quinta-feira, 6 de junho de 2013

QUEM SÃO ESSES CÃES E GATOS QUE NOS OLHAM NUS?

Significa...
A coluna de hoje é diferente. O Cego de Paris, parte II, terá de esperar ainda mais um pouquinho. É que os assuntos vão pululando e a fila vai andando. Dois motivos me levam a fazer a coluna de hoje sobre os direitos dos animais. Primeiro, porque quanto mais conheço os homens, mais admiro a fidelidade dos cães (para falar apenas destes).[1] O segundo motivo diz respeito ao fato ocorrido no Rio de Janeiro, que passo a relatar. Boa leitura.

homo estupidus de Copacabana
Alguns dias atrás, quando cheguei no Rio de Janeiro, fui surpreendido com uma notícia chocante, bizarra. Mais uma envolvendo animais: um homem tinha jogado pela janela de um apartamento, localizado no sexto andar de um prédio em Copacabana, dois cães. Ambos morreram na queda. Havia, como não poderia deixar de ser, um clima de consternação e de revolta. Nem mesmo a agradável brisa da “Princesinha do Mar” foi suficiente para amainar o ar pesado que se respirava. Registro que, em Porto Alegre, dias antes, uma mãe foi filmada maltratando um cão, em que, além disso, ela “ensinava” ao filho como bater no bichinho.[2]

O autor do ato alegou que viu um vulto passar e depois os cães caíram. Não se recorda de ter precipitado os animais. A família afirma que o sujeito apresenta problemas de saúde, de consciência, que toma remédios, e que já teria investido contra a filha. Os animais, confirmaram vizinhos e parentes, eram dóceis, não atacaram, não investiram contra a vida do seu algoz. Sem justificativa, uma explicação que se costuma aventar (e, como visto, foi efetivamente apresentada) é a insanidade.
Senti vergonha da condição de homo sapiens. E senti que precisava escrever algo a respeito da antítese do homo sapiens: o homo estupidus. Uma infeliz e a um só tempo boa oportunidade para levantar algumas questões que já de algum tempo vêm ocupando um espaço progressivo na academia jurídica brasileira. E que vem me preocupando também. A problemática jurídica (se quisermos, podemos chamar de problemática jurídico-moral) dos animais. Afinal, quem (ou o que) foi arremessado para a morte daquela janela de Copacabana? Quem eram aqueles seres, vivos até então? O que faziam em um apartamento? Um pastor alemão! E pensei como o processo de domesticação (muitas vezes sofrido para os domesticados, é preciso ressaltar, inclusive com a perda de inúmeras vidas) levou a que tenhamos, na vida urbana contemporânea, animais vivendo em ambientes eminentemente humanos: com pouco espaço, sem terra para cavar ou brincar, totalmente dependentes da comida e da água que fornecemos e de algum tempo de aparente liberdade quando os levamos a passear pelas coleiras (somos os seus senhores).
Quem são os animais...
Definimos até a vida sexual dos animais: se copularão ou não. É mesmo uma imensa necessidade de companhia e uma necessidade por companhia não humana; o animal que supre uma solidão, sem que a própria companhia humana pudesse substituí-lo. As relações são distintas: não precisamos simplificar ou hierarquizar para concluir que o animal está lá porque não existe um humano em seu lugar, como se ele, o animal, fosse uma segunda opção. Mas, mesmo assim, não queremos que o cão lata, pois nos incomoda ou a vizinhança, e deste modo podemos comprar coleiras que dão choque caso o cão se aventure a latir (que folgado, que abusado!). Descobri que se fazem cirurgias para extrair as cordas vocais dos cães, para que...não latam. Uau! Tudo isto naturalizado. E o que está normalizado corre o risco de não ser mais percebido criticamente, de não gerar mais indignação, como advertia Bertold Brecht.

Costumamos empregar à palavra predador um sentido negativo. Mas não paramos para atentar que o predador tem motivos para fazê-lo. Tem, por necessidade de sobrevivência, que matar e devorar outro ser para poder sobreviver. Portanto, não há mal em ser carnívoro. Mas somente o ser humano (ou animal humano, como queriam alguns) mata por prazer ou perversão. Quem é o animal em um safári? Numa tourada? Ou nas hoje abandonadas (e ainda bem) “farras do boi”? Em todos esses casos o molestar, ferir e matar faziam parte de uma espécie de catarse pública em busca do mórbido, tudo sob a máscara da violência simbólica — de que se trata(va) de uma tradição.
É bem verdade que nós, animais humanos, temos uma compreensão mais evoluída que os demais — sabemos que somos um ser-para-a-morte, no dizer de Heidegger. Sabemos de nossa finitude e, por isso, podemos buscar um sentido para nossa vida — embora tanto consigam encontrar sentidos sem sentido... Mas os animais não humanos possuem alguns desejos em comum, como o de alimentação, abrigo, companhia, ter liberdade de movimentos e de não sentir dor. O especismo[3] é, em si, uma violência.
Parafraseando então o filósofo da desconstrução Derrida, que indagou Quem é este gato que me olha nu?, em célebre conferência depois publicada, me veio a pergunta: quem eram aqueles cães,donos (voltarei a isto) dos corpos atirados pela janela? Eles tinham expectativas que foram ceifadas? A vida deles era boa? E não pude deixar de imaginá-los como filhotes... As brincadeiras que devem ter feito, os medos que sentiram e o afeto por seres humanos que devem ter experimentado. Pois tudo acabou ali, na mesma noite em que voava chegando ao Rio. Eles não voaram.
Mas não quero aqui adotar um tom sentimentalista ou choroso, embora seja certo que costumamos empregar esta palavra para desqualificar sentimentos em relação aos animais quando a evitamos, em situações paralelas, para seres humanos. Não esqueço disso. De jeito nenhum. Tem gente que maltrata não só animais... Bem, a conduta é crime (e não contravenção), está prevista no artigo 32 da Lei 9.605/98, chamada de Lei dos Crimes Ambientais, como maus-tratos. Duas coisas me geraram estranhamento. A primeira: um crime praticado contra um ser vivo, contra dois animais, seres individualizados, pode ser configurado como crime ambiental, infração contra o meio ambiente? A segunda: quem é a vítima deste tipo penal?
Parece estranho que um ato que atenta contra um animal possa ser entendido como um ato contra o ambiente? Sim, pode parecer estranho, mas esta é a compreensão tradicional, arraigada; aquela que esfumaça o ser animal (ou o animal não humano) no todo: o que importa é o ecossistema e não o ser individual. Portanto, o que importa é (sempre) o conforto do... homo sapiens. Porém, outra dúvida me assaltou, balançou no trapézio, como a Brás Cubas, quase me derrubando: mas, qual é o dano ambiental (ecossistêmico) causado pela morte de dois cachorros (animais domésticos) que viviam nos apertados metros quadrados de um apartamento de uma megalópole? Fui me convencendo: não parece ser exatamente o que poderia ser chamado de crime ambiental.
Quem é a vítima?
A outra interrogação se afigura ainda mais desconcertante. Quem é a vítima? Diz a generalidade dos juristas, ancorados em Kant, a vítima (do ato que tirou a vida dos cães) é a sociedade (humana, claro). É ela que foi agredida no seu senso de civilidade. Ora, bárbaro jogar dois cachorros pela janela: uma desconsideração por aqueles animais, pela vida daqueles animais... Ops! Caí do trapézio: tenho um problema. O crime não foi a rigor cometido contra aqueles animais! Contra a vida deles. Por quê? Ora bolas: porque eles são coisas, objetos de direito. Não são sujeitos. A vida, a rigor, não era deles. Era do seu dono... O corpo deles não era deles. Era... do seu proprietário. Sim, agora tudo parece começar a fazer sentido. Precisamos corrigir a lei, pois não é um crime ambiental, é um crime contra o proprietário da coisa (que, no caso, seria a mãe, não o autor do crime, filho da mãe...).

