Por Lenio Luiz Streck
Se o Direito já vai mal...
Pois quando a coisa não vai bem, sempre pode piorar. Com mais de 1,2 mil faculdades de Direito, com milhares de livros publicados, não conseguimos resolver, ainda, as mínimas questões acerca dos conteúdos dos conceitos jurídicos. A indústria que mais cresce é a do pan-principiologismo. E a dos livros que querem simplificar o Direito. Pois, pode piorar. E a Globo pode ajudar nessa piora. Aliás, já está ajudando. E muito. Vejam.
Ideologia como falsa consciência?
Escrever sobre o modo como se forma o imaginário de terrae brasilis, a partir do meios de comunicação parece coisa velha. Algo do tipo “Althusser e seus aparelhos ideológicos” etc. Pensei em colocar minha calça boca de sino para fazer a Coluna. Um aluno, marxista do tipo “A Ideologia Alemã", só que sem o contexto de Marx no século XIX e sem “aquela burguesia de então”, censurou-me, dizendo que esta Coluna seria do tipo “Ah, as novelas são os manuais da produção televisiva”. Critica-se os manuais, mas se assiste à novela das 9 (embora se diga que não a assista)!".
Fiquei pensando: o preclaro aluno-marxista-retrô acha que ideologia é falsa consciência. E que isso não tem nada de concreto... Basta negar a realidade. E dizer que é falsa. Está no mundo da pseuconcreticidade denunciado por Karel Kosik em sua Dialética do Concreto (que não é um livro de física). Pois é. De fato. São “só” 80 milhões que assistem à novela das nove na Globo. Alias, ainda estão frescos na memória alguns pitorescos episódios ocorridos durante o processo eleitoral de 2012 que demonstram a influência que os tais folhetins desempenham em nosso cotidiano. 1) São Paulo, maior e mais disputado colégio eleitoral do país. Numa disputa extremamente polarizada entre PT e PSDB, a cidade seria palco de um importante comício do atual prefeito (então candidato) Fernando Haddad com a presidenta da República. O ato, no entanto, foi adiado e o motivo: a data coincidia com a da exibição... do ultimo capítulo de Avenida Brasil. 2) Para não “perder a data”, a presidente encaminhou-se a Salvador, onde participaria do comício de um outro correligionário. Lá, contudo, traçou-se um estratégia para não competir com a saga da filósofa contemporânea Carminha. Armaram telões para exibir a novela e garantir a presença das massas. A Justiça Eleitoral vedou a iniciativa por entender que caracterizava “showmício”.
Bom, não cabe aqui debater se fez certo ou errado, mas ante a esses dois episódios, como ignorar a força desse elemento junto à formação do imaginário social? Como chamar de falso? Falso para quem, cara pálida? Deveríamos ler Poulantzas, no mínimo.
Lembro que, há mais de 10 anos, denunciei a novela A Próxima Vítima, em que a atriz que traiu o marido teve seu rosto cortado de fora a fora. Em reunião de família, perseguido pela polícia, o personagem de José Wilker (o vilão) foi reconfortado pela filha: “— Pai, ela teve o que mereceu”. Em outra novela, a personagem de Cristiane Torloni dizia: “Estou entediada. Hoje preciso sair para beber, trair e receber uns tapas na cara”. Maravilha, não? Tudo para 60 milhões de telespectadores. Meu aluno marxista diria: tudo falso. Tudo falso. Pura ideologia...
Sergio Porto, o nosso Stanislaw Ponte Preta, tinha uma frase genial: a prosperidade de alguns homens públicos do Brasil é uma prova evidente de que eles vêm lutando pelo progresso de nosso subdesenvolvimento! Digo eu. Bem assim com a cultura: a prosperidade dos homens de comunicação é uma prova de sua luta pela burrice do povo!
OK. A coluna de hoje será piegas e atrasada. Mas ela é assim porque o velho resiste em morrer. E o novo não nasce. Alguém tem dúvidas do papel exercido pelos meios de comunicação? Alguém duvida do poder das novelas? Já não se sabe se a ficção é a realidade ou se a realidade é a ficção. Há 40 anos Warat dizia que confundíamos as ficções da realidade com a realidade das ficções. Tinha razão. Olhando programas como Na Moral, de Pedro Bial, Faustão e as novelas, fica uma zona gris entre ficções e não ficções. Sem considerar o resto do lixo televisivo, como programas de humor de enésima categoria e talk shows de gente que acha que, para se comunicar, tem que dizer palavrão e forçar o humor. Isso chegou, inclusive, ao futebol, quando qualquer repórter quer falar por metáforas... e explica a própria metáfora. E acha que, sem humor e sem extrema simplificação, ninguém entenderá. Meu aluno, e tantos outros, dirá que isso tudo é falso. É ideológico. Que não se pode perder tempo com isso. Mas eu resisto. E insisto.
