoje. Basta ver as grandes bancas do mundo. A OAB está começando a se preparar para isso. Ela é uma organização conservadora, é normal que seja. Mas já consigo ver alguns movimentos. Acho que está se amadurecendo a discussão para uma linha de que a mercantilização da profissão não pode ser mais o termo que define para onde a indústria deve ir ou não. Eu uso muito o termo indústria, porque, de fato, isso tem que ser encarado como segmento do mercado.

ConJur — Dizem que a mercantilização levará à queda do valor dos honorários, mas eles já vêm caindo, não?
José Edgard Bueno — Já caiu, da pior forma que poderia acontecer: nós não temos uma regra adequada para o mercado. O mercado força uma determinada situação e você se vê quase que na obrigação de aceitar, porque não tem opção a não ser trabalhar naquela linha estabelecida. Não foi a regra que conseguiu impedir que isso acontecesse.

ConJur — No JBM, os advogados são contratados por CLT?
José Edgard Bueno — Sim. Aliás, essa é uma situação que precisa ser urgentemente revista pela OAB, pelo órgãos de classe e pelas autoridades: são pouquíssimos escritórios que têm os advogados registrados em CLT. A OAB estabelece o regime de associado ou de sócio por cota de serviço. O sócio por cota de serviço tem sido aceito pela jurisprudência e não tem muito problema. Já o regime de associado, que a grande maioria dos escritórios pratica, a jurisprudência não tem aceito. Quando o advogado entra com ação trabalhista, o vinculo é reconhecido. A maior parte do mercado trabalha com associados, muitos não têm nem qualquer tipo de regime. Isso precisa ser revisto, porque, de um lado, não dá proteção para o advogado e, por outro, estabelece uma concorrência desleal.

ConJur — Concorrência desleal entre escritórios?
José Edgard Bueno — Em uma tomada de preço, uma banca que não tem todo mundo registrado tem naturalmente uma vantagem competitiva sobre um escritório com os encargos que a CLT impõe. A consequência prática disso é que o preço daquela vai ser melhor para aquele potencial cliente. Na nossa profissão, grande parte da estrutura de custos é mão de obra, isso é uma grande desvantagem. Isso não pode ficar assim. Chegamos ao absurdo de ter uma regra estabelecida pela OAB — o advogado associado —, que não é aceita pelo Judiciário.

ConJur — Como é a remuneração no JBM?
José Edgard Bueno — Os advogados são celetistas, eu tenho um acordo com o sindicato e estabeleço alguns benefícios como vale-transporte, vale-refeição, PLR, que é um plano de distribuição dos lucros também registrado junto ao sindicato, com regras específicas e critérios de apuração em cima de metas.

ConJur — Quais são essas metas?
José Edgard Bueno — Quem estabelece as metas são os clientes, que falam, por exemplo: “A minha meta é encerrar x processos”. Nós transmitimos essas metas aos advogados daquela carteira. Hoje, os escritórios são medidos. Nós não colocamos punições, por exemplo, para quem não cumprir a meta, mas oferecemos bônus para quem cumpre. Muitos clientes estabelecem um bônus financeiro na gestão do seu contrato.

ConJur — Quanto é o salário do advogado que chega?
José Edgard Bueno — A gente estabelece o piso com o sindicato de cada local em que temos filiais. Aí entra um plano de cargos e salários que vai aumentando em cima daquela regra pré estabelecida com o sindicato.

ConJur — O CNJ está cumprindo seu papel de melhorar o sistema judiciário?
José Edgard Bueno — Eu acho que sim, mas deveria ser mais enfático nessa função de harmonizar o sistema em termos de prestação jurisdicional. No fundo, o Judiciário é um prestador de serviço. Um dos problemas que enfrentamos é o "captcha" [código de letras e números exigido por alguns tribunais para acessar os processos eletronicamente]. É uma restrição de acesso a informação que os tribunais colocam quando se tem grandes volumes de acesso. Isso inviabiliza a consulta em grande volume de processo, como nós fazemos. Quem mais acessa a informação do Judiciário não é o cidadão, não é o seu cliente. O seu cliente nem sabe como fazer isso. A gente pensa em, no momento oportuno, no ano que vem, levar algumas contribuições para o CNJ no sentido de pensar o Judiciário de uma forma de prestação de serviço e pensar a estratégia de como chegar lá. A OAB deveria estar bastante mais preocupada em olhar qual é o Judiciário que nós vamos ter daqui a três ou cinco anos.

ConJur — Que barreiras tecnológicas a Justiça precisa superar?
José Edgard Bueno — O sonho da minha vida é ter um sistema único do Judiciário nacional. Cada estado tem um sistema na Justiça comum. Na Justiça Federal tem outro sistema, mas que também varia de acordo com a Região. Quem está mais avançado nessa organização de dados é a Justiça do Trabalho. Tem também uma experiência extremamente positiva, que é o sistema Projud, que está tentando se implementar para pequenas causas, que é o sistema de processo eletrônico judicial. Todos os atos são praticados eletronicamente, o advogado é intimado a cada acesso ao sistema. É uma evolução brutal, excelente. Mas tem muita resistência ainda em se elevar a isso a um nível nacional. Esse sistema deveria ser um grande banco de dados, uma grande plataforma.

ConJur — Seria bom para os advogados?
José Edgard Bueno — Essa plataforma deveria servir não só aos advogados, mas sobretudo ao cidadão. Ele precisa ter acesso sem ter nenhum intermediário. Já temos tecnologia para isso. A Receita Federal hoje está em um nível de sofisticação que, em dois anos, será ela quem fará sua declaração de Imposto de Renda, você só vai homologar. Precisaria menos do que isso para você controlar os processos judiciais que tramitam no país inteiro.