É no mínimo curioso. Quem sofre a dor é o animal, a vida que se esvai é do animal, mas a vítima não é ele. Um animal que é queimado, que tem a pata ou a língua cortada, que é espancado, como tantos são diariamente, nenhum deles é vítima. Se tem dono, a vítima é o proprietário. Se não tem, se selvagens são considerados, a vítima é a sociedade (direito difuso). Nunca o animal, ele mesmo, em si. Simples assim. Uma engenhoca jurídica para sair do paradoxo de afirmar que o próprio animal é a vítima e ainda assim é objeto.
Ora: vítima não é coisa, é sujeito (de algum direito vitimado, violado). Porém, o meu computador, onde escrevo estas palavras, também é uma coisa. E, em tese, posso jogá-lo pela janela. Se não configurar crime de perigo, nenhum problema. Brinquedos, bonecas etc. podem ser estraçalhados. Nada acontece. Mas, não posso jogar minha cachorra, Dorothy, pela janela, nem cortar a sua cabeça. Por qual motivo não? O cão, meu computador e os antigos brinquedos de minha filha são todos eles, parao senso comum teórico dos juristas, objetos. Todavia, não é, obviamente, crime de maus-tratos se machuco meu computador ou se se quebra uma boneca.
Fiquei com algum desconforto aqui. Algo parecia errado, não encaixar (conceitos e coisas, conceitos sem coisas...). Instigado por este desconforto é que o criminalista argentino Zaffaroni veio recentemente a dizer que a vítima do crime de maus-tratos é o próprio animal. Alguns no Brasil vem dizendo a mesma coisa, como o meu amigo Fábio C. Souza de Oliveira, brilhante professor da Unesa e da UFRJ.[4] Ele e outros defendem o chamado Direito dos Animais. Estou entrando no time. A questão é ampla, diz com o próprio conceito de maus-tratos, mas não se detém aí, vai questionar a utilização regular que a humanidade faz dos animais: animais em circo, rodeios, experimentos científicos, vestuário, alimentação. A pauta é larga e complexa e não é dela que me ocupo aqui.
Voltemos para o crime de maus-tratos: a pena é de 3 meses a um ano e multa. Ou seja: crime de menor potencial ofensivo. Se dos maus-tratos decorre o falecimento do animal, a pena é aumentada de um sexto a um terço. Significa, portanto: o bem jurídico protegido (não o animal, como vimos, e sim o senso de civilidade da humanidade, ou a propriedade viva do ser humano) é considerado de menor relevância.
A relação humano e não-humanos
Muitos filósofos já criticaram a relação usual entre humanos e não humanos, de coisificação da vida, de instrumentalização dos animais. O homem é um fim em si, todos repetem em coro uníssono. É o mantra humanista. Só o ser humano. O animal é instrumento para o bem-estar, para a felicidade humana. Logo, não possui dignidade (animal). Muitos, como eu dizia, confrontaram, ao longo do tempo, este status quo. Pitágoras, Plutarco, Porfírio, Jeremy Bentham. Nietzsche disse algo a respeito. Atualmente, no que se denomina de Ética Animal, Tom Regan e Peter Singer, nos Estados Unidos. Uma crítica ao antropocentrismo. Também Heidegger disse algo a respeito. Mas isto fica para outro texto.[5]

O fato é que o Direito dos Animais vem conquistando progressivamente mais espaço, mais adesão, em terras brasileiras e estrangeiras. Não podemos ignorar este fenômeno. Alguns afirmam que animais (alguns, pelo menos) são sujeitos de direito porque são sensíveis, sentem dor, inclusive psicológica, buscam o bem-estar; enfim, são sencientes (ver a The Cambridge Declaration on Consciousness, de 2012, assinada por Philip Low e Stephen Hawking, entre outros). E aí a associação: se são sencientes, são titulares de direitos, porque seus interesses importam para eles próprios ainda que não importe para nenhum ser humano. Verdade automática? Como conversei com Fábio Oliveira, não: no passado não se contestava que negros, índios ou as mulheres eram sencientes (ou conscientes), mas nem por isso a condição de sujeitos de direito lhes foi reconhecida de pronto. Pensemos nos julgamentos das Supremas Cortes dos Estados Unidos (caso Dred Scott, que envergonha o Direito norte-americano até hoje) e do Brasil, em que os escravos foram considerados objetos. Pasmem: a Constituição do Império, de 1824, extinguiu as penas de galés e açoites; o Código Criminal do Império repristinou os castigos. E sabem por que o Código não foi considerado inconstitucional? Por duas razões: a uma, porque o controle era feito pelo Legislativo e isso não funcionou no Império; a duas, porque a Constituição somente se aplicava às pessoas... e não às coisas... E escravos eram res. Estás envergonhado de nosso Direito de antanho? Pois, por certo, daqui há 50 anos, poderemos dizer isso sobre o tratamento dado hoje ao direito dos animais.
Será que é devido reconhecer a condição de sujeitos de direitos aos animais? Em um artigo sobre oEstado Ecológico, Canotilho, por exemplo, deixa a questão em aberto. Mas suscita a pergunta. Bobbio chegou a vaticinar a paulatina escalada em favor desta tese. Será? A Constituição do Equador (2008), em previsão inédita em todo o mundo, enunciou direitos da natureza. Isto é: um sujeito de direitos fora da espécie humana. Mas, como já tive oportunidade de escrever,[6] direitos da natureza não é o mesmo que direitos dos animais. A Constituição da Bolívia (2009) talvez dê espaço para visualizar direitos dos animais.[7] Qué pasa? Será verborragia constitucional ou uma virada de paradigma sendo anunciada (embora não certa)? A matéria é própria do Direito ou fica melhor na esfera da Moral?
Voltando aos cães atirados pela janela...
Quero, por fim, voltar para aqueles dois cães jogados pela janela. Suponha que eu tivesse chegado logo depois e lá me deparasse com os corpos no chão, com pessoas ao redor consternadas, chocadas, algumas até chorando. O que poderia fazer? Abraçar qualquer uma destas pessoas e dizer a ela que me solidarizo com o seu senso de civilidade aviltado pelo ato ignóbil. Para outra diria que é revoltante vê-la chorando... Ou até poderia comentar: imagine se algum dos cães caísse sobre alguém! Repetiria, enfim, que nosso sentido de urbanidade foi atacado, que é intolerável a agressão contra a sociedade... Ideias de varejo e de atacado. De todo modo, tudo dentro de um imaginário da banalização do mal... contra pessoas e animais.

E os corpos lá estendidos, ensanguentados, deformados, já cobertos pela polícia? Paisagem. Mas, olhando tudo aquilo, com certeza, eu me colocaria à dúvida quanto ao meu dever moral ou jurídico de levar em consideração seus interesses. Dentre eles o de permanecer vivo.
Em O animal que Logo Sou, Jacques Derrida começa a reflexão indagando acerca do que pensa, se é que pensa, aquele gato que me olha. Aquele gato que me olha nu, trocando de roupa, na intimidade. Quem sou eu para o gato? E quem sou eu para a Dorothy e o Xiru, cães-amigos aqui da casa, e para o Dudu e o Bolinha, que moram lá na Dacha? Mas a pergunta que se põe agora é: o que eu penso olhando para eles? Lembro de uma cena que passou na TV. Perto do final do ano, algumas pessoas descartam animais nas estradas, mormente onde tem muros nas beiras, para deixá-los encurralados. Uma senhora tirou uma sequência de fotos de uma outra senhora que largou um cãozinho nessa estrada entre Porto Alegre e São Leopoldo. Largou-o e ele saiu correndo atrás do carro, como a dizer “se sempre te dei carinho, por que fazes isso comigo agora?”. Para sorte do cãozinho, a senhora que fotograva salvou-o e o levou para casa. Dois tipos de gente: os que descartam e os que abrigam... E salvam. No Inferno de Dante, deve ter um espaço para a senhora do descarte... Ali, bem no último anel.
Nota final
É o primeiro texto que escrevo sobre o assunto “direito dos animais” e “relação ser-humano-animal”. Sempre haverá alguém para dizer que “enquanto morrem pessoas por inanição, fome etc. tem gente que fica preocupado com os animais”. Bem sei disso. Mas, não se preocupem. Tenho a certeza que aqueles que cuidam dos direitos dos animais jamais maltratarão ou deixarão que se maltrate um ser humano. Uma coisa leva à outra. E vice-versa.

Quero dizer ao Fábio e a Larissa, assim como ao meu aluno Flávio, todos defensores da causa e a todos que, de um modo ou de outro, se emocionaram com o que escrevi, que estou abraçando a causa também. No fundo, já havia feito isso há muito tempo. Lembro-me que, quando menino, tinha um porco chamado Bolão. Lá no meio do mato, na Várzea do Agudo. E me tiraram o Bolão (não é necessário dizer o que fizeram com ele). Também me lembro que, certo dia, fui fazer queixa ao meu pai contra o único peão que arava o nosso campo, porque ele estava maltratando Cacique e Leão, a junta de bois lá de casa. À noite, ficava alisando o lombo de Cacique, o boi da esquerda, aquele que mais sofria sob a chibata do Negro Pepê. Fábio: obrigado pelas dicas para a coluna. No fundo, sempre já estive na e com a causa.

