sexta-feira, 26 de julho de 2013

Vinte dicas republicanas para ter sucesso como (N)DCCJ

O que me impele a fazer um “manual republicano”
Em tempos de protestos e indignações, sem que muitas autoridades estejam captando a mensagem das ruas — andam em aviões por aí —, vejo na TV Pedro Bial falando em honestidade, ética e moral. O mesmo apresentador que comanda um programa chamado Big Brother, no qual a vigarice e o estelionato são a condição de possibilidade de “se dar bem” e ganhar a “bolada” ao final... o vencedor é aquele que... melhor passar a perna nos outros. Belo exemplo para a cidadania. Mesmo caso da novela das oito, da mesma Globo: é uma cópia de vários seriados americanos. Que belo exemplo de criação artística para os jovens. Belo recado: recorte e cole. Eis o grande paradigma hermenêutico do século XXI: Ctrl+c e Ctrl+v. Isso me dá uma melancolia, um pessimismo...

Mas, vamos ver o lado bom. De certo modo, esse conjunto de coisas (aviões da FAB, passeatas, protestos, projetos do SUS) me impeliu a escrever algumas dicas republicanas para que (Novos) Detentores de Cargos em Carreiras Jurídicas (doravante denominados (N)DCCJ — o “novos” está entre parênteses em face da ambiguidade, isto é, as dicas são dirigidas aos novos, mas servem, evidentemente, também aos antigos) tenham sucesso na profissão. Não esqueçamos que o Brasil é o país que mais tem carreiras jurídicas. Estou pensando em fazer um “manual” com conselhos republicanos para essa gente toda que passa(rá) a cuidar da justiça e do Estado lato sensu (e, por óbvio, para os que já estão na máquina pública). Pensando no futuro, é claro. Como um u-topos. Na verdade, a coluna desta semana é devedora da coluna da semana passada escrita pelo colega de ConJur, Vladimir Passos de Freitas (Manual de sobrevivência e sucesso nas carreiras jurídicas), a quem agradeço desde já. Gracias, Vladimir. Valeu a inspiração.
Princípios reitores (dicas lato sensu)
Minhas dicas são baseadas em alguns princípios, que valem também para alunos em geral. O aluno que o professor mais respeita é aquele que faz observações desde o primeiro dia de aula. O aluno que leu os livros e deixa claro que leu. Se o professor diz um disparate, ele levanta a mão e, claro, com educação, diz que o mestre se equivocou. Pronto. Se ele tiver razão, o professor passará a ter muito cuidado com ele. Ao contrário do outro aluno que levou maçã para o mestre. Assim deve ser a relação do (N)DCCJ com as instâncias com que se relaciona(rá). Um homem experiente sabe bem perceber uma postura passiva, uma agressiva e uma assertiva do interlocutor. Entre os polos daquele que assume uma postura bajuladora e aquele se comporta como opositor, existe aquele que se mantém íntegro, sólido. Quem assume uma postura passiva pode até obter alguns ganhos, mas tenderá a ser explorado e subestimado. O agressivo tende a ser excluído ou posto de lado porque se torna uma ameaça. Já o assertivo é visto como tal: confiável e capaz de ser um parceiro, um amigo.

O segundo princípio deriva do primeiro. É o de que o funcionário (de carreira jurídica ou não) deve sempre deixar claro que cargo público não é da “posse de ninguém”, embora todos tomem posse e depois não queiram sair mais. Posse, na verdade, vira propriedade. Por exemplo, o (N)DCCJ (não ficou bem essa sigla?) não deve ir buscar cigarro para o chefe. E nem servir de churrasqueiro nas festas do chefe. Esse princípio será importante para ser usado quando o chefe, por estar mal-humorado, decidir dar esporro em todos. Neste momento, deve o jovem detentor de um cargo público oriundo de uma carreira jurídica (mas não só ele) estabelecer os limites da atuação do chefe. Ou isso, ou o resto de seus dias serão de churrasqueiro mesmo.
Outro princípio é o de que você, um (N)DCCJ, é servidor da população. Se tiver que aplicar punição, faça-o, sem esperar que, se o outro estiver no seu lugar, poderá vir a poupá-lo no futuro. O lobo é o lobo do lobo, quer dizer, o homem é o lobo do homem. E assim por diante. Os demais princípios são extraídos destes principais, como por exemplo, ao se abaixar, parcela daquilo que está abaixo das costas pode ficar a descoberto. Como sabem, princípios, para mim, não são simplesmente valores. Isto porque valores são coisas contingenciais. Fugidios. Absolutamente subjetivos. Achar que princípios são valores é cair no subjetivismo. Princípios são o mundo prático introduzido no Direito. Logo, não possuem uma taxonomia.
Quando o (N)DCCJ chegar ao local para o qual foi lotado, designado ou assumiu a função e quiser saber em quais subordinados confiar, espere um mês. Depois pergunte ao subordinado que costumeiramente lhe elogia como eram os três últimos antecessores. A resposta dele será a previsão do que ele pensará de você quando sair. Isso será bom também para que você tome consciência que o poder não está em você, mas no cargo. Evita-se, assim, o que Jung chamava de insuflação dapersona — quando o indivíduo passa a confundir o poder com a pessoa.
Da mesma forma, é um mau sinal para o (N)DCCJ quando ele se incomoda quando não é tratado com o epíteto de “doutor” (mesmo que o (N)DCCJ tenha o verdadeiro título: um doutorado acadêmico). Esse é o primeiro passo para o cometimento de abusos e para se pôr em risco a carreira do (N)DCCJ. Na magistratura e na carreira do Ministério Público isso é conhecido como “juizite” e “promotorite”, uma espécie de inflamação aguda em uma das regiões mais débeis da alma humana: a vaidade.
Vamos, assim, às 20 dicas stricto sensu
1. Se você passou no concurso do Ministério Público, não faça denúncias do tipo “deixa-que-o-juiz-resolve-depois”, colocando na tipificação desde quadrilha ou bando até a improbidade pelo uso de folhas de papel timbrado; ao mesmo tempo, pense bem se, de fato, existe esse negócio de in dúbio pro societate.