ConJur — Vocês usam seguro de responsabilidade civil?
José Edgard Bueno — Usamos. Clientes têm exigido. Alguns clientes exigem para eles individualmente, independentemente da apólice que a gente tem para o escritório como um todo. Tem que ter, mesmo para escritório de massa, onde o tíquete médio é pequeno. A possibilidade de perder um processo e ter falha não vai afetar tanto. Mas serve muito mais para se proteger de uma grande falha, que às vezes acontece. Já usamos uma vez o seguro, em uma questão trabalhista, que cometemos um erro no recolhimento.

ConJur — Você acha que o escritório de massa tem espaço na mediação ou na arbitragem?
José Edgard Bueno — Na arbitragem eu precisaria pensar, mas tem. O problema é que os árbitros vão querer cuidar de grandes questões, eles não vão querer cuidar do "varejão". Na mediação eu vejo uma avenida enorme, uma grande possibilidade e uma enorme oportunidade. Porque, ao contrário do que pensam, para o escritório que faz contencioso de massa ter processo em carteira não é lucrativo nem interessante. É a mesma coisa que ter estoque, é preciso tratar aquele estoque e tem um custo para tratar esse negócio. Quanto mais rápido se processar uma determinada demanda judicial, mais interessante e mais lucrativo. Aí é onde se insere a mediação. Numa situação em que o processo entra, a gente dá essas informações para o cliente, presta o serviço rápido, chega em uma câmara mediadora e faz o acordo. Rapidamente o conflito se resolve. Isso é o melhor dos mundos. A rapidez do processo é muito mais interessante.

ConJur — Trabalhando em advocacia de massa, seus processos se resolvem mais em primeira instância ou sobem aos tribunais?
José Edgard Bueno — Depende da política do cliente. Hoje em dia, existe uma tendência muito grande de fazer acordos e não ficar levando os processos para segunda instância ou para o STJ, ou para o STF. Não faz sentido, primeiro, por uma questão de imagem institucional. Tem também um custo de gestão interna dos processos.

ConJur — Tem havido um grande crescimento do número de butiques. Advogados decidiram ter escritórios para atender a uma pequena quantidade de clientes “porque a quantidade não está valendo a pena”. Como vale para vocês?
José Edgard Bueno — Tecnologia. A tecnologia aplicada ao nosso sistema faz com que o custo seja interessante, competitivo. A minha competição já começa com uma desvantagem, porque eu registro todos os advogados. Segundo, nós temos controle de tudo. Chegamos a um nível de sofisticação de prever o que vamos ter daqui a dois ou três meses em termos de alteração em determinada linha de custo. Terceiro, o mercado de massa é um mercado cujas margens de lucro são mais apertadas, mas nós convivemos bem com isso. Eu não me incomodo em ter uma margem pequena, é o nosso business.

ConJur — Você concorda que as teses do Direito estão no fim ou estão se esgotando, que hoje em dia o trabalho do advogado é mais uma pesquisa do que já foi feito do que uma busca por uma nova resposta?
José Edgard Bueno — Concordo totalmente. A época das teses acabou. Seja na área trabalhista, seja no Direito Tributário, seja na área do consumidor. Hoje em dia estamos caminhando para a discussão de fatos. O que não deixa de ser uma evolução na lida da advocacia com o sistema, pois nos sistemas mais evoluídos não se discute grandes teses, mas fatos. Como é a aplicação daquela situação concreta dentro daquele remédio que se procura dar. E a grande discussão hoje vai ser qual a escala em que aquilo se aplica. Estamos passando da fase das teses para a recorrência de fatos e, então, uma aplicação do remédio comum àquela recorrência de fatos. É para isso que o Judiciário vai ter que se aparelhar.

ConJur — O mercado mostra certa resistência em relação ao tamanho e ao crescimento rápido do JBM?
José Edgard Bueno — Eu sinto uma resistência, uma parte por ser novo, uma parte por falar coisas que incomodam. A gente tem que fomentar um pouco o debate. Há um tempo fiz um artigo sobre oxigenação na advocacia. O discurso na nossa comunidade é o mesmo. Eu vejo as mesmas coisas sendo ditas desde a época que eu era estagiário. Se bobear, são as mesmas pessoas falando. Mas o que mais me incomoda são as pessoas novas falando o mesmo discurso do século XX. Não tem antagonismo, e precisa ter a discussão, o debate. Os que têm voz aqui nunca foram na Índia ver o que está sendo feito em matéria de prestação de serviço jurídico para os Estados Unidos e para a Inglaterra. Não viram quanto dos serviços dos escritórios de advocacia são feitos offshore. Ninguém discute isso. E já estamos em um segundo momento, num movimento de internalizar de volta para os Estados Unidos.

ConJur — Isso na advocacia?
José Edgard Bueno — Na advocacia. Olha como nós estamos atrasados: já houve o movimento de off shore, em que vários serviços que eram prestados pelos grandes escritórios do mundo, serviços que não exigiam uma expertise grande, que eram rotinas e procedimentos, faziam discovery dos processos, que é a verificação dos processos judiciais no modelo anglo-saxão. Que era você verificar as provas, fazer a gestão das provas, estágio e documentos, o que você tem que levar para parte contrária, preparar os depoimentos. Isso tudo era feito a "custo hora" nos escritórios de advocacia e os clientes começaram a falar: “Não. Isso aqui eu não pago. Não faz sentido eu pagar hora para isso.” O que os caras quiseram fazer? Mandaram isso para a Índia fazer. Na Índia, os advogados fazem isso. Então todo esse processo, uma parte do serviço, que não é aquele serviço que realmente exige uma expertise grande, foram colocados para empresas BPO jurídico na Índia. Eu estou falando de 10 anos atrás. Nunca se falou disso no Brasil. Agora, já há uma rediscussão sobre a volta dessas tarefas para dentro dos EUA.