[1] Quando vejo tanto ódio em corações de algumas pessoas que colocam seus spots raivosos no CONJUR, penso que, exatamente, estou certo na minha admiração pelos animais.
[2] Registro que já há mais de 40 anos, em Porto Alegre, uma senhora, solitariamente, cuidava do direito dos animais. Chamava-se Palmira Gobi. Hoje, a cidade já tem a Secretaria dos Direitos dos Animais, que vem se tornando referência nacional.
[3] Especismo, por analogia ao racismo e ao sexismo, é a atitude preconceituosa de considerar os seres de sua própria espécie como superiores, de modo a não levar em consideração o sofrimento dos demais seres vivos. Sobre o assunto, recomendo o documentário Eathlings (Terráqueos) (informações aqui).
[4] O professor Fábio Corrêa Souza de Oliveira coordena o Centro de Direito dos Animais, Ecologia Profunda, que reúne a UFRJ, a UFF e a UFRRJ. www.animaisecologia.com.br
[5] Fruto do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, o trabalho de Ariel Koch Gomes, a partir de uma reconstrução filosófica, faz uma crítica a este paradigma antropocêntrico, em defesa do direito da natureza. Ver: GOMES, Ariel Koch. Natureza, Direito e Homem: sobre a fundamentação do Direito do Meio Ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
[6] Sobre o tema, ver: STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Fábio. Um Direito Constitucional Comum Latino-Americano – Por uma teoria geral do novo constitucionalismo latino-americano. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, v. 11, p. 121-151, 2012.
[7] Art. 33: “Las personas tienen derecho a un medio ambiente saludable, protegido y equilibrado. El ejercicio de este derecho debe permitir a los individuos y colectividades de las presentes y futuras generaciones, además de otros seres vivos, desarrollarse de manera normal y permanente.” Grifo acrescentado.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.

Revista Consultor Jurídico, 6 de junho de 2013

ACORDO APÓS O TRÂNSITO EM JULGADO NÃO EXTINGUE A EXECUÇÃO

A 4ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho negou o pedido do estado do Rio de Janeiro de extinguir a execução de uma sentença trabalhista em razão de um acordo celebrado com o autor da ação antes do trânsito em julgado. Porém, como o estado só informou que havia o acordo na fase de execução, a Turma entendeu que houve preclusão. Ou seja, o estado perdeu o direito de se manifestar no processo por não tê-lo feito na oportunidade devida.
No caso, um bancário do extinto Banco do Estado do Rio de Janeiro (Banerj), após se aposentar, ajuizou reclamação trabalhista alegando que alguns prejuízos sofridos no curso do contrato de trabalho se projetaram na complementação da aposentadoria. O processo transitou em julgado em outubro de 2002.
Em 2004, já na fase de execução, o estado informou que, em 1998, assinou com o bancário um termo de transação pelo qual este receberia uma renda mensal vitalícia a título de complementação de aposentadoria, transferindo para o estado, em contrapartida, todos os direitos e ações que porventura tivesse contra a Caixa de Previdência dos Funcionários do Sistema Banerj, àquela altura em liquidação extrajudicial. Segundo o estado, a consequência disso seria a de que as ações já ajuizadas contra o fundo de previdência teriam perdido o objeto, e a execução da sentença deveria ser extinta.
O pedido de extinção da execução foi negado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ), que registrou que as partes executadas deveriam ter informado a existência da transação quando foram intimadas a se manifestar sobre os cálculos da sentença. Como isso não foi feito, ocorreu a preclusão.
O TRT destacou que não se tratava de fato novo, pois o acordo foi celebrado antes da oportunidade processual que lhes foi assegurada para apresentação de embargos à execução. "Tanto a Previ-Banerj quanto o estado do Rio de Janeiro sabiam da existência da transação, pois ambos firmaram o pacto com o bancário", afirmou o TRT-RJ.
No TST, a decisão foi mantida pelo relator do agravo de instrumento do estado, ministro Fernando Eizo Ono. Ele explicou que o artigo 896, parágrafo 5º, da CLT, exige como único pressuposto do recurso de revista em agravo de petição a ofensa a texto constitucional.
Entretanto, segundo o ministro, a fundamento da decisão do TRT não foi a Constituição e sim os artigos 884, parágrafo 1º, da CLT, e 183 do Código de Processo Civil. De acordo com o relator, o TRT limitou-se a registrar que os executados tinham ciência da transação extrajudicial mas, ainda assim, nada mencionaram a esse respeito nos recursos anteriormente apresentados. Com informações da Assessoria de Imprensa do TST.
Revista Consultor Jurídico, 5 de junho de 2013

terça-feira, 4 de junho de 2013

NOVAS PERSPECTIVAS NO ACESSO À JUSTIÇA



Por José Renato Nalini




RESUMO

O autor lança luz à reflexão sobre o acesso à Justiça, cujo entendimento, genericamente tido como acesso aos tribunais, já não satisfaz, sendo necessário considerá-lo como um direito fundamental formal, em contraposição aos óbices postos, no Brasil, à consecução da justiça. São examinadas três causas que representam obstáculo à ampliação do acesso à Justiça: o desconhecimento do Direito, a pobreza e uma visão singular sobre a lentidão do processo. Para que os cidadãos possam usufruir da garantia de fazer valer seus direitos perante os tribunais, é fundamental que conheçam a lei e o limite de seus direitos. Os juízes e as instituições do Judiciário devem ter o compromisso de divulgar o Direito. Em uma sociedade pobre como a brasileira, o juiz deve também repensar o dogma da imparcialidade, de maneira a contribuir para a redução das desigualdades sociais. Finalmente, o magistrado tem sua parcela de responsabilidade na celeridade processual, assim como as Escolas da Magistratura, que precisam enfatizar o aspecto ético da profissionalização e as técnicas facilitadoras da eficiência no desempenho.




1 INTRODUÇÃO

Por acesso à Justiça vinha-se entendendo, até recentemente, o acesso aos tribunais. Uma Constituição cujo preâmbulo abriga a intenção de instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos e elege a justiça como um dos valores supremos de uma sociedade que se pretende fraterna e pluralista, não poderia também deixar de assegurar a inafastabilidade do controle jurisdicional.

Todas as Constituições brasileiras enunciaram o princípio da garantia da via judiciária. Não como mera gratuidade universal no acesso aos tribunais, tão cara aos ideais românticos do individualismo liberal e que, por toda a parte, se tem, em absoluto, por utópica, mas a garantia, essa sim universal, de que a via judiciária estaria franqueada para defesa de todo e qualquer direito, tanto contra particulares, como contra poderes públicos, independentemente das capacidades econômicas de cada um.

Essa concepção, embora ainda dominante, já não satisfaz. Pode parecer ilusória a garantia do acesso ao Judiciário, quando tantos os obstáculos que se antepõem ao foro, ao efetivo pleito dos direitos vulnerados.

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A complexidade e ambivalência do tema já foi acentuada por Canotilho: ... se, por um lado, a defesa dos direitos e o acesso de todos aos tribunais tem sido reiteradamente considerado como o coroamento do Estado de Direito, também, por outro lado, se acrescenta que a abertura da via judiciária é um direito fundamental formal.

Parece mais nítida a feição de mera formalidade desse direito, contraposta à dimensão dos óbices postos à consecução da justiça. São tamanhas as dificuldades enfrentadas para a obtenção da prestação jurisdicional, que poucos – no Brasil – a conseguem. São os privilegiados com a solução oportuna e definitiva da lide.

Nação que conseguiu em poucas décadas multiplicar a legião dos excluídos, hoje contados aos milhões, que ostenta quadro dos mais cruéis do universo na distribuição de sua renda, que assiste à impunidade dos fortes, ao genocídio das etnias e ao medo crescente da violência, é modelo singular para a presente reflexão.

O Judiciário se vê acusado de atender a uma faixa cada vez mais estrita da comunidade. Os despossuídos encontram suas portas cerradas. Os poderosos não ser curvam à lentidão dos processos convencionais. O povo desacredita de sua justiça.

A proclamação dos direitos constitucionais, inclusive o do acesso à Justiça, reveste máscara retórica. Pois há, por vezes, uma hipócrita tranqüilidade de consciência, quando se remetem os cidadãos para os tribunais que, em derradeiro percurso, farão justiça. Não desconhecendo que, para isso, os lesados deverão arcar com excessivo dispêndio para alcançar solução. Tornando concreta a advertência do mestre Joaquim Canuto Mendes de Almeida, de que não há direito de ação, mas na verdade ônus de ação.