2. Em sendo um (N)DCCJ – juiz, não julgue fazendo estatísticas para agradar ao CNJ; evite decisões que deem azo a uma porção de embargos de declaração; e não responda aos embargos dizendo que “nada há a esclarecer”, obrigando o causídico a ofertar um agravo, iniciando uma via crucisprocessual; pense que no peito do causídico bate um coração...
3. Se você passou no concurso de juiz, não maltrate seus funcionários como fez aquele juiz federal de Chapecó que, em um Procedimento Comum do Juizado Especial Cível Nº 5008083-73.2012.404.7202/SC, que é autoexplicável, no qual ele (o magistrado, um (N)DCCJ), rejeitando os embargos declaratórios, achou que podia dar uma chinelada — e bota chinelada nisso — no servidor (parte) e no seu advogado (clique aqui para ler), o que demonstra que ainda estamos longe — mas bem longe — da democracia na Terrae de Vera e Santa Cruz.
4. Se você for um (N)DCCJ-Procurador Federal, não se contente com decisões contra Viúva, por exemplo, quando, no INSS, o juiz não aceitar prova pericial que aponte para o não direito do utente (não só recorra como leve essa questão a sua chefia — afinal, você é o defensor da Viúva; alguém tem de fazê-lo). Lembre-se que juiz não faz socialismo processual, coisa velha do tempo da Áustria (e ele, o juiz, não é Menger nem Klein, gente que defendia isso). Lembre-se também que aposentadorias rurais não se provam tão somente a partir de um “empírico olhar” nas condições do requerente (também aqui o (N)DCCJ deve saber que judiciário não decide por intuições ou outros modos, e, sim somente mediante claras provas). Por mais que o cidadão necessite do dinheiro, pense que não é tarefa do judiciário fazer isso.
5. Se você, agora um (N)DCCJ, é um advogado da União (na especificidade tratada neste item), pense na importância que é defender o cofre da combalida Viúva. Portanto, se lhe mandarem aplicar uma portaria dispensando a cobrança de dívidas de até R$ 20 mil, peça que seu superior lhe mostre a lei aprovada pelo Congresso e, de imediato, mande uma nottitia constitucionalis ao PGR.
6. Se você, agora um (N)DCCJ, é um defensor público, pense bem antes de defender alguém que não seja hipossuficiente. Afinal, ao atendê-lo, você estará tirando uma vaga de Hiporex (um hipossuficiente realmente existente), além de estar tirando o trabalho daquele bacharel que lá com seu pequeno escritório, lutando para ganhar a vida, que, como você também sabe, embora ganhe bem como todos os CCJs (cargos de carreira jurídica), a vida não está fácil. Outra coisa: se alguém quiser fazer operação plástica por conta da Viúva para se transformar em lagarto, providencie uma consulta psiquiátrica para o gajo, mas, por favor, não ingresse com uma ação judicial.
7. Se você, agora um (N)DCCJ, estiver presidindo uma audiência (de qualquer tipo), não fique examinando sua caixa de e-mails ou seu perfil no Facebook. Isso é feio. E ponto.
8. Abra mão de qualquer “literatura periguete” (quer algo mais fácil que “periguete”?). Se você for cursar pós-graduação — principalmente se for com financiamento da combalida Viúva — não faça dissertação ou tese sobre temas monográficos como “agravo de instrumento”, “o papel do oficial de Justiça”, “reflexões sobre os embargos infringentes”; “(re)pensando o artigo 25 do Código do Consumidor — uma visão crítica”; “um olhar sistêmico sobre a progressão de regime” ou “execução de pré-executividade: reflexões à margem”...
9. Se você, um virtuoso (N)DCCJ, for convidado para a comissão de concurso da Instituição, não faça perguntas tipo “pegadinhas” ou sobre coisas ridículas (por exemplo, Caio e Tício que embarcam em uma tábua e depois se matam...), nem faça questões como uma da OAB recente, essa que está gerando toda a polêmica. Não precisa fazer com que Caio vá ao Paraguai, dê a volta pelo Suriname, furte um picolé em Manaus e depois dirija sem carteira em Torres (RS), além de fumar maconha na hora da prisão... A realidade fornece exemplos melhores do que essa ficcionalização que os juristas tanto gostam.
10. Se você for um (N)DCCJ-juiz (ou ingressar pelo Quinto Constitucional em Tribunal sem um parente importante), não decida conforme sua consciência e, sim, a partir do que diz a doutrina e a jurisprudência, com coerência e integridade. Saiba que o Direito tem um DNA. Sem construa princípios estapafúrdios. Aliás, não construa princípios. Você não é legislador. E na Justiça do Trabalho, isso vale também (se me entendem).
11. Dê-se conta de que o pan-principiologismo é uma doença contemporânea. Portanto, nem pense em aplicar “princípios” como “da ausência ocasional do plenário”, “da rotatividade”, “do fato consumado”, “da confiança no juiz da causa”, “da delação impositiva”, “alteralidade”, da “benignidade”, “do deduzido e do dedutível”, “da afetividade” (embora eu saiba que isso é “fofinho”) e “da felicidade” (embora todos queiramos ser felizes!). Mais: não lance mão da famosa ponderação de valores se você não leu Alexy. Portanto, nada de pegar um princípio em cada mão e recitar o mantra da “ponderação”.
12. Se você é um (N)DCCJ-juiz, dê-se conta, republicanamente, que no Brasil vige o sistema acusatório no processo penal. Não porque o autor do manual, no caso eu, queira assim, e, sim, porque é a Constituição que estabelece isso. Portanto, aplique o artigo 212 do Código de Processo Penal, a menos que você encontre um modo de não aplicá-lo dentro das seis hipóteses em que o juiz pode deixar de aplicar uma lei, conforme estabeleço em Verdade e Consenso. Fora disso, há um dever fundamental de aplicar a legislação produzida democraticamente.
13. Você, sendo juiz ou membro do Ministério Público, tem de saber da existência do princípio da isonomia e da igualdade. Ou seja, nos crimes de furto, ou aplicará o critério da insignificância dos crimes de descaminho também para o furto ou os crimes de contrabando ou descaminho também serão avaliados de acordo com as balizadoras do furto. Na República, você deve saber que a isonomia deve ser para valer. Inclusive na comparação entre a devolução do valor furtado com o pagamento dos tributos nos casos de sonegação. Fairness (equaninimidade), essa deve ser a palavra mais usada. Isonomia. Igualdade. Estes devem ser os critérios norteadores dos tribunais.
14. No plano das relações intrainstitucionais, tenha em mente que o corregedor-geral não deve ser buscado no aeroporto ou na rodoviária, salvo se for alguém do seu contato pessoal anterior e que, ainda, trate-se de uma correição ordinária. Aqui deve ser aplicado o primeiro princípio. Por exemplo, meu “manual” não aconselha que se busque o Corregedor-geral no aeroporto, por uma razão simples. Os primeiros minutos serão “legais”. Tira a mala, leva até o carro. O problema será a conversa até o hotel. Desastre. - Foi boa a viagem? Como está o tempo na capital? E aqueles minutos de silêncio... Horrível. Constrangedor. E você com vontade de se atirar para fora do veículo... Mais: Provavelmente o corregedor está odiando esse papo furado. E quando o “buscador” erra o time de futebol do corregedor? Por isso, não fosse por nada, é melhor deixar o corregedor ir sozinho ao hotel. Ou mandar só o motorista do fórum ir buscá-lo. O motorista está acostumado...
15. Um (N)DCCJ não deve “meio-que-se-michar” para o seu chefe (ou equivalente, dependendo o cargo e a carreira jurídica). Nem deve ficar estudando os hábitos do chefe e tomar cuidado para não interpelar o chefe se este estiver irritado. Meu pequeno manual estabelece que, em primeiro lugar, o (jovem) (N)DCCJ não é um caçador que fica cuidando de sua presa e tampouco um sniper que fica cuidando os hábitos de sua futura vítima. Aqui deve ser útil o segundo princípio acima delineado, combinado com os demais (além dos princípios implícitos). O novel concursado (e não só ele) não deve se preocupar com isso. Reconheço que um agir estratégico (habermasiano) pode ser útil.
16. O (N)DCCJ não deve se isolar ou querer “fazer carreira solo”. Permitindo-me discordar de quem pensa o contrário, não creio que não se deva confiar segredos a ninguém e também não penso que o (N)DCCJ deva estar preocupado se, no futuro, o “confidente” será ou não seu inimigo. Meu “manual” estabelece que, sim, você deve ter amigos e confiar segredos a eles. Quem não tem amigo em quem possa confiar pode se tornar um sujeito perigoso (para si mesmo). Na verdade, permito-me, aqui reforçar o meu manual com uma citação de Aristóteles: uma das características da eudemonia – da vida boa ou da felicidade, conforme se traduza, decorre da amizade. O homem bom tem amigos. Bonito isso, não?
17. Explicando melhor (bônus do meu manual), com um pouco de humor: não vale a pena fazer as coisas se não se puder contar ou não vale a pena ter um segredo e não poder compartilhá-lo. Aquele (jovem) detentor de cargo público que não tiver um amigo desse quilate deve tratar de arrumar amigos. Ou, mais tarde, gastará dinheiro com psiquiatras. Lembram daquela anedota do sujeito que ficou preso com a Sharon Stone em uma ilha deserta? Ele pediu para ela se vestir de homem e fazer a volta na ilha para, ao passar por ele, gritar, já ao longe: “— Alfredo, você não sabe com quem eu transei...?” Viram como é necessário compartilhar segredos? Faz bem à saúde. E pode fazer bem à carreira jurídica. As duas coisas. Inclusive sair com a linda Sharon.
18. Não fica bem para o (N)DCCJ se expor em redes sociais. Diria mesmo que esse negócio de Facebook pode, mesmo, ser perigoso. Cá para nós, que frescura é essa de ficar colocando toda a sua privacidade no Facebook? Um jovem que passou em um cargo de carreira jurídica — e agora é um (N)DCCJ — deve estudar, fazer mestrado, doutorado e parar com essa perda de tempo de ficar se expondo nas redes sociais. O (N)DCCJ deve ler bons livros. Assim, não ficará citando compêndios de baixa categoria nas petições, pareceres e sentenças (e nem tirará modelitos das redes sociais).
19. Na linha da dica anterior: antes de abrir a internet para encomendar o último livro de Direito simplificado, respire fundo dez vezes, pense que você vai ficar mais burro... Faça uma análise de custo e benefício. E não fique escrevendo coisas no Facebook do tipo “hoje fui passear com meu cachorro...” ou “vou ao cinema ver o Adam Sandler na sua última comédia; vamos eu e o(a) novo(a) procurador(a) autárquico(a) que assumiu ontem...” (sem ser politicamente incorreto, mas cuidado com essa exposição de intimidades, em tempos de revelações na novela da Globo). E nem pense em dizer que acabou de sair do jogo de tênis... Fique sabendo de uma coisa (e, por favor, peço que compreendam a brincadeira — não peguem o que estou dizendo ao pé-da-letra): não existe intelectual bronzeado e que saiba jogar tênis. Ou uma coisa ou outra... (sei que existem alguns intelectuais que conseguem compatibilizar essas duas coisas — raros, mas existem). A vida é feita de escolhas.
20. Finalmente, se você subir na vida e chegar a algum ministério, não use avião da FAB. Viaje em avião de carreira, como a patuleia. Faz mal para as costas, mas faz bem ao espírito (público). E também não faça nepotismo. Direto ou indireto. Não use sua influência para beneficiar parentes. Acredite: o ideal de vida boa que a Constituição estabelece tem na meritocracia o seu baluarte.
Uma dica final
Não esqueçamos que a coluna se chama Senso Incomum. E que algumas coisas devem ser ditas, sempre. Mesmo que, por vezes, sejam contra o que digam ou o que façam ministros de Estado e ministros do STF, como é o caso dos que frequentaram os noticiários e as redes sociais no último final de semana, em face da possibilidade de preenchimento de cargos de desembargador estadual e federal pela prole de dois dos ministros da Corte Maior (clique aqui para ler). Fiquei pensando em qual das dicas do meu manual se enquadraria a situação relatada na aludida reportagem da Folha de S.Paulo. Tenho que dizer: se o que consta na matéria é verdade, então a situação se enquadra na dica número 20, acima. De todo modo, tinha que falar sobre tudo isso, mormente quando isso ocorre em tempos de protestos populares contra o modo como se exerce o poder em terrae brasilis. Sempre me lembro da pobre camponesa (da coluna passada) prestes a dar à luz. Isso não me sai da cabeça. Entre sístoles e diástoles, a coluna vai indo. Com os custos normais à espécie. Na forma da lei e da Constituição! Acham os leitores que o “manual” tem futuro? Vende?
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.