ConJur — Nos Estados Unidos se discute a criação do profissional técnico da advocacia, que não teria formação universitária. Parte dos serviços de advocacia poderia ser feita por um profissional que não é advogado?
José Edgard Bueno — Totalmente. Claro que depende do tipo de serviço e do tipo de escritório que você é. Se a banca é contratada por uma expertise específica, uma butique, não faz sentido. Agora, a grande parte do serviço que é feita nos grandes escritórios de advocacia e em escritórios de massa como o nosso pode ser processada por uma outra empresa ou por pessoas que não são advogados. Tanto que a gente criou a Finch em cima disso. Nos Estados Unidos, percebeu-se isso e criou-se esse tipo de função, que é o técnico da advocacia, mas é um técnico que não precisa ter formação em Direito para exercer a profissão. Aqui, a OAB de São Paulo tentou falar disso uma época, mas levou muita bordoada. Eu achei uma boa iniciativa. Faz a economia girar. Tem um monte de gente que não faz o serviço propriamente jurídico, serviria até para alocar um bacharel em Direito que está começando a vida, pode ser uma fase no desenvolvimento da carreira.


Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 6 de outubro de 2013

sábado, 5 de outubro de 2013

A Constituição e o Caos -


 Por Boaventura de Souza Santos
artigo publicado em 22/08/2013

Foto: Renjith Krishnan

Às vezes pergunto-me por que tenho dedicado tanto trabalho ao estudo dos tribunais nos últimos quarenta anos. Tenho estudado os tribunais não só em Portugal como em outros países e, no projeto que atualmente realizo, financiado pelo European Resarch Council, coordeno uma equipa de investigação internacional dedicada, entre outros temas, ao estudo do que designo por “constitucionalismo transformador”, a ocorrência em vários países de uma nova visibilidade e centralidade da legalidade constitucional, quer por via da promulgação de novas Constituições, quer por via do recurso aos tribunais constitucionais ou com funções constitucionais em situações consideradas decisivas para a sobrevivência ou para a qualidade da democracia.



Em retrospecto, o meu interesse pelos tribunais decorreu de uma perplexidade criativa sobre o papel dos tribunais na consolidação ou, pelo contrário, na fragilização da democracia numa época em que a utopia de uma sociedade socialista ia sendo substituída pela ideia de um “capitalismo democrático”: a consagração constitucional de um vasto conjunto de direitos sociais e econômicos capaz de garantir à maioria da população uma medida de bem-estar suficientemente significativa para mostrar que a democracia não era um governo das elites, exercido pelas elites para benefício exclusivo das elites.



Esta garantia dependia da efetividade do direito e dos direitos e esta, em última instância, dos tribunais encarregados de a fazer valer. Estariam os 2 tribunais à altura do encargo? Que indicações se poderiam retirar da história jurídica e judicial moderna? Para mim, o instigante destas perguntas residia numa intuição teórica e numa condição contextual. A intuição teórica dizia-me serem simplistas as duas respostas que então dominavam o campo da sociologia jurídica sobre o papel dos tribunais nas sociedades contemporâneas. Uma era que, sendo essas sociedades capitalistas, os tribunais acabariam sempre por decidir a favor das classes dominantes; a outra era que a independência dos tribunais não nos permitia pôr sequer em causa a vontade e a capacidade dos tribunais para garantirem a efetividade dos direitos, mesmo contra os interesses dominantes.



Nem uma determinação nem outra me pareciam convincentes. Daí o interesse em analisar o desempenho concreto dos tribunais em diferentes contextos. E o contexto português era particularmente desafiador. Por um lado, Portugal acabava de sair de 48 anos de ditadura em que um punhado de famílias oligárquicas, benzidas por uma Igreja católica conservadora, mantivera ao seu serviço, não apenas um ditador (que ora servia ora mandava para melhor servir), mas também um aparelho de Estado excludente e autoritário de que os tribunais tinham sido um apêndice apagado (apenas brilhando no zelo do tribunal plenário ao julgar os opositores políticos). Por outro lado, por um breve período (o Verão quente de 1975), Portugal convertera o momento luminoso da Revolução de Abril na anunciação de um projecto socialista que levou a sociedade a uma polarização sem precedentes. A despolarização só foi possível, em 25 de Novembro de 1975, mediante um acordo que, não só garantiu a continuidade e a plena legalidade do partido que mais fortemente advogara a sociedade socialista (PCP), como propôs uma Constituição avançada assente num modelo de coesão social pautado por um conjunto robusto de direitos sociais e econômicos (Constituição de 1976). O impulso socializante era então tão forte que o “capitalismo democrático” que se começava a construir foi designado durante uns anos como socialismo e as forças políticas de direita (hoje no poder), como socialistas.



Ninguém de boa fé pode pôr em causa os benefícios que o modelo de coesão social então definido nos trouxe. Hoje, apostado em concretizar a maior transferência de riqueza de que há memória no Portugal moderno – das maiorias empobrecidadas para uma pequena minoria nunca tão rica como hoje – o governo quer pôr fim a esse modelo, mesmo sabendo que daí pode resultar o caos. A Constituição que temos defendeu-nos até agora do caos. Para nos continuar a defender tem, ela própria, de ser defendida.



Boaventura de Souza Santos

Fonte CES - AL

Celebremos os 25 anos da Constituição Federal!

 


Por Gilmar Mendes




Neste sábado, dia 5 de outubro, nossa Constituição Federal celebra bodas de prata. Se refletíssemos mais sobre a história constitucional do Brasil, haveríamos de valorizar nosso texto constitucional com a ênfase devida, não apenas por atributos óbvios como longevidade, robustez, abrangência, mas também por sua evidente significância para a bem-sucedida reorganização sociopolítica do País. Registre-se que essa data quase coincide com outra efeméride marcante do constitucionalismo mundial, a promulgação da Constituição austríaca de 1º de outubro de 1920, que trouxe contribuições importantes para o desenvolvimento do Estado Constitucional, como, v.g., a positivação da jurisdição constitucional, obra na qual teve participação marcante o gênio de Kelsen.

