'Demandas do país não se resolvem no Judiciário'
"Espero que o Congresso Nacional, num curto prazo, livre o Supremo Tribunal Federal do foro por prerrogativa de função, salvo autoridades como o presidente e o vice-presidente da República, os presidentes dos Poderes, os ministros do Supremo e o procurador-geral da República." A frase é do ministro Luis Roberto Barroso, o mais novo no Supremo Tribunal Federal, que logo ao chegar na corte já teve de julgar um dos processos mais volumosos da história da corte, a Ação Penal 470, com 37 réus. O ministro propõe a criação de uma vara em Brasília apenas para os que hoje têm foro no STF por conta da função, cabendo então ao Supremo apenas analisar os recursos, as questões jurídicas, e não o recebimento da denúncia.
Em entrevista ao jornal Valor Econômico, o ministro fez um balanço dos 25 anos da Constituição Federal que, segundo ele, trouxe estabilidade institucional, garantiu os direitos sociais e criou uma cultura de direitos fundamentais. Porém, Barroso diz que as instituições não foram capazes de prestar serviços de qualidade à população.
Ao falar sobre o Judiciário, Barroso afirma que há um equívoco em imaginar que as grandes demandas políticas do país possam ser atendidas pelo Judiciário. “Uma questão só chega ao Judiciário se tiver se transformado num conflito. E ninguém deve achar que conflitos possam ser a maneira normal de se resolver problemas em uma democracia. O Judiciário supre demandas emergenciais, mas o que o país está precisando é de política de qualidade”, diz.
A política de qualidade é, para Barroso, a solução para diversos problemas enfrentados no país, como para garantir os direitos previstos na Constituição, inclusive os que ainda não foram regulamentados, e também a guerra fiscal entre os estados. “Não se cura desespero com decreto. Nem decreto normativo, nem judicial. Os estados vivem um momento de aflição financeira muito grave. Temos que pensar quais soluções são dadas em outras partes do mundo e o que é aproveitável para o Brasil. Mas essa não é uma solução judicial. É uma solução política. O Brasil precisa de mais política, mas política de qualidade”.
Mesmo afirmando que não é necessária uma nova Constituição para o país, apenas “uma lipoaspiração aqui, uma plástica ali ou uma prótese acolá”, Barroso diz que o sistema eleitoral é um desastre que não pode ser resolvido pelo Judiciário.
Leia a entrevista concedida ao jornal Valor Econômico:
O Judiciário deve agir sempre que as exigências da Constituição de 1988 não estiverem sendo cumpridas por outros Poderes?
O Judiciário viveu sob a Constituição de 1988 uma vertiginosa ascensão institucional. Ele tem servido bem ao país, embora padeça da mesma incapacidade de outras instituições de atender a todas as demandas da sociedade. Porém, é um equívoco imaginar que as grandes demandas políticas do país possam ser atendidas pelo Judiciário. O Judiciário é, e é curioso eu dizer isso, uma instância patológica. Uma questão só chega ao Judiciário se tiver se transformado num conflito. E ninguém deve achar que conflitos possam ser a maneira normal de se resolver problemas em uma democracia. O Judiciário supre demandas emergenciais, mas o que o país está precisando é de política de qualidade.
Por que as instituições não conseguem atender às demandas da população 25 anos depois de a Constituição garanti-las no papel?
Sob a Constituição de 1988, o Brasil avançou muito em diversas áreas. A cidadania atingiu um novo patamar de consciência e exigência. Mas, embora tenhamos melhorado muito, as instituições não estão conseguindo atender às demandas por Justiça e por serviços na intensidade e na qualidade desejáveis. Somos um país que começou atrasado na história, um país em construção. O Brasil começa verdadeiramente em 1808, com a vinda da família real. Somos herdeiros de uma tradição autoritária, a tradição ibérica, de um país que foi o último a abolir o absolutismo e a separar a igreja do Estado. Portanto, somos colônia de um Império que havia ele próprio se atrasado na história, e apesar disso, em 200 anos, somos uma das dez principais economias do mundo.
O STF não avançou no papel de outros Poderes ao tomar decisões antes do Congresso e do governo para garantir direitos?