Revista Consultor Jurídico, 18 de julho de 2013

A camponesa e o homo empoderadus de terrae brasilis

O Cego de Paris e as movimentações de ruaEmbora as ruas reivindiquem a publicação da segunda parte do Cego de Paris, o povo ainda terá de esperar mais alguns dias para esse evento.Mientras tanto, falo de outra Paris, de outra França. Já contei isso em palestras e em textos. Retomo, pois.
Há um filme sobre uma peça de teatro que pretende contar a Revolução Francesa. Na primeira cena, o rei e a rainha fogem da França e são recapturados na fronteira. Alguém reclama, dizendo que a revolução deve ser contada de outro modo. Na nova cena, aparece uma bacia com água quente, uma camponesa pronta para dar à luz e a parteira. Na sequência, entra um aristocrata, que voltava da caçada. Vendo aquela água límpida, lava suas botas sujas na bacia destinada ao parto. Desdém, deboche e desprezo. “Pronto”, alguém grita da plateia, “é assim que se conta a origem da Revolução. Assim se resgata a capacidade de indignação”.
Com efeito, vendo os movimentos de rua — com todos os problemas da falta de pautas específicas etc. — parece que alguns setores das autoridades brasileiras não entenderam o recado. Que somos pré-modernos, Raimundo Faoro já de há muito comprovara, mostrando como ainda somos governados por estamentos. Weberianamente, ele explicou as raízes do nosso amor ao nepotismo e ao patrimonialismo. Sei que, por outras matrizes teóricas, é possível explicar o estado da arte das atitudes patrimonialistas de outro modo. Penso, entretanto, que Faoro vai no cerne do problema.
Na verdade, somos bons nisso. De há muito perseguimos com êxito ladrões de galinha e de sabonetes, mas não somos tão bons para “pegar” sonegadores e lavadores de dinheiro. Por todos, lembremos do “grande filósofo contemporâneo” Marcos Valério, que, faz uns dois ou três anos, mesmo já condenado à prisão, pagou o valor sonegado e teve extinta sua punibilidade (a seu favor, as bondosas Leis 10.684/2003 e 11.941/2009, e uma generosa interpretação dada ao artigo 9º da primeira e ao 68 da segunda — quem quiser, vá ao site do STF e veja). Se não fosse trágico, seria engraçado, porque, ao mesmo tempo, milhares de ladrões (sic) continuam encarcerados (lembremos que temos mais de 300 mil presos no Brasil por crimes contra o patrimônio individual e pouquíssimos por crimes de sonegação ou evasão de divisas). Bom, disso falei na coluna passada. Os números estão lá.
Agora, no entremeio das reivindicações, o establishment quer transformar a corrupção, historicamente equiparada ao furto qualificado, em crime hediondo. Vou repetir: até o surgimento desse projeto, a dogmática jurídico-penal nunca se insurgiu contra essa descomunal incongruência da e na teoria do bem jurídico. Tanto é que a corrupção era “(des)valorada”, desde os anos 40 do século passado, do mesmíssimo modo que o furto por escalada. Não é de rolar de rir? E quem vocês acham que fizeram essas “valorações”? Os estamentos são velhos... antigos...
Mas o que quero dizer nesta curta coluna desta semana é que as viagens dos presidentes das duas casas do Congresso representam, simbolicamente, aquilo que o filme sobre a peça que conta a revolução francesa quer mostrar: uma certa aristocracia (estamento brasileiro) que usa a água limpa do parto para lavar as botas.
Vejam a simbologia do filme: a mulher grávida e o parto prestes a ser feito. A indiferença do aristocrata... Vejam os movimentos de rua — a gravidez de parcela do povo, reclamando doestablishment. E vejam as viagens em aviões para ver futebol e casamento. Nascimentos e mortes... Prato cheio para uma boa anamnese social.
Estamentalismo escondidinhoAo lado das atitudes estamentais ao estilo do aristocrata que lavou suas botas na água limpa do parto, terrae brasilis está impregnada de uma espécie de estamentalismo subreptício, algo como um prato de escondidinho. Não se vê o que está por baixo. Acho que o povo que foi às passeatas nem se dá conta de que ele mesmo está fazendo protestos inconscientes ou “protestos escondidinhos”. Se se der conta, sai debaixo... Por exemplo, a população se dá conta das coisas que poluem o imaginário social, como uma página inteira da Folha de S.Paulo falando da nova namorada de Aécio Neves (PSDB-MG)? (vejam: a questão não é o senador, mas o que isso tudo representa simbolicamente) Ali consta uma espécie de “biografia da noite” do senador mineiro-carioca. E fala dos révellions passados na casa de ARs (artistas ricos). A namorada dele tem 34 anos e tem as iniciais dele atrás da orelha ou algo assim. Uau. Isso é que é informação. Como foi possível que vivêssemos sem saber disso até hoje? Ela frequenta casas noturnas cujas contas às vezes chegam ou passam de R$ 80 mil. É bom saber. O jornalista Roberto Dávila às vezes janta com o casal. Hum. Também é bom saber. Luciano Huck e Angélica os recebem em Angra. E o casal Neves é amigo dos empresários Garnero e Calainho... Informações sem as quais a República sucumbe. Minha frase: “E eu com isso, cara pálida!”. Sugestão: vamos instituir subsídios para as colunas sociais da Folha de S.Paulo e para a Revista Caras. Incentivos fiscais para que a patuleia possa se deliciar com a vida do “andar de cima”. A rubrica nos impostos pode ser “estroinando com a malta”!
Pois é. Esse Luciano Huck é o cara mesmo. Em seu camarote, o presidente do Supremo Tribunal Federal assistiu ao jogo do Brasil dia desses. O que esse cara tem, além do camarote e da grande casa de praia em Angra, construída em área, segundo consta, de proteção ambiental, alvo de multas ambientais (clique aqui e aqui para ler), de Ação Civil Pública e que, segundo o jornal Estado de S. Paulo (clique aqui para ler), por coincidência, foi uma das contempladas por um decreto do governador do Rio que legalizou as construções na referida área? As coincidências não param por aí. A esposa do referido governador é sua advogada. Que prestígio o do Huck, não? Assim é a República dos Estamentos. Já não se trata de classes sociais, como dizia Faoro. Os laços são outros, esses que ligam os estamentos. Isso para dizer pouco. Há muitas coisas escondidinhas nesta sereníssima república (para lembrar do famoso conto de Machado de Assis).
A ministra aposentada do STF Ellen Gracie era, até poucos dias, do conselho de administração do grupo de Eike Batista. Ainda bem que saiu. Nada pessoal e, é claro, sem discutir os aspectos meritórios da ministra aposentada. Apenas quero referir que, no Brasil, altas autoridades sempre acabam em grandes cargos. Ex-presidentes de Banco Central são logo cooptados por grandes bancos. Isso é tão forte em terrae brasilis que foi instituída a quarentena para os detentores de cargos de relevância.
Aliás, esse Eike Batista... É o cara, também. Recebeu do BNDES R$ 10 bilhões. Era o menino dos olhos da República (de esquerda?). Basta ver as suas relações na República. Os elogios que as altas autoridades lhe davam. Vendeu ficções para o Brasil e o mundo. É o que se diz por aí. Quero ver como os empoderados vão lidar com o que disso resta(rá).
A cidadania “mais cidadã”: mais um produto Brasilis Estamentalis!No meu Hermenêutica Jurídica E(m) Crise, falo do binômio estamento-patrimonialismo, que pode ser detectado facilmente nos processos de privatização no Brasil. A partir deles, pode-se ver o modo como a res publica é vista pelos governantes e pelas elites. Em detalhado estudo feito por Sérgio Lazzarini é mostrado que entre 1996 e 2009 a rede do Estado e dos burocratas de caixas de pensão (Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Federal etc.) expandiu-se. Em 1996, num universo de 516 grandes empresas, o BNDES e os fundos Previ (Banco do Brasil), Petros (Petrobrás) e Funcef (Caixa Federal) participaram de 72 sociedades. Em 2003, numa amostra de 494 companhias, o Estado estava em 95. Em 2009, num universo de 624, o Estado tinha um pé em 199 empresas. O livro de Lazzarini leva o sugestivo nome de Capitalismo de Laços, mostrando a herança patrimonialista presente nas diversas camadas do establishment. Na obra, entre outras coisas, Lazzarini fala da investida do governo no fundo de pensão Previ e do empresário Eike Batista sobre os administradores da Vale do Rio Doce, empresa privatizada no governo Fernando Henrique Cardoso por um valor simbólico. Em tese, a Vale é uma empresa privada. Na prática, pelo “capitalismo de laços”, o governo é seu maior acionista e, na ocasião, Eike Batista era o melhor amigo.[1] Bom, sabemos bem o grande leque de amizades de Batista, pois não?
Sigo. Falando do óbvio. Mas o óbvio está no anonimato. Deve ser desvelado. O grande Darcy Ribeiro dizia que “Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recôndidas e sofisticadas, que ainda precisamos dessa classe de gente — os cientistas — para desvelar as obviedades do óbvio”. É o que busco fazer. E para dizer que a cidadania no Brasil é relacional. Tudo funciona por “laços”. Brasília é o lugar do “empoderamento”. Até o porteiro “se acha”. Lá, todos falam baixinho. Têm medo de grampeamento. Olham de soslaio. E tudo lá é caro. Custa uma fortuna. Sempre tem um fulano que conhece o outro fulano, amigo de beltrano... que tem “chegada” na autoridade. Há uma cadeia de “empoderamento”. Sinceramente, penso que a Corte do Rio de Janeiro era menos promíscua (no sentido das relações de poder). Saudades de Machado de Assis contando as coisas da Corte. Saudades de Esaú e Jacó, magnífico livro de Machado que fala da virada da Monarquia para a República...
Quando converso com o homo brasiliensis, mormente no que tange à área jurídica, fico pensando o que sobra para os pobres advogados, com seus pequenos escritórios pelo interior do Brasil, disputando causas quando do outro lado estão ABSs (advogados bem sucedidos)? Hein? E, vejam: quando falo do homo brasiliensis, estou fazendo uma metáfora. Ele não é stricto sensu o habitante de Brasília, é claro (até porque não teria sentido falar mal da gente stricto sensu que mora naquela bela terra). Falo de uma metáfora do homo empoderadus de terrae brasilis.
Quando vou a um restaurante em Brasília, fico em um constrangimento bárbaro. Como podem cobrar aqueles preços? Quem paga por tudo isso? Uma pessoa qualquer da patuleia não pode nem passar perto. Ela não imagina o que é isso.
Ou seja, quero dizer que eu também estou de saco cheio com essa estamentalização. Por que a patuleia tem de pagar o táxi utilizado pela secretária-assessora do senador Aécio, que na média dá R$ 1 mil por mês? Por que a choldra tem de pagar os alimentos dietéticos de outro senador, aliás, um dos mais ricos do país? Por que a rafanalha tem de pagar os shows e as peças de teatro dos grandes artistas e atores de teatro, beneficiados pela Lei Rouanet, nos quais ela não tem acesso porque não pode pagar? Depois vão todos para o programa do grande filósofo pós-contemporâneo Pedro Bial, chamado... Na Moral. Padrão Fifa. Pautas morais, éticas... O inferno sempre são os outros, é claro. Tudo vai mal por causa... dos outros, dos políticos etc. No privado, só “vício bom”. Os “vícios ruins” são todos da esfera pública. Ah, bom. Se isso é assim, por que, então, não querem, de um modo ou de outro, abrir mão de uma boa mamada nas tetas da gordatcha da Viúva?
Por falar em tetas... O que dizer do pessoal que vive nas tetas do BNDES? A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotres (Anfavea) nos “entope” de carros e não está nem aí para ajudar a achar soluções para o caos que ajudou a criar. E cada vez quer mais subsídios. Tirar dinheiro da Viúva. Qualquer montadora do mundo que não consegue vender carros em seu país ou em outros, vem para a terra de Vera e Santa Cruz, pois o lucro chega a ser o triplo do resto do mundo (cliqueaqui para ler). Somos o único país em que há uma espécie de Lei Rouanet para as montadoras. Enfim, o Brasil se transformou no estacionamento do mundo. E os artistas, além de receberem o benefício da Lei Rouanet, ainda ganham pesadas granas para nos vender nas propagandas os automóveis fabricados com subsídios e vendidos com juros subsidiados.
Mas o que me intriga e me torra é essa fusão de interesses estamentais. Fico pensando: e ainda queremos aprovar um Código Penal que inverta o paradigma liberal-individualista do século passado? Circule um dia em Brasília — porque é lá que as coisas acontecem — e constará o que digo. Sempre haverá alguém empoderado que, conhecendo fulano-que-conhece-beltrano-que-conhece-cicrano que, finalmente, mexerá os pauzinhos. E a malta saberá com quantos pauzinhos se faz uma canoa. E alguém acha que aprovaremos um Código de Processo que dê condições para o advogado lá do interior advogar? Quero rir, farfalhando. Só os grandes sobrevivem, meu caro. É darwiniano. Você, que está estudando Direito, se não conseguir se proteger na aba da Viúva (em uma de suas três versões, município, estado ou União), estará fadado a ser estagiário-tardio ou reles empregado. Não, não conseguirá abrir seu pequeno escritório. Inclusive, meu caro, seus clientes serão cooptados por instituições pagas pela Viúva, que agora fornece, ao invés de políticas públicas, substituição processual para todos. Registro importante: no site do Ministério da Saúde, tem um roteiro ensinando como entrar em juízo para conseguir remédios. Ou seja, a própria Viúva ensina e incentiva a judicialização. Bueno. E vamos lá construir mais TRFs. Pronto. Somos o único país em que, em vez de buscarmos eficiência na administração, construímos tribunais para “corrigir” aquilo que não foi bem feito lá no início da coisa. É preciso dizer mais? E a camponesa ali está... E já as botas do aristocrata estarão limpinhas... E o rebento já nasce lascado.