A saga do glorioso Gentil, personagem da novela Amor à Vida
Li em vários jornais que a associação dos enfermeiros reclamou do tratamento dado à profissão na novela. Também os médicos reclamaram do mau trato que o autor da novela dá aos esculápios pátrios. Os laboratórios reclamaram por causa da fácil falsificação de um exame. Os gays reclamam. A associação das periguetes mandou carta, dizendo que periguete não fica mendigando espeto corrido e rodizio de sobremesas, como é o caso da gloriosa Valdyrene, agora mãe de Mary Laydy (com vários ípsilons). “Periguete, sim, morta de fome, não!”, é o lema da reclamação. Enfim, as gordinhas virgens reclamam da Globo, contra o comportamento da personagem com nome grego que não lembro. . E as feministas reclamam do comentário sobre a gordinha virgem: “Não há princesa encantada gorda”... Enfim, a novela tem de tudo para desagradar todas as corporações...
E os politicamente corretos reclamam do comentário sobre a gordinha virgem: “Não há princesa encantada gorda”... Enfim, a novela tem de tudo para desagradar todas as corporações...
Eu disse “todas as corporações”? Bom, parece que a gloriosa classe dos causídicos não se incomoda com o modo como Walcyr, o Carrasco do imaginário social, lida com o Direito na malsinada novela Amor à Vida.
O Direito foi desmoralizado de vez nessa novela. Aliás, no ritmo em que está, os advogados serão substituídos, na novela, por estagiários (o que aproximaria, paradoxalmente, a novela da vida real, pois não?).
No folhetim carrascal, o advogado não tem nenhuma expertise. É pau para toda a obra. Vejamos: o mesmo advogado que cuida do exame de DNA trata do divórcio do dono do hospital (o garanhão Cesar, que, desconfio, deve ser, inclusive, pai do próprio autor da novela...) e ainda defende o glorioso Gentil, processado por bigamia e falsidade ideológica. Pudera: com essa “expertise”, Gentil só poderia se ferrar. A mesma advogada que trata de indenizações, cuida do divórcio da mulher de Cesar, e que cuidou também do divórcio do filho de Cesar e que atuou como assistente de acusação contra o Gentil. Esses advogados sequer têm escritórios. Aliás, parece que São Paulo só tem esses dois advogados e mais um, que é dublê de garçom e que entrou com pedido de indenização da ex-chacrete contra o nosso glorioso Gentil.
É uma lambança geral. Uma algaravia. Uma desmoralização da profissão. E do Direito. A sala de audiência tem plateia. Genial. E as testemunhas ficam ali, na plateia, prontas para intervir. E intervém da própria plateia. Ninguém anota nada. Tudo é oral. Não há compromisso de testemunhas. Na audiência de conciliação do divórcio do garanhão Cesar, houve um bate boca, sendo que audiência foi dada como encerrada pela autora da ação. Quanto ao juiz... Bem, pobre magistrado. Já o coitado do Gentil foi processado em bis in idem e condenado em primeira e única instância a 5 anos de reclusão, em regime fechado. Mesmo com curso superior e sem trânsito em julgado, iniciou o cumprimento da pena, com pijama e tudo. No meio da malta carcerária. Tudo bem “real”, pois não?
Quer dizer: não há defesa, não há contraditório, não há recurso, e não há Lei de Execução Penal. E sequer há progressão de regime. Carrasco apatifou o Direito de defesa. Apatifou com o regime prisional. Apatifou com a profissão de advogado. Apatifou com a profissão de juiz. Liquidou com a de Promotor. Só se salvou o estagiário, que não era personagem... Ou seja: em pleno mensalão, o autor perdeu uma grande chance de tratar de um tema sério. Mas, como sempre, prefere-se a impostura, a transformação das questões do direito em “coisas de novelas mexicanas” ou de júri da common law, inclusive com o grito do advogado: “Protesto”! Que técnico isso, não?
Mas então uma novela não tem qualquer compromisso com a realidade? Com a formação cultural de um povo? Então a novela é absolutamente inconstitucional. E provo isso. A Constituição estabelece no artigo 221 que os meios de comunicação devem dar preferência a produções educativas, artísticas, culturais e informativas, bem como respeitar aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Pois bem. Onde, no caso, a preservação dos “éticos e sociais da pessoa e da família”? Únicos valores preservados são os que o garanhão Cesar escondeu nas Ilhas Cayman. Uma sugestão: vamos declarar a novela inconstitucional sem modulação de efeitos... Boa, não? Efeito ex tunc (anulando-a ab ovo!).
Agora, minha licença poética: Em um dos capítulos, nesses que trataram de audiência, prisões e divórcios, vi, em imagem parada, aumentada em dez vezes, uma pequena pilha de livros, em um canto da mesa de audiências, em que se podiam ver livros como Direito Penal Simplificado, ABC das Audiências, Processo Penal Resumidíssimo, Processo Civil em Quadrinhos e um livro em homenagem ao grande jurista Conselheiro Acácio...
A crise do Direito e o imaginário
Pode parecer implicância minha, mas há uma relação direta na formação do imaginário social, naquilo que a população entende por “instituições jurídicas” (nem quero falar do problema dos médicos, dos enfermeiros, das periguetes, da comunidade gay, todos com ampla representação no folhetim de Walcyr, o Carrasco do imaginário; todos, enfim, com motivos de sobra para reclamarem).