O Judiciário é um grande guardião dos direitos fundamentais das minorias. E o STF desempenhou com muita felicidade esse papel nos últimos anos em relação a negros, homossexuais, mulheres, atuou no caso da anencefalia. Acho que prestou outros serviços que contribuíram para um avanço social em questões como a proibição do nepotismo, as pesquisas com células-tronco embrionárias. Com a Ação Penal 470, ajudou a enfrentar o tema da impunidade.
Qual a importância da ação penal do mensalão?
A AP 470 foi um marco na condenação de políticos e de poderosos em geral, como nunca se tinha visto.
Mas esse resultado não pode se dissolver, já que o julgamento foi estendido por embargos?
A cabala judaica tem uma passagem em que eles dizem "tudo passa". Portanto, passam as coisas boas e as ruins. A vida é cíclica. É assim a história dos povos e das instituições. É preciso lidar com serenidade tanto com a popularidade quanto com a impopularidade. Um juiz deve ouvir as ruas, entender o sentimento social, mas fazer o que é certo e justo. Já estive do lado da maioria. É uma delícia! E com a imprensa a favor, melhor ainda. No caso da união homoafetiva, eu tive imprensa a favor, assim como no das células-tronco embrionárias, no caso do nepotismo, da anencefalia. Na extradição de Cesare Battisti, tive imprensa contra. A gente não pode achar que o povo e a imprensa são bons quando estão a favor e ruins quando estão contra. Povo e imprensa são bons quando estão contra ou a favor. A gente deve cumprir o próprio destino e fazer o que considera certo.
Com a revisão do mensalão, o marco contra a impunidade não poderia se desfazer?
Não creio. Não sou bom de prognóstico. Em 1978, escrevi um artigo chamado "Socialismo e Liberdade" no jornal universitário que dizia: "O mundo caminha inexoravelmente para o socialismo". De lá para cá, caiu o muro de Berlim, desfez-se a União Soviética, abriram-se as economias da Europa Oriental e até a China pratica capitalismo selvagem. De modo que, diante do fiasco da minha incursão no mundo da vidência, agora me dedico à atividade mais segura de comentarista de videotape. Quando acontece, explico e geralmente não erro o resultado.
Quanto tempo deve demorar o julgamento?
Deve ser tão rápido quanto possível para o devido processo legal. O país precisa se livrar desse assunto. O STF precisa se ocupar de outras coisas. Espero que o Congresso, num curto prazo, livre o Supremo do foro por prerrogativa de função, salvo meia dúzia de autoridades.
Quem deveria ficar?
Eu teria que pensar com calma, mas pelo menos o presidente e o vice-presidente da República, os presidentes dos Poderes, os ministros do STF e o procurador-geral da República.
Os parlamentares seriam julgados na 1ª instância?
A proposta que eu estava elaborando quando vim pra cá era a seguinte: criar, em Brasília, uma vara especializada que teria competência para as ações penais contra as autoridades que, hoje, têm foro por prerrogativa de função e para os crimes de improbidade. O juiz titular dessa vara deveria estar em condições de ser promovido ao Tribunal Regional Federal (TRF).
Seria um juiz apenas para deputados, senadores e ministros de Estado?
Seria um juiz titular para haver homogeneidade e possivelmente diversos juízes auxiliares. Esse juiz ficaria lá por um prazo determinado, como três anos. Ao fim, seria automaticamente promovido ao TRF. Com isso, teria autonomia. Mas só poderia ser promovido ao TRF, de modo a não fazer favor para vir para o STF. O titular dessa vara seria escolhido pelo Supremo e da decisão dele caberia recurso ordinário para o tribunal.
Mas assim todo mundo ia recorrer ao Supremo...
Mas o STF não seria responsável pela produção das provas, pelo recebimento da denúncia. Ele faria só o reexame de questões jurídicas.
Esse modelo existe em alguma parte do mundo?
O mundo, no geral, não pratica o foro por prerrogativa de função, mas eu acho que, no caso brasileiro, é bom porque a atividade pública e a exposição pública no Brasil deixam o agente público sujeito à perversidade, a interesses políticos contrariados, a ações penais levianas. Então, se você não concentra num juízo único, em Brasília, você passa a ter essas autoridades sujeitas a ações em qualquer parte do Brasil. Elas ficam desprotegidas.