[1] Ver LAZZARINI, Sérgio Giovanetti. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de Janeiro: Elsevier,2011. Também GASPARI, Elio. O “Capitalismo de Laços” da privataria. In: Folha de S.Paulo, A-18, 28/11/2010.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.

Revista Consultor Jurídico, 11 de julho de 2013

Crimes hediondos: enquanto enforcavam, tungavam

Quando bater carteira dava pena de morte
Conta-se que o dia em que enforcaram os primeiros condenados à morte pelo crime de “bateção” de carteira em um país da Europa foi também o dia em que mais carteiras se furtou. Os curiosos foram à praça ver os enforcamentos e, bingo! A malta — lixando-se para a hediondez do crime (a metáfora é minha) — aproveitou para tungar mais ainda.

Veja-se: não estou dizendo que a pena não resolve. Tenho minhas diferenças com setores do Direito Penal brasileiro, principalmente com os iluministas tardios ou os libertaristas, que (quase) acham que é proibido proibir.[1] Menos. Um garantista da cepa como Ferrajoli não pensa assim, embora alguns leitores do mestre acreditem que ele seja um abolicionista.
De minha parte, acredito que a pena é necessária. A pena é castigo. É retribuição. E deve servir para prevenção geral. Mas só ela — a pena — não resolve. E, quanto maior e inexequível, mais caráter simbólico assume. E pode ser um tiro no pé. Já escrevi na coluna passada lembrando da transformação da falsificação de medicamentos em crime hediondo. Alguém recorda de alguma condenação? Fazendo uma alegoria em relação à lenda dos enforcamentos e da tunga das carteiras, no dia em que sancionaram a hediondez dos medicamentos foi o dia em que mais se falsificou uma ideia: a de crime hediondo como panaceia, como remédio (sem trocadilho) para todos os males.
A velha mania de legislar no calor da novidade 
Pois bem. Estamos diante de uma nova inclusão de crimes do rol dos hediondos. Desta vez são os crimes de corrupção e peculato. Isso, à evidência, merece uma discussão mais aprofundada. É o pano de fundo necessário para revolver o chão linguístico em que está assentada a tradição acerca do que seja bem jurídico e o poder-dever de punição em terrae brasilis.

Quem tem acompanhado as sucessivas manifestações e seus mais recentes desdobramentos pode observar que os poderes da República refizeram sua agenda de modo a dialogar com as tantas vozes que vêm das ruas clamando por mudanças. Claro, refiro-me aqui a quem o faz com olhos críticos. A massa recém desperta (?) ainda se alterna entre o deslumbramento e ação irrefletida.
Contudo, o momento é realmente muito bom para que pensemos sobre as questões estruturais dos problemas evidenciados nas manifestações, afinal, só assim se poderá reconhecer e refutar factoides, paliativos e demagogias, tanto os exigidos quanto os oferecidos e recebidos muitas vezes como soluções. Por isso, irei analisar a elevação do crime de corrupção (e outros) ao status de hediondo, cartaz levantado por inúmeros manifestantes, compromisso da presidente da República e projeto aprovado no Senado.
O Direito Penal e o dinheiro da viúva
Sinto-me a cavaleiro para falar sobre e do assunto. Afinal, fui citado na exposição de motivos do projeto da nova lei (ainda falta aprovar na Câmara). Antes de tudo, devo louvar o interesse e a dedicação do senador Pedro Taques (PDT-MT). Se o seu mandato encerrasse hoje, seu nome já estaria gravado no Senado como um dos mais combatentes parlamentares contra a impunidade. Veja-se a sua luta para a aprovação do novo Código Penal e suas discussões — fortes — com setores refratários a uma exasperação das penas dos crimes de cariz metaindividual. Taques tem muito claro que no Estado Democrático de Direito, o Direito Penal deve voltar as suas baterias em direção aos crimes que colocam em xeque os objetivos da República. Ou seja, penas menores para os crimes de cariz individual e penas mais duras para os crimes cometidos pelo andar de cima, em que se enquadra, sim, a corrupção, bem como a sonegação de tributos (o “sonegômetro” aponta para o valor de R$ 415,1 bilhões/ano — clique aqui para ler). Já, aqui, vai um pequeno registro: parcela considerável do Direito Penal de terrae brasilis não quer discutir essa questão da criminalização mais dura da sonegação de tributos... Por que será?

Sigo. A demanda por reprimenda efetiva para as condutas que lesam o patrimônio público (obviamente) não é nova. Não que seja levada em conta quando elegemos nossos representantes. A Ficha Limpa é um belo exemplo disso: uma lei que impede que elejamos novamente pessoas que macularam seu histórico — sozinhos não somos capazes de deixar de votar nessa gente, mas é uma bandeira balançada por setores da direita e da esquerda de forma indistinta. Ou seja: somos “tão bons”, saímos para protestar, mas precisamos de uma lei para “nos proteger” (de nós mesmos) para que não elejamos “fichas sujas”.
A corrupção e a hediondez
Como referido, o Senado aprovou no dia 26 de junho o PLS 204/11 que inclui no rol dos crimes hediondos os tipos penais descritos nos artigos 316, 317 e 333 do CP.[2] Elevou ainda as penas mínimas de todos para quatro anos. Tal fato se deu no dia imediatamente posterior à presidente se dirigir à nação e afirmar ser prioridade a elevação do crime de “corrupção dolosa” (sic).

Pois bem. Foi feito. E agora? “corruptos” passarão a ser vistos frequentando o sistema carcerário? Não é bem assim...
Já denuncio de há muito (e nessa esteira uma série de orientandos meus) que o Direito Penal emterrae brasilis não passou por uma filtragem constitucional em 1988 e segue sendo remendado sem a observância dos requisitos impostos pela nova ordem paradigmática e consoante com o avanço da teoria do delito. Aproveito para refutar aqui a tola (e tão comum no imaginário jurídico) ilusão de que se pode separar teoria e prática, como se por trás desta última não houvesse qualquer fundamento teórico, de modo a realizar-se por si mesma.
Há quase 20 anos, venho denunciando a seletividade penal e a consequente disparidade de tratamento dado às penas previstas para os delitos individuais, em especial nos crimes contra o patrimônio cometidos sem violência à pessoa, e os metaindividuais cometidos por agentes econômica ou politicamente poderosos, como nos casos da sonegação fiscal, da apropriação indébita previdenciária e dos crimes contra o sistema financeiro em geral. E tenho sido criticado duramente por isso.
Denuncio, com veemência, que o Código Penal de 1940 foi escrito sob a lógica liberal individualista, o que fez com que a propriedade privada tenha ocupado o centro das atenções e recebido uma tutela amplamente superior se comparada à dos bens jurídicos coletivos. Por justiça, diga-se: é um código de seu tempo.
E a velha concussão “ficou” hedionda
O problema é que esse velho código — de perfil liberal-individualista — atravessou o século XX e ingressou no século XXI. Nele está o crime de concussão (artigo 316 — Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida), que — pasmem — possui pena idêntica ao do furto qualificado pelo rompimento de obstáculo (artigo 155, parágrafo 4º), qual seja a de dois a oito anos de reclusão. Quais são os livros de Direito Penal que denunciaram isso (no devido tempo) no plano daquilo que denomino de “paradigmas do direito”? Cartas para a coluna.