O que pode parecer mero truísmo para nações cujo arcabouço constitucional foi consolidado ao longo de séculos, a nós se afigura conquista sem precedentes. Hoje, não mais nos sobressalta qualquer temor sobre a estabilidade de nossas instituições, e a democracia consolidou-se como um valor em si mesmo. Há três décadas, um céu de dúvidas e de receios toldava nossos horizontes, dificultando projetos, atrapalhando avanços, bloqueando investimentos.

Desde o nascedouro, a Constituição de 1988 se diferencia por ser também produto de movimentos sociais generalizados e intensos, gestados, sob incômoda pressão ditatorial, ao longo de duas décadas. Daí o colorido libertário, a ênfase nas liberdades individuais, nos indefectíveis direitos fundamentais. Nada obstante, é de ressaltar o que a mim parece ser o maior mérito dessa Constituinte: o concerto político que catalisou a reivindicação popular para assentar as bases da construção democrática na Carta de 1988, como um casamento de valores e instituições democráticas[1].

Não é demais ressaltar que tal ênfase em uma agenda social, estampada no texto constitucional que hoje se celebra, é a constitucionalização do que Peter Häberle chama de “desejos de utopia”. Daí o surgimento de organizações sociais envolvidas criticamente na realização dos valores proclamados solenemente no texto constitucional, militando para a verdadeira obtenção destas esperanças normatizadas[2] Eventuais críticas quanto ao detalhamento do texto constitucional sucumbem diante da certeza de que a extensa proclamação de direitos pela Carta estimulou movimentos de representação da sociedade.

Ao discorrer sobre a continuidade do poder constituinte originário, Zagrebelsky, enfatiza que “as constituições do nosso tempo miram o futuro, mantendo-se firmes ao passado, ou seja, ao patrimônio da experiência histórico-constitucional que queiram preservar e enriquecer. Passado e futuro ligam-se a uma única linha e, como os valores do passado orientam a busca do futuro, assim também as exigências do futuro obrigam a uma contínua pontualização do patrimônio constitucional que vem do passado e a uma constante redefinição dos princípios de convivência constitucional”.[3] Por aqui, as reformas mais significativas foram por certo impulsionadas pelo motor da história e vieram, destarte, a reboque das transformações naturais de um povo que continua almejando alcançar os atributos naturais decorrentes da própria soberania. Um povo que deseja evoluir, mas não deixando para trás sua principal conquista: a democracia.

Fato incontestável é que a Constituição de 1988 tem demonstrado força normativa capaz de regular, com folga, situações extremas — e em ambiente de acentuada tensão. É de lembrar, por exemplo, que a Constituição regulou de forma plena e sem sobressaltos processo de impeachment sofrido por Presidente da República — e mal se iniciava o período democrático, aquelas haviam sido as primeiras eleições livres em trinta anos! —; a hiperinflação que aniquilava qualquer planejamento econômico e prejudicava sobretudo os mais pobres; além de crises econômicas internacionais e gravíssimos escândalos de corrupção.

Foi, sim, a crença na Constituição, a determinação da sociedade em orientar a própria conduta de acordo com a ordem legalmente estabelecida que pôs fim à transitividade. Enfim, o cidadão brasileiro entendeu que o caminho para a concretização de direitos teria – e tem! – de ser o processo democrático. Nossa Constituição Federal garante os pressupostos para que essa democracia plena seja atingida, sem a necessidade de deflagração de arranjos constitucionais inéditos para sua realização.

Em síntese, neste quarto de século, não houve perturbação externa ou crise interna, qualquer mínimo ou máximo percalço institucional que não tenha sido resolvido à luz das balizas normativas vigentes. Destaquemos reformas de peso como a da Previdência e da Administração, bem como a verdadeira revolução sem armas que foi o Plano Real, para afirmar com tranquilidade o sucesso de nossos marcos institucionais.

A pavimentação dessa normalidade institucional deve-se ao empenho do Constituinte de estabelecer parâmetros legais compatíveis com a realidade brasileira. Outro aspecto muito positivo foi o alargamento da estrutura de Poder — agora poliárquica — que, ao incluir o Ministério Público e prestigiar a atuação da imprensa, por exemplo, ampliou os canais representativos da cidadania. De outra parte, a extensa proclamação de direitos estimulou a participação de variados segmentos da sociedade em busca da materialização das promessas constitucionais, num bem-vindo círculo virtuoso que até hoje se retroalimenta e continua a nos fazer avançar. As reformas constitucionais, muitas delas extremamente relevantes, têm sido implementadas pela via das Emendas Constitucionais, sem apelo a qualquer fórmula aventureira.

Nesses 25 anos, bem testados os institutos políticos, o Estado de Direito tem se mostrado cada vez mais fortalecido, dando respaldo à realização dos compromissos assumidos à vista do mais amplo catálogo de direitos fundamentais existente no mundo, cuja efetividade vem sendo garantida constitucionalmente mediante mecanismos judiciais consistentes, a exemplo do controle de omissão legislativa.

Aliás, como órgão responsável pela higidez do texto constitucional, o Supremo tem atendido a essa missão de forma arrojada, assumindo coerentemente a responsabilidade de aplicar a Constituição de maneira a tornar concretos os direitos e garantias fundamentais constitucionalizados em 1988.

A Corte também vem se colocando em situação de vanguarda ao enfrentar com intrepidez o desafio de dirimir controvérsias que ainda dividem tribunais longevos, por versarem sobre temas ultrassensíveis, como o uso de células-troncos ou o aborto de anencéfalos. Quando se moderniza, favorecendo a transparência e o acesso dos jurisdicionados, ou quando franqueia a palavra à sociedade — como acontece nas audiências públicas e nos casos da colaboração voluntária dos amici curiae — o Supremo acentua o viés pedagógico inerente à jurisdição constitucional, sinalizando, ademais, que a interpretação e aplicação da Carta são tarefas cometidas a todos os Poderes, bem como a qualquer cidadão.