Em lugar da orgulhosa proclamação da vítima: "Vou procurar por meus direitos", o que se vê aqui é a ironia do infrator: "Vá procurar por justiça". Sabem todos como funciona a Justiça: A proliferação de decisões ilegais e de arbitrariedades significa que a administração e outros centros de poder (incluindo os privados) se sentem relativamente impunes em face das suas irregularidades.

Não é o Estado o maior produtor de demandas, sufocando os tribunais com sua resistência em reconhecer seus desmandos? Compreende-se, após examinar as estatísticas da produção pretoriana em todas as instâncias brasileiras, porque Canotilho afirmou, talvez exageradamente: O Estado de Direito transformou-se em direito do Estado; fez do Poder Judiciário um serviço ao serviço do Estado. E o Judiciário, braço estatal com vocação para poder moderador, não contribui de certa forma para o recrudescimento desse quadro, recusando-se a aceitar soluções como as súmulas vinculantes, em nome de uma independência também meramente formal? Ou travando desgastantes batalhas, na autofágica discussão sobre competência de órgãos de uma só e mesma Justiça?

Já está superada a cultura do repasse, caracterizada por lançar por sobre os outros poderes, ou atribuir a contingências, a responsabilidade pelas deficiências do Judiciário. A hora de reagir era ontem. Os integrantes do Poder Judiciário devem assumir o desafio do momento histórico e produzir algo de concreto para multiplicar a sua capacidade de resolver conflitos, pacificar a sociedade e ampliar as alternativas para a solução harmônica das diferenças. Isso será, verdadeiramente, ampliar o acesso à Justiça.

O propósito do presente trabalho é o exame de três causas, apenas, dentre as muitas que representam obstáculo à ampliação do acesso à Justiça. São elas: o desconhecimento do Direito, a pobreza e uma visão bastante singular da lentidão do processo.



2 ACESSO À JUSTIÇA OU ACESSO AO DIREITO?



Os juízes não têm a chave para resolver os problemas do mundo. Mas integram o Estado e não podem considerar-se descomprometidos da tarefa de contribuir para a consecução de seus objetivos.

A advertência de Canotilho, sinceramente convicto de que a realização da justiça estará mais dependente da extensão do pensamento da igualdade material à ordem dos bens (patrimoniais e culturais) e ao "mundo do trabalho", do que numa abstrata defesa de direitos, não deve desanimar. Dentro de suas limitações, no espaço que o sistema lhe reservou para atuar, o juiz poderá alargar a porta para o eficaz reconhecimento dos direitos. Basta despir-se de uma roupagem arcaica de magistrado e impregnar-se da vontade de mudar o presente estado de coisas.

As pessoas não poderão usufruir da garantia de fazer valer seus direitos perante os tribunais, se não conhecem a lei nem o limite de seus direitos. Se a aplicação do direito é, normalmente, tarefa de especialistas (juristas em sentido lato), muitas vezes pela via do Poder Judiciário (porque a sua aplicação também é conflitual), não se coloca, por isso, a necessidade de um amplo ou generalizado interesse no conhecimento da forma (técnica) como o direito é aplicado. Mas já em relação ao seuconhecimento a situação é outra porque, aqui, o acesso ao conhecimento do direito deve ser generalizado, até como pressuposto da sua própria aplicação. Hoje, encara-se este conhecimento como um direito – o direito aos direitos.

O primeiro compromisso do juiz empenhado em ampliar o acesso à Justiça, portanto, será com a disseminação do conhecimento do direito. O Direito, resolvido emdireitos, terá que se abrir, que se quotidianizar, de perder o seu sopro de mágica não humana.

Como é que um juiz pode tornar o direito conhecido?

Duas, ao menos, as vertentes a serem examinadas. Uma institucional, outra pessoal.

Na vertente institucional, os tribunais e associações de magistrados podem desempenhar – e muita vez já desempenham – relevante papel. Poderiam, assim, imprimir toda a sorte de informações, a partir de folhetos simples, com explicações facilitadoras do acesso à Justiça. A experiência estrangeira é muito rica nesse campo. É simples informar o cidadão a respeito de problemas por ele enfrentados para litigar. Nada impede se divulgue, por exemplo, "Como obter assistência judiciária", "Como pedir alimentos", "Como regularizar a separação", "Como regularizar a sua propriedade", "Como retificar o seu nome", "Como receber de volta o empréstimo compulsório", "Como litigar nas Pequenas Causas", "Como abrir o inventário", dentre muitas outras hipóteses.

Os tribunais devem manter serviço de atendimento facilitado, para fornecer informações sobre andamento de processo, sobre o endereço da assistência judiciária, sobre problemas jurídicos concretos de toda ordem. E isso por meio de telefone, de fac-símile, de guichês com funcionários treinados e conscientes de que o povo é seu patrão. Somente o pobre brasileiro sabe explicar o quão é maltratado nas repartições públicas. O Judiciário poderia reverter esse quadro, desenvolvendo um programa de transparência, dando-se a conhecer ao cidadão através de ações de caráter essencialmente informativo.

Os tribunais e associações têm o dever de manter a população informada. Divulgando os endereços dos foros, e dos organismos vinculados à realização da Justiça, os horários de realização das audiências, o funcionamento dos juizados especiais, e outros dados de interesse, inclusive prestando contas da produtividade do Judiciário.

Projetos mais ambiciosos poderiam sugerir as Cartilhas de Cidadania, contendo o elenco dos direitos que consubstanciam o direito a ter direitos. Em linguagem acessível, de compreensão por qualquer do povo, com forma atraente e suscetível de operacionalização mediante recurso à prestigiada classe dos publicitários brasileiros. Não é demasia pensar-se em uma série de folhetos, sob a denominação "Eu e a Justiça", subdividindo-se em "Eu e a Constituição", "Eu e o Direito da Família", "Eu e o Direito de Propriedade", "Eu e o meu emprego", "Eu e o Direito Penal", além de outros títulos. A denominação com ênfase no pronome pessoal da primeira pessoa tem o intuito de prestigiar a consciência da cidadania.

Além dessa divulgação operacional, as entidades promoveriam a divulgação institucional, propiciadora de informações sobre o funcionamento do Judiciário no Brasil. Não se pode nutrir afeição por aquilo que não se conhece. Isso explica os índices de comprometimento afetivo demonstrado pela população brasileira a seu Judiciário, em qualquer pesquisa realizada nesta década.

A assessoria de mídia, anexa a cada organismo, deve desempenhar sua parte e fazer a aproximação entre mediática e Justiça, decodificando o hermetismo da linguagem e o distanciamento que o Judiciário sóe nutrir em relação aos mass media.

Tais propostas e muitas outras, que poderiam surgir mediante consulta ao pessoal da área, incluindo os funcionários, poderiam atuar na dignificação das instituições da Justiça e no restabelecimento da confiança no sistema da Justiça. É a tentativa de resgate da imagem do Judiciário junto ao cidadão, com ênfase na essencialidade do serviço público por ela prestado.

Em caráter pessoal, o juiz também é provido de exepcionais condições de disseminar o conhecimento do Direito. Primeiro, exercendo de maneira adequada o seu compromisso de maior relevo: a outorga da prestação jurisdicional. Cada juiz, quando julga, exerce função docente. Está ensinando Direito, está divulgando o correto, está demonstrando qual o verdadeiro sentido e alcance da lei.

A decisão é uma aula. E como aula de Direito, pode ser clara, atraente e eficaz. Ou obscura, aborrecida e destituída de relevo, circunscrevendo-se aos limites do processo em que exarada.

A clareza é a cortesia do filósofo, dizia José Ortega Y Gasset. E a clareza, à qual é necessário reconhecer um caráter de primazia na matéria, porta em si mesma uma força de persuasão inegável. E ela não é menos útil quando o advogado quer convencer o juiz do que quando este quer justificar sua sentença.

Faz-se necessário reconhecer que o hermetismo da linguagem dificulta o acesso à Justiça. Pois a linguagem judiciária tem, na opinião pública, má reputação. Não se confunda a necessidade de utilização escorreita de termos técnicos com o apego ao arcaísmo, à excessiva repetição das mesmas expressões, ao caráter rebarbativo que ainda se encontra em grande número de peças processuais.

Não são os juízes os responsáveis por essa linguagem. Ela deriva da lei e das tradições. Mas o juiz pode adotar outra estrutura, sem abandonar a correção, onde se encontre lógica, teórica simplicidade e elegância vernacular. Demos as mãos à palmatória: A decisão de justiça não é uma dissertação acadêmica, mas um ato de caráter utilitário, de aplicação concreta. É necessário, de início, que ela seja perfeitamente inteligível e que aqueles aos quais interessa possam compreendê-la sem recorrer ao Gran Larousse em dezenove volumes.