Esse mesmo código foi (mal) “recepcionado” pela Constituição de 1988. As distorções contidas no código ancião podem ser constatadas em toda a legislação penal, v.g., os que tratam do meio ambiente, do consumidor, da infância, dos idosos... e também das finanças publicas, cuja tutela se dá por uma série de tipos penais, não somente por aqueles eleitos para reforma. Que dizer, então, da comparação com o crime de tortura (Lei 9.455/97), equiparado a hediondo, cuja pena é a mesma do furto qualificado (e sem multa!)? Aliás, como é que em crimes contra o patrimônio, cujo autor é, em 99% é pobre, aplicam-se multas? Pergunte a qualquer juiz quantos condenados por crimes contra o patrimônio ele já viu algum pagando a multa. Isso é a demonstração de que nosso Código Penal se descolou da realidade. No jargão psicanalítico isso se chama esquizofrenia.
Os leitores se deram conta de que, no entremeio disso tudo, nada se falou da praga contemporânea chamada fraude a licitações, ainda tida como “crime de menor potencial ofensivo”? Querem que repita?
Ou a maioria dos crimes de responsabilidade de prefeitos, cuja pena mínima é de três meses? Esta funda-se em uma inadequada e, indubitavelmente ultrapassada, teoria da discricionariedade administrativa (importada de forma completamente indiscriminada e extremamente conveniente para as elites de terrae brasilis), que permite ao administrador “de plantão” impor sua vontade com a capa de sentido da legitimidade teórica que esta “janela” (aquela enraizada no capítulo oitavo da TPD de Kelsen) de liberdade lhe oferece. Configura-se uma verdadeira erosão de legalidade e traição do Estado Democrático de Direito, promovendo uma retroalimentação da desigualdade, que passa a ser cada vez mais patrocinada pelo próprio Estado!
E por que não se falou sobre a forma como se tratam as sonegações tributárias, especialmente no tocante à famosa Portaria 75/2012 do Ministério da Fazenda que diz que a União só deve perseguir créditos tributários superiores a R$ 20 mil e cuja consequência é a extinção da punibilidade dos crimes de sonegação, descaminho etc. nos casos em que o valor seja menor do que esses R$ 20 mil? Hein? Alô, Senado da República! Alô, meu amigo Pedro Taques! Alô, presidente da República! Essa portaria serve para tungar os cofres públicos!
163 ações penais, um mandado de prisão
Já no ano de 1988 escrevia sobre as distorções do Direito Penal brasileiro. De lá para cá a coisa só piorou. Alias, um breve passar d’olhos sobre a lei penal brasileira é suficiente para revelar a escancarada a preferência do legislador quanto ao bem jurídico a ser protegido com maior esmero, (eis que a pena deve guardar congruência com a necessidade de tutela) quando se tem como parâmetro de comparação as sanções cominadas aos crimes de redução a condição análoga à de escravo (pena de dois a oito anos de reclusão) e o crime de extorsão mediante sequestro com duração de mais de 24 horas (pena de 12 a 20 anos de reclusão).

Repita-se que o crime de supressão ou alteração de marcas de animais (artigo 162) é apenado com seis meses a três anos de detenção e multa, pena máxima superior à cominada aos crimes de subtração de incapazes (artigo 249 ), violência doméstica nas hipóteses do parágrafo 10° (artigo 129), maus-tratos (artigo 136), violação de domicílio — quando praticada durante a noite ou em lugar ermo, ou com emprego de violência ou de arma, ou, ainda, por duas ou mais pessoas (artigo 150, parágrafo 1°) e assédio sexual (artigo 216-A, pena máxima de dois anos). O apenamento máximo excede, ainda, as penas originalmente previstas a crimes contra a ordem tributária (destaque para o artigo 2° da Lei 8.137/1990), alguns crimes ambientais (artsigos 32; 45; 50 da Lei 9.605/1998), a sérios crimes cometidos contra criança e adolescente (artigos 228; 229; 230; 231; 232; 234; 235; 236; 244 da Lei 8.069/1990) e a crimes ocorridos em licitações (arts. 93; 97; 98 da Lei 9.666/1993).
Não causa surpresa que dados extraídos do Infopen[3] revelem de forma cristalina a manutenção da clientela “hospedada” nas penitenciárias, cadeias públicas e demais estabelecimentos prisionais brasileiros. Num universo de 471.254 internos, 216.870 não completaram o ensino fundamental, 52.970 não concluíram o ensino médio e 26.343 sequer foram alfabetizados.
Tampouco surpreende a constatação de que 240.642 cumprem pena por crimes contra a propriedade e somente 1.144 por crimes contra a administração pública (peculato, concussão e excesso de exação e corrupção passiva). 125.744 cumprem pena por tráfico de entorpecentes, ao passo que 156 o fazem por crimes ambientais. Por tudo isso, não é sem motivo que não constam registros de internos condenados por fraude à licitação, gestão fraudulenta (ou qualquer outro crime contra o sistema financeiro).
O legislador tem liberdade de conformação?
Aliás, seria o legislador “livre” para fazer essas opções, escolhendo como apenar ou como escusar de sanção a ofensa a bens jurídicos? Num Estado Democrático de Direito essa resposta só pode ser um sonoro não.

Num Estado Democrático de Direito não há (mais) oposição entre Estado e sociedade. A defesa do Estado (isto é, de um Estado que passa da condição de “inimigo” para a de “amigo dos direitos fundamentais”, bem entendido) é a defesa da cidadania. E, no interior dessa “reviravolta”, é evidente que as baterias do Direito Penal deve(ria)m ser voltadas para aquelas condutas que se coloquem como entrave à concretização do projeto constitucional, aquele traduzido em linhas gerais no artigo 3º da Constituição.
Nesse contexto, surge (desvela-se, em sentido hermenêutico) uma nova criminalidade a ser combatida, aquela que atinge bens jurídicos supra ou metaindividuais, que afetam toda a coletividade. Fala-se no enfrentamento de crimes como a sonegação de tributos e a lavagem de dinheiro (todos esses com lesividade metaindividual). Atenção, Senadores e Deputados: quem sabe os senhores revogam os dispositivos da Lei 10.684/2003 (artigo 9º.) e da Lei 11.941/2009 (artigo 69) que dizem que o pagamento do tributo extingue a punibilidade. Ou, então, apliquemos a isonomia: permitamos também que nos crimes cometidos pela patuleia (furtos, estelionatos) a ausência de prejuízo e ou a devolução do valor obtenha também esse favor legis. Afinal, a República é só para os maganos do andar de cima?
Nesse sentido, vale lembrar que Constituição (que não é uma mera “carta de intenções”) efetivamente determina ao Legislativo e ao Judiciário que orientem o seu agir para esta direção, dando proteção suficiente aos bens jurídicos que foram catalogados em destaque (não só a ordem econômico-financeira, mas também o meio também o meio ambiente e a infância e juventude, por exemplo). E, afinal, se o Direito Penal é a ultima ratio, a mais grave das redes sancionatórias do aparato estatal, o mínimo que se espera (e aí Dworkin tem razão, quando cobra coerência e integridade do Direito) é que trate desigualmente os crimes desiguais. Exemplificando para ficar mais claro: se o patrimônio individual é algo a ser protegido (e segue sendo a propriedade um direito fundamental, algo que se lembra para evitar mal-entendidos – artigo 5º, inciso XXII da Constituição), inclusive via Direito Penal, então não pode haver dúvida de que o tratamento deve ser ainda mais rigoroso quando a lesividade atinge o patrimônio da coletividade.
O que não implica, como se viu, em acreditar que a majoração do apenamento operará uma espécie de “mágica moralizadora” na sociedade brasileira. Ela tem um papel a cumprir, mas o combate à rapinagem institucional não se dá somente pela falta de instrumentos. Manca, também, vontade política e compromisso republicano. Todo parlamentar apresenta a declaração de bens ao TRE/TSE. As evoluções patrimoniais ao longo dos mandatos chegam a ser absurdas em alguns casos (e por tantas vezes são desconsideradas). O Ministério Público e os Tribunais de Contas têm acesso aos procedimentos licitatórios (são públicos). A Lei da Transparência abriu os gastos públicos para o controle social... Nunca foi tão fácil detectar e comprovar improbidades e mau uso do dinheiro da viúva. O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) atua bem e em compasso com grupos da Polícia e do Ministério Público. Falta trabalhar! Bingo!
Outra medida efetiva seria por fim ao foro por prerrogativa de função, vergonhosamente conhecido como foro privilegiado. E os números apontam para a veracidade do apelido. Há, hoje, somente no Supremo Tribunal Federal, 163 ações penais originárias, sem falar nos 483 inquéritos.[4] Tendo em vista isso e o histórico de apenas um mandado de prisão desde 1988 (25 anos!), expedido, por sinal, semana passada, dá-se pra entender que a prática tem sido de impunidade. E só recentemente houve a primeira condenação e aplicação de pena.
Portanto, o problema não está em se converter em hediondo — se isso não passar de apenas discurso. Um mandado de prisão em 25 anos é muito pouco para um tribunal que julga questões tão graves do andar de cima. O mero incremento das penas sem a persecução penal efetiva é um engodo.
Tudo isso sem contar que o discurso da hediondez desvia o foco, é o bode expiatório para que as massas possam dormir à noite e sonharem com a diminuição da impunidade e com a falácia da isonomia. Enquanto isso, meio milhão de desdentados superlotam celas infectas e a centenária impunidade do andar de cima será, por um tempo, esquecida. Veja-se: não se trata de uma frase de efeito: o número está correto e eles, na sua imensa maioria, são destituídos de uma adequada dentição.
Muito mais efetivo, portanto, é o fim do foro privilegiado. Mas a isonomia, aqui, não é um princípio que pega bem. Sempre há pessoas “mais iguais” que outras, principalmente quando legislam em causa própria... ou quando desviam o foco por meio de um discurso demagógico e embromador.
Por que quatro anos?
De se notar que o que se aumentou nos tipos penais analisados foi a pena mínima (de dois anos para o dobro). Mas esse número não foi produto de cabalas ou eleito ao acaso. Lembremos que pela nossa legislação atual, quando a pena aplicada não for superior a quatro anos (eis o número não cabalístico), permite-se a substituição da privativa de liberdade (cadeia) por uma pena restritiva de direito (as populares “penas alternativas”).  Taí o busílis. Logo, o que dá com uma mão, tira-se com a outra.