E o programa Na Moral, em que, quando se discutiu a “questão da moral”, fez-se de forma irresponsável, separando a moral do Direito, como se estivéssemos no século XIX. Desserviço na veia! Examinando o art. 221, cum grano salis, o Programa fere a Constituição. Logo...
Não tenho a esperança que a TV vá melhorar o nível cultural do povo. Mas, com certeza, não deve piorá-lo. E nem avacalhar com as instituições. O que diria um autor da novela se, em uma novela ou em livro, o autor (de novelas) fosse representado como um idiota ou fronteiriço (néscio total), escrevendo os originais com ç em vez de s, esquecendo os plurais etc., tendo que um corretor fazer uma arrumação mínima diária do texto para que um segundo na cadeia alimentar (um co-autor) possa entender o que o “gênio” quis dizer?
No fundo, é o trash tomando conta da sociedade. A produção está no nível de filme em que aparece o zíper do monstro. E, o pior: é feito de forma séria. A cultura desce, cotidianamente, a ladeira do desperdício de sentidos e significados. E passa a se retroalimentar. Nada pode ser mais profundo dos que os calcanhares de uma formiga. Por isso, William Bonner disse a célebre frase: o telespectador tem o QI de Homer Simpson. Notícias devem ser informações em drops. Em pílulas. E nisso o Direito foi sendo carcomido em suas entranhas pela praga das vulgatas e das simplificações. Por que um livro que é resumo de resumo vende 600 mil exemplares em Pindorama? Por que há dezenas de livros com conceitos do tipo “agressão atual é a que está acontecendo”? E que coisa alheia é aquela que não pertence à pessoa? Por que alguém constrói um princípio chamado “ausência eventual de plenário”?
Numa palavra: a reprodução do imaginário pequeno-gnosiológico
Acabei de ler A Reprodução, de Bernardo de Carvalho. Genial. E um retrato do imaginário pequeno-gnosiológico que assola o mundo. O personagem que estuda chinês é o retrato do “novo homem”. Sabe tudo em drops. E não sabe nada. Bernardo diz: a literatura passou a ser pautada pelo gosto da média. Acrescento: abaixo da média. A literatura tem que incomodar. Perturbar o leitor. Angustiá-lo. E digo eu: assim também devem ser os livros jurídicos. Bernardo diz que um dos defeitos da literatura e da mídia é falar como se estivessem tratando com crianças (acrescento: algo como achar que o leitor ou telespectador tem o QI do Homer Simpson!). Bernardo, acertadamente, chama a isso de inconsequência política. Ou seja, isso é trazer a burrice do privado para o âmbito do público: “A infantilização do público tem a ver com a internet e também com a literatura que entrega o que você quer”. Digo eu: no Direito também infantilizamos o público. Estamos em face de um novo homem: o homo juridicus standard, que decora códigos e sabe tudo por pequenos drops. E a novela Amor à Vida, ao tratar das “coisas do Direito”, é a perfeita amostra Rumo à Estação “A Burrice Como Ciência”. No fundo, não sei a comunidade jurídica não merece uma novela como essa... Estou tentado a acreditar nisso...
Por isso, concordo com ele, quando diz que o texto deve ser uma visão trágica das camadas de possibilidades. E digo eu: Entregar-se à mediocridade é achar que tudo é relativo, até porque, segundo um relativista, um medíocre também tem razão...!
Logo, se todos viram medíocres, ninguém mais será. Bingo! Se tudo é, nada é! É a cultura se abeberando da alegoria do queijo suíço: o melhor queijo é o suíço; quando mais furos, melhor o queijo; menos queijo, melhor queijo. D’onde se conclui, brilhantemente, que o queijo ideal é o “não queijo”.
Tudo é... e nada é. Alvíssaras! Vou estocar furos de queijos! A essência do queijo ideal é o furo. O nada!
PS 1: Para quem ainda não entendeu, a novela, enquanto construtora do imaginário social, cumpre um papel importante. Tem um múnus público. Não pode e nem deve reforçar estereótipos, fomentar preconceitos com base na aparência ou se desvirtuar de sua função educativa, artística, cultural e informativa. E não deve apatifar com as profissões.
PS 2: para não dizer que sou um exagerado e que sou implicante: no livro Direito Constitucional Facilitado, no comentário ao parágrafo 1º do artigo 210, da CF (são símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais), os autores alertam para o “relevante” fato de “as armas” tratadas no aludido dispositivo referem-se... ao brasão e não às armas de fogo. Ah, bom! Bingo! Genial! Alvíssaras! Por isso é que esse livro vende tanto! Por isso é que o Verdade e Consenso não vai! Que chance eu tenho?
Vou estocar palavras. Aliás, vou estocar combos de palavras! Porque, no futuro, faltarão... para descrever o caos! É inexorável!
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 3 de outubro de 2013
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