A clareza pode fazer muito para ampliar o acesso à Justiça, pois facilitará o acesso ao Direito. E Direito acessível é, primeiro, Direito inteligível. A clareza é o ponto de convergência de todas as recomendações que podem ser feitas a quem se utiliza da linguagem jurídica. É imprescindível uma perfeita clareza: ao mesmo tempo que ela deve ser atendida em relação às palavras, ela deve estar na exposição do pensamento. É lícito concluir que aquilo que não é claramente exprimido não foi claramente pensado.

A esse empenho todos os juízes podem-se devotar, porque igualmente produtores de sentenças. Outros juízes, já não a integralidade da Magistratura, podem contribuir de maneira diversa para divulgar o Direito e a administração da Justiça. Lecionando, e são muitos os professores nas Faculdades de Direito e nas Escolas da Magistratura, escrevendo artigos em jornais e participando de debates nos mass media, publicando trabalhos e livros. Não se furtando a esclarecer o funcionamento da Justiça, quando a isso chamados.

Muitos conservadores poderão dizer que essa não é a função do julgador, preordenado a apreciar o conflito e a solucioná-lo de acordo com a lei. Mas as configurações antigas já não estão servindo para o resgate da imagem da Justiça. Já não basta ser apenas cumpridor dos deveres. O momento histórico exige um plus do juiz. Talvez até como antecipação do papel que lhe está reservado no próximo milênio. O de um administrador de situações conflituosas, um aconselhador, um conciliador, um pacificador social, distanciado do perfil clássico do profissional que apenas diz o Direito.

Antes de dizer o Direito, incumbe ao juiz fazer conhecer o Direito. Pois na medida em que o conhecimento daquilo que está disponível constitui pré-requisito da solução do problema da necessidade jurídica não atendida, é preciso fazer muito mais para aumentar o grau de conhecimento do público a respeito dos meios disponíveis e de como utilizá-los.

Deixa de atender à missão para a qual preordenado, o juiz que se limita a nomear um advogado para a parte necessitada de assistência judiciária. Em acepção ampla, a assistência judiciária tem o sentido de assistência jurídica em juízo e fora dele, com ou sem conflito específico, abrangendo inclusive serviço de informação e de orientação, e até mesmo de estudo crítico, por especialistas de várias áreas do saber humano, do ordenamento jurídico existente, buscando soluções para sua aplicação mais justa e, eventualmente, sua modificação e inclusive revogação. É só mediante a informação e pleno conhecimento do Direito que se alcançará esse instrumento de acesso à ordem jurídica justa, na linguagem de Kazuo Watanabe, única legitimidade para a existência de juízes e do Poder Judiciário.

Está subjacente a essa discussão a questão comunicacional do Judiciário e do juiz. Se o principal operador jurídico não encontrar formas de se comunicar com o povo, com a comunidade, com a media, com as organizações e os sindicatos, com a universidade e com o governo, estará apressando o projeto de sua substituição por alternativas outras – mais eficazes, céleres e acessíveis – na solução dos conflitos.



3 A POBREZA

A dificuldade no custeio das despesas necessárias ao litígio sempre foi considerada em todos os estudos sobre o acesso aos tribunais. A primeira onda nas soluções práticas para os problemas de acesso à Justiça, segundo Mauro Cappelletti, era justamente a assistência judiciária para os pobres. Hugo Mazzilli, depois de reconhecer que o acesso à Justiça é um dos valores fundamentais da própria democracia, constata: Entretanto, a possibilidade de acesso à Justiça não é efetivamente igual para todos: são gritantes as desigualdades econômicas, sociais, culturais, regionais, etárias, mentais.

Ainda que por ora circunscrevendo-se o exame à questão do acesso aos tribunais, não é suficiente a extinção das custas. A necessidade de um advogado encarece a parte quando tem de litigar na Justiça. A nomeação de advogado gratuito possui inconvenientes. Primeiro, por criar-se um préstimo de segunda classe. Quase sempre é nítida a distinção entre o trabalho do advogado constituído e o do dativo. Depois, o causídico encarregado de patrocinar a causa de um pobre corre o risco de fazê-lo de maneira diferente de como o faria se tivera sido contratado. Problema que não é só brasileiro, mas já foi detectado em países de primeiro mundo, onde muitas pessoas entendem, com alguma razão, que um advogado, ao colocar-se na posição de advogado dos pobres e, de fato, ao tratar os pobres como se fossem incapazes de perseguir seus próprios interesses, é muito paternalista. Tratem-se os pobres, dizem elas, simplesmente como indivíduos comuns, com menos dinheiro.

A barreira da pobreza impede a submissão de todos os conflitos à apreciação de um juiz imparcial. Mas é verdadeiramente trágica se considerada a dimensão do acesso do pobre aos direitos. Os despossuídos são privados até dos direitos fundamentais de primeira geração, para eles meras declarações retóricas, sem repercussão em sua vida prática.

O ideal da igualdade, a inovação revolucionária resultante dos movimentos do século XVIII, não passou de uma proclamação bombástica e estéril. Pois a igualdade assim atingida era mais freqüentemente uma fachada que uma realidade, era uma derrisão em face daqueles a quem se poderia aplicar a frase cáustica segundo a qual eram todos "livres de dormir debaixo das pontes". Foi justamente a mais alta Corte desse país (a Inglaterra) que, nos anos 30, declarou que "a pobreza é uma desgraça pela qual o Direito nenhuma responsabilidade pode assumir".

Não se admite hoje esse alheamento. Vencer a pobreza é dever positivado na Constituição da República. Ninguém está liberado desse compromisso. E se a cruzada contra a miséria é a única alternativa para redesenhar o futuro do Brasil, dela não pode estar excluído o juiz.

Como servidor do povo, precisa estar atento à intenção do pacto fundamental: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais. Que isso não sirva para neutralizar, singelamente, a imparcialidade, mas atue no sentido de reclamar adequada aplicação do princípio da isonomia, de molde a conferir desigualdade de tratamento aos naturalmente desiguais. Insistir no mito da igualdade formal é aprofundar o fosso que separa despossuído e poderoso. Além de manter o juiz na sua rigidez mental, que não permite ao menos enxergar, quanto mais entender, a crise com que o Judiciário se defronta.

Num estado como o Brasil, de muitos milhões de miseráveis, o juiz precisa refletir continuamente se ele está sendo fator de resgate de seus semelhantes ou instrumento de mais intensamente afligir o aflito. Poderá ser um e outro, utilizando-se da mesma técnica de julgamento. Os estudiosos conscientes sabem que a lei é matéria plasmável e fluida, a conformar-se com a ideologia de quem a aplica.

O juiz nunca pode perder de vista a realidade concreta em que atua. Antonio Celso Aguillar Cortez, invocando o testemunho de Mozart Costa de Oliveira, menciona que, baseado em dados da Unesco, cerca de 40% da população brasileira vive em situação tida tecnicamente como de miséria, para enfatizar que em face das regras programáticas, de natureza social e de solidariedade, assim do Direito das Gentes (Declaração Universal, ONU, 1948), c/c pactos de 1967 e 76), como da CF/88 (preâmbulo, artigo 1º, artigo 3º) — todas elas regras jurídicas, não recomendações morais — temos de interpretar as necessidades sociais dessa gente como interesses difusos, soltos e perdidos, no âmbito dessa imensa massa social, disforme, indefinida.

O problema da pobreza, a primeira onda do movimento do acesso à Justiça, na formulação de Cappelletti, não só deixou de ser solucionado, como intensificou-se neste final de milênio. Ele ainda está presente e suscita a constatação de que as liberdades civis e políticas tradicionais são uma promessa fútil, na verdade um engodo para aqueles que, por motivos econômicos, sociais e culturais, de fato não são capazes de atingir tais liberdades e tirar proveito delas.

Se a distribuição de renda não sobrevier, se a miséria não for amenizada com urgência, já não se justificará a preservação do equipamento estatal chamado Justiça. Escapa-lhe rapidamente das mãos o poder de restabelecer o justo concreto, pois assim como o capital internacional – e sem pátria – se subrai à incidência da autoridade judicial, o crescimento da miséria reduz ainda mais o universo de sua atuação. O pobre tem seus problemas resolvidos na polícia, nos postos de saúde ou nas seitas evangélicas. É raro o seu dia na Corte.



4 A LENTIDÃO DO PROCESSO

A demora na prestação jurisdicional não é privilégio brasileiro. Sidnei Beneti recentemente afirmou que, a despeito, especialmente, da demora, causada pelo entulhamento dos grandes números, o processo brasileiro não precisa humilhar-se no mundo. De qualquer forma, ninguém deixa de reconhecer que a demora da Justiça é também uma forma de injustiça.