Daí por que se afirma que a Constituição é construção diária, um “projeto” (Entwurf) em contínuo desenvolvimento, cujo maior desafio vem a ser a rápida e definitiva incorporação dos direitos fundamentais ao patrimônio jurídico dos cidadãos. Por outro lado, engana-se quem aposta no concerto democrático como fim em si mesmo. Em última análise, mais relevante há de ser o exercício diário e consciente da cidadania — símbolo da aliança que mantém a Constituição. Nesse trajeto, temos dado sobejas provas de maturidade. A Constituição de 1988 forjou-se sob a força simbólica do recomeço. Vinte e cinco anos depois de promulgada, os dividendos econômicos e políticos da segurança institucional advinda com a Carta são de fato inquestionáveis.

É preciso dar continuidade a esse projeto sem concessões a concepções aventureiras ou a propostas miríficas, como constituintes exclusivas ou não, que poderão comprometer, definitivamente, o capital institucional acumulado com muito sacrifício. Devemos dizer sim às inovações e aos experimentos institucionais que buscam responder às complexidades de uma sociedade submetida a empreitadas de risco e um claro não a propostas de aventuras lastreadas em misto de despreparo e motivações políticas de curto prazo.
*Adaptação de artigo originalmente publicado na Revista Consulex, edição 401, em 1º de outubro de 2013.
[1] A análise e a reconstrução histórica da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 é tema de grupo de pesquisa por mim coordenado, junto com os Profs. Rodrigo Mudrovitsch e Paulo Paiva, no Instituto Brasiliense de Direito Público. Para informações: http://www.idp.edu.br/pesquisa-academica/grupos-de-pesquisa/rhc
[2] HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional. Trad. Hector Fix-Fierro, México D.F: Universidad Autônoma de México; 2001, p. 7.
[3] ZAGREBELSKY, Gustavo. História y Constituición, p. 91.



Gilmar Mendes é ministro do Supremo Tribunal Federal.

Revista Consultor Jurídico, 5 de outubro de 2013

Passados 25 anos, a Constituição Federal já foi modificada 80 vezes por meio da aprovação e promulgação de 74 propostas de emenda à Constituição pela Câmara e pelo Senado. Elas acrescentaram, retiraram ou alteraram dispositivos do texto aprovado pelos constituintes em 1988. Seis modificações foram feitas em 1993, quando ocorreu a revisão da Constituição. Foram os próprios constituintes que fixaram a possibilidade de revisão do texto, uma única vez, depois de cinco anos de promulgada a Carta Magna.



Passados 25 anos, a Constituição Federal já foi modificada 80 vezes por meio da aprovação e promulgação de 74 propostas de emenda à Constituição pela Câmara e pelo Senado. Elas acrescentaram, retiraram ou alteraram dispositivos do texto aprovado pelos constituintes em 1988. Seis modificações foram feitas em 1993, quando ocorreu a revisão da Constituição. Foram os próprios constituintes que fixaram a possibilidade de revisão do texto, uma única vez, depois de cinco anos de promulgada a Carta Magna.

Mesmo com tantas modificações no texto constitucional nesses 25 anos, muitas propostas para alterá-lo ainda mais estão tramitando na Câmara e no Senado. Ao todo, são 1.532 PECs apresentadas por deputados e senadores que dependem de aprovação para tornarem-se norma constitucional. Só na Câmara, são 1.089, sendo que 74 estão prontas para ser votadas em plenário e 1.015 tramitam pela Comissão de Constituição e Justiça ou por comissão que analisa o mérito da proposta. No Senado, são 443 propostas, das quais 75 estão prontas, dependem da votação no plenário, e 368 tramitam na Comissão de Constituição e Justiça.

Constituição desbravadora
O presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, no discurso de promulgação do texto, salientou que a nova Constituição não era perfeita, mas seria pioneira. “Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria”.

Durante a Assembleia Constituinte, foi cogitada a possibilidade de revisão do texto constitucional a cada cinco anos. No entanto, os deputados e senadores consideraram que isso poderia abrir margem para que, ao passar dos anos, a Constituição Cidadã fosse desfigurada. Prevaleceu a tese de uma única revisão e nela foram feitas apenas modificações de redação. Ou seja, foram corrigidas imperfeições, o que não provocou modificações no mérito.

Além de rejeitarem as revisões programadas, os constituintes também criaram mecanismos para dificultar a aprovação de mudanças no texto constitucional. Com isso, ficou definido que para alterar qualquer dispositivo da Carta Magna é necessário quórum de três quintos dos parlamentares em cada uma das Casas Legislativas, em dois turnos. Ou seja, 308 votos favoráveis na Câmara dos Deputados e 49 no Senado. Durante a Assembleia Constituinte, para aprovação de dispositivos era necessário o apoiamento de metade mais um dos constituintes. Com informações da Agência Brasil.

Fonte: Conjur

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

MJ AJUIZA AÇÃO CONTRA CERVEJARIA POR PUBLICIDADE ABUSIVA

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Segundo MJ, há 'fortes indícios' de propaganda abusiva Foto: Reprodução
Segundo MJ, há 'fortes indícios' de propaganda abusiva Reprodução
BRASÍLIA - O Ministério da Justiça abriu nesta sexta-feira um processo administrativo para aplicar uma multa à empresa Brasil Kirin (antiga Schincariol) devido ao anúncio polêmico da Devassa Negra. Veiculada ao longo de 2010 e 2011, a propaganda, além de de evidenciar o corpo da mulher negra, trazia a seguinte frase: “É pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra. Devassa negra encorpada. Estilo dark ale de alta fermentação. Cremosa com aroma de malte torrado”. A penalidade pode chegar a R$ 6 milhões. A Brasil Kirin afirmou que não comenta processos jurídicos em andamento. “A empresa reitera que conduz seu negócio com respeito e ética a todos os seus públicos e consumidores”, declarou, em nota.