Por que o senhor acha que as autoridades ficam expostas?
Há um problema de estágio civilizatório e outro de certa criminalização da política. O sistema eleitoral e o partidário no Brasil são indutores da criminalidade. Eu acho até que o povo saiu da rua rápido demais, antes que viesse um mínimo de reforma. Se o sistema eleitoral e o sistema partidário não mudarem, a criminalização da política vai continuar na ordem do dia.
Os constituintes de 1988 erraram na definição do sistema político?
O sistema político é um desastre, mas a Justiça Eleitoral no Brasil é modelo para o mundo. Esse sistema eleitoral em que o voto é proporcional e a lista é aberta tem um custo tão elevado que o financiamento eleitoral acaba se fincando como raiz de boa parte dos problemas nacionais, inclusive da corrupção.
O STF não poderia mudar isso julgando uma ação da OAB contra o financiamento privado de campanhas?
Há um processo que procura impedir pessoas jurídicas de fazerem doações de campanha. Ainda que alguém considere essa medida positiva, e não vou opinar, pois vou julgá-la, ela é insuficiente. O problema não é só como se financia; o problema é quanto custa. Custando o que custa, as pessoas vão procurar financiamento em outros lugares.
O Supremo poderia contribuir para a reforma política?
Acho que não. Infelizmente, essa não é uma questão que possa ser resolvida pelo Judiciário, pois essa não é uma questão técnica, de decisão política. A reforma política enfrenta um impasse: o Congresso Nacional, que é o lugar por excelência para conduzi-la, é composto de parlamentares, por atores que não são neutros em relação às soluções que venham a ser dadas. Todas as pessoas que estão lá serão diretamente afetadas por qualquer mudança. Na prática, não se consegue produzir consenso. Por isso é preciso encontrar uma alternativa. O plebiscito pode ser uma opção.
O principal problema é o custo das eleições?
Baratear o sistema eleitoral deve ser prioridade de qualquer reforma política. Além dela, devemos ter mais dois objetivos: acabar com a pulverização partidária e facilitar a governabilidade. Para baratear as eleições, há algumas ideias, como voto distrital, voto distrital misto, lista pré-ordenada, também chamada de lista fechada.
Como acabar com a pulverização de partidos?
Há várias ideias: cláusula de barreira, proibição de coligação em eleições proporcionais. Em relação às cláusulas de barreira, acho que o STF carrega uma culpa. O que aconteceu foi que alguns partidos, sobretudo os tradicionais de esquerda, iam ser tolhidos pela cláusula de barreira. Acho que houve certa percepção de que seria uma injustiça histórica jogar no lixo esses partidos. Mas teria sido melhor abrir uma exceção para eles que abrir a porta geral.
A Constituição trouxe algo de bom no plano político?
Vinte e cinco anos de estabilidade institucional. Pode parecer banal para as novas gerações, mas o Brasil sempre foi o país do golpe, do contragolpe e da quartelada, desde o início da República. Tivemos revolução de 1930, de 1932, em São Paulo, intentona comunista de 1935, golpe do Estado Novo de 1937, deposição do Getúlio Vargas em 1945, o suicídio, em 1954, que abortou o golpe que estava em curso. Depois, em 1956 e 1957, duas rebeliões contra o Juscelino Kubitscheck, a renúncia do Jânio Quadros, em 1961, o veto dos ministros militares à posse do João Goulart, o golpe de 1964, o ato institucional 5, em 1968, o golpe dentro do golpe em 1969, quando assumiu a junta militar. Foi mais de uma dezena de golpes a partir de 1930. Então, nós conseguimos em 25 anos superar todos os ciclos do atraso, no tocante ao respeito à legalidade constitucional. E isso em períodos que tiveram momentos dramáticos, como a destituição de um presidente da República, em 1992, escândalos como o dos anões do orçamento, inflação altíssima, uma ação penal como a 470.
A Constituição trouxe estabilidade, mas foi modificada mais de 70 vezes por emendas.