Esse, porém, não é o enfoque a ser considerado nessas reflexões. A temática tem sido tratada à exaustão. O juiz pode, pese embora as limitações pessoais, os defeitos de estrutura, a má produção da lei processual, tornar a justiça mais eficiente. Inúmeras propostas têm sido formuladas na doutrina. Em relação à reforma processual, a Escola Nacional da Magistratura, comandada pelo notável Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, vem produzindo inequívoco trabalho no sentido de conferir ao Judiciário instrumental idôneo a otimizar a outorga do justo concreto.

Uma vertente distinta a ser devidamente analisada é a da responsabilidade civil do Estado, resultante da demora na prestação jurisdicional.

Juízes há — e são minoria — que se não sensibilizam com a doutrina, que não se aproveitam das inovações normativas processuais e que, reiteradamente, atrasam a prestação jurisdicional. O fenômeno existe em todas as instâncias. Não apenas magistrados novos, mas também antigos, conferem o seu próprio ritmo à profissão.

Raras as providências correicionais para reconduzi-los ao ritmo da lei e das necessidades do jurisdicionado. Para esses casos, valeria à pena o desenvolvimento do tema daresponsabilidade civil do Estado, com ênfase na possibilidade de ação regressiva contra o causador do dano.

Yussef Said Cahali procedeu a uma percuciente análise em sua obra Responsabilidade Civil do Estado, recentemente revista. E chega à conclusão de que a realidade constitucional tornou possível essa responsabilização.

Cita o exemplo da França, com a Lei nº 72.620, de 5/7/72 e Lei nº 79/43, de 18/1/79 e o da Itália – Lei nº 117, de 13/4/88, que adotam um sistema de responsabilidade estatal exclusiva: apenas o Estado responde perante o jurisdicionado, ressalvado àquele o direito de regresso contra o magistrado faltoso. Na Itália, a lei resultou de umreferendum: Estado responde exclusivamente por ato judicial ilícito: dolo, culpa grave ou denegação de justiça. Na França, fala-se em fonctionnement défectueux du service de la justice, muito mais abrangente.

Pode-se concluir que o Direito brasileiro também adota esse princípio, dada a amplitude do disposto no art. 37, § 6º, da CF. Afinal, O serviço judiciário consiste, incontestavelmente, em um serviço público, imposto aos cidadãos pelo Estado, que deve zelar por um certo grau de perfeição tanto na sua organização quanto no seu funcionamento, bem como responder pelos danos acaso daí provenientes.

Hipóteses como as citadas recaem na letra do art. 133 do Código de Processo Civil e admitem responsabilização, sem qualquer dúvida. Mas sem falar em desídia, o atraso excessivo pode gerar prejuízo à parte e esse é perfeitamente ressarcível.

Não se esgota no dolo a possibilidade de o juiz prejudicar alguém, salienta o juiz José Guilherme de Souza. Pois o magistrado incompetente (no sentido técnico, mas não processual), desidioso, desinteressado, sem aplicação aos estudos, venal, corrupto, tendencioso, etc., acaba por causar danos, numa reação em cadeia, embora não necessariamente nesta ordem de prioridades: aos jurisdicionados e à sociedade como um todo, por extensão: ao Estado, que ele representa e que é avocado em juízo para dar contas, às custas do erário, dos atos de seus agentes; extensivamente, à justiça, enquanto estrutura organizada de proteção aos direitos do cidadão; por último, à sua corporação, enquanto órgão de aglutinação e de defesa dos interesses da classe, bem como aos colegas profissionais tomados individualmente.

Para esse magistrado catarinense, a cada vez que um magistrado, havendo cometido uma falta profissional no desempenho de suas funções, viesse a ser condenado a repetir ao Estado o que este despendeu com o ressarcimento dos danos sofridos pelo particular em razão daquela falta, um passo a mais teria sido dado no rumo de uma justiça mais séria, mais humana e mais justa.

A condenação ressarcitória, para o juiz responsável por má prestação jurisdicional, constituiria estímulo a que todos os demais se motivassem à adequada outorga. É uma forma de se ampliar o acesso à justiça convencional.

Para todos os juízes, porém – aqui incluídos aqueles que investem na autoformação continuada e procuram vencer a sobrecarga de trabalho resultante da contingência, o Judiciário precisa oferecer melhores condições de trabalho.

A multiplicação dos cargos de juiz não é a solução. As estatíticas invocadas não servem para justificar a necessidade de criação de cargos, pois as situações entre os Estados cotejados é completamente diferente.

Importa é conferir ênfase à responsabilidade do juiz, o principal operador jurídico na presente concepção de Justiça. Basta de reducionismo na visão do servo e aplicador inerte da lei. Essa concepção está em conflito com um enfoque moderno do Direito e da interpretação jurídica, aliás em geral com a teoria moderna da hermenêutica: a interpretação sempre deixa algum espaço para opções, e portanto para a responsabilidade.

Onde se aprende interpretar com responsabilidade?

As Escolas da Magistratura são o laboratório gerador de uma nova visão do Judiciário. Incentivando a criatividade, estimulando a eficiência, repensando as técnicas de trabalho, conferindo ao processo toda a sua potencialidade como instrumento suficiente à realização do justo.

As Escolas precisam, mais do que nunca, enfatizar o aspecto ético da profissionalização, pois o juiz consciente se condói da situação dos excluídos da justiça e se preocupa com a técnica facilitadora da eficiência no desempenho.

É o momento de se ensinar o juiz a conviver com alternativas diversas de realização da justiça, humilde na convicção de que não é só ele o concretizador do justo, mas precisará coexistir com as tendências de solução pacífica dos conflitos, sejam elas a conciliação, a mediação, a arbitragem ou mesmo certas formas incipientes de justiça privatizada.

Quem não se aperceber de que os tempos são outros e que o acesso à Justiça é algo de muito mais sério do que garantir a institucionalização do conflito mediante o processo, poderá ser surpreendido com a substituição da Justiça convencional por outras formas de maior eficiência na mitigação da sede de justiça de que padece a humanidade aflita, mas participante, deste final de milênio.



5 CONCLUSÕES

1. Insatisfatória a estrita visão do acesso à Justiça como acesso aos tribunais. Se este é o coroamento do Estado de Direito, é também – e simultaneamente – umdireito meramente formal, tantos são os obstáculos antepostos ao acesso da pessoa à ordem jurídica justa.

2. A única proposta desta reflexão é examinar, superficialmente embora, três dentre as causas que dificultam o acesso à ordem jurídica justa: o desconhecimento do Direito, a pobreza e a lentidão na outorga da prestação jurisdicional.

3. As pessoas não poderão usufruir da garantia de fazer valer seus direitos perante os tribunais, se não conhecem a lei, nem o limite de seus direitos. A aplicação do Direitoé tarefa de juristas e, portanto, natural certo desconhecimento de sua técnica operacional. Já o conhecimento do Direito constitui pressuposto à sua aplicação e se traduz como o direito a ter direitos.

4. O primeiro compromisso do juiz é com a disseminação do Direito. O Direito deverá quotidianizar-se, perder sua magia para ingressar na realidade concreta de cada ser humano. O juiz pode atuar na ampliação do acesso ao conhecimento do Direito de forma institucional ou pessoal.

5. A atuação institucional incumbe ao Poder Judiciário e às Associações de Classe, que devem atuar no sentido de divulgar o Direito e as formas de usufruí-lo e de defendê-lo quando vulnerado. Todas as informações jurídicas são pertinentes e mesmo a edição de uma Cartilha da Cidadania se faz recomendável, para uso do brasileiro despertado para essa vertente constitucional a partir de 1988.

6. Todo juiz, pessoalmente, pode contribuir para disseminar o Direito, pois ao decidir está exercendo função docente. As decisões devem revestir clareza, assim entendida a cortesia do intelectual para com os destinatários de sua produção. Se os leigos compreenderem o Direito, afeiçoar-se-ão a ele e ao valor que exprime.

7. Muitos juízes também contribuem para tornar o Direito melhor conhecido quando lecionam, escrevem trabalhos doutrinários e artigos para os mass media, não se recusam a entrevistas e a debates. O momento histórico exige magistrado mais atuante, menos distanciado da comunidade. Presente e transparente, não mais o asséptico e inatingível aplicador da letra fria da lei.