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O diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), Amaury de Oliva, explicou que há fortes indícios de publicidade abusiva, devido ao fato de a produção equiparar a mulher negra um objeto de consumo, por meio da comparação entre seu corpo e a cerveja. Oliva disse que o departamento consultou órgãos como a Secretaria de Políticas para as Mulheres, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e o Conselho Federal de Psicologia.
Entre os argumentos apresentados por esses órgãos estão a de que a publicidade deprecia e desvaloriza a imagem da mulher e reforça a discriminação de gênero e estereótipos racistas no Brasil.
- Há entendimentos de vários órgãos de que há indícios de publicidade preconceituosa. Há uma foto de uma moça negra, comparando-a com uma cerveja - disse o diretor. - Há um limite claro imposto pelo Código de Defesa do Consumidor para que a publicidade não seja abusiva nem enganosa - ressaltou.
A investigação começou em 2011 a partir de denúncia do Instituto Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon/ES). Segundo Oliva, a Schincariol tem 10 dias, a partir de hoje, para apresentar sua defesa ao DPDC. De acordo com ele, ao longo da investigação, a empresa teve oportunidade de apresentar sua defesa e insistiu que não havia irregularidade na publicada. Além disso, argumentou que a produção não foi suspensa pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).
Se a empresa for condenada, ela deverá recolher a multa ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD) do Ministério da Justiça, voltado a ações de proteção do meio ambiente, do patrimônio público e da defesa dos consumidores. Há a possibilidade de recurso administrativo na própria Secretaria Nacional do Consumidor e, depois disso, as empresas podem recorrer à Justiça.
De acordo com Oliva, embora as propagandas da cerveja Devassa já tenham sido alvo de outras polêmicas, esta foi a primeira denúncia apresentada ao DPDC. Segundo ele, após a apresentação da defesa, a conclusão do processo ocorrerá “em breve”.
- É importante destacar que, muitas vezes, o governo realiza um esforço enorme para implementar políticas afirmativas de defesa das mulheres, de igualdade e é importante que o mercado tenha isso em mente - destacou.
Reportagem publicada pelo GLOBO no mês passado mostra que, embora uma das principais forças de penalizar as empresas seja a aplicação de multas, em geral, o valor recolhido aos cofres públicos é baixíssimo. Desde 2008, o montante recolhido imediatamente após a aplicação das sanções chegou a R$ 987.894,29. Isso representa 1,36% do total de R$ 72,40 milhões em multas aplicadas pelo DPDC. De 120 sanções, sete foram pagas.
O problema é que, pela regra atual, as empresas têm 10 dias para entrar com recurso administrativo após a intimação, na própria Secretaria Nacional do Consumidor. Mas a maioria das companhias prefere recorrer ao Judiciário para protelar o pagamento. Na maioria das vezes, o pagamento é realizado, mas o dinheiro demora até 10 anos para entrar nos cofres públicos.

Fonte: Globo

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Depois do Direito facilitado, eis o Direito apatifado



Por Lenio Luiz Streck

Se o Direito já vai mal...
Pois quando a coisa não vai bem, sempre pode piorar. Com mais de 1,2 mil faculdades de Direito, com milhares de livros publicados, não conseguimos resolver, ainda, as mínimas questões acerca dos conteúdos dos conceitos jurídicos. A indústria que mais cresce é a do pan-principiologismo. E a dos livros que querem simplificar o Direito. Pois, pode piorar. E a Globo pode ajudar nessa piora. Aliás, já está ajudando. E muito. Vejam.

Ideologia como falsa consciência?
Escrever sobre o modo como se forma o imaginário de terrae brasilis, a partir do meios de comunicação parece coisa velha. Algo do tipo “Althusser e seus aparelhos ideológicos” etc. Pensei em colocar minha calça boca de sino para fazer a Coluna. Um aluno, marxista do tipo “A Ideologia Alemã", só que sem o contexto de Marx no século XIX e sem “aquela burguesia de então”, censurou-me, dizendo que esta Coluna seria do tipo “Ah, as novelas são os manuais da produção televisiva”. Critica-se os manuais, mas se assiste à novela das 9 (embora se diga que não a assista)!".

Fiquei pensando: o preclaro aluno-marxista-retrô acha que ideologia é falsa consciência. E que isso não tem nada de concreto... Basta negar a realidade. E dizer que é falsa. Está no mundo da pseuconcreticidade denunciado por Karel Kosik em sua Dialética do Concreto (que não é um livro de física). Pois é. De fato. São “só” 80 milhões que assistem à novela das nove na Globo. Alias, ainda estão frescos na memória alguns pitorescos episódios ocorridos durante o processo eleitoral de 2012 que demonstram a influência que os tais folhetins desempenham em nosso cotidiano. 1) São Paulo, maior e mais disputado colégio eleitoral do país. Numa disputa extremamente polarizada entre PT e PSDB, a cidade seria palco de um importante comício do atual prefeito (então candidato) Fernando Haddad com a presidenta da República. O ato, no entanto, foi adiado e o motivo: a data coincidia com a da exibição... do ultimo capítulo de Avenida Brasil. 2) Para não “perder a data”, a presidente encaminhou-se a Salvador, onde participaria do comício de um outro correligionário. Lá, contudo, traçou-se um estratégia para não competir com a saga da filósofa contemporânea Carminha. Armaram telões para exibir a novela e garantir a presença das massas. A Justiça Eleitoral vedou a iniciativa por entender que caracterizava “showmício”.

Bom, não cabe aqui debater se fez certo ou errado, mas ante a esses dois episódios, como ignorar a força desse elemento junto à formação do imaginário social? Como chamar de falso? Falso para quem, cara pálida? Deveríamos ler Poulantzas, no mínimo.

Lembro que, há mais de 10 anos, denunciei a novela A Próxima Vítima, em que a atriz que traiu o marido teve seu rosto cortado de fora a fora. Em reunião de família, perseguido pela polícia, o personagem de José Wilker (o vilão) foi reconfortado pela filha: “— Pai, ela teve o que mereceu”. Em outra novela, a personagem de Cristiane Torloni dizia: “Estou entediada. Hoje preciso sair para beber, trair e receber uns tapas na cara”. Maravilha, não? Tudo para 60 milhões de telespectadores. Meu aluno marxista diria: tudo falso. Tudo falso. Pura ideologia...