A Constituição de 1988, por força de seu complexo processo de elaboração, resultou excessivamente abrangente e detalhista. Ela trata de matérias que na maior parte do mundo são relegadas à política ou à legislação ordinária, e com grande grau de detalhamento. Então, qualquer governo para implementar o seu programa, precisa promover um conjunto de emendas constitucionais, previdenciárias, tributárias, econômicas. A política ordinária no Brasil acaba sendo feita por emendas à Constituição. Mas ela trouxe outras coisas boas.
Por exemplo…
O país avançou muito em termos de proteção ao consumidor e consciência ambiental. Quando eu era jovem, as elites pensavam num país só para si e para seus filhos. Hoje, já há a percepção de que um país é para todos, ou não há salvação. É verdade que a classe dominante só descobriu isso quando a violência ameaçava devorá-la e precisava viver em condomínios fechados e shoppings centers protegidos por guardas armados. Foi com atraso. Mas o Brasil passou a ter políticas públicas para os pobres. Não é o suficiente. Nunca tivemos política consistente e ampla para financiamento de habitação popular. O país é favelizado de Norte a Sul porque as pessoas precisam de lugar para morar e nunca houve um compromisso verdadeiramente extenso com a habitação no país. Mais importante: houve a criação de uma cultura de direitos fundamentais.
Mas muitos direitos garantidos na Constituição, como saúde e educação, ainda não são uma realidade para boa parte da população.
As ideias levam um tempo desde que vencem o plano ideológico ou filosófico até quando se concretizam na vida real. Em matéria de educação, caminhamos na direção da universalização do ensino médio. A qualidade ainda é muito ruim, mas demos o primeiro passo. Acho que a universidade é mais devedora que credora da sociedade brasileira. É cara e presta um serviço deficiente ao país. Na saúde, o Brasil tem o mais ambicioso programa de inclusão social do mundo, o SUS. E ele enfrenta todas as dificuldades, do tamanho da sua ambição, que é oferecer saúde gratuita e universal para toda a população. O sistema de saúde tem muitas deficiências, mas ele não é uma ficção. Quando eu era jovem ele era uma ficção. Tivemos muitas vitórias. Não andamos na velocidade desejada, mas andamos na direção certa. E o rumo certo na vida é mais importante do que a velocidade.
O Judiciário não deveria intervir mais vezes para cobrar a eficiência desses serviços?
Em muitas áreas, como a saúde, os problemas são levados ao Judiciário quando deveriam ter sido discutidos antes, na elaboração do orçamento. Nos países democráticos é na elaboração do orçamento que se discute quanto vai para educação, saúde, transporte e publicidade institucional. No Brasil, esse debate não existe. O orçamento é tratado como uma questão burocrática, uma caixa preta. Depois, se pede ao Judiciário uma realocação de verbas.
E o STF deveria atuar para efetivar os direitos da Constituição que, 25 anos depois, ainda não foram regulamentados?
Isso correu com a greve do serviço público. Mas houve outra questão interessante. Há três anos, o STF decidiu que iria regulamentar os casos de indenização do empregado demitido sem justa causa. E o que aconteceu? As classes empresariais que sempre trabalharam pela não regulamentação correram para o Congresso e rapidamente obtiveram a regulamentação, porque sabiam que do STF viria algo mais protetivo ao empregado do que poderiam obter no Congresso. Isso me fez dizer que o STF se encontra à esquerda do Congresso, à esquerda do processo politico majoritário, ao menos na percepção das classes empresariais.
O STF deveria baixar uma súmula para que os Estados parem com a guerra fiscal?
Não se cura desespero com decreto. Nem decreto normativo nem judicial. Os Estados vivem um momento de aflição financeira muito grave. Temos que pensar quais soluções são dadas em outras partes do mundo e o que é aproveitável para o Brasil. Mas essa não é uma solução judicial. É uma solução política. O Brasil precisa de mais política, mas política de qualidade.
O Brasil precisa de uma nova Constituição?
Em nenhuma hipótese. A Constituição de 1988 tem uma valia substantiva e outra simbólica. Ela é o símbolo da superação de um Estado autoritário, intolerante e violento por um democrático de direito. Portanto, com uma lipoaspiração aqui, uma plástica ali ou uma prótese acolá, eu gostaria de comemorar daqui a 25 anos os 50 anos da Constituição.
Revista Consultor Jurídico, 4 de outubro de 2013
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