8. A pobreza é um dos maiores obstáculos do acesso ao Direito e atinge cerca de um terço da população brasileira. Já não basta dizer que a pobreza é uma desgraça não imputável ao jurista. O juiz é também destinatário do comando constitucional direcionado a transformar o Brasil numa sociedade fraterna, justa e solidária.

9. Combater a miséria é a única forma de redesenhar o Brasil e que tal truísmo, além de contribuir para o juiz repensar o dogma da imparcialidade, reclame-lhe adequada aplicação do princípio da isonomia, de maneira a reduzir o fosso que separa o poderoso do despossuído.

10. Num Estado como o Brasil, de muitos milhões de miseráveis, o juiz precisa refletir continuamente se ele está sendo fator de resgate de seus semelhantes ou instrumento de mais intensamente afligir o aflito. Poderá ser um e outro, utilizando-se da mesma técnica de julgamento.

11. A lentidão do processo não é fenômeno brasileiro, mas admite tratamento apropriado, a partir da consciência do juiz. A despeito da falta de estrutura material e da multiplicação de demandas, pode conferir celeridade aos feitos, desde que se sirva adequadamente do raciocínio constitucional e confira ao processo a sua destinação instrumental.

12. Para reduzido número de juízes insensíveis à doutrina e às reformas processuais, responsáveis por tramitação defeituosa que resulta de um ritmo próprio conferido ao processo, a responsabilização civil do Estado, na via regressiva, poderia constituir terapêutica.

13. Importa é conferir ênfase à responsabilidade do juiz, o principal operador jurídico na presente concepção de Justiça. Basta de reducionismo na visão do servo e aplicador inerte da lei. E assumir as responsabilidades sociais e históricas também se aprende. Especialmente nas Escolas da Magistratura.

14. As Escolas precisam, mais do que nunca, enfatizar o aspecto ético da profissionalização, pois o juiz consciente se condói da situação dos excluídos da justiça e se preocupa com a técnica facilitadora da eficiência no desempenho. E com isso garantirá efetiva ampliação do acesso de todos ao Direito e à Justiça.

José Renato Nalini é juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo e diretor adjunto da Escola Nacional da Magistratura.



BARBOSA DIZ QUE JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE É TEMA SUPERLATIVO


A judicialização dos direitos sociais à saúde é um tema “superlativo” e deve ser enfrentado sem rodeios em razão do número cada vez mais frequente de decisões administrativas e judiciais referentes ao pleito de cidadãos na busca por essa garantia elementar. Esta é a conclusão do presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministro Joaquim Barbosa, ao discursar na abertura do seminário Direito à Saúde, associado ao Terceiro Evento Latino-americano sobre Direito à Saúde e Sistemas de Saúde. O seminário ocorre nesta segunda (3/6) e terça-feira (4/6) na sede do Tribunal Superior do Trabalho em Brasília. 
“No Brasil, a desigualdade no campo da saúde é tão expressiva, que se tornou imperativo para o Poder Judiciário atuar com bastante rigor e precisão para impedir que o fosso entre os cidadãos se alargue ainda mais”, disse Barbosa na abertura do evento internacional.
O ministro reconheceu, contudo, que diante das limitações orçamentárias, não se pode impor ao Estado a responsabilidade pela concessão ilimitada de tratamentos e medicamentos. Porém, na opinião de Barbosa, isso não deve servir como justificativa para o desrespeito a um direito que, além de constitucional, envolve uma garantia elementar, que é o direito à vida.
"Argumentos tais como o da ‘reserva do possível’, da impossibilidade do controle dos atos administrativos de mérito pelo Judiciário, o da ausência de conhecimento técnico do magistrado não podem ser utilizados sem a devida ponderação como um escudo contra a realização do direito fundamental à saúde", afirmou o ministro.
O evento ocorre uma semana após o CNJ começar analisar a proposta que recomenda a criação de varas especializadas em processar e julgar ações referentes ao direito à saúde. A relatoria do processo no CNJ é do conselheiro Ney Freitas, que também preside a Comissão de Acesso à Justiça do conselho e o Fórum Nacional da Saúde. Estavam presentes ainda à abertura do evento nesta segunda, além do presidente do CNJ e do conselheito Ney Freitas, o presidente do TST, ministro Carlos Alberto, o juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Roberto Caldas, o representante no Brasil da Organização Panamericana de Saúde da Organização Mundial de Saúde (OPAS/OMS), o cubano Joaquin Molina, e a economista especialista em saúde e responsável pela políticas relacionadas a sistemas de saúde do Instituto do Banco Mundial, Maria-Luisa Escobar.
Durante sua fala, o presidente do STF disse que embora esteja superada a discussão sobre a garantia de acesso à saúde ser obrigação do Estado, a desigualdade “expressiva” na prestação desse direito pelo poder público levou ao crescimento da demanda junto ao Judiciário na busca para assegurar sua efetivação.
Corte Interamericana
O juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos Roberto Caldas citou, por ocasião da abertura do evento, uma decisão recente daquela corte que garantiu a uma mulher de El Salvador o direito de interromper a gravidez de um feto anencéfalo, o que vinha sendo negado pelas autoridades salvadorenhas — apesar de relatórios médicos que indicavam urgência no procedimento.

“Em matéria urgente, a corte não analisa a questão de fundo, nem estabelece uma responsabilidade do Estado. Mas, a decisão foi clara em determinar que as autoridades do Estado de El Salvador propiciassem, de maneira urgente, esforços para preservar a vida desta mãe e a interrupção da gravidez”, explicou.
Roberto Caldas falou também das atividades do grupo de trabalho da Corte Interamericana, ocupado de analisar informes referentes ã adoção por países signatários de políticas de direito à saúde. O grupo estuda “informes nacionais” previstos no protocolo de San Salvador, adesivo ao Pacto de San Jose da Costa Rica.
“Esses relatórios são muito importantes. Nos últimos dois anos, vêm sendo discutidos e creio que é de grande interesse para os participantes desse encontro”, disse.
Rafael Baliardo é repórter da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 3 de junho de 2013

segunda-feira, 3 de junho de 2013

JUÍZA DE GOIÁS MUDA ENTENDIMENTO E AUTORIZA UNIÃO GAY

Em muitos casos, a demora ou omissão dos legisladores obriga juízes a produzirem normas que preencham, ao menos provisoriamente, as lacunas do ordenamento jurídico. Essa foi a percepção adotada pela juíza Sirlei Martins da Costa, da 1ª Vara de Família e Sucessões de Goiânia, quanto ao casamento homossexual. É que, se em junho de 2012 ela decidiu que dois homossexuais não poderiam se casar por falta de previsão legal, na terça-feira (28/5) ela mudou de opinião e autorizou um casamento gay.
Na decisão do ano passado, Sirlei da Costa afirmou que, apesar de não ver problemas no casamento entre duas pessoas do mesmo sexo, somente lei aprovada pelo Congresso Nacional poderia autorizá-lo. Para isso, escreveu, seria necessária ampla discussão social sobre o tema. Já na sentença da terça, ela segue em outra direção: "inegável que ao cumprir seu dever precípuo de interpretar a norma, o julgador também produz norma".
Para aprovar a união gay, ela recorre ao artigo 3º da Constituição Federal, que define como um dos objetivos do país “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Sirlei argumentou que a limitação da possibilidade de exercer a intimidade sexual conforme o desejo atenta contra a dignidade da pessoa. E a garantia apenas ao casamento heterossexual é uma restrição de direito, apontou.
“Não encontro nenhum motivo para dizer que o casamento entre pessoas do mesmo sexo pode trazer qualquer prejuízo para a sociedade. A história mostra que o exercício da intolerância é que gera catástrofes. Em corolário a isso, podemos vislumbrar que o exercício e a prática da tolerância podem, quiçá, ser positivos no sentido de promover o desenvolvimento da sociedade”, diz a juíza, na decisão mais recente. 
Em sua opinião, "não há como negar que o julgamento do STF (ADI 4277/DF e ADPF 132/RJ), o julgamento do STJ (RESP 1.183.378/RS) e até a Resolução 175 do CNJ sejam influenciadores da formação de convicção do julgador no sentido de permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo". Uma das provas disso, segundo ela, é que após julgamento do STF, Corregedorias de Justiça de dez estados regulamentaram a matéria: Santa Catarina, Rio de Janeiro, Roraima, Paraná, Mato Grosso do Sul, Bahia, Sergipe, Piauí, São Paulo e Rio de Janeiro
Ressalvas
Apesar do poder transformador dessas interpretações, ela tem ressalvas quanto aos seus impactos no ordenamento jurídico. Ela pondera que o Código Civil "afirma categoricamente" que o casamento se dá entre homem e mulher e compete ao legislador analisar a questão. “Na verdade, a admissão do direito de casamento entre pessoas do mesmo sexo apenas impõe aos demais um dever: tolerar e respeitar as diferenças”, disse. A guinada de entendimento, de acordo com a juíza, se deve ao atraso dos legisladores em atender aos anseios da sociedade.