Sergio Porto, o nosso Stanislaw Ponte Preta, tinha uma frase genial: a prosperidade de alguns homens públicos do Brasil é uma prova evidente de que eles vêm lutando pelo progresso de nosso subdesenvolvimento! Digo eu. Bem assim com a cultura: a prosperidade dos homens de comunicação é uma prova de sua luta pela burrice do povo!

OK. A coluna de hoje será piegas e atrasada. Mas ela é assim porque o velho resiste em morrer. E o novo não nasce. Alguém tem dúvidas do papel exercido pelos meios de comunicação? Alguém duvida do poder das novelas? Já não se sabe se a ficção é a realidade ou se a realidade é a ficção. Há 40 anos Warat dizia que confundíamos as ficções da realidade com a realidade das ficções. Tinha razão. Olhando programas como Na Moral, de Pedro Bial, Faustão e as novelas, fica uma zona gris entre ficções e não ficções. Sem considerar o resto do lixo televisivo, como programas de humor de enésima categoria e talk shows de gente que acha que, para se comunicar, tem que dizer palavrão e forçar o humor. Isso chegou, inclusive, ao futebol, quando qualquer repórter quer falar por metáforas... e explica a própria metáfora. E acha que, sem humor e sem extrema simplificação, ninguém entenderá. Meu aluno, e tantos outros, dirá que isso tudo é falso. É ideológico. Que não se pode perder tempo com isso. Mas eu resisto. E insisto.

A saga do glorioso Gentil, personagem da novela Amor à Vida
Li em vários jornais que a associação dos enfermeiros reclamou do tratamento dado à profissão na novela. Também os médicos reclamaram do mau trato que o autor da novela dá aos esculápios pátrios. Os laboratórios reclamaram por causa da fácil falsificação de um exame. Os gays reclamam. A associação das periguetes mandou carta, dizendo que periguete não fica mendigando espeto corrido e rodizio de sobremesas, como é o caso da gloriosa Valdyrene, agora mãe de Mary Laydy (com vários ípsilons). “Periguete, sim, morta de fome, não!”, é o lema da reclamação. Enfim, as gordinhas virgens reclamam da Globo, contra o comportamento da personagem com nome grego que não lembro. . E as feministas reclamam do comentário sobre a gordinha virgem: “Não há princesa encantada gorda”... Enfim, a novela tem de tudo para desagradar todas as corporações...

E os politicamente corretos reclamam do comentário sobre a gordinha virgem: “Não há princesa encantada gorda”... Enfim, a novela tem de tudo para desagradar todas as corporações...

Eu disse “todas as corporações”? Bom, parece que a gloriosa classe dos causídicos não se incomoda com o modo como Walcyr, o Carrasco do imaginário social, lida com o Direito na malsinada novela Amor à Vida.

O Direito foi desmoralizado de vez nessa novela. Aliás, no ritmo em que está, os advogados serão substituídos, na novela, por estagiários (o que aproximaria, paradoxalmente, a novela da vida real, pois não?).

No folhetim carrascal, o advogado não tem nenhuma expertise. É pau para toda a obra. Vejamos: o mesmo advogado que cuida do exame de DNA trata do divórcio do dono do hospital (o garanhão Cesar, que, desconfio, deve ser, inclusive, pai do próprio autor da novela...) e ainda defende o glorioso Gentil, processado por bigamia e falsidade ideológica. Pudera: com essa “expertise”, Gentil só poderia se ferrar. A mesma advogada que trata de indenizações, cuida do divórcio da mulher de Cesar, e que cuidou também do divórcio do filho de Cesar e que atuou como assistente de acusação contra o Gentil. Esses advogados sequer têm escritórios. Aliás, parece que São Paulo só tem esses dois advogados e mais um, que é dublê de garçom e que entrou com pedido de indenização da ex-chacrete contra o nosso glorioso Gentil.

É uma lambança geral. Uma algaravia. Uma desmoralização da profissão. E do Direito. A sala de audiência tem plateia. Genial. E as testemunhas ficam ali, na plateia, prontas para intervir. E intervém da própria plateia. Ninguém anota nada. Tudo é oral. Não há compromisso de testemunhas. Na audiência de conciliação do divórcio do garanhão Cesar, houve um bate boca, sendo que audiência foi dada como encerrada pela autora da ação. Quanto ao juiz... Bem, pobre magistrado. Já o coitado do Gentil foi processado em bis in idem e condenado em primeira e única instância a 5 anos de reclusão, em regime fechado. Mesmo com curso superior e sem trânsito em julgado, iniciou o cumprimento da pena, com pijama e tudo. No meio da malta carcerária. Tudo bem “real”, pois não?

Quer dizer: não há defesa, não há contraditório, não há recurso, e não há Lei de Execução Penal. E sequer há progressão de regime. Carrasco apatifou o Direito de defesa. Apatifou com o regime prisional. Apatifou com a profissão de advogado. Apatifou com a profissão de juiz. Liquidou com a de Promotor. Só se salvou o estagiário, que não era personagem... Ou seja: em pleno mensalão, o autor perdeu uma grande chance de tratar de um tema sério. Mas, como sempre, prefere-se a impostura, a transformação das questões do direito em “coisas de novelas mexicanas” ou de júri da common law, inclusive com o grito do advogado: “Protesto”! Que técnico isso, não?

Mas então uma novela não tem qualquer compromisso com a realidade? Com a formação cultural de um povo? Então a novela é absolutamente inconstitucional. E provo isso. A Constituição estabelece no artigo 221 que os meios de comunicação devem dar preferência a produções educativas, artísticas, culturais e informativas, bem como respeitar aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Pois bem. Onde, no caso, a preservação dos “éticos e sociais da pessoa e da família”? Únicos valores preservados são os que o garanhão Cesar escondeu nas Ilhas Cayman. Uma sugestão: vamos declarar a novela inconstitucional sem modulação de efeitos... Boa, não? Efeito ex tunc (anulando-a ab ovo!).