Já um crime como roubo em concurso de pessoas não permite essa substituição. Mas tráfico de entorpecentes, sim.  Assim, resta paradoxal e incoerente taxar de “hediondo” um certo crime e, ao mesmo tempo, possibilitar a aplicação de penas restritivas de direitos em seu tipo básico. A hediondez deveria ser reservada para um tipo de criminalidade, desculpem-se a obviedade, “hedionda”, como o estupro, o latrocínio, genocídio... Não deveríamos banalizar esse epíteto. Se tudo é, nada é. Se consideramos correta a inclusão da corrupção e do peculato no rol dos hediondos, o que justifica a exclusão do crime de lavagem de dinheiro e sonegação de tributos? Atenção: não estou nem de longe propondo isso. Quero apenas fazer uma caricatura, para denunciar a falta de isonomia, coerência e integridade da legislação e do próprio Poder Judiciário, que não aplica a isonomia.
A aplicação da Übermassverbot (proibição de excesso)
Resultado: a pretexto de punição, corre-se sério risco de favorecer a impunidade. Não é assim que se faz. Todos sabem da minha predileção pelo legislador. Pela defesa que dele faço. E todos sabem da defesa que faço da necessidade de o Estado combater com vigor os delitos que colocam em xeque os objetivos da República previstos na Constituição. Mas, há limites. E estes são os limites constitucionais. A teoria do bem jurídico não pode ser banalizada a este ponto. Assim como, por exemplo, o legislador não poderia descriminalizar o estupro ou o homicídio (para dizer o mais), também não pode punir sem qualquer critério que respeite alguns elementos cunhados pela tradição do Direito Penal do Estado Democrático de Direito. No primeiro caso, seria possível trabalhar a hipótese de aplicar a cláusula (ou princípio) da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot), porque patente, em tais hipóteses, a proteção insuficiente ou deficiente dos bens jurídicos em tela. No segundo caso — e aqui se aplica a “hediondez” da corrupção e do peculato — parece visível o excesso de punição, podendo-se dizer que o legislador violou a cláusula da proibição de excesso (Übermassverbot).

Claro que tais princípios não são fáceis de explicar e/ou aplicar. Nesse sentido entra a importância da doutrina, que deve traçar esses limites, até para evitar que o judiciário decida de forma voluntarista (para “cima” ou para “baixo”). Além disso, dever-se-ia exigir do legislador a necessária prognose. Afinal, quais os elementos objetivos que apontam para o fato de que, transformando a corrupção em crime hediondo, haverá um arrefecimento nos atos de proxenetismo do dinheiro das Viúvas (municipal, estadual e federal)? Banalizar é sempre ruim. Banalizar o bem, banalizar o mal, banalizar a punição ou o desejo de punição... Tudo pode acabar em frustração.
Numa palavra
Como se pode ver, toda essa discussão de aumento de penas em tais tipos é inócua se os Órgãos encarregados da investigação continuam sem a infraestrutura necessária para o enfretamento da questão. Polícia aqui não foi feita para o andar de cima. Que dizer do resto? Estado de Direito para o andar de cima e Estado Polícia para o debaixo.

É claro que esse roteiro passa sempre pela impunidade. Até parece que esse filme é uma comédia. Mas não. Em um Estado com tanta malversação dos recursos públicos e com um estamento que trata a coisa pública como própria, desconhece (ou deliberadamente desrespeita) a moralidade e desvia o que deveria ir para os mais carentes, que mata e oprime por meio de uma violência simbólica colossal em sua dimensão e pelo tempo que perdura, só podemos concluir que estamos assistindo, na verdade, a uma tragédia. Por isso, os projetos salvacionistas como a hediondez da corrupção. É mais ou menos como transformar, no século XVIII, o crime de furto em enforcamento.
Vem de novo a questão do papel da doutrina. Devemos construir uma tradição acerca do que é e pode ser hediondo. E devemos construir uma teoria do bem jurídico-constitucional. Ninguém mais acredita na consciência profana do injusto ou na ontologia do bem jurídico (bem ao gosto do finalismo). Os tempos são outros. Vamos arregaçar as mangas. Vamos “constranger epistemologicamente” os legisladores (assim como devemos constranger epistemologicamente os julgadores – e não o fazemos). Ou seja, a doutrina deve se dar o respeito. Deve parar de lamber os sapatos dos outros (me entendam no que quero dizer...). Já estou até vendo os futuros lançamentos de compêndios e manuais: “como se interpreta a nova lei da corrupção” ou algo similar. E começará tudo de novo. E eu, provavelmente, procurarei sobreviver com a comida que estou estocando. Ah, e não esqueçamos de Thomas More (1478-1535), que escreve na Utopia (1516): “Você primeiro faz os ladrões, depois os castiga.”

[1] Refiro-me, nesse sentido, a algumas decisões que se enquadram nessa linha do exagero da falta de limites semânticos e de um libertarismo fora do tempo. Por exemplo, a decisão da 5ª Câmara Criminal do RS (ler aqui), que considera crime impossível a tentativa de uma mulher levar drogas, introduzidas na vagina, para o interior do presídio. Trata-se de uma espécie de hermenêutica de exceção, com a suspensão da legislação por argumentos de política e não de princípio.
[2] Durante os debates, foram incluídos, no Projeto original, também como hediondos os crimes de homicídio simples, excesso de exação e peculato (estes últimos com pena mínima aumentada para 4 anos).
[3] Dados extraídos do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – Infopen. Disponível nestelink. Acesso em 25 de maio de  2012.
[4] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Acervo processual. Disponível neste link. Acesso em 28 de junho de 2013.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.

Revista Consultor Jurídico, 4 de julho de 2013

sábado, 20 de julho de 2013

Trote da UFMG: crônica da impunidade anunciada

Neste Diário de Classe, no início do ano letivo, escrevi sobre o trote racista praticado pelos estudantes da Faculdade de Direito da UFMG e a banalidade do mal (clique aqui para ler). Ao final da coluna, provoquei a seguinte reflexão:

Muitos têm se questionado a partir do polêmico trote: estes serão os juristas de amanhã? Estes serão os juízes, promotores, advogados do futuro? Isto depende, inevitavelmente, de quem são os juristas de hoje e, sobretudo, de qual resposta seremos capazes de dar para este problema ou, se preferirem, para esta “brincadeirinha”.
Pois, bem. O que ocorreu desde então? Quais as providências tomadas pelos órgãos competentes para apurar eventuais abusos e ilegalidades? Quais medidas foram adotadas pela universidade a fim de evitar que incidentes deste naipe voltem a ocorrer nos próximos anos? Enfim, passados quatro meses, resta saber quais foram os desdobramentos administrativos e judiciais do polêmico trote que ocupou os principais noticiários do país?
Ab initio, diante das cobranças públicas por uma resposta institucional, a Direção da Faculdade designou uma comissão de sindicância para apurar as inúmeras denúncias de racismo, sexismo e violação aos direitos humanos, a fim de responsabilizar os alunos que, porventura, praticaram atos atentatórios à dignidade universitária.
Após dois meses, a comissão de sindicância concluiu que “não foi constatada [...] a prática e nem a intenção de cometer atitudes racistas, sexistas, nazistas, ou de qualquer outro modo discriminatórias durante o trote, que poderiam ser condutas incompatíveis com a dignidade universitária”.
Tal conclusão decorreu, por um lado, das versões apresentadas pelos investigados, que negaram qualquer intuito discriminatório nas “brincadeiras”, e dos depoimentos prestados por testemunhas que “abonaram” suas condutas, afirmando serem “pessoas de boa índole, religiosas e sem histórico de agressões”; por outro, do teor das declarações dos calouros, que informaram não ter se sentido constrangidos ou humilhados, além de não considerarem qualquer conotação racista e sexista no trote.
Com base no relatório da sindicância, a diretora da Faculdade de Direito, professora Amanda Flávio de Oliveira, editou a Portaria 59, instaurando processo administrativo disciplinar contra 198 alunos (clique aqui para ler).
Segundo a Portaria, 99 alunos do primeiro semestre responderão ao processo simplesmente porque teriam aderido ao trote que sofreram. Todos foram enquadrados, de maneira indistinta, no mesmo dispositivo — sob o argumento de que não é possível individualizar as condutas imputadas — e podem ser punidos com advertência.
Outros 67 alunos, estes do segundo semestre, responderão porque assumiram que teriam participado do trote aplicado aos calouros, sendo puníveis com a pena de suspensão por oito dias. Da mesma forma, as condutas foram imputadas sem que tenham sido individualizadas.
Por fim, a portaria também prevê o processamento de outros 32 alunos, todos membros da diretoria do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), passíveis de suspensão por oito dias, porque, na ocasião do trote, teriam distribuído gratuitamente e comercializado bebidas alcoólicas em descumprimento às normas e à autorização concedida pela direção da unidade para a “recepção dos calouros”.
Deixa eu ver se entendi bem:
1. os alunos que sofreram o trote poderão ser punidos com advertência, sob a alegação de que consentiram com a “brincadeira”? A culpa, agora, é das vítimas?
2. distribuir cerveja para a calourada tem o mesmo (des)valor que a prática de racismo e fazer apologia ao nazismo?
3. desde quando a responsabilização pela prática de atos discriminatórios e atentatórios aos direitos fundamentais depende da anuência dos ofendidos?
4. é possível imputar, genericamente, a mesma conduta a dezenas de alunos, como se tal responsabilidade fosse objetiva?
5. o processo administrativo disciplinar instaurado está dispensado de observar o devido processo legal? Quando abrimos mão da individualização das condutas?
6. a comissão designada para presidir o processo administrativo disciplinar é a mesma comissão que realizou a sindicância?
7. tal portaria foi editada pela direção de uma das faculdades de Direito mais prestigiadas do país?
Parece uma “pegadinha”, mas não é.
Na verdade, o processo administrativo instaurado pulverizou irrestritamente a responsabilidade e, assim, também a diluiu, de maneira que restaram inatingidos aqueles que notoriamente teriam incorrido nas condutas mais graves: racismo, sexismo e apologia ao nazismo.
Tudo indica, lamentavelmente, que se optou por punir mais de uma centena de alunos, indistintamente, apenas para dar exemplo. Moral da história: “pune-se quem não se deve para não punir quem se deve...”
Por que não processar administrativamente aqueles que incorreram em indignidade universitária? Por que, simplesmente, não punir os culpados de modo individualizado? Isto para não falar das responsabilidades — civil e penal — por violações aos direitos humanos... Aí tem coisa... Certamente, há outros interesses.
Tanto é assim que, perplexos com tamanha arbitrariedade, um grupo de quatro professores — dos departamentos de Psicologia, Ciência Política, Arquitetura, História — interpôs recurso hierárquico perante a Congregação da Faculdade de Direito, nos termos do Regimento Geral da UFMG, contra o processo administrativo disciplinar instaurado pela direção, requerendo a nulidade da Portaria e o imediato desaforamento do processo de sindicância para o Conselho Universitário. Ao recurso interposto aderiram professores da Faculdade de Direito — Marcelo Cattoni, Thomas Bustamante e Daniela Muradas — e de outras unidades, mediante aditamento.
Registre-se que os alunos que inicialmente também figuravam na condição de recorrentes recuaram no momento de assinar o documento diante da possibilidade de anulação da sindicância e da instauração de outra, desta vez pelo Conselho Universitário, com risco de sanções mais graves.
No que isto tudo vai dar? Penso, honestamente, que em nada. Isto porque, ainda vivemos entre acomplacência e o autoritarismo. Parece que estamos fadados a esta velha — e perversa — imbricação que atravessa a história deste país.
André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.