Para ela, diferente de autorizar o casamento gay, a decisão do Supremo reconheceu a entidade familiar criada na relação pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo. O Supremo também garantiu, com aquele entendimento, que casais gays devem ter os mesmos benefícios de uma união heterossexual, conforme o artigo 226 da Constituição e o artigo 1.723 do Código Civil.
A juíza ainda destacou na sentença que a Resolução 175/2013, do Conselho Nacional de Justiça, vincula somente os cartórios a habilitarem o casamento gay. A norma obriga os cartórios a converter a união estável homossexual em casamento, se assim for o desejo do casal. Ao julgador, de acordo com ela, cabem os princípios determinados pelo artigo 93 da Constituição, que trata da prerrogativa de livre convencimento. 
Posicionamento anterior
Ao recusar o pedido de união civil feito por dois homens, em junho de 2012, ela destacou que a legislação civil reconhece diversas formas de entidades familiares, sendo o casamento entre homem e mulher apenas uma delas. Mas o ordenamento jurídico não permite, justificou, a união entre duas pessoas do mesmo sexo no Brasil.

Naquela época, a aprovação de regras sobre o tema já havia acontecido em alguns países da Europa, estados norte-americanos e na Argentina. Mas Sirlei da Costa ressaltou que, nesses casos, foram necessários amplos debates no Legislativo e na sociedade para garantir a norma.
"Em nenhum desses países, o casamento entre pessoas do mesmo sexo passou a ser possível por decisão judicial. Caso contrário, estar-se-ia permitindo decisões manipulativas aditivas de garantia em controle concreto de constitucionalidade, o que não é possível, conforme posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal que, inclusive, nega possibilidade jurídica às sentenças manipulativas a pretexto de evitar uma atividade de 'legislação positiva' ao Judiciário.", ponderou.
Em fevereiro de 2007 a mesma juíza, à época na 3ª Vara de Família, Sucessões e Cível de Goiânia, já havia reconhecido um relacionamento homoafetivo estável como entidade familiar, com “todas as conseqüências legais advindas de uma união”. Segundo Sirlei Martins Costa, embora náo houvesse legislação específica para o tema, a jurisprudência era pacífica sobre a possibilidade jurídica da união de duas pessoas do mesmo sexo. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-GO.
Victor Vieira é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 1º de junho de 2013

PEC 37 É INSTITUCIONALIZAÇÃO DE ESTADO DE EXCEÇÃO

Em 2011, a quando a PEC 37 apareceu no cenário, poucos foram os que a comentaram. Por mais que alguns, desde aquela época, já tivessem se pronunciado com críticas certeiras sobre o absurdo que ela constitui, em especial do ponto de vista da democracia, seu sentido, efeitos e consequências ainda não estavam em pleno debate.
Por outro lado, atualmente, isso vem acontecendo, felizmente, e de forma até acalorada, quando autores conhecidos da doutrina brasileira vêm defendendo a PEC sob argumentos de legalidade e segurança jurídica e outros clamando pelo reconhecimento de seu caráter absurdo, em violação do princípio da (ir)razoabilidade — ao menos, como o concebemos, e também daquele outro, que lhe é complementar — e, logo, dele se deve diferenciar — o da proporcionalidade, por ocasionando um desvio de poder abusivo para o Poder do Estado que já se mostra hiperdimensionado, como aquele governamental. Estamos, a seguir esta última tendência, à qual me filio, diante de flagrante inconstitucionalidade originária, portanto, uma ilegalidade a ser repelida por todos os meios jurídicos, políticos e político-jurídicos — como entendemos serem as ações de controle de constitucionalidade — previstos entre nós.
Muito interessante é como, junto aos argumentos daqueles que de modo enfático se colocam a favor da Proposta, argumentos supostamente técnicos têm sido invocados demonstrando total desatualização e até mesmo desconhecimento jurídico básico — e não por não os possuírem quem os maneja, mas por motivos claramente ideológicos. Não é mais tempo de se sustentar argumentos com base em quimeras como a “vontade do legislador” e nunca foi tempo, desde a previsão entre nós do artigo 5º, inciso Lv da CF88, de se tratar inquérito policial como mero procedimento administrativo, ou ainda de intencionalidade de normas constitucionais, as quais, sob a visão desse tipo de intérprete, recebem a determinação de uma finalidade que não é a das normas constitucionais, muito menos de se invocar, como uma bandeira, o tema da legalidade, afirmando-se que a PEC 37 veio dizer o já dito pela Constituição e pelo Código de Processo Penal, outro equívoco por desconhecimento (doloso?) de hermenêutica, em particular, a constitucional.
A nosso ver, a PEC 37 é mais um dos absurdos que têm sido cometidos no âmbito do denominado Estado Democrático de Direito, absurdo de suspensão e excepcionalidade da lei, a provocar uma indeterminação do Estado de Direito que deveria vigorar entre nós, passível de ser então confundido com um verdadeiro Estado de Exceção, sem que sequer se perceba tal suspensão do Direito, e pior, alguns de “dentro” do próprio direito chegam a corroborá-la ao máximo. Cientes ou não (na maioria das vezes parece ser o segundo o caso) assim o fazem.
A referência ao Estado de Exceção aqui feita reporta-se, evidentemente, às ideias apresentadas claramente pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, ou seja, a uma situação em que se constitui uma zona de anomia, na qual determinada norma é suspensa, mas continua em vigor. O A. desenvolve seu pensamento a partir do adágio latino necessitas legem non habet, significando não apenas que um assim proclamado estado de emergência ou “necessidade” não só dispensa a obediência às leis, como também tal “necessidade” cria as próprias leis, legitimando-se mutuamente, a exceção e as leis dela derivadas, tal como se teve, exemplarmente, na Alemanha nazista, mas também em ditaduras, como a nossa última, militar, ou na atual, que se vem instalando, “civilmente”, e não só entre nós, com também pelo mundo afora, sob a liderança anglo-saxã.
Indiferentemente do que se possa dizer, a PEC 37 claramente mostra como a necessidade cria uma lei e, pior, como a necessidade faz com que o direito, traído pelos seus próprios “pensadores” encontre uma outra finalidade — inventada —para a Constituição que legitimada (sic) na legalidade faz imperar a figura do estado de exceção. No caso há uma estranha necessidade em querer se calar o Ministério Público. Dá-se mais um passo para a instalação do que em sua recente palestra de abertura do XXII Encontro Nacional do Conselho de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, em Curitiba, Lênio Luiz Streck caracterizou como “Juristocracia”.
Há tempos em países democráticos, no próprio STF, assim como Tribunais Internacionais presencia-se toda uma miríade adequada e legítima de anseios a defenderem a importância de haver um controle tanto da atividade investigatória do Ministério Público quanto da atividade policial, e a bem da verdade o próprio texto constitucional prevê que ao Ministério Público caberá o controle da atividade policial. A regulação de tudo o que é arbitrário, inclusive do ponto de vista do Judiciário, deve necessariamente ocorrer, para se evitar reducionismos de poder a sistemas autoritários.
O que ocorre com a PEC 37 é o que temos de último caracterizado, com apoio, sobretudo, em Niklas Luhmann, Roberto Esposito e Jacques Derrida, um problema de auto-imunidade do Direito, este (sub)sistema imunitário do sistema social, enquanto o excesso causado pela sua tentativa regulatória de inconstitucionalidade evidente, por violar a separação entre os poderes, tal como em muito boa hora denunciou recentemente o meu colega (e também muito amigo) Ricardo Sayeg, revela na verdade as condições para a criação de uma polícia não de Estado, mas de governo, como acontecia nos regimes ditatoriais, beneficiando os amigos e atingindo os inimigos para lembrar o jurista genial, que se deixou também iludir — só para lembrar que ser jurista e, mesmo genial, não é garantia alguma de estarmos “do lado certo” — e apoiou o regime nazista, Carl Schmitt.
Willis Santiago Guerra Filho é professor titular do Centro de Ciências jurídicas e Políticas da universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, professor e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos do Programa de Mestrado e Doutorado da PUC-SP, livre-Docente em Filosofia do Direito (UFC), doutor em Direito (Universidade Bielefeld, Alemanha), doutor e pós-doutor em Filosofia (UFRJ), advogado e membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-CE.

Revista Consultor Jurídico, 3 de junho de 2013

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