Agora, minha licença poética: Em um dos capítulos, nesses que trataram de audiência, prisões e divórcios, vi, em imagem parada, aumentada em dez vezes, uma pequena pilha de livros, em um canto da mesa de audiências, em que se podiam ver livros como Direito Penal Simplificado, ABC das Audiências, Processo Penal Resumidíssimo, Processo Civil em Quadrinhos e um livro em homenagem ao grande jurista Conselheiro Acácio...

A crise do Direito e o imaginário
Pode parecer implicância minha, mas há uma relação direta na formação do imaginário social, naquilo que a população entende por “instituições jurídicas” (nem quero falar do problema dos médicos, dos enfermeiros, das periguetes, da comunidade gay, todos com ampla representação no folhetim de Walcyr, o Carrasco do imaginário; todos, enfim, com motivos de sobra para reclamarem).

E o programa Na Moral, em que, quando se discutiu a “questão da moral”, fez-se de forma irresponsável, separando a moral do Direito, como se estivéssemos no século XIX. Desserviço na veia! Examinando o art. 221, cum grano salis, o Programa fere a Constituição. Logo...

Não tenho a esperança que a TV vá melhorar o nível cultural do povo. Mas, com certeza, não deve piorá-lo. E nem avacalhar com as instituições. O que diria um autor da novela se, em uma novela ou em livro, o autor (de novelas) fosse representado como um idiota ou fronteiriço (néscio total), escrevendo os originais com ç em vez de s, esquecendo os plurais etc., tendo que um corretor fazer uma arrumação mínima diária do texto para que um segundo na cadeia alimentar (um co-autor) possa entender o que o “gênio” quis dizer?

No fundo, é o trash tomando conta da sociedade. A produção está no nível de filme em que aparece o zíper do monstro. E, o pior: é feito de forma séria. A cultura desce, cotidianamente, a ladeira do desperdício de sentidos e significados. E passa a se retroalimentar. Nada pode ser mais profundo dos que os calcanhares de uma formiga. Por isso, William Bonner disse a célebre frase: o telespectador tem o QI de Homer Simpson. Notícias devem ser informações em drops. Em pílulas. E nisso o Direito foi sendo carcomido em suas entranhas pela praga das vulgatas e das simplificações. Por que um livro que é resumo de resumo vende 600 mil exemplares em Pindorama? Por que há dezenas de livros com conceitos do tipo “agressão atual é a que está acontecendo”? E que coisa alheia é aquela que não pertence à pessoa? Por que alguém constrói um princípio chamado “ausência eventual de plenário”?

Numa palavra: a reprodução do imaginário pequeno-gnosiológico
Acabei de ler A Reprodução, de Bernardo de Carvalho. Genial. E um retrato do imaginário pequeno-gnosiológico que assola o mundo. O personagem que estuda chinês é o retrato do “novo homem”. Sabe tudo em drops. E não sabe nada. Bernardo diz: a literatura passou a ser pautada pelo gosto da média. Acrescento: abaixo da média. A literatura tem que incomodar. Perturbar o leitor. Angustiá-lo. E digo eu: assim também devem ser os livros jurídicos. Bernardo diz que um dos defeitos da literatura e da mídia é falar como se estivessem tratando com crianças (acrescento: algo como achar que o leitor ou telespectador tem o QI do Homer Simpson!). Bernardo, acertadamente, chama a isso de inconsequência política. Ou seja, isso é trazer a burrice do privado para o âmbito do público: “A infantilização do público tem a ver com a internet e também com a literatura que entrega o que você quer”. Digo eu: no Direito também infantilizamos o público. Estamos em face de um novo homem: o homo juridicus standard, que decora códigos e sabe tudo por pequenos drops. E a novela Amor à Vida, ao tratar das “coisas do Direito”, é a perfeita amostra Rumo à Estação “A Burrice Como Ciência”. No fundo, não sei a comunidade jurídica não merece uma novela como essa... Estou tentado a acreditar nisso...

Por isso, concordo com ele, quando diz que o texto deve ser uma visão trágica das camadas de possibilidades. E digo eu: Entregar-se à mediocridade é achar que tudo é relativo, até porque, segundo um relativista, um medíocre também tem razão...!

Logo, se todos viram medíocres, ninguém mais será. Bingo! Se tudo é, nada é! É a cultura se abeberando da alegoria do queijo suíço: o melhor queijo é o suíço; quando mais furos, melhor o queijo; menos queijo, melhor queijo. D’onde se conclui, brilhantemente, que o queijo ideal é o “não queijo”.

Tudo é... e nada é. Alvíssaras! Vou estocar furos de queijos! A essência do queijo ideal é o furo. O nada!

PS 1: Para quem ainda não entendeu, a novela, enquanto construtora do imaginário social, cumpre um papel importante. Tem um múnus público. Não pode e nem deve reforçar estereótipos, fomentar preconceitos com base na aparência ou se desvirtuar de sua função educativa, artística, cultural e informativa. E não deve apatifar com as profissões.

PS 2: para não dizer que sou um exagerado e que sou implicante: no livro Direito Constitucional Facilitado, no comentário ao parágrafo 1º do artigo 210, da CF (são símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais), os autores alertam para o “relevante” fato de “as armas” tratadas no aludido dispositivo referem-se... ao brasão e não às armas de fogo. Ah, bom! Bingo! Genial! Alvíssaras! Por isso é que esse livro vende tanto! Por isso é que o Verdade e Consenso não vai! Que chance eu tenho?

Vou estocar palavras. Aliás, vou estocar combos de palavras! Porque, no futuro, faltarão... para descrever o caos! É inexorável!

Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Revista Consultor Jurídico, 3 de outubro de 2013

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