Revista Consultor Jurídico, 20 de julho de 2013

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Racionalidade do novo CPC trará mais celeridade

O projeto do novo Código de Processo Civil (PL 8.046/2010) foi aprovado esta semana pela comissão especial da Câmara dos Deputados criada para analisar a proposta. Elaborado em 2009 por uma comissão de juristas presidida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux, o novo CPC tem como objetivo dar mais celeridade à tramitação das ações cíveis. O projeto ainda precisa ser aprovado pelo plenário da Câmara e do Senado.
O advogado Mario Gelli, do Barbosa, Müssnich e Aragão (BM&A), diz que o novo CPC busca a simplificação dos procedimentos e a racionalização dos recursos. De acordo com ele, o projeto estimula a utilização dos meios de autocomposição do litígio, como a conciliação e a mediação. “Em regra, o réu passará a ser citado não para oferecer sua defesa, mas sim para comparecer a uma audiência prévia de conciliação/mediação. Apenas na hipótese de o conflito não ser resolvido amigavelmente é que se iniciaria o prazo para defesa”, explica.
O estímulo às negociações amigáveis é elogiada também pelo advogado José Carlos Puoli, do escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados. Para ele, esta medida pode propiciar resultados mais rápidos e uma diminuição de processos, porém, ressalta que para que haja esta redução é necessário alterar hábitos.
“As alterações do atual CPC (que foram realizadas, notadamente, desde 1993) foram relevantes para melhorar a fluidez de nosso sistema processual, mas também demonstraram que nenhuma alteração da lei, por si só, é suficiente para reduzir o número de litígios. Para que isto ocorra é necessária uma mudança de cultura”, diz.
Paulo Henrique dos Santos Lucon, vice-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), diz que o projeto foi muito debatido e só não avançou mais por falta de preparo técnico de muitos congressistas. Apesar de considerar o projeto positivo, ele faz uma crítica e diz que a proposta poderia ter disciplinado a mediação antes do processo. “O Novo CPC poderia ter disciplinado uma fase de mediação pré-processual, ou seja, antes de o autor distribuir sua petição inicial, porque, a partir daí, o conflito já está instaurado”, diz.
Um das novidades que para tentar acelerar a tramitação dos processos é o julgamento em ordem cronológica. De acordo com o texto, os juízes deverão proferir sentença e os tribunais deverão decidir os recursos obedecendo à ordem cronológica de conclusão. A lista de processos aptos a julgamento deverá ser disponibilizada em cartório, para consulta pública.
”Para as preferências estabelecidas em lei, como para os idosos, por exemplo, também deve ser criada uma lista própria, o que ajudará na organização e dará mais transparência à atividade do julgador. Caso o juiz retarde injustificadamente o andamento do processo ou deixe de adotar providência necessária, poderá responder por perdas e danos, para indenizar a parte prejudicada”, explica Ana Carolina Ferreira de Melo Brito, do Trigueiro Fontes Advogados.
Conquistas da avocacia 
Para os advogados, o projeto contempla uma série de conquistas diz o advogado Ulisses César Martins de Sousa, sócio do Ulisses Sousa Advogados Associados e Secretario Geral Adjunto da OAB-MA. Entre os destaques ele enumera o reconhecimento da natureza alimentar dos honorários advocatícios; a possibilidade dos honorários serem recebidos diretamente pelas sociedades de advogados; o estabelecimento de critérios claros para a fixação de honorários nos casos em que a Fazenda Pública for vencida; e a contagem dos prazos processuais apenas em dias úteis.

O advogado Mario Gelli explica que o projeto cria uma tabela de percentuais para os casos em que o Poder Público for condenado. “A lógica da tabela é a de que o percentual a pautar a fixação dos honorários é inversamente proporcional ao valor da condenação sofrida pelo Poder Público”, conta. Também destaca que o projeto estabelece que serão devidos honorários advocatícios sucumbenciais não só no processo principal, mas também, cumulativamente, na reconvenção, no cumprimento de sentença, na execução e nos recursos.
Além disso, o novo CPC garante as férias dos advogados entre 20 de dezembro e 20 de janeiro. As conquistas foram comemoradas pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcus Vinícius Furtado Coêlho. “O fortalecimento do exercício da advocacia é fundamental para a garantia da plena defesa dos direitos do cidadão contra injustiças e arbitrariedades”. 
Sistema de recursos
Outra inovação destacada por advogados é a alteração na sistemática dos recursos. O projeto do novo CPC extingue os embargos infringentes e o agravo retido. Além disso, restringe as hipóteses de interposição do agravo de instrumento, que passará a se chamar apenas agravo, conta Mario Gelli.

Para a advogada Ana Carolina Ferreira de Melo Brito outra medida que pode encolher o tempo de tramitação dos processos é a atribuição de sucumbência na fase recursal. “Isso fará a parte que ‘perdeu a ação’ ponderar sobre esse risco antes de decidir recorrer por uma causa na qual sabe que não terá êxito ao final. Serão devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, de forma cumulativa”, afirma.
O efeito suspensivo também será alterado com o novo CPC. “A apelação deixará de ter efeito suspensivo como regra geral, ampliando-se as hipóteses de imediata execução da sentença”, observa o advogado Mario Gelli.
A medida, considerada benéfica para uns, é criticada por Ulisses César Martins de Sousa. “Se a intenção do projeto é estabelecer um procedimento mais célere, não faz o menor sentido permitir-se que sentença possa ser cumprida (executada) antes do julgamento do recurso de apelação”, diz.
Outro ponto que Ulisses Sousa conisdera incompreensível, com o advento do processo eletrônico, é que seja mantida a previsão de que o agravo de instrumento deverá ser instruído com cópias de peças do processo. “Se o processo eletrônico estará inteiramente disponível no site do tribunal, qual a razão de exigir-se que o recurso seja acompanhado de cópias? Tal exigência é, no mínimo, incompatível com a realidade do processo eletrônico”.
Demandas repetitivas
“Com certeza vai acelerar a tramitação e finalização de processos, com a redução de recursos, diminuição de formalidades e criação de uma ferramenta específica para tratar das ações repetitivas que, certamente, coibirá o ajuizamento em massa de demandas idênticas”, afirma a advogada Ana Carolina Remígio de Oliveira, sócia do Marcelo Tostes Advogados.

O incidente de resolução de demandas repetitivas é uma das principais inovações do projeto. Esta medida permitirá que juízes de primeira instância, ao identificar muitos processos sobre a mesma questão de Direito, possam provocar o tribunal de segunda instância (Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal) para que ele decida a controvérsia. Sendo seu resultado aplicado a todas as ações.
“Se houver sucesso no processamento do incidente de resolução de demandas repetitivas, haverá enorme economia de recursos (pessoais e materiais) do Judiciário, de maneira que com um único julgamento inúmeras demandas semelhantes poderão ser resolvidas”,complementa José Carlos Puoli.
A advogada Ana Carolina Melo Brito também acredita que esta medida deve ajudar na redução de processos. “Além disso, os litigantes com grande número de processos semelhantes, isto é, Poder Público, concessionárias de serviços públicos e grandes fornecedores de bens de consumo, terão uma maior previsibilidade quanto às decisões que serão proferidas, possibilitando-lhes gerenciar melhor os processos e decidir sobre a continuidade ou não do litígio, nos casos cabíveis”, complementa.
Morosidade da Justiça
Apesar de acelerar a tramitação dos processos, os advogados alertam que a nova lei não irá acabar com a lentidão da Justiça. "A demora na solução de processos judiciais é fenômeno complexo que decorre de vários fatores. A falta de investimento na gestão da estrutura Judiciária é um destes fatores e de importância muito mais relevante do que o nosso atual CPC, cujo texto já vem sendo aperfeiçoado ao longo do tempo", explica o advogado José Carlos Puoli.

Para advogada Ana Carolina Ferreira de Melo Brito vários fatores que podem contribuir para a morosidade na tramitação dos processos, tais como o número reduzido de funcionários, baixa capacitação de pessoal ou inadequada gestão administrativa, inclusive de recursos financeiros. “No entanto, o CPC cumprirá em boa medida seu papel no combate a um desses fatores de lentidão, ao dar condições ao juiz e às partes de resolverem o litígio de forma mais ágil”, diz.
Já Ana Carolina Remígio de Oliveira destaca que diversos fatores como a modernização dos tribunais, a implantação de processos eletrônicos, contribuem para agilizar a tramitação dos processos, mas é necessário também adequar as leis à realidade do país.
Clique aqui para ler a íntegra do novo CPC aprovado pela comissão
*Notícia alterada às 9h13 do dia 19/7 para acréscimo de informações
Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 18 de julho de 2013

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Norma permite decidir milhares de ações de uma só vez

Por Rodrigo Haidar
O texto do Novo Código de Processo Civil aprovado nesta quarta-feira (17/7) por uma comissão especial da Câmara dos Deputados traz uma novidade que, se usada na medida correta, pode revolucionar o tratamento de ações sobre o mesmo assunto que chegam aos milhares no Judiciário brasileiro. A novidade responde pelo nome de incidente de resolução de demandas repetitivas.
Em termos mais simples, trata de permitir que processos idênticos tenham resultados iguais, independentemente do juiz que irá julgar o caso. A medida pode acabar com o caráter muitas vezes lotérico da Justiça, que permite que um cidadão vença determinada demanda e seu vizinho, com um processo exatamente igual, perca a ação.
A ideia não é nova e já funciona com sucesso no Superior Tribunal de Justiça, por exemplo. Mas agora as questões poderão ser uniformizadas antes de levar anos até chegar aos milhares ao tribunal superior. O novo CPC permite que quando juízes de primeira instância identifiquem enxurradas de processos sobre a mesma questão de Direito, possam provocar o tribunal de segunda instância (Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal) para que ele decida a controvérsia. Seu resultado seria aplicado, então, a milhares de ações idênticas que tramitam nas varas do país.
De acordo com Bruno Dantas, membro do Conselho Nacional de Justiça e um dos autores do novo código, já que integrou a Comissão de Juristas do Senado que elaborou o texto agora aprovado pela comissão da Câmara, a ideia foi trazer racionalidade e celeridade para o sistema e impedir injustiças com decisões diferentes para casos idênticos. “O incidente é uma boa alternativa ao processo coletivo, que ainda não funciona bem no Brasil, e prestigia os princípios constitucionais da segurança jurídica e da isonomia”, sustenta Dantas.
O advogado José Miguel Garcia Medina, autor de um Código de Processo Civil Comentado usado como referencial no meio jurídico, compartilha da mesma opinião: “Esse projeto tem como uma de suas mais importantes características a de estar alinhado com garantias constitucionais. O incidente de demandas repetitivas, se bem aplicado, realizará em plenitude o princípio da isonomia”.
Pelas regras do projeto, não apenas o juiz, mas também o membro do Ministério Público, o defensor público ou até uma das partes pode provocar o presidente do tribunal de segunda instância sobre a existência de múltiplos processos que discutem a mesma tese jurídica. O presidente do tribunal, então, distribui a causa para um dos desembargadores.
O desembargador faz o chamado juízo de admissibilidade. Verifica se a questão de direito é a mesma e se repete em múltiplos processos. Avalia, então, se já é o momento conveniente para se adotar uma solução que sirva de paradigma para todos os casos idênticos. “É importante permitir esse juízo político porque o tribunal pode avaliar que a questão ainda não está madura para ser decidida de maneira uniforme”, afirma Bruno Dantas.
Se a questão é admitida, automaticamente todas as ações que tratem do mesmo tema têm o andamento suspenso até a decisão do tribunal. O prazo para que o tribunal decida a questão é de 180 dias. Depois de decidida a ação, seu resultado produz efeito vinculante para todos os demais processos que versem sobre a mesma controvérsia: ou seja, o juiz é obrigado a aplicar automaticamente o resultado em todas as ações idênticas sob sua guarda. Se o julgamento não é concluído no prazo, os processos voltam a tramitar.
Para que a uniformização da matéria ganhe caráter nacional, o texto do projeto prevê que as partes também podem acionar o Superior Tribunal de Justiça, nos mesmos moldes. No caso de o Tribunal de Justiça da Bahia já ter fixado tese sobre uma controvérsia que ainda está em aberto no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o STJ pode ser provocado para pacificar o tema em todo o país.
As regras, no caso, são as mesmas. Todos os processos são suspensos por 180 dias em território nacional e os ministros têm esse prazo para decidir a ação escolhida como paradigma. Em caso de discussão de matéria constitucional, o procedimento é o mesmo, mas foro é o Supremo Tribunal Federal. Decidida a questão, os juízes aplicam seu resultado aos processos. Em caso de desobediência, cabe Reclamação direta ao tribunal que pacificou a matéria.
Exemplo internacional
A resolução de demandas repetitivas é um exemplo que já deu certo em países como Alemanha e Inglaterra. Os alemães se depararam com a necessidade de discutir esse modelo de enfrentamento de processos em 2001, como lembra Bruno Dantas. Na época, a empresa Deutsche Telecom foi alvo de 18 mil ações individuais sob acusação de maquiar seu balanço e causar prejuízos financeiros aos acionistas.

Para os padrões alemães, 18 mil processos sobre o mesmo tema era algo inimaginável. A Justiça não conseguia dar resposta à demanda. Depois de quatro anos sem que sequer as primeiras audiências dos processos fossem realizadas, um grupo de advogados reclamou à Suprema Corte do país alegando que havia, no caso, negação de justiça.
A Suprema Corte determinou as medidas necessárias para fazer os processos andarem. E o Parlamento se reuniu para discutir o problema. Foi criado, então o incidente de julgamento de causa modelo. Lá se permite julgar pelo sistema, inclusive, questões de fato. Por exemplo, a prova produzida em uma ação pode ser usada para todas as outras idênticas. Pelo texto do novo código brasileiro, apenas questões de direito cabem no sistema de julgamentos de massa.
A experiência também é usada com sucesso na Inglaterra, garante Bruno Dantas. Guardadas as especificidades de cada sistema, o que está para ser criado no Brasil se assemelha às chamadasTest Claims: uma ação é escolhida, julgada e sua decisão é aplicada de forma vinculante a todos os processos idênticos.
No Brasil, se encaixariam perfeitamente na regra, para citar apenas dois exemplos, casos como os dos milhares de ações que contestavam a cobrança de assinatura básica de telefones fixos ou dos processos que tratam das diferenças monetárias do índice de correção da poupança por conta de planos econômicos dos governos de Fernando Collor e José Sarney.
Para José Garcia Medina, a possibilidade de aplicar o julgamento de demandas repetitivas em segunda instância evita injustiças. Isso porque muitos casos — a maioria, na verdade — não chegam aos tribunais superiores. As pessoas sequer recorrem à segunda instância depois de perder as ações. Assim, os beneficiados são sempre aqueles que têm mais recursos financeiros ou conseguem se organizar melhor por meio de associações.
“Sabemos bem que a esmagadora maioria das ações não chega aos tribunais superiores. Ao permitir que um tribunal de segunda instância resolva a questão antes de esperar anos para chegar aos tribunais superiores o Código prestigia o princípio da isonomia. Situações idênticas se resolvem do mesmo modo”, sustenta Medina.
Segundo ele, a experiência revela que muitas vezes questões polêmicas de Direito Bancário, do Consumidor ou referentes a telefonia são resolvidas de maneira diferente ao longo dos anos. “Só muito tempo depois o entendimento sobre a questão é uniformizado. Antes de gastar tanto tempo e dinheiro, melhor uniformizar a orientação jurisprudencial sobre a questão logo que possível”, defende. Mas, como todo remédio, o incidente deve ser usado na dose certa: “Não se pode usar o mecanismo para questões semelhantes. Têm de ser para casos idênticos”.
Direito claro
Bruno Dantas destaca outros pontos que considera relevantes no texto do novo CPC. Ele oficializa a suspensão dos prazos processuais de 20 de dezembro a 20 de janeiro e, com isso, garante férias para advogados que trabalham sozinhos. Muda a contagem dos prazos recursais. Hoje, o prazo é corrido. Pelo texto aprovado na Câmara, passa a contar apenas nos dias úteis.

Outro ponto importante, segundo o conselheiro do CNJ, é o dispositivo que obriga os juízes a fundamentar adequadamente as suas decisões. E estabelece parâmetros para isso. Não é fundamentada, por exemplo, a decisão que se limita a fazer a paráfrase de um dispositivo de lei. Ou que poderia dar suporte a qualquer outra decisão. Como os despachos que trazem o seguinte: “Presentes os pressupostos legais, concedo o pedido”.
O texto também muda as regras para as decisões de antecipação de tutela. Hoje, juízes só podem conceder liminar em casos de urgência. Nos casos em que o direito da parte é claro, mas a questão não é urgente, é necessário esperar o trâmite completo da ação. Mas quando a parte que reclama tem diversos precedentes em favor de sua tese ou uma súmula do Supremo que abrace sua causa, é justo esperar o desfecho de toda ação?
A redação do novo CPC muda a situação e permite que, nestes casos, o juiz conceda a antecipação de tutela para garantir o direito da parte. Nas palavras de Bruno Dantas, a regra inverte uma lógica perversa: “Hoje, temos um processo civil do réu. Procuramos criar o processo civil da parte que tem razão”.
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 17 de julho de 2013

Joaquim Barbosa suspende criação de TRFs

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, concedeu na noite desta quarta-feira (17/7) liminar para suspender a Emenda Constitucional 73, que cria quatro tribunais regionais federais. A decisão foi concedida na Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada na tarde desta quarta pela Associação Nacional de Procuradores Federais (Anpaf) contra a criação dos TRFs. Com isso, a criação dos tribunais fica suspensa até que seja julgado o mérito da ADI.
Na ação, entre outros argumentos, a Anpaf reclama que a EC 73/2013 padece de vício de iniciativa, pois foi proposta ao Congresso pelo próprio Legislativo. O que os procuradores alegam é que, em seu artigo 96, inciso II, alíneas “a” e “b”, a Constituição Federal estabelece que projetos de lei, ou de emendas constitucionais, que tratam da criação ou extinção de tribunais, bem como da administração da Justiça, devem ser propostas ao Congresso pelo Supremo ou por tribunais superiores.
E foi justamente esse o ponto abordado pelo ministro Joaquim Barbosa em sua liminar. Ele afirma que há indícios que dão respaldo ao argumento do vício de iniciativa, e por isso a questão, eminentemente constitucional, deve ser analisada pelo Plenário do Supremo. O relator da ADI é o ministro Luiz Fux, mas, como havia pedido de liminar e o Supremo está em recesso, a análise cabe ao presidente do tribunal.
O presidente da Anpaf, Rogerio Filomeno Machado, comemorou a decisão desta noite. Disse que “agora é que aparece a oportunidade de apreciar se há a necessidade de novos TRFs ou não”. “Nossa reclamação é que os outros ministros do STF não foram ouvidos na questão, e aí o problema do vício de iniciativa. Agora vamos ter tempo de esperar o retorno dos ministros e apreciar a questão com calma, de maneira mais aprofundada”, afirmou o procurador à revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 17 de julho de 2013

Testemunha não é suspeita por mover ação idêntica contra mesma empresa

Deve-se presumir que as pessoas agem de boa-fé, diz a decisão. A Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que a teste...